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Document 62012TJ0512

Acórdão do Tribunal Geral (Oitava Secção) de 10 de dezembro de 2015.
Frente Popular para a Libertação da Saguia-el-hamra e Rio de Oro (Frente Polisário) contra Conselho da União Europeia.
Relações externas — Acordo sob forma de Troca de Cartas entre a União e Marrocos — Liberalização recíproca em matéria de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixes e de produtos de pesca — Aplicação do acordo ao Sara Ocidental — Frente Polisário — Recurso de anulação — Capacidade para agir — Afetação direta e individual — Admissibilidade — Conformidade com o direito internacional — Dever de fundamentação — Direitos de defesa.
Processo T-512/12.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:T:2015:953

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção)

10 de dezembro de 2015 ( *1 )

«Relações externas — Acordo sob forma de Troca de Cartas entre a União e Marrocos — Liberalização recíproca em matéria de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixes e de produtos de pesca — Aplicação do acordo ao Sara Ocidental — Frente Polisário — Recurso de anulação — Capacidade para agir — Afetação direta e individual — Admissibilidade — Conformidade com o direito internacional — Dever de fundamentação — Direitos de defesa»

No processo T‑512/12,

Frente Popular para a Libertação de Saguia‑el‑hamra e Rio de Oro (Frente Polisário), representada inicialmente por C.‑E. Hafiz e G. Devers, e em seguida por G. Devers, advogados,

recorrente,

contra

Conselho da União Europeia, representado por S. Kyriakopoulou, Á. de Elera‑San Miguel Hurtado, A. Westerhof Löfflerová e N. Rouam, na qualidade de agentes,

recorrido,

apoiado por:

Comissão Europeia, representada inicialmente por F. Castillo de la Torre, E. Paasivirta e D. Stefanov, e em seguida por F. Castillo de la Torre e E. Paasivirta, na qualidade de agentes,

interveniente,

que tem por objeto um pedido de anulação da Decisão 2012/497/UE do Conselho, de 8 de março de 2012, relativa à celebração do Acordo sob forma de Troca de Cartas entre a União Europeia e o Reino de Marrocos respeitante às medidas de liberalização recíprocas em matéria de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixe e de produtos da pesca, à substituição dos Protocolos n.os 1, 2 e 3 e seus anexos e às alterações do Acordo Euromediterrânico que cria uma Associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e o Reino de Marrocos, por outro (JO L 241, p. 2),

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção),

composto por: D. Gratsias (relator), presidente, M. Kancheva e C. Wetter, juízes,

secretário: S. Bukšek Tomac, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 16 de junho de 2015,

profere o presente

Acórdão

Antecedentes do litígio

Quanto ao estatuto internacional do Sara Ocidental

1

O Sara Ocidental é um território do noroeste de África que faz fronteira com Marrocos, a norte, com a Argélia, a noroeste, e com a Mauritânia a este e sul, sendo a sua costa oeste banhada pelo Atlântico. Foi colonizado pelo Reino de Espanha após a Conferência de Berlim (Alemanha) de 1884 sendo, desde a Segunda Guerra Mundial, uma província espanhola. Após a sua independência, em 1956, o Reino de Marrocos reivindicou a «libertação» do Sara Ocidental, considerando que este território lhe pertencia.

2

Em 14 de dezembro de 1960, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) adotou a Resolução 1514 (XV) sobre a concessão da independência aos países e povos colonizados.

3

Em 1963, na sequência de uma transmissão de informações por parte do Reino de Espanha, em aplicação do artigo 73.o, alínea e), da Carta das Nações Unidas, a ONU inscreveu o Sara Ocidental na lista dos territórios não autónomos. O Sara Ocidental ainda figura nessa lista.

4

Em 20 de dezembro de 1966, a Assembleia Geral da ONU adotou a Resolução 2229 (XXI) sobre a questão do Ifni e do Sara espanhol, tendo reafirmado o «direito inalienável d[o] pov[o] [...] do Sara espanhol à autodeterminação». A mesma pediu que, enquanto potência administrativa, o Reino de Espanha «adote o mais rapidamente possível, em conformidade com as aspirações da população autóctone do Sara espanhol, e em consulta com os governos de Marrocos e da Mauritânia e com qualquer outra parte interessada, as modalidades de organização de um referendo a organizar sob os auspícios da [ONU] para permitir que a população autóctone do território exerça livremente o seu direito à autodeterminação».

5

A recorrente, Frente Popular para a Libertação de Saguia‑el‑hamra e Rio de Oro (Frente Polisário), foi criada em 10 de maio de 1973. Nos termos do artigo 1.o dos seus estatutos, elaborados no seu décimo terceiro Congresso em dezembro de 2011, a mesma é «um movimento de libertação nacional, fruto da longa resistência sarauí contra as várias formas de ocupação estrangeira».

6

Em 20 de agosto de 1974, o Reino de Espanha informou a ONU de que propunha organizar, sob os seus auspícios, um referendo no Sara Ocidental.

7

Através da Resolução 3292 (XXIX) sobre a questão do Sara espanhol, adotada em 13 de dezembro de 1974, a Assembleia Geral das ONU decidiu pedir ao Tribunal Internacional de Justiça um parecer consultivo sobre a questão de saber se o Sara Ocidental (Rio de Oro e Sakiet el Hamra) era, no momento da sua colonização pelo Reino de Espanha, terra de ninguém (terra nullius). Caso a resposta a esta questão fosse negativa, também pediu que o Tribunal Internacional de Justiça se pronunciasse sobre os elos jurídicos entre o Sara Ocidental e o Reino de Marrocos e a Mauritânia. Além disso, a Assembleia Geral da ONU convidou o Reino de Espanha, que qualificou de potência administrativa, a suspender a realização do referendo que previa organizar no Sara Ocidental, enquanto não se pronunciasse a respeito da política a seguir para acelerar o processo de descolonização do território. Também pediu que o comité especial encarregado de estudar a situação no que respeita à aplicação da sua resolução acima referida no n.o 2 «monitorizasse a situação no território, incluindo o envio de uma missão de visita ao território».

8

Em 16 de outubro de 1975, o Tribunal Internacional de Justiça proferiu o parecer consultivo que lhe tinha sido pedido (Sara Ocidental, parecer consultivo, CIJ Recueil 1975, p. 12). Segundo este parecer, o Sara Ocidental (Rio de Oro e Sakiet el Hamra) não era uma terra de ninguém (terra nullius) no momento da sua colonização pelo Reino de Espanha. No seu parecer, o Tribunal Internacional de Justiça também observou que o Sara Ocidental tinha elos jurídicos com o Reino de Marrocos e com a Mauritânia, mas que os elementos e informações que lhe tinham sido fornecidos não demonstravam a existência de qualquer elo de soberania entre o Sara Ocidental, por um lado, e o Reino de Marrocos ou a Mauritânia, por outro. Assim sendo, afirmou, no n.o 162 do seu parecer, que não tinha constatado a existência de elos jurídicos suscetíveis de alterar a aplicação da Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral da ONU, de 14 de dezembro de 1960, sobre a concessão da independência aos países e povos colonizados (v. n.o 2, supra) quanto à descolonização do Sara Ocidental e, em particular, a aplicação do princípio da autodeterminação graças à expressão livre e autêntica da vontade das populações do território.

9

Durante o outono de 1975, a situação no Sara Ocidental deteriorou‑se. Num discurso que pronunciou no mesmo dia em que foi publicado o acima referido parecer do Tribunal Internacional de Justiça, o Rei de Marrocos, considerando que «todos» tinham reconhecido que o Sara Ocidental pertencia a Marrocos e que apenas restava aos marroquinos «ocupar [o seu] território», apelou à organização de uma «marcha pacífica» para o Sara Ocidental, na qual participaram 350000 pessoas.

10

O Conselho de Segurança da ONU (a seguir «Conselho de Segurança») apelou a que as partes em causa e os interessados dessem prova de ponderação e moderação e expressou a sua preocupação face à grave situação na região em três resoluções sobre o Sara Ocidental, concretamente, Resoluções 377 (1975), de 22 de outubro de 1975, 379 (1975), de 2 de novembro de 1975, e 380 (1975), de 6 de novembro de 1975. Na última dessas resoluções, condenou a realização da marcha anunciada pelo Rei de Marrocos e pediu ao Reino de Marrocos a retirada imediata do território do Sara Ocidental de todos os participantes na referida marcha.

