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Document 62017CC0497

Conclusões do advogado-geral N. Wahl apresentadas em 20 de setembro de 2018.
Oeuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (OABA) contra Ministre de l'Agriculture et de l'Alimentation e o.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pela Cour administrative d'appel de Versailles.
Reenvio prejudicial — Artigo 13.o TFUE — Bem‑estar dos animais — Regulamento (CE) n.o 1099/2009 — Proteção dos animais no momento da occisão — Métodos especiais de abate prescritos por ritos religiosos — Regulamento (CE) n.o 834/2007 — Artigo 3.o e artigo 14.o, n.o 1, alíneas b), viii) — Compatibilidade com a produção biológica — Regulamento (CE) n.o 889/2008 — Artigo 57.o, primeiro parágrafo — Logo de produção biológica da União Europeia.
Processo C-497/17.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2018:747

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NILS WAHL

apresentadas em 20 de setembro de 2018 ( 1 )

Processo C‑497/17

Œuvre d’assistance aux bêtes d’abattoirs (OABA)

contra

Ministre de l’Agriculture et de l’Alimentation,

Bionoor,

Ecocert France,

Institut national de l’origine et de la qualité (INAO)

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela cour administrative d’appel de Versailles (Tribunal Administrativo de Recurso de Versalhes, França)]

«Reenvio prejudicial — Proteção dos animais no momento da occisão — Regulamento (CE) n.o 1099/2009 — Métodos especiais de abate prescritos por ritos religiosos — Abate sem atordoamento — Compatibilidade com a produção biológica animal na aceção do Regulamento n.o 834/2007»

Introdução

1.

As regras do direito da União aplicáveis autorizam ou, pelo contrário, proíbem a atribuição do rótulo europeu de «agricultura biológica» (AB) a produtos com origem em animais que foram objeto de um abate ritual sem atordoamento prévio, efetuado nas condições estabelecidas no Regulamento (CE) n.o 1099/2009 ( 2 )?

2.

Esta é, em substância, a questão colocada pelo presente pedido de decisão prejudicial da cour administrative d’appel de Versailles (Tribunal Administrativo de Recurso de Versalhes, França).

3.

Este pedido foi apresentado no âmbito de um recurso interposto pela associação Œuvre d’Assistance aux Bêtes d’Abattoirs (a seguir «OABA) ( 3 ) com vista à anulação da decisão do tribunal administratif de Montreuil (Tribunal Administrativo de Montreuil, França) que nega provimento ao recurso por excesso de poder interposto pela referida associação contra o ato tácito de indeferimento da sociedade Ecocert France (a seguir «Ecocert»), organismo de certificação de direito privado que opera atualmente por conta do Institut national de l’origine et de la qualité (Instituto Nacional da Origem e da Qualidade, a seguir INAO), quanto ao pedido de aplicação, nos termos do artigo 30.o do Regulamento (CE) n.o 834/2007 ( 4 ), de medidas destinadas a pôr termo à publicidade e à comercialização dos produtos da marca «Tendre France», certificados como «halal» e nos quais figura a menção «AB».

Quadro jurídico

Regulamento n.o 834/2007

4.

O Regulamento n.o 834/2007 enuncia nos seus considerandos 1, 3, 5, 17 e 22:

(1)

A produção biológica é um sistema global de gestão das explorações agrícolas e de produção de géneros alimentícios que combina as melhores práticas ambientais, um elevado nível de biodiversidade, a preservação dos recursos naturais, a aplicação de normas exigentes em matéria de bem‑estar dos animais e método de produção em sintonia com a preferência de certos consumidores por produtos obtidos utilizando substâncias e processos naturais. O método de produção biológica desempenha, assim, um duplo papel societal, visto que, por um lado, abastece um mercado específico que responde à procura de produtos biológicos por parte dos consumidores e, por outro, fornece bens públicos que contribuem para a proteção do ambiente e o bem‑estar dos animais, bem como para o desenvolvimento rural.

[…]

(3)

O quadro jurídico comunitário que rege o setor da produção biológica deverá perseguir o objetivo de garantir uma concorrência leal e o funcionamento adequado do mercado interno dos produtos biológicos, bem como o de manter e justificar a confiança dos consumidores nos produtos rotulados como tal. Além disso, deverá procurar criar condições em que esse setor se possa desenvolver em sintonia com a evolução da produção e do mercado.

[…]

(5)

Por conseguinte, é conveniente definir mais explicitamente os objetivos, princípios e regras aplicáveis à produção biológica, a fim de aumentar a transparência e a confiança dos consumidores e contribuir para uma perceção harmonizada do conceito de produção biológica.

[…]

(17)

É necessário que a criação biológica de animais respeite normas exigentes em matéria de bem‑estar dos mesmos, atendendo às necessidades comportamentais próprias de cada espécie, e que a gestão da saúde animal se baseie na prevenção das doenças. Nesta matéria, deverá ser dada especial atenção às condições de alojamento, às práticas de criação e ao encabeçamento. Além disso, a escolha das raças deverá ter em conta a sua capacidade de adaptação às condições locais. As normas de execução para a produção animal e a aquicultura deverão estar, pelo menos, em conformidade com as disposições da Convenção Europeia relativa à Proteção dos Animais nos Locais de Criação e recomendações subsequentes do seu comité permanente (T‑AP).

[…]

(22)

É importante preservar a confiança dos consumidores nos produtos biológicos. As derrogações dos requisitos aplicáveis à produção biológica deverão, por conseguinte, ser estritamente limitadas a casos em que a aplicação de regras excecionais seja considerada justificada.»

5.

O artigo 1.o do Regulamento n.o 834/2007, intitulado «Objetivo e âmbito de aplicação», dispõe:

«1.   O presente regulamento constitui a base para o desenvolvimento sustentável da produção biológica, garantindo simultaneamente o funcionamento eficaz do mercado interno, assegurando a concorrência leal, garantindo a confiança dos consumidores e protegendo os seus interesses.

O presente regulamento estabelece os objetivos e princípios comuns destinados a estear as regras nele definidas relativamente:

a)

A todas as fases da produção, preparação e distribuição dos produtos biológicos e ao seu controlo;

b)

À utilização de indicações referentes à produção biológica na rotulagem e na publicidade.

2.   O presente regulamento é aplicável aos seguintes produtos da agricultura, incluindo a aquicultura, sempre que sejam colocados no mercado ou a tal se destinem:

a)

Produtos agrícolas vivos ou não transformados;

b)

Produtos agrícolas transformados destinados a serem utilizados como géneros alimentícios;

c)

Alimentos para animais;

d)

Material de propagação vegetativa e sementes.

[…]

3.   O presente regulamento é aplicável a qualquer operador que exerça atividades em qualquer fase da produção, preparação e distribuição, relativas aos produtos referidos no n.o 2.

[…]

4.   O presente regulamento é aplicável sem prejuízo de outras disposições comunitárias ou de disposições nacionais conformes com a legislação comunitária relativa aos produtos especificados no presente artigo, tais como as disposições que regem a produção, a preparação, a comercialização, a rotulagem e o controlo, incluindo a legislação em matéria de géneros alimentícios e de alimentação animal.»

6.

O artigo 3.o do Regulamento n.o 834/2007 prevê os «[o]bjetivos» deste regulamento nos seguintes termos:

«A produção biológica tem os seguintes objetivos gerais:

a)

Estabelecer um sistema de gestão agrícola sustentável que:

[…]

iv)

Respeite normas exigentes de bem‑estar dos animais e, em especial, as necessidades comportamentais próprias de cada espécie;

b)

Procurar obter produtos de elevada qualidade;

[…]»

7.

Sob a epígrafe «Princípios específicos aplicáveis à agricultura», o artigo 5.o, alínea h), do Regulamento n.o 834/2007 prevê que a agricultura biológica assenta no princípio específico da «[o]bservância de um elevado nível de bem‑estar dos animais respeitando as necessidades próprias de cada espécie».

8.

O artigo 14.o do Regulamento n.o 834/2007, relativo às «[r]egras aplicáveis à produção animal», dispõe:

«1.   Para além das regras gerais de produção agrícola estabelecidas no artigo 11.o, são aplicáveis à produção animal as seguintes regras:

[…]

b)

Quanto às práticas de criação e às condições de alojamento:

[…]

viii)

Qualquer sofrimento, incluindo a mutilação, é reduzido ao mínimo durante a vida toda do animal, nomeadamente no momento do abate;

[…]»

Regulamento (CE) n.o 889/2008

9.

