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Document 62022CJ0472
Judgment of the Court (Sixth Chamber) of 16 November 2023.#NO v Autoridade Tributária e Aduaneira.#Request for a preliminary ruling from the Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD).#Reference for a preliminary ruling – Article 49 TFEU – Freedom of establishment – Articles 63 and 65 TFEU – Free movement of capital – Personal income tax – Tax advantage relating to the taxation of capital gains on transfers of shares in small enterprises – Exclusion of undertakings established in other Member States – Concept of ‘abusive practice’.#Case C-472/22.
Acórdão do Tribunal de Justiça (Sexta Secção) de 16 de novembro de 2023.
NO contra Autoridade Tributária e Aduaneira.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD).
Reenvio prejudicial — Artigo 49.° TFUE — Liberdade de estabelecimento — Artigos 63.° e 65.° TFUE — Livre circulação de capitais — Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares — Benefício fiscal em matéria de tributação de mais‑valias sobre as transmissões de participações sociais em pequenas empresas — Exclusão das empresas estabelecidas noutros Estados‑Membros — Conceito de “prática abusiva”.
Processo C-472/22.
Acórdão do Tribunal de Justiça (Sexta Secção) de 16 de novembro de 2023.
NO contra Autoridade Tributária e Aduaneira.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD).
Reenvio prejudicial — Artigo 49.° TFUE — Liberdade de estabelecimento — Artigos 63.° e 65.° TFUE — Livre circulação de capitais — Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares — Benefício fiscal em matéria de tributação de mais‑valias sobre as transmissões de participações sociais em pequenas empresas — Exclusão das empresas estabelecidas noutros Estados‑Membros — Conceito de “prática abusiva”.
Processo C-472/22.
ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:880
*A9* Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD), decisão de 09/07/2022 (360/2021-T)
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)
16 de novembro de 2023 ( *1 )
«Reenvio prejudicial — Artigo 49.o TFUE — Liberdade de estabelecimento — Artigos 63.° e 65.° TFUE — Livre circulação de capitais — Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares — Benefício fiscal em matéria de tributação de mais‑valias sobre as transmissões de participações sociais em pequenas empresas — Exclusão das empresas estabelecidas noutros Estados‑Membros — Conceito de “prática abusiva”»
No processo C‑472/22,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) (Portugal), por Decisão de 9 de julho de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 14 de julho de 2022, no processo
NO
contra
Autoridade Tributária e Aduaneira,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),
composto por: T. von Danwitz (relator), presidente de secção, P. G. Xuereb e A. Kumin, juízes,
advogado‑geral: A. M. Collins,
secretário: A. Calot Escobar,
vistos os autos,
vistas as observações apresentadas:
– |
em representação de NO, por C. Avelino, J. Pedroso de Melo e R. Sarabando Pereira, advogados, |
– |
em representação do Governo Português, por A. de Almeida Morgado, P. Barros da Costa e A. Rodrigues, na qualidade de agentes, |
– |
em representação do Governo Italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por M. Cherubini e P. Gentili, avvocati dello Stato, |
– |
em representação da Comissão Europeia, por P. Caro de Sousa e W. Roels, na qualidade de agentes, |
vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,
profere o presente
Acórdão
1 |
O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 49.° e 63.° TFUE e do princípio geral do direito da União de proibição de práticas abusivas. |
2 |
Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe NO, nacional francês residente em Portugal, à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal) (a seguir «Autoridade Tributária») a respeito de um pedido de anulação de um ato de liquidação do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (a seguir «IRS»), relativo aos rendimentos auferidos por NO em 2019. |
Quadro jurídico
Código do IRS
3 |
O artigo 10.o do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (a seguir «Código do IRS»), sob a epígrafe «Mais‑valias», dispõe: «1. Constituem mais‑valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: [...]
[...] 4. O ganho sujeito a IRS é constituído:
[...]» |
4 |
O artigo 43.o deste código, sob a epígrafe «Mais‑valias», prevê: «1 ‑ O valor dos rendimentos qualificados como mais‑valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais‑valias e as menos‑valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes. [...] 3 ‑ O saldo referido no n.o 1, respeitante às operações previstas na alínea b) do n.o 1 do artigo 10.o, relativo a micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, quando positivo, é igualmente considerado em 50 % do seu valor. 4 ‑ Para efeitos do número anterior entende‑se por micro e pequenas empresas as entidades definidas, nos termos do anexo ao Decreto‑Lei n.o 372/2007, de 6 de novembro (Diário da República n.o 213/2007, Série I, de 6 de novembro de 2007).» |
5 |
O artigo 44.o, n.o 1, do referido código, sob a epígrafe «Valor de realização», enuncia: «Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera‑se valor de realização: [...]