11

Em 14 de novembro de 1975, o Reino de Espanha, o Reino de Marrocos e a República Islâmica da Mauritânia assinaram uma declaração de princípio sobre o Sara Ocidental (Acordos de Madrid) em Madrid (Espanha). Nesta declaração, o Reino de Espanha reiterou a sua decisão de descolonizar o Sara Ocidental. Além disso, foi acordado que os poderes e responsabilidades do Reino de Espanha, enquanto potência administrativa do Sara Ocidental, seriam transferidos para uma Administração tripartida temporária.

12

Em 26 de fevereiro de 1976, o Reino de Espanha informou o secretário‑geral da ONU de que, a partir dessa data, poria fim à sua presença no território do Sara Ocidental e de que considerava estar isento de qualquer responsabilidade internacional relativa à administração do mesmo. Entretanto começara um conflito armado entre o Reino de Marrocos, a República Islâmica da Mauritânia e a Frente Polisário no Sara Ocidental.

13

Em 14 de abril de 1976, o Reino de Marrocos e a República Islâmica da Mauritânia assinaram uma Convenção relativa ao traçado da sua fronteira nos termos da qual partilhariam o território do Sara Ocidental. Todavia, em aplicação de um acordo de paz celebrado em agosto de 1979 entre a República Islâmica da Mauritânia e a Frente Polisário, aquela retirou‑se do território do Sara Ocidental. Na sequência dessa retirada, Marrocos alargou a sua ocupação ao território desocupado pela Mauritânia.

14

Na sua Resolução 34/37, de 21 de novembro de 1979, sobre a questão do Sara Ocidental, a Assembleia Geral da ONU reafirmou «o direito inalienável do povo do Sara Ocidental à autodeterminação e à independência» tendo‑se felicitado pelo acordo de paz celebrado entre a República Islâmica da Mauritânia e a Frente Polisário (n.o 13, supra). Condenou, além disso, «o agravamento da situação decorrente da manutenção da ocupação do Sara Ocidental por Marrocos e do alargamento desta ocupação ao território recentemente desocupado pela Mauritânia». Pediu ao Reino de Marrocos que também se comprometesse com a dinâmica da paz e recomendou, para esse efeito, que a Frente Polisário, «representante do povo do Sara Ocidental, participasse plenamente em qualquer busca de uma situação política justa, durável e definitiva da questão do Sara Ocidental».

15

O conflito armado entre a Frente Polisário e o Reino de Marrocos prosseguiu. Todavia, em 30 de agosto de 1988, as duas partes celebraram um acordo de princípio sobre as propostas de regulamento apresentadas, nomeadamente, pelo secretário‑geral da ONU. Este plano assentava num cessar‑fogo entre as partes em conflito e previa um período transitório que deveria permitir a organização de um referendo de autodeterminação sob a égide da ONU. Com a sua Resolução 690 (1991), de 29 de abril de 1991, relativa ao Sara Ocidental, o Conselho de Segurança criou, sob a sua autoridade, uma missão das Nações Unidas para a organização de um referendo no Sara Ocidental (MINURSO). Depois do envio da MINURSO, o cessar‑fogo acordado entre o Reino de Marrocos e a Frente Polisário tem, em geral, sido respeitado, mas, apesar dos esforços nesse sentido, o referendo ainda não foi organizado e as conversações entre as duas partes interessadas continuam.

16

Atualmente, a maioria do território do Sara Ocidental é controlada pelo Reino de Marrocos, ao passo que a Frente Polisário controla uma parte de pequena dimensão e muito pouco povoada, a leste do território. O território controlado pela Frente Polisário é separado do território controlado pelo Reino de Marrocos por um muro de areia construído por este e que é vigiado pelo exército marroquino. Um elevado número de refugiados originários do Sara Ocidental vivem em campos administrados pela Frente Polisário, situados em território argelino, perto do Sara Ocidental.

Quanto à decisão impugnada e aos seus antecedentes

17

O Acordo Euromediterrânico que cria uma associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e o Reino de Marrocos, por outro (JO 2000, L 70, p. 2, a seguir «acordo de associação com Marrocos»), foi celebrado em Bruxelas, em 26 de fevereiro de 1996.

18

Ao abrigo do seu artigo 1.o, é criada uma associação entre a Comunidade Europeia e a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (designadas neste acordo de associação com Marrocos, em conjunto, como «Comunidade») e os seus Estados‑Membros, por um lado, e Marrocos, por outro. O acordo de associação com Marrocos está subdividido em oito títulos relativos, respetivamente, à livre circulação de mercadorias, ao direito de estabelecimento e prestação de serviços, aos «pagamentos, [aos] capitais, [à] concorrência e [às] outras disposições em matéria económica», à cooperação económica, à cooperação social e cultural, à cooperação financeira e, por último, às disposições institucionais, gerais e finais. O acordo de associação com Marrocos também inclui sete anexos, sendo que os seis primeiros enumeram os produtos visados em algumas disposições dos seus artigos 10.°, 11.° e 12.° (que figuram todos no título relativo à livre circulação de mercadorias), sendo o sétimo anexo relativo à propriedade intelectual, industrial e comercial. Além disso, cinco protocolos, relativos, respetivamente, ao regime aplicável à importação na Comunidade de produtos agrícolas originários de Marrocos, ao regime aplicável à importação na Comunidade de produtos da pesca originários de Marrocos, ao regime aplicável à importação em Marrocos de produtos agrícolas originários da Comunidade, à definição da noção de produtos originários e aos métodos de cooperação administrativa e, por último, à assistência mútua em matéria aduaneira entre autoridades administrativas, figuram em anexo ao acordo de associação com Marrocos. Os protocolos n.os 1, 4 e 5 têm os seus próprios anexos, que, no caso do protocolo n.o 4, relativo à definição do conceito de «produtos originários», são muito volumosos.

19

O acordo de associação com Marrocos, os protocolos que o mesmo comporta como anexos e as declarações e trocas de cartas anexas à ata final foram aprovadas, em nome da Comunidade Europeia e da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço pela Decisão 2000/204/CE, CECA do Conselho e da Comissão, de 24 de janeiro de 2000, relativa à celebração do acordo de associação com Marrocos (JO L 70, p. 1).

20

Ao abrigo da Decisão 2012/497/UE do Conselho, de 8 de março de 2012, relativa à celebração do Acordo sob forma de Troca de Cartas entre a União Europeia e o Reino de Marrocos respeitante às medidas de liberalização recíprocas em matéria de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixe e de produtos da pesca, à substituição dos Protocolos n.os 1, 2 e 3 e seus anexos e às alterações do Acordo Euromediterrânico que cria uma Associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e o Reino de Marrocos, por outro (JO L 241, p. 2, a seguir «decisão impugnada»), o Conselho da União Europeia aprovou, em nome da União Europeia, o Acordo sob forma de Troca de Cartas entre a União e o Reino de Marrocos respeitante às medidas de liberalização recíprocas, à substituição dos Protocolos n.os 1, 2 e 3 e seus anexos e às alterações do acordo de associação com Marrocos.

21

O texto do acordo aprovado pela decisão impugnada, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, suprime o artigo 10.o do acordo de associação com Marrocos, que faz parte do seu título II, relativo à livre circulação de mercadorias, e altera os artigos 7.°, 15.°, 17.° e 18.° do mesmo título e o título do capítulo II que também figura sob este título. Além disso, o acordo aprovado pela decisão impugnada substitui o texto dos Protocolos n.os 1 a 3 do acordo de associação com Marrocos.

Tramitação processual e pedidos das partes

22

A recorrente interpôs o presente recurso por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 19 de novembro de 2012. Em 2 e 31 de janeiro de 2013, em resposta a um pedido de regularização, a recorrente apresentou, nomeadamente, prova de que o mandato outorgado ao seu advogado tinha sido elaborado por uma pessoa habilitada a agir em nome da Frente Polisário e os seus estatutos.