O considerando 10 do Regulamento (CE) n.o 889/2008 ( 5 ) enuncia:

«A criação biológica de animais deve assegurar que sejam satisfeitas determinadas necessidades comportamentais dos animais. A este respeito, o alojamento de todas as espécies animais deve satisfazer as necessidades dos animais em causa no que respeita à ventilação, luz, espaço e conforto, devendo consequentemente ser previsto espaço suficiente para permitir a ampla liberdade de movimentos de cada animal e o desenvolvimento do comportamento social natural do animal. Devem ser estabelecidas condições de alojamento e práticas de criação específicas aplicáveis a certos animais, incluindo as abelhas. Essas condições de alojamento específicas devem assegurar um elevado grau de bem‑estar dos animais, o que constitui uma prioridade da criação animal biológica e pode, consequentemente, ir além das normas comunitárias de bem‑estar dos animais aplicáveis à produção animal em geral. As práticas de criação biológica devem impedir a criação excessivamente rápida das aves de capoeira. Assim, devem ser estabelecidas disposições específicas para evitar métodos de criação intensivos. Em especial, as aves de capoeira devem ser criadas até atingirem uma idade mínima ou, alternativamente, provir de estirpes de crescimento lento, não sendo incentivado em qualquer dos casos o recurso a métodos de criação intensivos.»

10.

O artigo 18.o do Regulamento n.o 889/2008, intitulado «Maneio dos animais», dispõe:

«1.   Intervenções como a colocação de elásticos nas caudas dos ovinos, o corte da cauda ou de dentes, o corte de bicos e o corte de chifres não podem ser uma prática corrente na agricultura biológica. No entanto, algumas destas operações podem ser autorizadas pela autoridade competente por razões de segurança ou, caso a caso, se forem destinadas a melhorar o estado sanitário, o bem‑estar ou a higiene dos animais.

O sofrimento dos animais é reduzido ao mínimo através da aplicação de anestesias e/ou analgesias adequadas e da realização das operações apenas na idade mais indicada e por pessoal qualificado.

2.   A fim de manter a qualidade dos produtos e as práticas tradicionais de produção é permitida a castração física, mas apenas nas condições definidas no segundo parágrafo do n.o 1.

3.   São proibidas as mutilações, como o corte das asas das abelhas‑mestras.

4.   A carga e a descarga dos animais realizam‑se sem recurso a qualquer tipo de estimulação elétrica para os coagir. É proibida a utilização de calmantes alopáticos antes ou durante o trajeto.»

11.

O artigo 20.o do Regulamento n.o 889/2008, que se refere aos «[a]limentos correspondentes às necessidades nutricionais dos animais» proíbe a alimentação forçada no seu n.o 5.

Regulamento n.o 1099/2009

12.

Os considerandos do Regulamento n.o 1099/2009 enunciam nomeadamente:

«(2)

A occisão de animais pode provocar dor, aflição, medo ou outras formas de sofrimento nos animais, mesmo nas melhores condições técnicas disponíveis. Certas operações associadas à occisão podem provocar stress e todas as técnicas de atordoamento apresentam inconvenientes. Os operadores das empresas ou quaisquer pessoas envolvidas na occisão de animais deverão tomar as medidas necessárias para evitar a dor e minimizar a aflição e sofrimento dos animais durante o processo de abate ou occisão, tendo em conta as melhores práticas neste domínio e os métodos autorizados ao abrigo do presente regulamento. Por conseguinte, a dor, a aflição ou sofrimento deverão ser consideradas como evitáveis sempre que os operadores das empresas ou quaisquer pessoas envolvidas na occisão de animais infrinjam uma das disposições do presente regulamento ou utilizem práticas autorizadas sem ter em conta a respetiva evolução técnica, provocando assim dor, aflição ou sofrimento nos animais, por negligência ou intencionalmente.

[…]

(4)

O bem‑estar dos animais é um princípio comunitário consagrado no Protocolo n.o 33 relativo à proteção e ao bem‑estar dos animais, anexo ao Tratado que institui a Comunidade Europeia (Protocolo n.o 33). A proteção dos animais no momento do abate ou occisão é um tema que preocupa o público e influencia a atitude dos consumidores em relação aos produtos agrícolas. Por outro lado, reforçar a proteção dos animais no momento do abate contribui para melhorar a qualidade da carne e, indiretamente, tem efeitos positivos ao nível da segurança no trabalho nos matadouros.

[…]

(18)

A Diretiva 93/119/CE [do Conselho, de 22 de dezembro de 1993, relativa à proteção dos animais no abate e/ou occisão (JO 1993, L 340, p. 21] previa uma derrogação à obrigação de atordoamento no caso de abate religioso realizado em matadouros. Visto que as disposições comunitárias aplicáveis ao abate religioso foram transpostas de modo diferente em função dos contextos nacionais, e considerando que as regras nacionais têm em conta dimensões que transcendem o objetivo do presente regulamento, é importante manter a derrogação à exigência de atordoamento dos animais antes do abate, deixando, no entanto, um certo nível de subsidiariedade a cada Estado‑Membro. Assim, o presente regulamento respeita a liberdade de religião e o direito de manifestar a sua religião ou crença através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos, consagrados no artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [a seguir «Carta»].

[…]

(20)

Muitos métodos de occisão são dolorosos para os animais. O atordoamento torna‑se, assim, necessário, para provocar nos animais um estado de inconsciência e uma perda de sensibilidade antes ou no momento da occisão. Medir a perda de consciência e de sensibilidade de um animal é uma operação complexa que deverá ser realizada de acordo com métodos aprovados cientificamente. Convém, no entanto, assegurar um acompanhamento mediante indicadores, a fim de avaliar a eficiência do procedimento em condições reais.

(21)

O controlo da eficácia do atordoamento baseia‑se principalmente na avaliação do estado de consciência e da sensibilidade dos animais. O estado de consciência de um animal traduz‑se essencialmente pela sua capacidade de sentir emoções e de controlar os seus movimentos voluntários. Salvo algumas exceções, como a eletroimobilização ou outras paralisias provocadas, pode presumir‑se que um animal está inconsciente quando perde a sua posição natural de pé, não está desperto e não mostra sinais de emoções positivas ou negativas, como medo ou excitação. A sensibilidade dos animais é essencialmente a sua capacidade de sentir dor. Em geral, pode presumir‑se que um animal perdeu a sensibilidade quando não apresenta reflexos ou reações a estímulos como os sons, os odores, a luz ou o contacto físico.

[…]

(33)

Se os procedimentos de atordoamento falharem, poderão provocar sofrimento aos animais. O presente regulamento deverá, por conseguinte, impor que esteja disponível equipamento de atordoamento sobresselente, a fim de minimizar a dor, aflição ou sofrimento dos animais.

[…]

(37)

A Comunidade procura promover normas mais rigorosas no que respeita ao número de cabeças de gado a nível mundial, em particular relativamente ao comércio. A Comunidade apoia as normas e recomendações específicas relativas ao bem‑estar dos animais da Organização Mundial da Saúde Animal (OIE), nomeadamente sobre o abate dos animais. […]

[…]

(43)

No abate sem atordoamento deverá ser praticada uma incisão precisa na garganta com uma faca afiada, para minimizar o sofrimento. Além disso, se os animais não forem imobilizados mecanicamente após a incisão, o processo de sangria pode ser mais demorado, o que prolongará desnecessariamente o sofrimento dos animais. Os bovinos, ovinos e caprinos são as espécies mais frequentemente abatidas através deste procedimento. Por conseguinte, os ruminantes abatidos sem atordoamento deverão ser imobilizados individualmente e mecanicamente.

[…]»

13.

O artigo 1.o do Regulamento n.o 1099/2009 dispõe que este regulamento estabelece regras relativas à occisão dos animais criados ou mantidos, nomeadamente, para a produção de alimentos.

14.

Resulta do artigo 2.o do referido regulamento, com a epígrafe «Definições» que se entende por:

«[…]

f)

“Atordoamento”, qualquer processo intencional que provoque a perda de consciência e sensibilidade sem dor, incluindo qualquer processo de que resulte a morte instantânea;

g)

“Rito religioso”, uma série de atos relacionados com o abate de animais, prescritos por uma religião;

[…]

j)

“Abate”, a occisão de animais destinados ao consumo humano;

[…]»

15.

Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009, sob a epígrafe «Requisitos gerais aplicáveis à occisão e às operações complementares»:

«Deve poupar‑se aos animais qualquer dor, aflição ou sofrimento evitáveis durante a occisão e as operações complementares.»

16.

Consagrado aos «[m]étodos de atordoamento», o artigo 4.o do Regulamento n.o 1099/2009 prevê:

«1.   Os animais só podem ser mortos após atordoamento efetuado em conformidade com os métodos e requisitos específicos relacionados com a aplicação desses métodos especificados no anexo I. A perda de consciência e sensibilidade é mantida até à morte do animal.