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6 |
O artigo 48.o do mesmo código, sob a epígrafe «Valor de aquisição a título oneroso de partes sociais e de outros valores mobiliários», dispõe: «No caso da alínea b) do n.o 1 do artigo 10.o, o valor de aquisição, quando esta haja sido efetuada a título oneroso, é o seguinte: [...] b) Tratando‑se de quotas, outras partes sociais, warrants autónomos, certificados referidos na alínea g) do n.o 1 do artigo 10.o ou de outros valores mobiliários não cotados em mercado regulamentado, o custo documentalmente provado ou, na sua falta, o respetivo valor nominal; [...]» |
Decreto‑Lei n.o 372/1972
7 |
O artigo 2.o do anexo do Decreto‑Lei n.o 372/2007, sob a epígrafe «Efetivos e limiares financeiros que definem as categorias de empresas», dispõe: «1 ‑ A categoria das micro, pequenas e médias empresas (PME) é constituída por empresas que empregam menos de 250 pessoas e cujo volume de negócios anual não excede 50 milhões de euros ou cujo balanço total anual não excede 43 milhões de euros. 2 ‑ Na categoria das PME, uma pequena empresa é definida como uma empresa que emprega menos de 50 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede 10 milhões de euros. 3 ‑ Na categoria das PME, uma micro empresa é definida como uma empresa que emprega menos de 10 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede 2 milhões de euros.» |
Litígio no processo principal e questões prejudiciais
8 |
NO, nacional francês com residência fiscal em Portugal no ano de 2019, alienou nesse ano à Prince Vert SAS, sociedade de direito francês, 29222 participações sociais que detinha noutra sociedade de direito francês, a Château de La Bourdaisière SARL (a seguir «CLB»). Essas participações sociais representavam 47,5 % do capital social da CLB. NO, que adquiriu as referidas participações sociais nos anos de 2011 e de 2012 pelo montante de 279129 euros, alienou‑as pelo preço de 850000 euros, que a Prince Vert pagou contraindo um empréstimo. |
9 |
À data dessa transmissão, NO detinha também 86 % do capital social da Prince Vert. Nem a CLB nem a Prince Vert distribuíram dividendos entre o ano de 2013 e o ano de 2019. Antes da referida transmissão, NO detinha, direta e indiretamente, 99,71 % das participações sociais da CLB, e detinha ainda, direta e indiretamente, 93,06 % dessas participações sociais após a transmissão. Por outras palavras, através dessa transação, só transmitiu efetivamente o controlo de 6,65 % do capital social da CLB, de que permaneceu como gerente e acionista maioritário. |
10 |
Em 2019, a CLB era uma «pequena empresa», na aceção do artigo 2.o do anexo do Decreto‑Lei n.o 372/2007, porque tinha um efetivo igual a quinze pessoas e um volume de negócios anual ou um balanço total anual que não excedia 10 milhões de euros. A CLB tinha sede efetiva e residência fiscal em França e não exercia uma atividade económica em território português. |
11 |
NO fez constar da declaração de IRS que apresentou, referente ao ano de 2019, a alienação de partes sociais da CLB e a mais‑valia resultante da alienação. Com base nessa declaração, a Autoridade Tributária notificou‑o da liquidação de IRS. Esta Autoridade calculou o imposto devido por NO sobre essa transmissão considerando a totalidade da mais‑valia resultante da referida transmissão, sem aplicar a redução de 50 %, prevista no artigo 43.o, n.o 3, do Código IRS para as transmissões de participações sociais em micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores. |
12 |
Em 17 de junho de 2021, NO apresentou pedido de pronúncia arbitral no Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) (Portugal), o órgão jurisdicional de reenvio, com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de IRS pela Autoridade Tributária, por não ter aplicado, erradamente, o benefício fiscal previsto no artigo 43.o, n.o 3, do Código do IRS. Por seu turno, a Autoridade Tributária alega que esta disposição tem por objetivo apoiar as empresas portuguesas e estimular a atividade económica em Portugal. Por conseguinte, as transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas fora do território português devem ser excluídas, visto que tais operações não contribuem para a atividade económica portuguesa. |
13 |
O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a compatibilidade de uma prática administrativa que consiste em recusar aos contribuintes que detenham participações sociais em sociedades estrangeiras o benefício fiscal previsto no artigo 43.o, n.o 3, do Código do IRS com o direito da União. Concretamente, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que esta prática pode implicar uma restrição injustificada à liberdade de estabelecimento enunciada no artigo 49.o TFUE, por ter o efeito de dissuadir residentes em território português de participarem, de modo estável e contínuo, na vida económica de um outro Estado‑Membro, e à liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.o TFUE, por poder dissuadir residentes em território português de investirem os seus capitais noutro Estado‑Membro. |