23

Após a apresentação da contestação do Conselho, em 16 de abril de 2013, o Tribunal pediu que a recorrente, no âmbito de uma medida de organização do processo, respondesse a certas questões. Nesse contexto, convidou‑a, nomeadamente, a indicar provas que demonstrassem que está constituída como pessoa coletiva segundo o direito de um Estado internacionalmente reconhecido. Além disso, foi‑lhe pedido que apresentasse observações a respeito dos argumentos do Conselho na contestação, nos termos dos quais o recurso devia ser julgado inadmissível.

24

A recorrente respondeu às questões do Tribunal por articulado apresentado na Secretaria do Tribunal Geral em 26 de setembro de 2013.

25

Por despacho do presidente da Oitava Secção do Tribunal Geral de 6 de novembro de 2013, foi admitida a intervenção da Comissão Europeia em apoio dos pedidos do Conselho. A Comissão apresentou o seu articulado de intervenção em 17 de dezembro de 2013. O Conselho e a recorrente apresentaram as suas observações sobre o referido articulado em 24 de janeiro e 20 de fevereiro de 2014, respetivamente.

26

Com base no relatório do juiz‑relator, o Tribunal Geral (Oitava Secção) decidiu dar início à fase oral do processo. No âmbito das medidas de organização do processo, convidou o Conselho e a Comissão a responder a uma questão. Estes responderam no prazo fixado.

27

Por ato apresentado na Secretaria do Tribunal Geral em 2 de junho de 2015, a recorrente pediu para juntar ao processo três peças anteriormente não apresentadas que considerava pertinentes para a solução do litígio. Por decisão de 12 de junho de 2015, o presidente da Oitava Secção do Tribunal Geral decidiu juntar este pedido e as peças a ele anexas aos autos do processo.

28

O recorrido e a interveniente apresentaram as suas observações relativas às peças em questão na audiência. Neste contexto, o Conselho alegou que as mesmas tinham sido apresentadas extemporaneamente e que, de qualquer modo, não carreavam nenhum elemento novo para os debates. Por seu turno, a Comissão expressou as suas reservas quanto à pertinência destas peças para a solução do litígio.

29

A recorrente conclui no sentido da anulação da decisão impugnada «e[,] por conseguinte, de todos os atos de aplicação».

30

Todavia, na audiência, o representante da recorrente indicou que a referência a «todos os atos de aplicação» resultava de um erro de redação e que havia que entender os pedidos da recorrente no sentido de que apenas pedia a anulação da decisão impugnada. Esta declaração foi registada na ata da audiência.

31

Por outro lado, nas suas observações sobre o articulado de intervenção da Comissão, a recorrente pediu, nomeadamente, a condenação do Conselho e da Comissão nas despesas.

32

O Conselho conclui pedindo ao Tribunal que se digne:

julgar o recurso inadmissível;

caso o Tribunal julgue o recurso admissível, negar provimento ao recurso;

condenar a recorrente nas despesas.

33

A Comissão apoia os pedidos do Conselho tendentes à inadmissibilidade do recurso ou, subsidiariamente, a que o mesmo seja julgado improcedente e pede, além disso, que a recorrente seja condenada nas despesas.

Quanto à admissibilidade

Quanto à capacidade para agir da Frente Polisário

34

Nos termos do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, qualquer pessoa singular ou coletiva pode, nas condições previstas nos primeiro e segundo parágrafos do referido artigo, interpor recurso dos atos de que seja destinatária ou que lhe digam direta e individualmente respeito, bem como dos atos regulamentares que lhe digam diretamente respeito e não necessitem de medidas de execução.

35

O artigo 44.o, n.o 5, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral de 2 de maio de 1991, aplicável no momento da apresentação da petição, previa o seguinte:

«Se a recorrente for uma pessoa coletiva de direito privado, deve juntar à petição:

a)

os seus estatutos ou uma certidão recente do registo comercial ou do registo das pessoas coletivas ou qualquer outro meio de prova da sua existência jurídica;

b)

a prova de que o mandato conferido ao advogado foi regularmente outorgado por um representante com poderes para o efeito.»

36

Além disso, nos termos do artigo 44.o, n.o 6, do Regulamento de Processo de 2 de maio de 1991, se a petição não preencher os requisitos enumerados nos n.os 3 a 5 do presente artigo, o secretário fixa ao recorrente um prazo razoável para a regularizar ou apresentar os documentos referidos nos supracitados números.

37

Na petição, a recorrente observa que é «um sujeito de direito internacional, que dispõe da personalidade jurídica internacional que é reconhecida aos movimentos nacionais de libertação em direito internacional». Alega, além disso, invocando vários textos que juntou à sua petição, que foi «reconhecida como representante do povo sarauí […] pelas instâncias da ONU, da União Europeia e pelo [Reino de] Marrocos, para as negociações». Acrescenta que quer o Conselho de Segurança quer a Assembleia Geral da ONU reconheceram a validade do acordo de paz que celebrou com a Mauritânia em agosto de 1979 (v. n.o 13, supra). Invoca, por outro lado, o facto de, por duas ocasiões, o Parlamento Europeu lhe ter pedido que cooperasse plenamente com o Comité internacional da Cruz Vermelha, assim como com a ONU, pedido que também foi dirigido ao Reino de Marrocos.

38

A recorrente não juntou à sua petição os documentos previstos no artigo 44.o, n.o 5, do Regulamento de Processo de 2 de maio de 1991. Depois de a Secretaria ter fixado um prazo para a regularização da petição, a recorrente apresentou excertos dos seus estatutos, um mandato outorgado ao seu advogado por um representante com poderes para o efeito conferidos pelos mesmos estatutos, concretamente, pelo seu secretário‑geral, e prova da eleição deste último. Em contrapartida, não apresentou documentos adicionais para provar que tinha personalidade jurídica.

39

Nestas condições, o Tribunal adotou a medida de organização do processo acima referida no n.o 23.

40

Em resposta às questões do Tribunal, a recorrente declarou o seguinte:

«A Frente Polisário não se constituiu como pessoa coletiva de acordo com o direito de qualquer Estado que seja, ou não, internacionalmente reconhecido. À semelhança de um estado estrangeiro ou da própria União Europeia, a Frente Polisário não fundamenta a sua existência legal no direito interno de um Estado.»

41

Afirmou, além disso, que era um «sujeito de direito internacional público» tendo acrescentado:

«[A] Frente Polisário não é de modo algum obrigada a produzir prova da sua constituição de acordo com o direito interno de um Estado internacionalmente reconhecido. Na medida em que incarna a soberania do povo sarauí, a sua existência não pode depender da ordem jurídica da anterior potência colonial, o Reino de Espanha, que viola todos os seus deveres internacionais desde há quarenta anos, e, ainda menos, [da] potência ocupante, Marrocos, que impõe a sua ordem jurídica através da utilização ilegal da força armada […]»

42

O Conselho alega que a recorrente «não provou a existência da sua capacidade jurídica para interpor o presente recurso». Segundo o Conselho, a recorrente parece equiparar a sua qualidade de representante do povo do Sara Ocidental à existência de personalidade jurídica de pleno direito internacional, que é própria dos Estados soberanos. O Conselho contesta que estes dois conceitos sejam equiparáveis e que a recorrente possa ser equiparada a um Estado.

43

O Conselho acrescenta que, mesmo admitindo que a recorrente tenha sido reconhecida como movimento de libertação nacional e que, por isso, disponha de personalidade jurídica, tal não implica automaticamente uma capacidade processual para agir perante os órgãos jurisdicionais da União. Segundo o Conselho, o reconhecimento da recorrente por parte da ONU enquanto representante do povo do Sara Ocidental confere‑lhe, no melhor dos casos, capacidade para participar nas negociações respeitantes ao estatuto do Sara Ocidental conduzidas pela ONU e de ser, juntamente com o Reino de Marrocos, o interlocutor da ONU para esse efeito. Em contrapartida, este reconhecimento não lhe confere locus standi perante os tribunais de primeira instância e tribunais de recurso que se encontram fora do contexto da ONU e aos quais não incumbe dirimir o diferendo internacional que a opõe ao Reino de Marrocos.

44

A Comissão declara não contestar «a qualidade de representante do provo sarauí de que goza a Frente Polisário e que lhe foi reconhecida pela Assembleia Geral da ONU».