Os métodos referidos no anexo I que não resultem em morte instantânea […] são seguidos, o mais rapidamente possível, por um processo que assegure a morte, tal como sangria, mielotomia, eletrocussão ou exposição prolongada a anoxia.

[…]

4.   Os requisitos previstos no n.o 1 não se aplicam aos animais que são objeto dos métodos especiais de abate requeridos por determinados ritos religiosos, desde que o abate seja efetuado num matadouro.»

Factos que estão na origem do litígio, questão prejudicial e tramitação no Tribunal de Justiça

17.

Em 24 de setembro de 2012, a OABA dirigiu ao Ministre de l’Agriculture, de l’Agroalimentaire et de la Forêt (Ministro da Agricultura, do setor Agroalimentar e das Floresta; a seguir «Ministro da Agricultura») um pedido para, designadamente, pôr termo à publicidade e à comercialização de hambúrgueres da marca «Tendre France» certificados como «halal» e nos quais figura a menção «AB». Na mesma data, pediu ao INAO a exclusão do rótulo «AB» para a carne proveniente de animais abatidos sem atordoamento prévio.

18.

Tendo estes pedidos sido tacitamente indeferidos, a OABA, por requerimento de 23 de janeiro de 2013, interpôs um recurso por excesso de poder no Conseil d’État (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, França).

19.

Pela decisão n.o 365447, de 20 de outubro de 2014 (FR:CESSR:2014:365447.20141020), o Conseil d’État decidiu que a regulamentação da União Europeia define de forma exaustiva, sem remeter para os Estados‑Membros a adoção de diplomas de aplicação e sem que estes diplomas sejam necessários para a sua plena eficácia, as regras relativas à produção agrícola biológica de bovinos. Por conseguinte, o poder regulamentar não tem competência para introduzir disposições nacionais destinadas a reiterar, especificar ou completar essa regulamentação. O Conseil d’État julgou, assim, improcedentes os pedidos da OABA com vista à anulação do ato de indeferimento do poder regulamentar nacional quanto ao pedido de proibição do uso da menção «AB» para os produtos de carne bovina proveniente de animais abatidos sem atordoamento, uma vez que a concessão deste rótulo e o seu uso são totalmente regulados pelo direito da União. O Conseil d’État remeteu, ainda, para o tribunal administratif de Montreuil (Tribunal Administrativo de Montreuil) a decisão dos restantes pedidos com vista à anulação do ato de indeferimento da Ecocert, quanto ao pedido de aplicação, nos termos do artigo 30.o do Regulamento n.o 834/2007, de medidas destinadas a pôr termo à publicidade e à comercialização dos produtos da marca «Tendre France» certificados como «halal» e nos quais figura a menção «AB».

20.

Por sentença de 21 de janeiro de 2016, o tribunal administratif de Montreuil julgou a ação improcedente.

21.

A OABA recorreu, então, desta decisão para o órgão jurisdicional de reenvio. Alega que a Ecocert deve, por força do artigo 30.o do Regulamento n.o 834/2007, pôr termo à publicidade e à comercialização dos produtos em causa, uma vez que estes produtos não satisfazem as exigências impostas pelo direito da União para a atribuição desta menção.

22.

O Ministro da Agricultura, a sociedade Bionoor, distribuidora dos produtos de agricultura biológica (a seguir «Bionoor»), a Ecocert e o INAO concluem pela improcedência do recurso interposto pela OABA.

23.

Para o órgão jurisdicional de reenvio, o quadro jurídico do presente processo é constituído, no que diz respeito ao direito da União, em primeiro lugar, pelo artigo 13.o TFUE, em segundo lugar, pelos considerandos 1 e 17 e pelos artigos 3.o, 14.o, n.o 1, alíneas b), e 22.o do Regulamento n.o 834/2007 e, em terceiro lugar, pelos artigos 4.o, n.os 1 e 4, e 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1099/2009.

24.

A cour administrative d’appel de Versailles (Tribunal Administrativo de Recurso de Versalhes) refere, no entanto, que nenhuma disposição do Regulamento n.o 1099/2009 e do Regulamento n.o 889/2008 define expressamente a ou as formas de abate de animais que são aptas a satisfazer os objetivos de bem‑estar dos animais e de redução do sofrimento dos animais atribuídos à produção biológica.

25.

Na falta de qualquer disposição que preveja uma remissão entre, por um lado, o Regulamento n.o 1099/2009 e, por outro, os Regulamentos n.os 834/2007 e 889/2008, a simples aproximação destes textos não permite determinar se o abate ritual sem atordoamento prévio, que é autorizado, a título derrogatório, pelo artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, desde que cumpre todas as prescrições técnicas a que está sujeito, satisfaz os objetivos específicos de bem‑estar animal e de redução do sofrimento dos animais que são atribuídos à produção biológica pelos Regulamentos n.os 834/2007 e 889/2008. Coloca‑se assim a questão da conformidade da interpretação dada aos referidos regulamentos com as disposições do artigo 13.o TFUE.

26.

O órgão jurisdicional de reenvio considera, assim, que a resposta a dar ao fundamento segundo o qual as carnes provenientes de animais que foram objeto de um abate ritual sem atordoamento prévio não podem beneficiar do rótulo europeu «AB», apresenta uma séria dificuldade de interpretação do direito da União.

27.

Foi nestas circunstâncias que o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter a seguinte questão prejudicial:

«As regras aplicáveis do direito da União [..] que resultam designadamente:

do artigo 13.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia,

do Regulamento (CE) n.o 834/2007, do Conselho, de 28 de junho de 2007, cujas modalidades de execução foram estabelecidas pelo Regulamento (CE) n.o 889/2008, da Comissão, de 5 de setembro de 2008,

e do Regulamento (CE) n.o 1099/2009, do Conselho, de 24 de setembro de 2009

devem ser interpretadas no sentido de que autorizam ou proíbem a atribuição do rótulo europeu de «agricultura biológica» a produtos com origem em animais que foram objeto de um abate ritual sem atordoamento prévio, efetuado nas condições estabelecidas no Regulamento (CE) n.o 1099/2009?»

28.

A OABA, a Bionoor, a Ecocert, a República Francesa, a República Helénica, o Reino da Noruega e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

29.

Uma audiência realizou‑se em 19 de junho de 2018, na qual participaram a OABA, a Bionoor, a República Francesa, a República Helénica e a Comissão.

Análise

Síntese do problema

30.

Com o presente pedido de decisão prejudicial, o Tribunal de Justiça tem de responder a uma pergunta, em suma, simples: a carne proveniente de animais abatidos sem atordoamento pode ser certificada como «AB»?

31.

A dificuldade reside no facto de a regulamentação relativa à agricultura biológica, aplicável aos factos em causa — constituída essencialmente pelos Regulamentos n.os 834/2007 e 889/2008 — que visa assegurar o cumprimento de «normas exigentes em matéria de bem‑estar dos animais» ( 6 ), durante a vida toda do animal ( 7 ), o que implica que «qualquer sofrimento […] é reduzido ao mínimo […], nomeadamente no momento do abate» ( 8 ), não definir com precisão as modalidades que permitam reduzir ao mínimo o sofrimento dos animais aquando da occisão.

32.

Assim, o processo refere‑se unicamente à interpretação das normas técnicas que devem ser cumpridas na fase do abate dos animais para a atribuição da certificação como «AB».

33.

Pelas razões infra expostas, é importante salientar que o Tribunal de Justiça não é, propriamente, chamado a pronunciar‑se sobre uma questão de ingerência na liberdade de manifestar a sua religião — como a que estava em causa no Acórdão do TEDH de 27 de junho de 2000, Cha’are Shalom Ve Tsedek c. França (CE:ECHR:2000:0627JUD002741795). Também não é chamado a pronunciar‑se, de forma direta, sobre a compatibilidade entre a norma «AB» e a certificação «halal» — esta última não satisfaz, até à data, um caderno de encargos preciso, designadamente, quanto ao recurso ao atordoamento prévio durante a occisão dos animais.

O processo não tem, diretamente, por objeto a questão da ofensa ao livre exercício do culto

34.

No processo principal, embora o órgão jurisdicional de reenvio não queira ir por esta via, foi suscitada a questão do respeito da liberdade de exercício do culto, na perspetiva, nomeadamente, do artigo 10.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

35.