14 |
Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio salienta, por iniciativa própria, que existem indícios sérios e objetivos de que a transmissão das participações sociais da CLB para a Prince Vert poderá constituir uma transação artificial, ou uma transação cuja forma não reflete a realidade económica, ou o resultado efetivamente produzido, e poderá ter sido realizada com o objetivo essencial de obter uma vantagem fiscal. Segundo esse órgão jurisdicional, não se tratará de uma verdadeira alienação de participações sociais que gerou uma mais‑valia, mas de um pagamento dissimulado de dividendos. Ora, por força do direito nacional, tal pagamento de dividendos deveria ter sido sujeito a um imposto mais elevado do que uma mais‑valia sobre a alienação de participações sociais. O órgão jurisdicional de reenvio questiona‑se, portanto, sobre a questão de saber se, nessa situação, um contribuinte pode invocar os artigos 49.° e 63.° TFUE para beneficiar de um benefício fiscal instituído pelo direito nacional. |
15 |
Neste contexto, o Tribunal Arbitral Tributário (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
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Quanto às questões prejudiciais
Quanto às questões primeira a quarta
16 |
Com estas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 49.° e/ou 63.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma prática fiscal de um Estado‑Membro, em matéria de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, que reserva um benefício fiscal, que consiste na redução para metade da tributação das mais‑valias geradas pela transmissão de participações sociais, apenas às transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas nesse Estado‑Membro, com exclusão das transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas noutros Estados‑Membros. |
Quanto à liberdade de circulação aplicável
17 |
Atendendo a que as questões submetidas se referem simultaneamente às disposições do Tratado FUE relativas à liberdade de estabelecimento e à livre circulação de capitais, importa determinar qual a liberdade que se aplica ao litígio no processo principal [Acórdão de 7 de abril de 2022, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Isenção dos fundos de investimento contratuais), C‑342/20, EU:C:2022:276, n.o 34]. |
18 |
Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para determinar se uma legislação nacional está abrangida por uma ou outra das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado FUE, há que ter em conta o objeto da legislação em causa (Acórdão de 16 de dezembro de 2021, UBS Real Estate, C‑478/19 e C‑479/19, EU:C:2021:1015, n.o 28 e jurisprudência referida). |
19 |
A este respeito, cabe recordar que uma legislação nacional suscetível de se aplicar apenas às unidades de participação que permitam exercer uma influência certa nas decisões de uma sociedade e determinar as atividades desta é abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 49.o TFUE, relativo à liberdade de estabelecimento. Em contrapartida, disposições nacionais que sejam aplicáveis a unidades de participação efetuadas apenas com a intenção de realizar um investimento financeiro, sem intenção de influenciar a gestão e o controlo da empresa, devem ser examinadas exclusivamente à luz da livre circulação de capitais [Acórdão de 7 de abril de 2022, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Isenção dos fundos de investimento contratuais), C‑342/20, EU:C:2022:276, n.o 45 e jurisprudência referida]. |
20 |
No caso em apreço, a legislação nacional em causa no processo principal, conforme aplicada pela Autoridade Tributária, visa beneficiar fiscalmente as mais‑valias geradas pela transmissão de participações sociais em micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, desde que exerçam uma atividade económica em Portugal. Como a Comissão Europeia observou, esta legislação é aplicável a todas as transmissões de participações sociais nessas sociedades, independentemente da dimensão das participações em causa. |
21 |
Assim, sem excluir do seu âmbito de aplicação situações abrangidas pela liberdade de estabelecimento, a legislação nacional em causa no processo principal visa, em geral, participações sociais, sendo irrelevante o facto de estas serem adquiridas com a intenção de influenciar a gestão e o controlo de uma empresa. Por conseguinte, esta legislação pode afetar de maneira preponderante a livre circulação de capitais. Eventuais restrições à liberdade de estabelecimento que resultem da referida legislação constituiriam uma consequência inevitável da restrição à livre circulação de capitais e não justificam, portanto, um exame autónomo à luz do artigo 49.o TFUE [v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2022, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Isenção dos fundos de investimento contratuais), C‑342/20, EU:C:2022:276, n.o 47 e jurisprudência referida]. |