45

Acrescenta todavia:

«[A] personalidade jurídica da Frente Polisário suscita dúvidas. Enquanto representante do povo sarauí é suposto que, no melhor dos casos, disponha de uma personalidade jurídica funcional e transitória.»

46

Atendendo aos argumentos das partes, importa, antes de mais, precisar que, no caso vertente, não se trata de determinar se a Frente Polisário pode ser qualificada de «movimento nacional de libertação» nem mesmo se essa qualificação, no pressuposto de que é exata, é suficiente para lhe conferir personalidade jurídica. A questão que o Tribunal é chamado a decidir é a de saber se a Frente Polisário tem capacidade para agir perante ele para pedir, ao abrigo do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, a anulação da decisão impugnada.

47

Em seguida, importa observar que decorre da redação do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE que apenas as pessoas singulares e as entidades dotadas de personalidade jurídica podem interpor recurso de anulação ao abrigo desta disposição. Assim, no seu acórdão de 27 de novembro de 1984, Bensider e o./Comissão (50/84, Recueil, EU:C:1984:365, n.o 9), o Tribunal de Justiça da União Europeia julgou inadmissível um recurso por ter sido interposto por uma sociedade comercial que, aquando da interposição do referido recurso, ainda não tinha adquirido personalidade jurídica.

48

No entanto, no seu acórdão de 28 de outubro de 1982, Groupement des Agences de voyages/Comissão (135/81, Recueil, EU:C:1982:371, n.o 10), o Tribunal de Justiça observou que o conceito de «pessoa singular», como atualmente previsto no artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, não coincide necessariamente com os conceitos próprios das diferentes ordens jurídicas dos Estados‑Membros. Assim, no processo que deu origem a esse acórdão, o Tribunal de Justiça julgou admissível um recurso interposto por uma «associação ocasional de dez agências de viagem agrupadas para concorrerem em conjunto a um concurso público» contra uma decisão da Comissão de afastar esta associação do concurso público. O Tribunal de Justiça observou a este propósito que a própria Comissão tinha decidido no sentido da admissibilidade da proposta apresentada pela associação em causa, tendo‑a rejeitado após um exame comparativo dos proponentes. Por conseguinte, segundo o Tribunal de Justiça, a Comissão não podia contestar a capacidade para agir de uma entidade que tinha sido admitida a participar num concurso público e a quem a Comissão tinha dirigido uma decisão negativa após um exame comparativo dos proponentes (acórdão Groupement des Agences de voyages/Comissão, já referido, EU:C:1982:371, n.os 9 a 12).

49

De igual modo, nos seus acórdãos de 8 de outubro de 1974, Union syndicale — Service public européen e o./Conselho (175/73, Recueil, EU:C:1974:95, n.os 9 a 17) e Syndicat général du personnel des organismes européens/Comissão (18/74, Recueil, EU:C:1974:96, n.os 5 a 13), o Tribunal de Justiça enumerou um certo número de elementos, concretamente, em primeiro lugar, o facto de os funcionários da União gozarem do direito de associação e poderem, nomeadamente, ser membros de organizações sindicais ou profissionais, em segundo lugar, o facto de os recorrentes nesses dois processos serem sindicatos que reuniam um importante número de funcionários e agentes das instituições da União, em terceiro lugar, o facto de os seus estatutos e estrutura interna lhes assegurarem a autonomia necessária para atuarem como entidades responsáveis nas relações jurídicas e, em quarto lugar, o facto de a Comissão os ter reconhecido como interlocutores aquando das negociações, para concluir que não lhes podia ser recusada a capacidade para agir perante os órgãos jurisdicionais da União mediante a interposição de um recurso de anulação com respeito pelo artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE.

50

Por último, importa recordar que, no seu acórdão de 18 de janeiro de 2007, PKK e KNK/Conselho (C‑229/05 P, Colet., EU:C:2007:32, n.os 109 a 112), o Tribunal de Justiça julgou admissível um recurso de anulação interposto por uma entidade que tinha sido objeto de medidas restritivas no âmbito da luta contra o terrorismo, sem se interrogar a respeito da questão de saber se essa entidade tinha personalidade jurídica. Recordando a jurisprudência segundo a qual a União é uma União de direito, o Tribunal de Justiça observou que, embora o legislador da União tivesse considerado que a entidade em questão tinha existência suficiente para ser objeto das medidas restritivas em causa, a coerência e a justiça exigiam que fosse reconhecida a esta entidade capacidade para contestar esta decisão. Qualquer outra conclusão poderia conduzir a que uma organização pudesse ser incluída na lista controvertida sem que pudesse interpor recurso dessa decisão.

51

Todavia, embora a jurisprudência acima referida demonstre que os órgãos jurisdicionais da União podem admitir a capacidade para agir perante eles de uma entidade que não tem capacidade jurídica análoga à que o direito de um Estado‑Membro ou de um Estado terceiro lhe confere, ou mesmo que não tem personalidade jurídica ao abrigo desse direito, importa observar que, no seu despacho de 14 de novembro de 1963, Lassalle/Parlamento (15/63, Recueil, EU:C:1963:47, pp. 97, 100), o Tribunal de Justiça observou que os elementos que constituíam a base da capacidade para agir perante os órgãos jurisdicionais da União incluíam nomeadamente a autonomia e a responsabilidade, ainda que restritas, e rejeitou um pedido de intervenção apresentado pelo comité do pessoal do Parlamento que, segundo o Tribunal de Justiça, não preenchia esses critérios. Esta consideração também se encontra refletida na jurisprudência acima referida no n.o 49, sendo que a mesma explica a constatação do Tribunal de Justiça nos termos da qual os estatutos e a estrutura interna dos sindicatos que interpuseram os recursos nos processos em causa lhes garantiam a autonomia necessária para agir como entidades responsáveis nas relações jurídicas.

52

Atendendo a esta jurisprudência, importa concluir que, em certos casos, uma entidade que não tem personalidade jurídica de acordo com o direito de um Estado‑Membro ou de um Estado terceiro pode, contudo, ser considerada uma «pessoa coletiva», na aceção do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, e ser admitida a interpor recurso de anulação com base nesta disposição (v., neste sentido, acórdãos Groupement des Agences de voyages/Comissão, n.o 48, supra, EU:C:1982:371, n.os 9 a 12, e PKK e KNK/Conselho, n.o 50, supra, EU:C:2007:32, n.os 109 a 112). É nomeadamente esse o caso quando, nos seus atos ou atuações, a União e as suas instituições tratam a entidade em questão como um sujeito distinto que pode ser titular de direitos que lhe são próprios ou estar sujeito a obrigações ou restrições.

53

Tal pressupõe contudo que a entidade em questão dispõe de estatutos e de uma estrutura interna que lhe assegure a autonomia necessária para agir como entidade responsável nas relações jurídicas (v., neste sentido, despacho Lassalle/Parlamento, n.o 51, supra, EU:C:1963:47, p. 100; acórdãos Union syndicale — Service public européen e o./Conselho, n.o 49, supra, EU:C:1974:95, n.os 9 a 17; e Syndicat général du personnel des organismes européens/Comissão, n.o 49, supra, EU:C:1974:96, n.os 5 a 13).

54

No caso em apreço, importa constatar que estão preenchidos os requisitos acima referidos no n.o 53 no que respeita à Frente Polisário. Esta possui efetivamente os seus próprios estatutos, cuja cópia juntou ao processo, bem como uma estrutura interna fixa, que dispõe, nomeadamente de um secretário‑geral que conferiu um mandato ao seu advogado para a interposição do presente recurso. É evidente que esta estrutura lhe permite atuar como entidade responsável nas relações jurídicas, tanto mais que, como demonstram os vários textos que invoca, a recorrente participou em negociações sob a égide da ONU tendo mesmo assinado um acordo de paz com um Estado internacionalmente reconhecido, concretamente, a República Islâmica da Mauritânia.

55

No que diz respeito às considerações acima referidas no n.o 52, é certo que a Frente Polisário não foi objeto de atos da União ou das suas instituições de natureza análoga aos que estão em causa nos processos que deram origem aos acórdãos Groupement des Agences de voyages/Comissão, n.o 48, supra (EU:C:1982:371), e PKK e KNK/Conselho, n.o 50, supra (EU:C:2007:32). As duas resoluções do Parlamento invocadas por ela (v. n.o 37, supra) têm natureza diferente e não produzem, pelo menos em relação à recorrente, efeitos jurídicos obrigatórios.