A Bionoor alegou, designadamente, nas suas observações escritas que, o facto de decidir que as certificações «AB» e «halal» são incompatíveis, afeta o direito coletivo dos muçulmanos ao livre exercício do culto garantido, por um lado, pelo artigo 9.o, em conjugação com o artigo 14.o, da Convenção Para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH») e por outro, pelo artigo 10.o da Carta. A este respeito, a Bionoor remete, nomeadamente, para o Acórdão Cha’are Shalom Ve Tsedek c. França, acima referido. Segundo a Bionoor, ao não proibir que a menção «AB» seja aposta em produtos certificados como «kosher» ou «halal», o legislador europeu quis garantir um compromisso positivo destinado a garantir o cumprimento efetivo da liberdade de religião.

36.

Estou longe de estar convencido por esta argumentação que assenta, no que se refere ao processo principal, na ideia de que os muçulmanos sofreriam um entrave à sua liberdade religiosa, caso se concluísse pela não cumulação das certificações «halal» e «AB».

37.

A este respeito, parece‑me que a problemática aqui submetida é bem diferente da que estava em causa no Acórdão Cha’are Shalom Ve Tsedek c. França, acima referido.

38.

Recordo que, neste acórdão, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem decidiu que, «[a]o instituir uma exceção ao princípio do atordoamento prévio dos animais destinados a abate, o direito interno concretiz[ou] um compromisso positivo do Estado destinado a garantir o respeito efetivo da liberdade de religião» (n.o 76). Além disso, especificou que «[a]penas há ingerência na liberdade de manifestar a sua religião quando a proibição de praticar legalmente este abate conduz à impossibilidade para os crentes ultraortodoxos de consumir carne proveniente de animais abatidos segundo as prescrições religiosas aplicadas por eles nesta matéria» (n.o 80).

39.

Ora, no caso em apreço, contrariamente ao abate ritual efetuado na festa muçulmana do sacrifício, no sentido do Regulamento n.o 1099/2009, a que se refere o Acórdão do 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. ( 9 ), não está aqui em causa a possibilidade de os muçulmanos cumprirem uma prescrição religiosa. A possibilidade de consumir produtos que cumulam as certificações «AB» e «halal» não diz respeito, enquanto tal, à prática de um «rito religioso», e não está, assim, abrangida pelo exercício da liberdade de religião consagrada no artigo 10.o da Carta e no artigo 9.o da CEDH, enquanto expressão de uma convicção religiosa.

40.

Com efeito, as pessoas que desejam, para cumprir determinados preceitos religiosos, obter produtos provenientes de animais abatidos sem atordoamento prévio dispõem sempre de uma alternativa respeitadora da sua crença religiosa ( 10 ). No caso de se concluir que o abate ritual sem atordoamento é proibido no âmbito da agricultura biológica, os cidadãos de confissão judaica ou muçulmana poderão sempre obter carne «kosher» ou «halal» e, assim, a própria essência do direito de religião não é posta em causa. Eles apenas estariam impedidos de consumir carnes kosher ou halal certificadas «AB». O facto de não ser disponibilizada carne rotulada como «AB» proveniente de abates sem atordoamento não afeta, enquanto tal, as prescrições religiosas, que não impõem o consumo unicamente de produtos da agricultura biológica. Além disso, não existe qualquer «direito» de acesso a produtos rotulados como «AB». Observo, aliás, que os demandados não alegaram, no processo principal, que a proibição que lhes seja feita de produzir e comercializar produtos certificados não só como «halal» mas também como «AB» fosse, em si mesma, incompatível com as convicções religiosas dos consumidores dos produtos rotulados «halal».

41.

Esta conclusão parece‑me tanto mais válida porquanto, pensando bem, a questão colocada não é tanto a de saber se as certificações «AB» e «halal» são compatíveis, mas antes a de saber se a certificação «AB» pode ser concedida a produtos provenientes de animais abatidos sem atordoamento prévio, o que me parece ser, em última análise, uma outra questão.

O Tribunal de Justiça não é chamado a pronunciar‑se, neste processo, sobre a questão do atordoamento prévio do ponto de vista do bem‑estar dos animais ( 11 ), nem sobre o âmbito de aplicação do rótulo «halal»

42.

Além deste processo não ter, diretamente, por objeto uma ofensa à liberdade de religião, não incide sobre a questão do atordoamento prévio do ponto de vista do bem‑estar dos animais, nem sobre a compatibilidade, em geral, das certificações «AB» e «halal».

43.

Em primeiro lugar, parece‑me agora bem assente que, se qualquer occisão é problemática do ponto de vista do bem‑estar dos animais, o recurso a métodos de atordoamento dos animais durante o abate pode, pelo menos teoricamente e como atesta um grande número de estudos científicos ( 12 ), contribuir para minimizar esse sofrimento, desde que a utilização destes métodos seja efetuada em boas condições.

44.

Em segundo lugar, embora o litígio no processo principal se refira à possibilidade de conceder a produtos rotulados como «halal» a certificação «AB», o que está, definitivamente, em causa no presente processo é a possibilidade de os produtos provenientes de animais abatidos sem atordoamento, que, a meu ver, é a que é realmente problemática do ponto de vista do bem‑estar dos animais, poderem beneficiar de uma certificação «AB» ( 13 ).

45.

Com efeito, resulta dos elementos dos autos que, até à data, a certificação «halal» indica muito pouco sobre o método de abate efetivamente utilizado.

46.

Conforme referido pela Comissão nas suas observações escritas e confirmado por ela na audiência, existem, na Europa ( 14 ) e em todo o mundo, no seio das comunidades muçulmanas, posições divergentes sobre a aceitação do atordoamento reversível ou do atordoamento imediatamente após a sangria dos animais. De momento, quanto à questão específica da compatibilidade do abate ritual com o recurso a determinados métodos de atordoamento, não há uniformidade nas práticas seguidas pelos organismos de certificação «halal» nos Estados‑Membros.

47.

A este respeito, pode‑se facilmente compreender que, tratando‑se de traduzir as exigências religiosas, cuja aceção e alcance são, por definição, sujeitos a divergências de interpretação ( 15 ) e que se prestam dificilmente à normalização, não existe regulamentação europeia que defina e regule as especificações necessárias para o abate ritual que seja kosher ou halal. Se parece existir, nomeadamente, um consenso no sentido de considerar que, segundo as prescrições da religião muçulmana, o animal a abater «deve estar vivo ou reputado vivo» no momento do abate para ser considerado halal ( 16 ), tal não significa, necessariamente, que qualquer forma de atordoamento prévio ao abate esteja proscrita.

48.

Conforme foi salientado no âmbito do presente processo, alguns representantes da comunidade muçulmana ( 17 ) consideram que a eletronarcose ou qualquer outro procedimento similar de atordoamento prévio ao abate que não tem qualquer efeito sobre as funções vitais do animal e, em especial, sobre a drenagem sanguínea do animal (o que implica que este possa voltar a ficar consciente se a sangria não vier a ser realizada), estão conformes às prescrições da religião muçulmana.

49.

Os diplomas nacionais também não definem o conceito de abate ritual. As menções de certificação relativas à natureza kosher ou halal dos produtos são, em geral, enquadradas e geridas por organismos de certificação ligados a determinadas autoridades religiosas e não por autoridades regulamentares ( 18 ).

50.

A prática seguida pelos organismos de certificação é, assim, muito variável. Desta forma, há organismos de certificação que, nos seus cadernos de encargos, referem que o abate deve ser efetuado com atordoamento prévio, enquanto outros se limitam a impor um elevado nível de bem‑estar dos animais, sem nada especificar quanto ao atordoamento. Acresce o facto de, no âmbito de um mesmo organismo certificador, o recurso ao atordoamento prévio variar de uma espécie animal para outra.

51.

Por conseguinte, existem atualmente no mercado produtos rotulados como «halal» provenientes do abate de animais realizado com atordoamento prévio. Mais, foi evidenciado que a carne proveniente de animais abatidos sem atordoamento é distribuída no circuito tradicional, sem que os consumidores sejam informados ( 19 ). Em suma, a aposição do rótulo «halal» em produtos indica muito pouco sobre o recurso ao atordoamento no abate de animais e, se for caso disso, sobre o método de atordoamento escolhido.

Resposta à questão prejudicial

52.

Conforme foi sublinhado, com justeza, pelo órgão jurisdicional de reenvio, não existe nenhuma disposição que opere especificamente uma remissão entre as disposições regulamentares que regem, respetivamente, por um lado, o modo de produção biológico e, por outro, o abate dos animais.

53.

Na falta da referida remissão, duas interpretações são possíveis.

54.

A primeira, defendida pela Ecocert, a Bionoor e pelo Governo francês, consiste em dizer que as disposições pertinentes não se opõem à atribuição do rótulo «AB» a produtos provenientes de animais abatidos sem atordoamento.

55.