Quanto à restrição à livre circulação de capitais
22 |
Nos termos do artigo 63.o, n.o 1, TFUE, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados‑Membros e entre Estados‑Membros e países terceiros. |
23 |
Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.o, n.o 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (Acórdão de 17 de março de 2022, AllianzGI‑Fonds AEVN, C‑545/19, EU:C:2022:193, n.o 36 e jurisprudência referida). |
24 |
No caso em apreço, a legislação nacional em causa no processo principal, tal como aplicada pela Autoridade Tributária, institui uma diferença de tratamento entre os residentes fiscais portugueses que detenham participações sociais em empresas que exerçam uma atividade económica em Portugal e os que detenham participações sociais em empresas que exerçam uma atividade económica fora de Portugal, sendo as mais‑valias realizadas com as transmissões de participações sociais nestas últimas mais fortemente tributadas. Assim, esta legislação torna mais atrativo o investimento em empresas estabelecidas em território português, em detrimento das estabelecidas noutros Estados‑Membros. |
25 |
Ora, esta diferença de tratamento em função do lugar de investimento dos capitais tem por efeito dissuadir um residente fiscal português de investir os seus capitais numa sociedade estabelecida noutro Estado e tem também um efeito restritivo em relação às sociedades estabelecidas noutros Estados, uma vez que constitui no que lhe diz respeito um obstáculo à recolha de capitais em Portugal (v., por analogia, Acórdãos de 6 de junho de 2000, Verkooijen, C‑35/98, EU:C:2000:294, n.os 34 e 35; de 15 de julho de 2004, Weidert e Paulus, C‑242/03, EU:C:2004:465, n.os 13 e 14; e de 18 de dezembro de 2007, Grønfeldt, C‑436/06, EU:C:2007:820, n.o 14 e jurisprudência referida). Tal diferenciação constitui, portanto, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.o TFUE. |
26 |
No entanto, ao abrigo do artigo 65.o, n.o 1, alínea a), TFUE, o artigo 63.o TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido. |
27 |
Resulta de jurisprudência constante que o artigo 65.o, n.o 1, alínea a), TFUE, uma vez que constitui uma derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, deve ser objeto de interpretação estrita. Por conseguinte, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de que toda a legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residem ou do Estado em que investem os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado [Acórdão de 7 de abril de 2022, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Isenção dos fundos de investimento contratuais), C‑342/20, EU:C:2022:276, n.o 67 e jurisprudência referida]. |
28 |
Com efeito, as diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65.o, n.o 1, alínea a), TFUE não devem constituir, de acordo com o n.o 3 deste artigo, um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada. Assim, o Tribunal de Justiça declarou que semelhantes diferenças de tratamento só podem ser autorizadas se disserem respeito a situações que não são objetivamente comparáveis ou, no caso contrário, se forem justificadas por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 7 de abril de 2022, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Isenção dos fundos de investimento contratuais), C‑342/20, EU:C:2022:276, n.o 68 e jurisprudência referida]. |
29 |
Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, a comparabilidade de uma situação transfronteiriça com uma situação interna do Estado‑Membro deve ser examinada tendo em conta o objetivo prosseguido pelas disposições nacionais em causa, bem como o objeto e o conteúdo destas últimas. Apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença objetiva entre as situações (Acórdão de 16 de dezembro de 2021, UBS Real Estate, C‑478/19 e C‑479/19, EU:C:2021:1015, n.os 47 e 48 e jurisprudência referida). |
30 |
No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que a prática fiscal em causa no processo principal tem por objetivo apoiar as empresas nacionais e estimular a atividade económica em Portugal reduzindo para metade a carga fiscal que onera as mais‑valias realizadas pelos contribuintes com residência fiscal em Portugal, quando transmitam participações sociais em sociedades estabelecidas neste Estado‑Membro. As mais‑valias realizadas por esses contribuintes com as transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas noutros Estados‑Membros ficam, em contrapartida, sujeitas a imposto à taxa integral. |
31 |