56

Não deixa também de ser verdade que, como decorre das informações acima resumidas nos n.os 1 a 16, o Sara Ocidental é um território cujo estatuto internacional é atualmente indeterminado. Quer o Reino de Marrocos quer a recorrente o reivindicam, sendo que a ONU trabalha há muito com vista a uma solução pacífica deste diferendo. Como decorre dos articulados do Conselho e da Comissão, quer a União quer os seus Estados‑Membros se abstêm de qualquer intervenção e de qualquer tomada de posição neste diferendo e, sendo caso disso, aceitarão qualquer solução tomada em conformidade com o direito internacional sob a égide da ONU. A este respeito, a Comissão acrescenta que apoia os esforços do secretário‑geral da ONU para chegar a uma solução política justa, durável e mutuamente aceitável, que permita a autodeterminação do povo do Sara Ocidental. A Comissão prossegue observando que, «[e]ntretanto, o Sara Ocidental continua a ser um território não autónomo administrado de facto pelo Reino de Marrocos».

57

Em primeiro lugar, importa constatar que a recorrente é uma das partes no diferendo sobre o destino deste território não autónomo e que, enquanto parte neste diferendo, é nominativamente evocada nos textos a ele relativos, incluindo as resoluções do Parlamento acima referidas no n.o 37.

58

Em segundo lugar, importa igualmente constatar que, atualmente, é impossível que a Frente Polisário se constitua formalmente como pessoa coletiva ao abrigo do direito do Sara Ocidental, na medida em que esse direito ainda não existe. Ainda que seja exato, como observa a Comissão, que o Reino de Marrocos administra de facto praticamente todo o território do Sara Ocidental, trata‑se de uma situação de facto à qual a Frente Polisário se opõe e que está precisamente na origem do diferendo entre ela e o Reino de Marrocos que a ONU tenta resolver. A Frente Polisário poderia certamente constituir‑se como pessoa coletiva em conformidade com o direito de um Estado terceiro, mas não pode exigir‑se que o faça.

59

Por último, em terceiro lugar, importa recordar que o próprio Conselho e a Comissão reconhecem que o estatuto internacional e a situação jurídica do Sara Ocidental apresentam as particularidades acima referidas no n.o 58 e consideram que o estatuto definitivo deste território e, por conseguinte, o direito que lhe é aplicável devem ser fixados no contexto de um processo de paz sob os auspícios da ONU. Ora, é precisamente a ONU que considera a Frente Polisário um participante essencial desse processo.

60

Atendendo a estas circunstâncias bastante particulares, importa concluir que a Frente Polisário deve ser considerada uma «pessoa coletiva», na aceção do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE, e que pode interpor um recurso de anulação perante o juiz da União, ainda que não disponha de personalidade jurídica de acordo com o direito de um Estado‑Membro ou de um Estado terceiro. Com efeito, como acima salientado, a recorrente só pode ser dotada dessa personalidade em conformidade com o direito do Sara Ocidental que, todavia, atualmente não é um Estado reconhecido pela União e pelos seus Estados‑Membros e não dispõe do seu próprio direito.

Quanto à afetação direta e individual da Frente Polisário pela decisão impugnada

61

A recorrente alega que a decisão impugnada a afeta individualmente «devido a qualidades jurídicas que lhe são próprias, por ser a representante legítima do [p]ovo [s]arauí, reconhecida como tal pela ONU e pela União». Acrescenta que «é a única qualificada para representar o povo que vive» no território do Sara Ocidental.

62

Acrescenta que a decisão impugnada «produz diretamente efeitos sobre a situação jurídica do povo sarauí na medida em que não deixa qualquer poder de apreciação aos Estados‑Membros quanto à aplicação» do acordo visado por ela. Segundo a recorrente, a execução deste acordo não exige a adoção de medidas de execução por parte dos Estados‑Membros sendo certo que todos os Estados‑Membros, o Reino de Marrocos e qualquer empresa podem invocar o efeito direto da decisão impugnada.

63

O Conselho, apoiado pela Comissão, contesta que a decisão impugnada afete direta e individualmente a recorrente.

64

No que diz respeito à afetação direta, o Conselho alega que é difícil compreender como é que a decisão impugnada, que diz respeito à celebração de um acordo internacional entre a União e o Reino de Marrocos, poderia produzir diretamente efeitos na situação jurídica da recorrente. Segundo o Conselho, esta decisão não pode, pela sua natureza, produzir efeitos jurídicos em relação a terceiros, pois apenas declara, em nome da União, a aprovação de um acordo internacional. Os seus efeitos jurídicos apenas se produzem relativamente à União e às suas instituições e não em relação a terceiros.

65

No que diz respeito à afetação individual da recorrente, o Conselho alega que a decisão impugnada visa a conclusão de um acordo entre o Reino de Marrocos e a União e apenas diz individualmente respeito a estes dois sujeitos.

66

Acrescenta que a existência de um diferendo entre a recorrente e o Reino de Marrocos não está relacionada com a decisão impugnada, nem é de forma alguma afetada pelo acordo celebrado ao abrigo desta.

67

Importa recordar que o artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE prevê duas hipóteses nas quais se reconhece a qualidade para agir de uma pessoa singular ou coletiva para interpor recurso de um ato de que não é destinatária. Por um lado, esse recurso pode ser interposto na condição de esse ato lhe dizer direta e individualmente respeito. Por outro, essa pessoa pode interpor recurso de um ato regulamentar que não necessite de medidas de execução, se o mesmo lhe disser diretamente respeito (acórdãos de 19 de dezembro de 2013, Telefónica/Comissão, C‑274/12 P, Colet.,EU:C:2013:852, n.o 19, e de 27 de fevereiro de 2014, Stichting Woonlinie e o./Comissão, C‑133/12 P, Colet.,EU:C:2014:105, n.o 31).

68

Segundo jurisprudência, o conceito de «ato regulamentar» na aceção do artigo 263.o, quarto parágrafo, TFUE deve ser entendido no sentido de que visa qualquer ato de alcance geral, com exceção dos atos legislativos (acórdão de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, C‑583/11 P, Colet.,EU:C:2013:625, n.os 60 e 61).

69

A distinção entre um ato legislativo e um ato regulamentar, segundo o Tratado FUE, assenta no critério do processo, legislativo ou não, que conduziu à sua adoção (despacho de 6 de setembro de 2011, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, T‑18/10, Colet.,EU:T:2011:419, n.o 65).

70

A este respeito, importa recordar que o artigo 289.o, n.o 3, TFUE precisa que os atos jurídicos adotados por processo legislativo constituem atos legislativos. É feita a distinção entre o processo legislativo ordinário, que, como recorda o artigo 289.o, n.o 1, segundo período, TFUE, é definido no artigo 294.o TFUE, e os processos legislativos especiais. A este respeito, o artigo 289.o, n.o 2, TFUE dispõe que, nos casos específicos previstos pelos Tratados, a adoção, nomeadamente, de uma decisão do Conselho com a participação do Parlamento constitui um processo legislativo especial.

71

No caso vertente, como decorre do seu preâmbulo, a decisão impugnada foi adotada de acordo com o processo definido no artigo 218.o, n.o 6, alínea a), TFUE, que prevê que o Conselho, sob proposta do negociador, no caso a Comissão, adota uma decisão de celebração do acordo após aprovação do Parlamento. Este processo respeita os critérios definidos no artigo 289.o, n.o 2, TFUE e constitui, por conseguinte, um processo legislativo especial.

72

Daqui decorre que a decisão impugnada é um ato legislativo e que, por essa razão, não constitui um ato regulamentar. É, pois, a primeira das hipóteses previstas no n.o 67, supra, que é pertinente no caso em apreço. Por conseguinte, e tendo em conta o facto de a recorrente não ser destinatária da decisão impugnada, para que o presente recurso seja admissível, deve demonstrar‑se que a referida decisão lhe diz direta e individualmente respeito.