Se o Regulamento n.o 834/2007 prevê a imposição de «normas mais exigentes em matéria de bem‑estar dos animais» para a produção biológica, nem este regulamento nem o respetivo Regulamento de aplicação n.o 889/2008 são expressamente contra a falta de cumprimento da regra do atordoamento prévio no âmbito particular do abate ritual.

56.

Os abates rituais, que são, no intuito de respeitar determinados ritos religiosos, admitidos, a título derrogatório, pelo Regulamento n.o 1099/2009, permitem satisfazer, quando são respeitados todos os requisitos técnicos previstos, os objetivos de bem‑estar dos animais e de redução do sofrimento dos animais, que fazem parte dos objetivos prosseguidos pela produção biológica.

57.

A segunda interpretação, que é a preconizada pela OABA, a Comissão e pelos Governos grego e norueguês, resulta de uma interpretação teleológica e sistemática da regulamentação aplicável. Assenta, em substância, na ideia de que os objetivos de proteção do bem‑estar dos animais e de redução do sofrimento dos animais, inclusive no abate, impõem, pelo contrário, que não seja atribuído o referido rótulo a produtos provenientes de abates rituais.

58.

Os defensores deste segundo entendimento alegam, designadamente, que a proteção do bem‑estar dos animais constitui um objetivo de interesse geral cuja importância resulta expressamente do artigo 13.o TFUE. A necessidade de respeitar o bem‑estar dos animais resulta tanto do Regulamento n.o 1099/2009, que consagra, nomeadamente, o princípio do atordoamento antes da occisão, como do Regulamento n.o 834/2007, que define a redução do sofrimento dos animais como sendo uma exigência importante da agricultura biológica.

59.

Segundo eles, a possibilidade, prevista pelo artigo 4.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1099/2009, de efetuar abates rituais visa prosseguir e é condicionada por objetivos de polícia sanitária e de igual respeito das convicções e ritos religiosos. Esta derrogação não se insere, nem se relaciona com as «normas mais exigentes em matéria de bem‑estar dos animais» que devem reger a concessão da menção «AB» ao abrigo do Regulamento n.o 834/2007 (nomeadamente dos seus artigos 3.o e 5.o). Os defensores deste segundo entendimento avançam, ainda, que a concessão da certificação «AB» a produtos provenientes de animais abatidos sem atordoamento prévio viola o princípio da confiança dos consumidores nos produtos biológicos, a que remete este regulamento no seu artigo 1.o e nos seus considerandos 3, 5 e 22.

60.

Nos seguintes desenvolvimentos, exporei, em primeiro lugar, o teor das normas que regem a produção biológica do ponto de vista da proteção do bem‑estar dos animais, resultantes das disposições conjugadas dos Regulamentos n.os 834/2007 e 889/2008, e a sua ligação com as regras em matéria de abate dos animais decorrentes, nomeadamente, do Regulamento n.o 1099/2009. À luz do que for exposto, explicarei, numa segunda fase, os motivos pelos quais estas regras, mesmo lidas em função da obrigação de respeitar normas exigentes de bem‑estar dos animais, não se opõem, a meu ver, à atribuição do rótulo «AB» a produtos provenientes do abate de animais sem atordoamento.

Normas que regem a agricultura biológica e ligação com as regras em matéria de abate dos animais

61.

Para acompanhar a evolução contínua do mercado dos produtos biológicos ( 20 ), a União legisla desde 1991 no domínio da produção biológica, exigindo que os operadores se sujeitem a um sistema elaborado de normas e controlos.

62.

À semelhança dos Regulamentos (CEE) n.o 2092/91 ( 21 ) e (CE) n.o 392/2004 ( 22 ) que o precederam, o Regulamento n.o 834/2007 visa a implementação de um sistema global de gestão das explorações agrícolas e de produção de géneros alimentícios, que combina as melhores práticas em diversos domínios (ambiente, biodiversidade, preservação dos recursos naturais e normas exigentes em matéria de bem‑estar dos animais).

63.

Tal como o Regulamento n.o 834/2007, o novo Regulamento (UE) 2018/848 ( 23 ), que é aplicável a partir de 1 de janeiro de 2021, recorda, no seu considerando 1, nomeadamente, que «[a] produção biológica desempenha […] uma dupla função social: por um lado, abastece um mercado específico que responde à procura de produtos biológicos por parte dos consumidores e, por outro, fornece bens disponíveis para o público em geral que contribuem para a proteção do ambiente e do bem‑estar dos animais, bem como para o desenvolvimento rural».

64.

Não se pode seriamente refutar que, no âmbito do direito da União, os produtos biológicos e os produtos não biológicos têm regimes jurídicos diferentes, os primeiros estando sujeitos a requisitos em matéria de produção mais rigorosos do que os segundos ( 24 ).

65.

Entre os objetivos prosseguidos e as prioridades da agricultura biológica, o Tribunal de Justiça já salientou a importância que deve ser concedida aos que dizem respeito à segurança alimentar e à proteção dos consumidores. Com efeito, é necessário proteger a confiança dos consumidores nos produtos rotulados como produtos biológicos ( 25 ). A este título e como esclarece o seu artigo 23.o, n.o 1, o Regulamento n.o 834/2007 só permite, na rotulagem e na publicidade de produtos agrícolas, a utilização de termos referentes ao método de produção biológica se todos os ingredientes desse produto tiverem sido produzidos em conformidade com os requisitos estabelecidos neste regulamento.

66.

Em termos de proteção do bem‑estar dos animais, é inegável que o Regulamento n.o 834/2007 visa submeter a agricultura biológica a um determinado número de normas que garantam um nível de proteção do bem‑estar dos animais superior àquele que é exigido no âmbito da agricultura convencional. Assim, o artigo 3.o, alínea a), iv), deste regulamento dispõe que a produção biológica pretende «[e]stabelecer um sistema de gestão agrícola sustentável que […] [r]espeite normas exigentes de bem‑estar dos animais ( 26 )». O artigo 5.o, alínea h) do referido regulamento indica ainda que a agricultura biológica visa a «[o]bservância de um elevado nível de bem‑estar dos animais ( 27 ) respeitando as necessidades próprias de cada espécie».

67.

Porém, é forçoso concluir que, se a regulamentação pertinente é relativamente detalhada quanto às condições de alojamento (v. artigos 10.o a 12.o do Regulamento n.o 889/2008 que remetem, nomeadamente, para o Anexo III deste regulamento) e de criação (v., nomeadamente, as medidas de «maneio dos animais», artigo 18.o deste regulamento) dos animais que devem ser respeitadas pela agricultura biológica, na medida em que enuncia normas que vão muito além das normas europeias aplicáveis à agricultura dita convencional, continua a ser relativamente silenciosa quanto às normas aplicáveis ao abate de animais. Designadamente, nenhuma das disposições do referido regulamento proíbe enquanto tal o abate sem atordoamento.

68.

O artigo 14.o, n.o 1, alínea b), viii), do Regulamento n.o 834/2007 limita‑se a enunciar que «[q]ualquer sofrimento, incluindo a mutilação, é reduzido ao mínimo durante a vida toda do animal, nomeadamente no momento do abate ( 28 )».

69.

Este silêncio do Regulamento n.o 834/2007 e do seu Regulamento de aplicação n.o 889/2008 sobre as modalidades de abate, só pode, a meu ver, ser interpretado no sentido de remeter, nesta matéria, às regras gerais que regem a occisão dos animais, especialmente, às regras aplicáveis aos animais criados ou mantidos para a produção de alimentos que estão previstas no Regulamento n.o 1099/2009 ( 29 ).

70.

Parece‑me que tal resulta de forma implícita, mas necessária, do artigo 1.o, n.o 4, do Regulamento n.o 834/2007, que dispõe que este regulamento é aplicável sem prejuízo de outras disposições do direito da União relativas aos produtos abrangidos pelo seu âmbito de aplicação. Ora, as disposições do Regulamento n.o 1099/2009 fazem parte destas disposições.

71.

Especifico desde já que, de acordo com o seu teor, este regulamento visa estabelecer regras comuns para a proteção do bem‑estar dos animais no momento do abate ou occisão na União. Contrariamente à regulamentação que faz parte do «pacote higiene» de 2006 ( 30 ), o Regulamento n.o 1099/2009 refere‑se, precisamente, à proteção do bem‑estar dos animais no momento da occisão.

72.

O referido regulamento assenta, conforme enuncia o seu considerando 4, na ideia de que a proteção dos animais no momento do abate é uma questão de interesse público ( 31 ).

73.

Do mesmo modo, o artigo 3.o, n.o 1, estabelece um requisito geral segundo o qual deve poupar‑se aos animais qualquer dor, aflição ou sofrimento evitáveis durante a occisão e as operações complementares.

74.