A legislação nacional em causa no processo principal, tal como aplicada pela Autoridade Tributária, aplica‑se, portanto, indistintamente a qualquer pessoa singular com residência fiscal em Portugal e implica um tratamento diferenciado baseado exclusivamente no lugar de estabelecimento das sociedades nas quais os capitais são investidos, com o intuito de incentivar o investimento na atividade económica em Portugal, em detrimento do investimento nos outros Estados‑Membros. |
32 |
Ora, por um lado, um contribuinte que proceda a investimentos em participações sociais numa sociedade portuguesa e um contribuinte que proceda a investimentos em participações sociais numa sociedade estrangeira investem ambos os seus capitais em sociedades com vista à obtenção de lucros (v., por analogia, Acórdão de 9 de setembro de 2021, Real Vida Seguros, C‑449/20, EU:C:2021:721, n.o 33). |
33 |
Por outro lado, admitir que os contribuintes que investiram em empresas que exercem uma atividade económica em Portugal seriam colocados numa situação diferente dos contribuintes que investiram em empresas que exercem uma atividade económica fora de Portugal, quando o artigo 63.o, n.o 1, TFUE proíbe precisamente as restrições aos movimentos de capitais transfronteiriços, esvaziaria esta disposição do seu conteúdo (v., por analogia, Acórdão de 9 de setembro de 2021, Real Vida Seguros, C‑449/20, EU:C:2021:721, n.o 36 e jurisprudência referida). |
34 |
Assim, a diferença de tratamento resultante de uma legislação dessa natureza não assenta numa diferença objetiva de situações. |
35 |
Por conseguinte, há que examinar se essa restrição à livre circulação pode ser justificada por uma razão imperiosa de interesse geral. Com efeito, segundo a jurisprudência, uma restrição à livre circulação de capitais pode ser admitida se se justificar por razões imperiosas de interesse geral, for adequada a garantir a realização do objetivo que prossegue e não for além do que é necessário para alcançar esse objetivo (Acórdão de 17 de março de 2022, AllianzGI‑Fonds AEVN, C‑545/19, EU:C:2022:193, n.o 75 e jurisprudência referida). |
36 |
No caso em apreço, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a prática fiscal em causa no processo principal visa apoiar as empresas nacionais e estimular a atividade económica em Portugal. |
37 |
Ora, em conformidade com jurisprudência constante, um objetivo de natureza puramente económica não pode constituir uma razão imperiosa de interesse geral suscetível de justificar uma restrição a uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado FUE (Acórdãos de 6 de junho de 2000, Verkooijen, C‑35/98, EU:C:2000:294, n.o 48, e de 25 de fevereiro de 2021, Novo Banco, C‑712/19, EU:C:2021:137, n.o 40 e jurisprudência referida). |
38 |
Em todo o caso, mesmo admitindo que tal objetivo seja considerado admissível, não foi dada nenhuma indicação que sugira que o objetivo não seria alcançado se o benefício fiscal previsto na legislação nacional em causa no processo principal fosse igualmente aplicado às mais‑valias geradas pela transmissão de participações sociais em micro e pequenas empresas que exercem uma atividade económica fora de Portugal (v., por analogia, Acórdão de 9 de setembro de 2021, Real Vida Seguros, C‑449/20, EU:C:2021:721, n.o 40). |
39 |
Embora, sem contestar o referido objetivo de natureza puramente económica, o Governo Português, nas suas observações escritas, afirme que a diferença de tratamento em causa tem tudo a ver diretamente com a preservação da coerência do sistema fiscal, cumpre recordar que, para que um argumento baseado nesta justificação possa vingar, é necessário que seja demonstrada a existência de um nexo direto entre o benefício fiscal em causa e a compensação deste benefício através de uma determinada cobrança fiscal, devendo o caráter direto deste nexo ser apreciado à luz do objetivo da legislação em causa [Acórdão de 7 de abril de 2022, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Isenção dos fundos de investimento contratuais), C‑342/20, EU:C:2022:276, n.o 92 e jurisprudência referida]. |
40 |
Ora, não se pode deixar de observar que o Governo Português não desenvolve uma argumentação jurídica para sustentar a sua afirmação. Por conseguinte, este Governo não demonstrou que o benefício fiscal concedido aos contribuintes que detêm participações sociais em empresas que exercem uma atividade económica em Portugal é compensado por uma determinada cobrança fiscal, justificando assim a exclusão dos contribuintes que detenham participações sociais em empresas que exercem uma atividade económica fora de Portugal da possibilidade de beneficiar deste benefício. |
41 |
Assim, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, afigura‑se que a legislação em causa no processo principal, tal como aplicada pela Autoridade Tributária, não é justificada por razões imperiosas de interesse geral. |
42 |