73

Para analisar esta questão, importa determinar se o acordo cuja celebração foi aprovada pela decisão impugnada é aplicável ao território do Sara Ocidental, na medida em que, em razão da sua qualidade de parte implicada no processo de regulamento relativo ao destino do território em causa (v. n.o 57, supra) e da sua aspiração a ser o representante legítimo do povo sarauí (v. n.o 61, supra), o ato impugnado pode dizer direta e individualmente respeito à recorrente.

74

A este respeito, o Conselho e a Comissão alegam que, nos termos do seu artigo 94.o, o acordo de associação com Marrocos é aplicável ao território do Reino de Marrocos. Segundo o Conselho, na medida em que este artigo não define o território do Reino de Marrocos, o acordo de associação com Marrocos não prejudica o estatuto jurídico do Sara Ocidental e não implica nenhum reconhecimento formal dos direitos que o Reino de Marrocos reivindica em relação a este território. Nenhuma disposição da decisão impugnada, ou do acordo aprovado por ela, prevê que o âmbito de aplicação deste último também abranja o Sara Ocidental.

75

A Comissão recorda a este respeito os termos da declaração relativa aos princípios do direito internacional relativos às relações amigáveis e à cooperação entre os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, aprovada pela Resolução 2625 (XXV) da Assembleia Geral da ONU, de 24 de outubro de 1970, segundo a qual «[o] território de uma colónia ou de outro território não autónomo possui, ao abrigo da [carta das Nações Unidas], um estatuto separado e distinto do estatuto do território do Estado que administra» e segundo a qual «este estatuto separado e distinto ao abrigo da referida carta existe enquanto o povo da colónia ou do território não autónomo não exercer o seu direito a dispor de si próprio em conformidade com a carta [das Nações Unidas] e, em particular, com os seus objetivos e princípios». Daqui decorre, segundo a Comissão, que um território não autónomo não faz parte da potência que o administra, mas possui um estatuto distinto à luz do direito internacional. Os acordos internacionais celebrados pela potência que administra um território não autónomo não se aplicam nesse território, exceto em caso de extensão expressa. A Comissão alega, assim, que, no caso vertente, na falta dessa extensão, o acordo de associação com Marrocos apenas se aplica aos produtos originários do Reino de Marrocos, Estado que, em direito internacional, não inclui o Sara Ocidental.

76

A Frente Polisário responde que o Reino de Marrocos não administra o Sara Ocidental ao abrigo do artigo 73.o da Carta das Nações Unidas, mas que o ocupa militarmente. Do ponto de vista da ONU, o Reino de Espanha ainda é a potência que administra o Sara Ocidental. O Reino de Marrocos é uma potência ocupante, na aceção do direito internacional humanitário.

77

A Frente Polisário acrescenta que o Reino de Marrocos aplica ao Sara Ocidental os acordos celebrados com a União, incluindo o acordo de associação com Marrocos. Trata‑se de um facto notório, conhecido do Conselho e da Comissão. A Frente Polisário invoca vários elementos em apoio desta afirmação.

78

Em primeiro lugar, invoca a resposta comum dada pela Alta Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, vice‑presidente da Comissão, Catherine Ashton, em nome da Comissão, às perguntas escritas submetidas pelos deputados ao Parlamento com as referências E‑001004/11, P‑001023/11 e E‑002315/11 (JO 2011, C 286 E, p. 1).

79

Em segundo lugar, alega que, como indicam vários documentos disponíveis no sítio Internet da Direção‑Geral (DG) «Saúde e Segurança Alimentar» da Comissão, após a celebração do acordo de associação com Marrocos, o Serviço Alimentar e Veterinário, que pertence a esta DG, fez várias visitas ao Sara Ocidental para garantir o respeito, por parte das autoridades marroquinas, das normas sanitárias estabelecidas pela União.

80

Em terceiro lugar, alega que a lista dos exportadores marroquinos certificados ao abrigo do acordo de associação com Marrocos, publicada no sítio Internet da Comissão, inclui, no total, 140 empresas que estão instaladas no Sara Ocidental.

81

Tendo sido convidado no âmbito das medidas de organização do processo a apresentar as suas observações sobre as acima mencionadas alegações da Frente Polisário, o Conselho observou que apoiava totalmente os esforços da ONU para encontrar uma solução estável e duradoura para a questão do Sara Ocidental e que nenhuma instituição da União alguma vez reconheceu nem de facto nem de jure qualquer soberania marroquina no território do Sara Ocidental.

82

Segundo o Conselho, as instituições da União não podem todavia ignorar a realidade dos factos, ou seja, que o Reino de Marrocos é a potência que exerce de facto a administração do Sara Ocidental. Por conseguinte, no que respeita ao território do Sara Ocidental, tal significa que a União se deve dirigir às autoridades marroquinas, únicas autoridades que podem aplicar as disposições do acordo nesse território, no respeito dos interesses e dos direitos do povo sarauí. Este facto não implica nenhum reconhecimento, nem de facto nem de jure, de qualquer soberania do Reino de Marrocos sobre o território do Sara Ocidental.

83

Por seu turno, neste contexto, a Comissão indicou, nomeadamente, que a resposta às perguntas escritas submetidas pelos deputados ao Parlamento com as referências E‑1004/11, P‑1023/11 e E‑2315/11 demonstrava que as exportações do Sara Ocidental beneficiavam «de facto» (e não de jure) de preferências comerciais e lembrava as obrigações do Reino de Marrocos enquanto «potência [que administra] de facto» um território não autónomo. Segundo a Comissão, não pode ver‑se aí qualquer reconhecimento de uma anexação do Sara Ocidental pelo Reino de Marrocos nem de uma soberania marroquina sobre esse território.

84

Quanto aos documentos acima mencionados no n.o 79, a Comissão observou que se tratava de relatórios puramente técnicos do seu Serviço Alimentar e Veterinário. Acrescentou que essas inspeções sanitárias eram necessárias para todos os produtos que se destinam à importação para a União, independentemente do facto de estes beneficiarem ou não de um acordo de associação. Caso as referidas inspeções não tivessem tido lugar, nenhum produto poderia ser exportado para a União a partir do território em questão, o que não seria favorável aos interesses das populações locais. O facto de esses relatórios qualificarem a autoridade marroquina de «autoridade competente» apenas reflete o estatuto do Reino de Marrocos enquanto potência que de facto administra o Sara Ocidental e não implica nenhum reconhecimento da sua soberania.

85

Segundo a Comissão, a não ser que queira impedir todas as exportações a partir do Sara Ocidental, a Frente Polisário não pode alegar de boa‑fé que, em matéria de saúde pública no Sara Ocidental, o Serviço Alimentar e Veterinário devia tê‑la como único interlocutor. Segundo a Comissão, a Frente Polisário não exerce nenhum poder real no território em causa e não pode garantir que as exportações respeitam as regras de saúde pública.

86

Por último, a Comissão confirmou, em substância, que empresas situadas no Sara Ocidental constavam da lista dos exportadores certificados, acima referida no n.o 81. Indicou todavia que, por «razões de comodidade», a lista em questão fazia referência às regiões, como definidas pelo Reino de Marrocos, sem que tal constituísse um sinal de qualquer reconhecimento de uma anexação.

87

Além disso, na audiência, quer o Conselho quer a Comissão indicaram, em resposta a uma questão do Tribunal, que o acordo visado na decisão impugnada era aplicado de facto no território do Sara Ocidental. Esta declaração foi registada na ata da audiência.

88

Importa observar que a questão acima colocada no n.o 73 exige, em última análise, uma interpretação do acordo cuja celebração foi aprovada pela decisão impugnada.

89

A este propósito, há que recordar, antes de mais, que um acordo com um Estado terceiro celebrado pelo Conselho, nos termos dos artigos 217.° TFUE e 218.° TFUE, constitui, relativamente à União, um ato adotado por uma instituição da União na aceção do artigo 267.o, primeiro parágrafo, alínea b), TFUE, em seguida, que, a partir da entrada em vigor desse acordo, as suas disposições fazem parte integrante da ordem jurídica da União e, por último, que, no âmbito dessa ordem jurídica, os órgãos jurisdicionais da União são competentes para decidir a título prejudicial sobre a interpretação desse acordo (v., neste sentido, acórdão de 25 de fevereiro de 2010, Brita, C‑386/08, Colet.,EU:C:2010:91, n.o 39 e jurisprudência referida).