Por outras palavras, o Regulamento n.o 1099/2009 visa e introduz requisitos relativos ao bem‑estar dos animais. Na falta de elementos específicos na regulamentação que visa especialmente a agricultura biológica, as disposições gerais do Regulamento n.o 1099/2009 devem aplicar‑se.

75.

Ora, se, nos termos do artigo 4.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009, é aplicado o princípio do abate após atordoamento, de acordo com os métodos e requisitos expostos no Anexo I deste regulamento, o artigo 4.o, n.o 4, do mesmo regulamento prevê uma exceção para o abate ritual de animais sem atordoamento nos matadouros.

76.

Conforme expõe o considerando 18 do Regulamento n.o 1099/2009, o artigo 4.o, n.o 4, deste regulamento, ao prever uma derrogação à regra geral prevista no n.o 1 deste artigo, segunda a qual os animais são mortos apenas após atordoamento, admite os abates rituais sem atordoamento, desde que o abate seja efetuado num matadouro e no intuito de respeitar determinados preceitos religiosos.

77.

Conforme já foi decidido pelo Tribunal de Justiça, «a proteção do bem‑estar dos animais constitui o objetivo principal prosseguido pelo Regulamento n.o 1099/2009 e, em especial, pelo seu artigo 4.o, n.o 4, tal como decorre do próprio título do regulamento e do seu considerando 2» ( 32 ).

78.

Esta derrogação não significa, porém, que o regime derrogatório aplicável ao abate ritual ignore o bem‑estar dos animais.

79.

Com efeito, estes abates devem, sempre nos termos do Regulamento n.o 1099/2009, ser efetuados em condições que garantam uma limitação do sofrimento dos animais.

80.

Assim, o considerando 2 do Regulamento n.o 1099/2009 refere, nomeadamente, que «[o]s operadores das empresas ou quaisquer pessoas envolvidas na occisão de animais deverão tomar as medidas necessárias para evitar a dor e minimizar a aflição e sofrimento dos animais durante o processo de abate ou occisão, tendo em conta as melhores práticas neste domínio e os métodos autorizados ao abrigo [deste] regulamento». O considerando 43 do referido regulamento enuncia, por sua vez, que «[n]o abate sem atordoamento deverá ser praticada uma incisão precisa na garganta com uma faca afiada, para minimizar o sofrimento». Além disso, em conformidade com o artigo 9.o, n.o 3, e o artigo 15, n.o 2, primeiro parágrafo, do mesmo regulamento, os animais devem ser imobilizados individualmente e apenas quando «a pessoa encarregada do atordoamento ou sangria esteja pronta para os atordoar ou sangrar o mais rapidamente possível». Por último, nos termos do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1099/2009, «[s]empre que, para efeitos do n.o 4 do artigo 4.o, os animais sejam mortos sem atordoamento prévio, as pessoas responsáveis pelo abate realizem verificações sistemáticas a fim de assegurar que os animais não apresentem sinais de consciência ou sensibilidade antes de serem libertados da imobilização e não apresentem sinais de vida antes de serem preparados ou escaldados».

81.

Afinal, dois regimes de proteção do bem‑estar dos animais coexistem: o regime principal, que impõe o atordoamento prévio, e o regime derrogatório (motivado pela vontade de permitir por razões religiosas o não recurso ao atordoamento). É no âmbito de cada um destes regimes que incumbe aos operadores das empresas ou quaisquer pessoas envolvidas na occisão de animais tomar as medidas necessárias para evitar a dor e minimizar a aflição e sofrimento dos animais durante o processo de abate ou occisão (v. considerando 2 do Regulamento n.o 1099/2009).

82.

Com efeito, afigurar‑se‑ia algo contraditório remeter para as disposições do Regulamento n.o 1099/2009 — e isto, apesar de esta regulamentação não comportar nenhuma referência a «normas exigentes em matéria de bem‑estar dos animais» — para sustentar que, nos termos do seu artigo 4.o, n.o 1, o atordoamento foi erigido em princípio e, ao mesmo tempo, considerar que esta remissão deixa de ter sentido no que se refere à derrogação prévia ao atordoamento prevista no artigo 4.o, n.o 4, deste mesmo regulamento.

83.

Daqui resulta que o objetivo geral de cumprimento «das normas exigentes em matéria de bem‑estar dos animais» é sempre respeitado, seja qual for o modo de abate escolhido. Não considero que o princípio do atordoamento prévio, previsto pelo Regulamento n.o 1099/2009, leve a concluir que a exigência de «normas exigentes em matéria de proteção do bem‑estar dos animais» implica necessariamente que o abate seja efetuado com atordoamento prévio.

84.

A meu ver, na falta de indicações sobre as obrigações que impendem sobre os operadores em causa, tais como as que foram definidas de forma bastante precisa pelo legislador em matéria de alojamento dos animais (v. considerando 10 do Regulamento n.o 889/2008), a produção biológica não deve estar sujeita, em matéria de abate de animais, a regras mais rigorosas do que as previstas pelos diplomas gerais que regem o bem‑estar dos animais no momento da occisão.

85.

Em conclusão, nenhuma disposição dos Regulamentos n.os 834/2007 e 889/2008 define expressamente a ou as formas de abate dos animais aptas a responder aos objetivos do bem‑estar dos animais ou de redução do sofrimento dos animais. Na falta de precisão quanto às modalidades de abates preconizadas pela regulamentação relativa à agricultura biológica, há que remeter para o conjunto de regras que regem o bem‑estar dos animais no momento da occisão, ou seja, o Regulamento n.o 1099/2009. Neste contexto, não há que excluir as regras que regem os abates rituais.

Possibilidade, ao abrigo das regras aplicáveis, de atribuir um rótulo «AB» aos produtos provenientes de abate sem atordoamento

86.

Os Regulamentos n.os 834/2007 e 889/2008 que não preveem, em matéria de atordoamento prévio à occisão, qualquer requisito para poder beneficiar da menção «AB», não podem proibir a prática do abate ritual.

87.

Uma vez que estes regulamentos têm por objetivo estabelecer normas precisas que os produtos devem cumprir para serem certificados como provenientes da agricultura biológica, tenho dificuldade em entender como se pode sustentar seriamente que o silêncio desta regulamentação sobre um eventual recurso aos abates sem atordoamento pode ser considerado como puramente fortuito. A meu ver, o silêncio dos diplomas sobre este ponto não resulta de um esquecimento e uma simples referência ao contexto de elaboração ( 33 ) não vem necessariamente sustentar a interpretação defendida pela OABA no processo principal.

88.

Vários motivos complementares levam‑me a defender esta conclusão.

89.

Em primeiro lugar, e no seguimento do que foi antes referido, há que salientar que determinadas práticas de criação são expressamente proibidas ou circunscritas nos diplomas que regem a agricultura biológica, nomeadamente, no artigo 18.o do Regulamento n.o 889/2008. Com efeito, esta disposição prevê que determinadas práticas destinadas ao maneio dos animais são, em princípio, proibidas (mutilação) ou fortemente enquadradas (colocação de elásticos nas caudas dos ovinos, corte da cauda ou de dentes, corte de bicos e corte de chifres e castração física). Do mesmo modo, o artigo 20.o deste regulamento, que se refere à alimentação dos animais, proíbe a alimentação forçada.

90.

Mais, importa também salientar que, apesar de o Regulamento n.o 1099/2009 não prever uma obrigação de atordoamento prévio, o artigo 25.o‑H, n.o 5, do Regulamento (CE) n.o 710/2009 da Comissão, de 5 de agosto de 2009, que altera o Regulamento n.o 889/2008, no que respeita à produção aquícola biológica de animais e de algas marinhas ( 34 ), prevê que «[a]s técnicas de abate devem deixar os peixes imediatamente inconscientes e insensíveis à dor».

91.

Por último, o silêncio da regulamentação relativa à agricultura biológica sobre a questão do abate ritual parece‑me ainda menos resultar de um esquecimento já que a questão do abate ritual é, há muito ( 35 ), conhecida e reconhecida nos diplomas que regem o abate dos animais e que, ademais, o «abate» dos animais é referido por diversas vezes nesta regulamentação ( 36 ).

92.

Note‑se que, apesar de algumas associações de proteção do bem‑estar dos animais, nomeadamente, aquando da elaboração do documento de trabalho da Comissão que acompanha a proposta de alteração do Regulamento n.o 834/2007 ( 37 ), terem apelado à alteração da regulamentação relativa à agricultura biológica no sentido de uma generalização do atordoamento dos animais antes do seu abate ( 38 ), o Regulamento 2018/848, que entrou recentemente em vigor, permanece mudo quanto ao recurso a este atordoamento.

93.

À luz das considerações acima expostas, considero que a certificação «AB» não pode ser recusada aos produtos provenientes do abate de animais sem atordoamento.