Por conseguinte, o artigo 63.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma prática fiscal de um Estado‑Membro, em matéria de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, que reserve um benefício fiscal, que consiste na redução para metade da tributação das mais‑valias geradas pela transmissão de participações sociais, apenas às transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas nesse Estado‑Membro, com exclusão das transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas noutros Estados‑Membros. |
Quanto às questões quinta a décima primeira
43 |
Com estas questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a interpretação do princípio geral do direito da União relativo à proibição de práticas abusivas, pelo facto de o requerente no processo principal ter alegadamente procurado invocar abusivamente o direito da União, incluindo as liberdades fundamentais previstas nos artigos 49.° e 63.° TFUE, para beneficiar do tratamento previsto no artigo 43.o, n.o 3, do Código do IRS. |
44 |
Importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, a necessidade de se chegar a uma interpretação do direito da União que seja útil ao juiz nacional exige que este respeite escrupulosamente as exigências de conteúdo de um pedido de decisão prejudicial e que figurem expressamente no artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, presumindo‑se que o órgão jurisdicional de reenvio delas tem conhecimento. Estas exigências são, aliás, reiteradas nas recomendações do Tribunal de Justiça à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (JO 2019, C 380, p. 1) (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi, C‑561/19, EU:C:2021:799, n.o 68 e jurisprudência referida). |
45 |
Assim, como enuncia o artigo 94.o, alínea c), do Regulamento de Processo, é indispensável que a decisão de reenvio contenha a exposição das razões que conduziram o órgão jurisdicional de reenvio a interrogar‑se sobre a interpretação ou a validade de certas disposições do direito da União, bem como o nexo que esse órgão estabelece entre essas disposições e a legislação nacional aplicável ao litígio no processo principal (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi, C‑561/19, EU:C:2021:799, n.o 69 e jurisprudência referida). |
46 |
No caso em apreço, no que respeita às questões quinta a décima primeira, há que observar que o órgão jurisdicional de reenvio apenas fornece uma exposição lacunar do quadro regulamentar e factual e, especialmente, do benefício que o requerente no processo principal procurou obter ao proceder à transmissão de participações sociais em causa no processo principal, em vez de uma distribuição de dividendos. Sendo a CLB e a Prince Vert sociedades de direito francês, o órgão jurisdicional de reenvio não indicou toda a carga fiscal que teria onerado essa distribuição de dividendos, nomeadamente à luz das disposições do Código do IRS sobre os dividendos de origem estrangeira, bem como da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre a República Francesa e a República Portuguesa, que foram citadas pelo requerente no processo principal nas suas observações escritas, mas que não figuram no pedido de decisão prejudicial. |
47 |
Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio não expõe em que medida o requerente no processo principal exerceu de forma abusiva as liberdades previstas nos artigos 49.° e 63.° TFUE. Do mesmo modo, não expõe o nexo que ele pretende estabelecer entre o benefício fiscal alegado, que resulta apenas do direito nacional, e não do direito da União, e a interpretação solicitada do princípio geral do direito da União de proibição de práticas abusivas. |
48 |
Nestas condições, o Tribunal de Justiça não dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas, as quais, por conseguinte, não preenchem as condições de admissibilidade enunciadas no artigo 94.o do Regulamento de Processo. |
49 |
Consequentemente, há que declarar que as questões quinta a décima primeira são inadmissíveis, mantendo, porém, o órgão jurisdicional de reenvio a faculdade de submeter um novo pedido de decisão prejudicial quando estiver em condições de fornecer ao Tribunal de Justiça todos os elementos que lhe permitam pronunciar‑se (v., por analogia, Despacho de 1 de outubro de 2020, Inter Consulting, C‑89/20, EU:C:2020:771, n.o 34 e jurisprudência referida). |
Quanto às despesas
50 |
Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis. |
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sexta Secção) declara: |
O artigo 63.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma prática fiscal de um Estado‑Membro, em matéria de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, que reserva um benefício fiscal, que consiste na redução para metade da tributação das mais‑valias geradas pela transmissão de participações sociais, apenas às transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas nesse Estado‑Membro, com exclusão das transmissões de participações sociais em sociedades estabelecidas noutros Estados‑Membros. |
Assinaturas |
( *1 ) Língua do processo: português.