90

Além disso, tendo sido concluído entre dois sujeitos de direito internacional público, o acordo em causa na decisão impugnada é regulado pelo direito internacional e, mais em particular, do ponto de vista da sua interpretação, pelo direito internacional dos tratados (v., neste sentido, acórdão Brita, n.o 89, supra, EU:C:2010:91, n.o 39).

91

O direito internacional dos tratados foi codificado, em substância, pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de maio de 1969 (Recueil des traités des Nations Unies, vol. 1155, p. 331) a seguir «Convenção de Viena»).

92

As normas contidas na Convenção de Viena são aplicáveis a um acordo celebrado entre um Estado e uma organização internacional, como o acordo em causa na decisão impugnada, na medida em que essas normas são a expressão do direito internacional geral consuetudinário (v., neste sentido, acórdão Brita, n.o 89, supra, EU:C:2010:91, n.o 41). Consequentemente, o acordo em causa na decisão impugnada deve ser interpretado em consonância com essas normas.

93

Além disso, o Tribunal de Justiça já decidiu que, embora não vincule a União nem todos os Estados‑Membros, várias disposições da Convenção de Viena refletem as regras de direito consuetudinário internacional que, enquanto tais, vinculam as instituições da União e integram a sua ordem jurídica (v. acórdão Brita, n.o 89, supra, EU:C:2010:91, n.o 42 e jurisprudência referida).

94

Nos termos do artigo 31.o da Convenção de Viena, um tratado deve ser interpretado de boa‑fé, de acordo com o sentido comum a atribuir aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim. Neste sentido, ter‑se‑á em consideração, simultaneamente com o contexto, qualquer norma relevante do direito internacional que seja aplicável às relações entre as partes.

95

No acórdão Brita, n.o 89, supra (EU:C:2010:91, n.os 44 a 53), o Tribunal de Justiça decidiu que um acordo de associação entre a União e o Estado de Israel aplicável, nos termos do próprio acordo, «ao território do Estado de Israel» deveria ser interpretado no sentido de que não era aplicável aos produtos originários da Cisjordânia, um território que se situa fora do território do Estado de Israel, como internacionalmente reconhecido, mas que inclui colonatos israelitas, controlados pelo Estado de Israel.

96

O Tribunal de Justiça chegou todavia a esta conclusão por ter tomado em consideração, por um lado, o princípio de direito internacional geral do efeito relativo dos tratados, segundo o qual os tratados não devem prejudicar nem beneficiar terceiros (pacta tertiis nec nocent nec prosunt), que, segundo o Tribunal de Justiça, tem especial expressão no artigo 34.o da Convenção de Viena, por força do qual um tratado não cria deveres nem direitos a um Estado terceiro sem o consentimento deste (acórdão Brita, n.o 89, supra, EU:C:2010:91, n.o 44), e, por outro, o facto de a União também ter celebrado um acordo de associação com a Organização de Libertação da Palestina (OLP) atuando em representação da Autoridade Palestiniana da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, sendo esse acordo nomeadamente aplicável, de acordo com a sua letra, ao território da Cisjordânia (acórdão Brita, n.o 89, supra, EU:C:2010:91, n.os 46 e 47).

97

As circunstâncias do presente processo são diferentes, na medida em que, no caso vertente, a União não celebrou um acordo de associação relativo aos produtos com origem no Sara Ocidental, nem com a Frente Polisário, nem com outro Estado ou com outra entidade.

98

O acordo cuja celebração foi aprovada pela decisão impugnada deve, por conseguinte, ser interpretado em conformidade com o artigo 31.o da Convenção de Viena (v. n.o 94, supra).

99

De acordo com este artigo, há que ter em conta, nomeadamente, o contexto em que se insere um tratado internacional como o acordo visado pela decisão impugnada. Todos os elementos acima referidos nos n.os 77 a 87 integram este contexto e demonstram que as instituições da União estavam conscientes de que as autoridades marroquinas também aplicavam as disposições do acordo de associação com Marrocos à parte do Sara Ocidental controlada pelo Reino de Marrocos e não se opuseram a esta aplicação. A Comissão cooperou mesmo, em certa medida, com as autoridades marroquinas nesta aplicação, tendo reconhecido os seus resultados ao incluir empresas estabelecidas no Sara Ocidental entre as inscritas na lista acima referida no n.o 74.

100

Importa igualmente recordar que existe uma divergência entre as respetivas teses da União e do Reino de Marrocos quanto ao estatuto internacional do Sara Ocidental. Sendo a tese da União suficiente e corretamente resumida pelo Conselho e pela Comissão (v. n.os 74 e 75, supra), é pacífico que o Reino de Marrocos tem uma conceção totalmente diferente das coisas. Em seu entender, o Sara Ocidental é parte integrante do seu território.

101

Assim, no artigo 94.o do acordo de associação com Marrocos, a referência ao território do Reino de Marrocos podia ser entendida pelas autoridades marroquinas no sentido de que inclui o Sara Ocidental ou, pelo menos, a sua parte mais importante controlada pelo Reino de Marrocos. Ainda que as instituições da União estivessem conscientes desta tese sustentada pelo Reino de Marrocos, como veio a revelar‑se ser o caso, o acordo de associação com Marrocos não inclui nenhuma cláusula interpretativa e nenhuma outra disposição que tenha como resultado excluir o território do Sara Ocidental do seu âmbito de aplicação.

102

Importa igualmente ter em conta o facto de o acordo visado na decisão impugnada ter sido celebrado doze anos após a aprovação do acordo de associação com Marrocos e de este acordo ter sido executado durante todo esse período. Se as instituições da União pretendessem opor‑se à aplicação do acordo de associação, conforme alterado pela decisão impugnada, ao Sara Ocidental, podiam ter insistido para que fosse incluída, no texto do acordo aprovado por esta decisão, uma cláusula que excluísse essa aplicação. O seu silêncio quanto a este aspeto demonstra que aceitam, pelo menos tacitamente, a interpretação do acordo de associação com Marrocos e do acordo aprovado pela decisão impugnada, segundo a qual esses acordos também se aplicam à parte do Sara Ocidental controlada pelo Reino de Marrocos.

103

Nestas condições, importa concluir que o acordo cuja celebração foi aprovada pela decisão impugnada, colocada no seu contexto como acima definido, também é aplicável ao território do Sara Ocidental ou, mais precisamente, à maior parte deste território, controlada pelo Reino de Marrocos.

104

É tendo em conta esta conclusão que importa apreciar se a Frente Polisário é direta e individualmente afetada pela decisão impugnada.

105

No que diz respeito à afetação direta, resulta de jurisprudência constante que a condição segundo o qual o ato objeto de recurso deve dizer «diretamente respeito» a uma pessoa singular ou coletiva exige a reunião de dois critérios cumulativos, a saber, que a medida contestada, em primeiro lugar, produza efeitos diretos na situação jurídica da pessoa em questão e, em segundo lugar, que não deixe nenhum poder de apreciação aos respetivos destinatários encarregados da sua implementação, tendo esta caráter puramente automático e decorrendo apenas da regulamentação da União, sem aplicação de outras regras intermediárias (v. acórdão de 10 de setembro de 2009, Comissão/Ente per le Ville Vesuviane e Ente per le Ville Vesuviane/Comissão, C‑445/07 P e C‑455/07 P, Colet.,EU:C:2009:529, n.o 45 e jurisprudência referida).

106

A este respeito, importa observar que a circunstância invocada pelo Conselho (v. n.o 63, supra) de a decisão impugnada dizer respeito à celebração de um acordo internacional entre a União e o Reino de Marrocos não impede que a mesma produza efeitos jurídicos em relação a terceiros.

107

Com efeito, segundo jurisprudência constante, uma disposição de um acordo celebrado pela União e os seus Estados‑Membros com Estados terceiros tem efeito direto sempre que, atendendo aos seus termos e ao objetivo e natureza desse acordo, contenha uma obrigação clara e precisa que não esteja dependente, na sua execução ou nos seus efeitos, da intervenção de nenhum ato posterior (v. acórdão de 8 de março de 2011, Lesoochranárske zoskupenie, C‑240/09, Colet.,EU:C:2011:125, n.o 44 e jurisprudência referida).