94.

A este respeito, os outros argumentos de ordem teleológica e sistemática invocados no âmbito do presente processo para sustentar a tese contrária não me convenceram.

95.

Em primeiro lugar, parece‑me que o argumento relativo ao respeito do «princípio da confiança dos consumidores» nos produtos rotulados como biológicos, a que remetem, nomeadamente, os considerandos 3, 5 e 22 e o artigo 1.o do Regulamento n.o 834/2007, não pode ser acolhido. Dado que a alegada impossibilidade de apor a menção «AB» a produtos provenientes de animais abatidos sem atordoamento não resulta expressamente da regulamentação que rege as normas aplicáveis à agricultura biológica, este princípio não pode ser violado, quando o rótulo é atribuído em conformidade com o direito aplicável.

96.

Sem dúvida, a proteção da confiança dos consumidores nos produtos rotulados como produtos biológicos exige, conforme dispõe o artigo 6.o, alínea c), do Regulamento n.o 834/2007, a exclusão de substâncias e métodos de transformação suscetíveis de induzir em erro no que diz respeito à verdadeira natureza do produto. Porém, esta confiança apenas é ameaçada com a violação dos requisitos claros aos quais está expressamente sujeita a agricultura biológica. Ora, conforme foi explicado anteriormente, à luz da regulamentação pertinente, não me parece que a exclusão do recurso ao atordoamento no momento do abate dos animais possa implicar automaticamente a exclusão total do benefício da menção «AB» para os produtos em causa.

97.

Aliás, há também que sublinhar que, na situação atual, e apesar do interesse crescente dos consumidores quanto às condições de abate dos animais ( 39 ), a regulamentação da União relativa à informação dos consumidores sobre os géneros alimentícios não prevê, por agora, qualquer referência específica sobre as condições de abate dos animais ( 40 ).

98.

Nestas circunstâncias, concluir pela incompatibilidade, ao abrigo do direito da União, entre, por um lado, a certificação «kosher» e «halal» e, por outro, o rótulo «AB» equivale a acrescentar um requisito que o direito positivo não prevê. Isto levaria a recusar aos judeus e muçulmanos praticantes que o desejassem o acesso a produtos biológicos e a possibilidade de beneficiar das garantias que estes produtos apresentam em termos de qualidade e segurança alimentar.

99.

Com efeito, se a impossibilidade de cumular a certificação «AB» e as menções «kosher» e «halal» não é, diretamente, problemática do ponto de vista do exercício da liberdade religiosa, parece‑me, em contrapartida, que compromete a possibilidade para os consumidores de produtos kosher ou halal de obter produtos que beneficiam das garantias dadas pela certificação «AB».

100.

Em segundo lugar, conforme foi decidido pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 5 de novembro de 2014, a Herbaria Kräuterparadies (C‑137/13, EU:C:2014:2335, n.o 46), se é inegável que «[o] direito da União não garante que um operador económico possa comercializar os seus produtos com todas as designações que considere vantajosas para os promover», é, todavia, inoponível a um operador que tenha respeitado todas as exigências da regulamentação aplicável.

101.

A este respeito, não se pode ficar indiferente à argumentação desenvolvida, nomeadamente, pela Ecocert, segundo a qual um organismo de certificação não pode impor requisitos que não estejam previstos na regulamentação pertinente para efeitos de obtenção de uma certificação «AB». Designadamente, quando são respeitadas as disposições que regem as modalidades de criação e abate dos animais para a obtenção do rótulo «AB», o organismo de certificação deve, em princípio, conceder este rótulo sem acrescentar requisitos que não sejam previstos pelo direito positivo. Caso não o fizesse, tal facto seria problemático tanto do ponto de vista da livre circulação dos produtos biológicos na União Europeia, a que se refere o artigo 34.o do Regulamento n.o 834/2007, como do ponto vista da liberdade do comércio e da indústria.

102.

Esta conclusão não viola o artigo 13.o TFUE.

103.

Sem dúvida, que é ponto assente que a proteção do bem‑estar dos animais constitui um objetivo legítimo de interesse geral cuja importância se traduz, nomeadamente, na adoção pelos Estados‑Membros do Protocolo (n.o 33) relativo à proteção e ao bem‑estar dos animais, anexo ao Tratado CE, segundo o qual, na definição e aplicação das políticas comunitárias, nomeadamente, nos domínios da agricultura e dos transportes, a Comunidade e os Estados‑Membros têm plenamente em conta as exigências em matéria de bem‑estar dos animais. Este protocolo passou a corresponder ao atual artigo 13.o TFUE, disposição de aplicação geral do Tratado FUE, que consta da primeira parte deste tratado consagrada aos princípios ( 41 ).

104.

Ora, entendo que, ao aprovar a regulamentação em causa, designadamente, o Regulamento n.o 1099/2009, que rege as normas relativas ao bem‑estar dos animais no momento da occisão, o legislador procurou contrabalançar a liberdade de culto e o bem‑estar dos animais. Conforme foi acima exposto, além de este regulamento não ignorar o bem‑estar dos animais, permite apenas recorrer aos abates rituais a título derrogatório e dentro dos requisitos estritamente definidos no seu artigo 4, n.o 4.

Conclusão

105.

À luz das considerações que precedem, proponho que o Tribunal de Justiça responda à questão prejudicial submetida pela cour administrative d'appel de Versailles (Tribunal Administrativo de Recurso de Versalhes, França) do seguinte modo:

O Regulamento (CE) n.o 834/2007 do Conselho, de 28 de junho de 2007, relativo à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos, e o Regulamento (CE) n.o 1099/2009 do Conselho, de 24 de setembro de 2009, relativo à proteção dos animais no momento da occisão, lidos à luz do artigo 13.o TFUE, devem ser interpretados no sentido de que não proíbem a atribuição do rótulo europeu «AB» a produtos com origem em animais que foram objeto de um abate ritual sem atordoamento prévio, efetuado nas condições estabelecidas no Regulamento (CE) n.o 1099/2009.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Regulamento do Conselho, de 24 de setembro de 2009, relativo à proteção dos animais no momento da occisão (JO 2009, L 303, p. 1).

( 3 ) Esta associação francesa, fundada em 1961, tem por objetivo, segundo os seus estatutos, «assistir, defender e proteger, por todos os meios adequados e permitidos pela lei, os animais destinados a talhos, charcutaria, esquartejamento e os animais de capoeira, os animais de sangue frio e, por extensão, todos os animais cuja carne se destina ao consumo, nas diversas fases da sua existência, nomeadamente, as fases da criação, alojamento, transporte e da occisão».

( 4 ) Regulamento do Conselho, de 28 de junho de 2007, relativo à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 2092/91 (JO 2007, L 189, p. 1).

( 5 ) Regulamento da Comissão, de 5 de setembro de 2008, que estabelece normas de execução do Regulamento (CE) n.o 834/2007 do Conselho relativo à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos, no que respeita à produção biológica, à rotulagem e ao controlo (JO 2008, L 250, p. 1).

( 6 ) V., nomeadamente, considerandos 1 e 17 e artigo 3.o, alínea a), iv), e artigo 5.o, alínea h), do Regulamento n.o 834/2007.

( 7 ) V., nomeadamente, artigo 1.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 834/2007.

( 8 ) V., nomeadamente, artigo 14.o, n.o 1, alínea b), viii), e artigo 15.o, n.o 1, alínea b), vi), do Regulamento n.o 834/2007.

( 9 ) Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335, n.o 45).

( 10 ) V., em geral, quanto aos preceitos alimentares motivados pela religião, TEDH, 7 de dezembro de 2010, Jakóbski c. Polónia (CE:ECHR:2010:1207JUD001842906), e 17 de dezembro de 2013, Vartic c. Roménia (CE:ECHR:2013:1217JUD001415008).

( 11 ) V., nomeadamente, observações da Bionoor, pp. 8 a 12.

( 12 ) Entre os numerosos estudos referidos pelas partes interessadas, indico nomeadamente o Parecer de 2004 do Painel Científico da União Europeia sobre a saúde e bem‑estar animal (Scientific Panel on Animal Health and Welfare (AHAW), intitulado «Welfare aspects of the main systems of stunning and killing the main commercial species of animals», The EFSA Journal (2004), 45, 1‑29; a Declaração de Posição da Federação de Veterinários Europeus de 2002 «Slaughter of Animals Without Prior Stunning», disponível no seguinte endereço (www.fve.org/news/.../fve_02_104_slaughter_prior_stunning.pdf); e um estudo de 2010 intitulado «Report on Good and Adverse practices ‑ Animal Welfare Concerns in Relation to Slaughter Practices from the Viewpoint of Veterinary Sciences», realizado no âmbito do projeto europeu DIALREL («Encouraging Dialogue on issues of Religious Slaughter») e disponível no seguinte endereço:: http://www.dialrel.eu/dialrel‑results/veterinary‑concerns.html.

( 13 ) A Comissão referiu que a Ecocert é, tanto quanto sabe, o único organismo que aceita explicitamente o abate ritual sem qualquer forma de atordoamento.

( 14 ) A generalização do recurso ao atordoamento parece assim verificar‑se na Dinamarca e na Suécia. Na Bélgica, os parlamentos das regiões da Valónia e Flandres decidiram, no decurso do ano de 2007, que o recurso a alguma forma de atordoamento será obrigatório para os abates rituais.

( 15 ) O termo «halal» designa, de modo geral, o que é «lícito» ou «permitido» pelos preceitos religiosos.

( 16 ) V., nomeadamente, Diretrizes gerais da Comissão do Codex Alimentarius para o uso do termo «halal» (CAC/GL 24‑1997), consultáveis no endereço seguinte: http://www.fao.org/docrep/005/y2770f/y2770f08.htm#fn26. Estas diretrizes foram dirigidas a todos os Estados‑Membros e Membros associados da Food and Agriculture Organization of the United Nations [Organisation des Nations unies pour l’alimentation et l’agriculture (FAO)] et de l’Organisation mondiale de la santé [FAO] e da Organização Mundial de Saúde [OMS], enquanto texto de caráter consultivo e cabe a cada governo decidir do uso que lhe quer dar.

( 17 ) Segundo a OABA, em França, esta é a posição das Mesquitas de Paris, Lyon e Evry. Após verificação, afigura‑se que os organismos de certificação «halal» ligados a estas mesquitas [como a Société française de contrôle de viande halal (SFCVH), a Association rituelle de la Grande Mosquée de Lyon (ARGML) ou a Association culturelle des musulmans d’Île‑de‑France (ACMIF)] admitem, efetivamente, formas de atordoamento prévio ao abate dos animais (como a eletronarcose dita «reversível»).

( 18 ) Em França, as tentativas de definição de uma norma «halal» pela Association française de normalisation (AFNOR), que tinha sido elaborada a título experimental para os produtos alimentares transformados durante o ano de 2017, foram infrutíferas.

( 19 ) V., por exemplo, pp. 117 e 118 do relatório elaborado em nome da comissão de inquérito da Assemblée nationale française (Assembleia Nacional francesa) sobre as condições de abate dos animais para talhos nos matadouros franceses de 20 de setembro de 2016, pp. 117‑118 (http://www2.assemblee‑nationale.fr/14/autres‑commissions/commissions‑d‑enquete/conditions‑d‑abattage‑des‑animaux‑de‑boucherie‑dans‑les‑abattoirs‑francais/).

( 20 ) Ao longo da última década, o mercado dos produtos biológicos registou um desenvolvimento dinâmico, favorecido por um forte aumento da procura. O mercado mundial da alimentação biológica quadruplicou desde 1999 [v., nomeadamente, Documento de Trabalho dos Serviços da Comissão Europeia Síntese da Avaliação de Impacto que acompanha o documento «Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que diz respeito à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos, que altera o Regulamento (UE) n.o XXX/XXX do Parlamento Europeu e do Conselho [Regulamento relativo aos controlos oficiais] e que revoga o Regulamento (CE) n.o 834/2007 do Conselho», de 24 de março de 2014 COM (2014) 180 final, p. 11 e referências citadas].

( 21 ) Regulamento do Conselho, de 24 de junho de 1991, relativo ao modo de produção biológico de produtos agrícolas e à sua indicação nos produtos agrícolas e nos géneros alimentícios (JO 1991, L 198, p. 1).

( 22 ) Regulamento do Conselho, de 24 de fevereiro de 2004, que altera o Regulamento (CEE) n.o 2092/91 (JO 2004, L 65, p. 1).

( 23 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2018, relativo à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos e que revoga o Regulamento (CE) n.o 834/2007 do Conselho (JO 2018, L 150, p. 1).

( 24 ) V. Acórdão de 4 de junho de 2015, Andechser Molkerei Scheitz/Comissão (C‑682/13 P, não publicado, EU:C:2015:356, n.o 36).

( 25 ) V., nomeadamente, Acórdãos de 5 de novembro de 2014, Herbaria Kräuterparadies (C‑137/13, EU:C:2014:2335, n.o 42), e de 12 de outubro de 2017, Kamin und Grill Shop (C‑289/16, EU:C:2017:758, n.o 30).

( 26 ) O sublinhado é meu.

( 27 ) O sublinhado é meu.

( 28 ) O sublinhado é meu.

( 29 ) V. artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1099/2009.

( 30 ) V., neste sentido, as Conclusões que apresentei no processo Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2017:926, n.os 35 e 64 a 68).

( 31 ) V. também considerandos 24, 37 e 43 deste regulamento.

( 32 ) Acórdão de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335, n.o 63).

( 33 ) V. Acórdão de 19 de outubro de 2017, Vion Livestock (C‑383/16, EU:C:2017:783).

( 34 ) JO 2009, L 204, p. 15.

( 35 ) A vontade do legislador da União de conciliar a proteção da liberdade de culto com a proteção do bem‑estar animal já se manifestava aquando da adoção da Diretiva 74/577/CEE do Conselho, de 18 de novembro de 1974, relativa ao atordoamento dos animais antes do seu abate (JO 1974, L 316, p. 10; EE 03 F7 p. 258) e continua ainda presente no Regulamento (CE) n.o 1099/2009 atualmente em vigor.

( 36 ) V. artigos 2.o, alínea i), e 14.o, n.o 1, alínea b), viii), do Regulamento n.o 834/2007, e artigos 12.o, n.o 5, e 76.o, alínea b), do Regulamento n.o 889/2008.

( 37 ) Documento de Trabalho dos Serviços da Comissão Síntese da Avaliação de Impacto que acompanha o documento «Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que diz respeito à produção biológica e à rotulagem dos produtos biológicos, que altera o Regulamento (UE) n.o XXX/XXX do Parlamento Europeu e do Conselho [Regulamento relativo aos controlos oficiais] e que revoga o Regulamento (CE) n.o 834/2007», de 24 de março de 2014 COM(2014) 180 final/SWD(2014) 66 final [v. p. 91].

( 38 ) No caso em apreço, é interessante notar que a OABA, enquanto contesta a certificação «AB» atribuída pela Ecocert por ser contrária à regulamentação relativa à agricultura biológica, solicita, ao mesmo tempo, uma alteração da regulamentação em vigor.

( 39 ) Inúmeras associações de proteção dos animais militam, assim, a favor da imposição de um rótulo que indique o método de abate utilizado. A pertinência do referido rótulo é, porém, objeto de debate (v. conclusões do relatório de inquérito, referido na nota 19, pp. 118 a 120).

( 40 ) V., nomeadamente, o Regulamento (UE) n.o 1169/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativo à prestação de informação aos consumidores sobre os géneros alimentícios, que altera os Regulamentos (CE) n.o 1924/2006 e (CE) n.o 1925/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho e revoga as Diretivas 87/250/CEE da Comissão, 90/496/CEE do Conselho, 1999/10/CE da Comissão, 2000/13/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, as Diretivas 2002/67/CE e 2008/5/CE da Comissão e o Regulamento (CE) n.o 608/2004 da Comissão (JO 2011, L 304, p. 18). O considerando 50 do Regulamento n.o 1169/2011 refere, porém, que «deverá ser considerada, no contexto da futura estratégia da União relativa à proteção e ao bem‑estar dos animais, a elaboração de um estudo sobre a oportunidade de fornecer aos consumidores as informações relevantes sobre o atordoamento dos animais» (o sublinhado é meu). Os resultados deste estudo, finalmente, realizado a pedido da Direção Geral «Saúde e Segurança dos alimentos» da Comissão e cujas conclusões foram publicadas em 23 de fevereiro de 2015 (https://ec.europa.eu/food/sites/food/files/animals/docs/aw_practice_slaughter_fci‑stunning_report_en.pdf) mostram, designadamente, que, para a maioria dos consumidores, a informação referente ao atordoamento antes do abate não é uma questão importante, enquanto não lhes for dada a conhecer.

( 41 ) V., nomeadamente, Acórdãos de 23 de abril de 2015, Zuchtvieh‑Export (C‑424/13, EU:C:2015:259, n.o 35), e de 29 de maio de 2018, Liga van Moskeeën en Islamitische Organisaties Provincie Antwerpen e o. (C‑426/16, EU:C:2018:335, n.o 64 e jurisprudência referida).

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