108

No caso vertente, não pode deixar de se constatar que o Acordo sob forma de Troca de Cartas celebrado ao abrigo da decisão impugnada contém disposições que preveem obrigações claras e precisas que não dependem, na sua execução ou no que respeita à produção de efeitos, da intervenção de atos posteriores. Há que referir, a título de exemplo, que o protocolo n.o 1 do acordo de associação com Marrocos, relativo aos regimes aplicáveis à importação na União de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixe e de produtos da pesca originários do Reino de Marrocos, contém um artigo 2.o, substituído ao abrigo do acordo visado na decisão impugnada, que prevê, no seu n.o 1, que os direitos aduaneiros aplicáveis às importações na União de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixe e de produtos da pesca originários de Marrocos são eliminados, salvo disposições contrárias constantes dos n.os 2 e 3 do mesmo artigo, para os produtos agrícolas, e no artigo 5.o do mesmo protocolo, para os produtos agrícolas transformados. Há também que referir que o Protocolo n.o 2 do acordo de associação com Marrocos, relativo aos regimes aplicáveis à importação no Reino de Marrocos de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixe e de produtos da pesca originários da União, contém um artigo 2.o, substituído ao abrigo do acordo visado na decisão impugnada, que prevê disposições pautais específicas, aplicáveis às importações no Reino de Marrocos de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixe e de produtos da pesca originários da União.

109

Estas disposições produzem efeitos na situação jurídica de todo o território a que se aplica o acordo (e, por conseguinte, no território do Sara Ocidental controlado pelo Reino de Marrocos), no sentido em que determinam as condições nas quais os produtos agrícolas e da pesca podem ser exportados deste território para a União ou podem ser importados da União para o território em questão.

110

Ora, estes efeitos dizem diretamente respeito não apenas ao Reino de Marrocos mas igualmente à Frente Polisário, na medida em que, como decorre dos elementos acima referidos nos n.os 1 a 16, o estatuto internacional definitivo deste território ainda não foi determinado, e deverá ser determinado no âmbito de um processo de negociações, sob a égide da ONU, entre o Reino de Marrocos e, precisamente, a Frente Polisário.

111

Pela mesma razão, deve entender‑se que a decisão impugnada diz individualmente respeito à Frente Polisário.

112

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, as pessoas singulares ou coletivas só preenchem o requisito relativo à afetação individual se o ato impugnado as afetar devido a certas qualidades que lhes são próprias ou a uma situação de facto que as caracteriza em relação a qualquer outra pessoa, e assim as individualizar de maneira análoga à do destinatário (acórdãos de 15 de julho de 1963, Plaumann/Comissão, 25/62, Colet.,EU:C:1963:17, p. 284, e Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, n.o 68, supra, EU:C:2013:625, n.o 72).

113

Ora, as circunstâncias acima referidas no n.o 110 constituem efetivamente uma situação de facto que caracteriza a Frente Polisário em relação a qualquer outra pessoa, conferindo‑lhe uma qualidade específica. Com efeito, a Frente Polisário é a única outra interlocutora a participar nas negociações levadas a cabo, sob a égide da ONU, entre esta e o Reino de Marrocos com vista à determinação do estatuto internacional definitivo do Sara Ocidental.

114

Importa, pois, concluir que, uma vez que a decisão impugnada diz direta e individualmente respeito à Frente Polisário, não existe deste ponto de vista nenhuma dúvida quanto à admissibilidade do recurso, ao invés do que alegam o Conselho e a Comissão.

Quanto ao mérito

115

Em apoio do seu recurso, a Frente Polisário apresenta onze fundamentos, relativos:

o primeiro, à fundamentação insuficiente da decisão impugnada;

o segundo, à violação do «princípio da consulta»;

o terceiro, à violação dos direitos fundamentais;

o quarto, à «violação do princípio da coerência da política da União, devido ao desrespeito do princípio da […] soberania»;

o quinto, à «violação dos valores que fundam a União […] e dos princípios que presidem à sua ação externa»;

o sexto, ao «incumprimento do objetivo de desenvolvimento durável»;

o sétimo, ao facto de a decisão impugnada ser «contrária aos princípios e objetivos da ação externa da União no domínio da cooperação para o desenvolvimento»;

o oitavo, à violação do princípio da proteção da confiança legítima;

o nono, ao facto de a decisão impugnada ser «contrária a vários acordos celebrados pela União»;

o décimo, ao facto de a decisão impugnada ser «contrária ao direito internacional»;

e, por último, o décimo primeiro, relativo às «normas em matéria de responsabilidade internacional em direito da União».

116

A título preliminar, importa constatar que decorre da argumentação aduzida pela Frente Polisário em apoio dos seus fundamentos que o recurso se destina à anulação da decisão impugnada na parte em que aprovou a aplicação ao Sara Ocidental do acordo nela visado. Com efeito, como decorre das considerações acima expostas a respeito do facto de a Frente Polisário ser direta e individualmente afetada pela decisão impugnada, é precisamente pelo facto de este acordo também ser aplicável ao Sara Ocidental que a decisão impugnada diz direta e individualmente respeito à Frente Polisário.

117

Importa, igualmente, constatar que a Frente Polisário invoca vários fundamentos, sendo que os dois primeiros têm por objeto a legalidade formal da decisão impugnada, ao passo que os demais têm por objeto a sua legalidade material. Em substância, a recorrente invoca a ilegalidade da decisão impugnada por violação do direito da União e do direito internacional. Na realidade, todos os fundamentos de recurso colocam a questão da existência de uma proibição absoluta de celebração, em nome da União, de um acordo internacional suscetível de ser aplicado a um território que, na prática, é controlado por um Estado terceiro, sem que, contudo, a soberania desse Estado sobre esse território seja reconhecida pela União e pelos seus Estados‑Membros ou, em geral, por todos os outros Estados (a seguir «território disputado»), bem como, sendo caso disso, a questão da existência de um poder de apreciação das instituições da União a este respeito, dos limites deste poder e das condições do seu exercício.

118

Uma vez feitas estas precisões, importa analisar, em primeiro lugar, os dois primeiros fundamentos, que, como observa a recorrente, têm por objeto a legalidade formal da decisão impugnada.

Quanto ao primeiro fundamento

119

A Frente Polisário alega que a decisão impugnada enferma de fundamentação insuficiente. Apenas menciona, no seu primeiro considerando, a «aplicação progressiva de uma maior liberalização das trocas comerciais recíprocas» e, no seu segundo considerando, o «plano de ação da política europeia de vizinhança nele incluindo uma disposição específica tendo por objetivo uma maior liberalização das trocas comerciais», adotado em julho de 2005 pelo Conselho de Associação UE‑Marrocos. Ora, a política Euromediterrânica não se limita à liberalização das trocas, mas engloba outros valores fundamentais para a União.

120

A recorrente acrescenta que o Conselho não procedeu a um estudo de impacto anterior à celebração do acordo. Segundo a recorrente, embora facultativo, esse estudo passa a ser obrigatório nas circunstâncias do caso em apreço. Fica, pois, demonstrado que o Conselho não tem nenhuma preocupação com o Sara Ocidental ou com a «legalidade internacional».

121

Importa recordar que, segundo jurisprudência constante, a fundamentação exigida pelo artigo 296.o TFUE deve ser adaptada à natureza do ato em causa. A referida fundamentação deve revelar, de forma clara e inequívoca, o raciocínio da instituição autora do ato, de forma a permitir aos interessados conhecerem as razões da medida adotada e ao juiz da União exercer a sua fiscalização. Não se exige, contudo, que a fundamentação especifique todos os elementos de facto e de direito pertinentes, na medida em que a questão de saber se a fundamentação de um ato satisfaz as exigências do artigo 296.o TFUE deve ser apreciada à luz não somente do seu teor literal mas também do seu contexto e do conjunto das normas jurídicas que regem a matéria em causa (v. acórdão de 7 de setembro de 2006, Espanha/Conselho, C‑310/04, Colet.,EU:C:2006:521, n.o 57 e jurisprudência referida).

122

Além disso, quando se trata, como no caso vertente, de um ato de aplicação geral, a fundamentação pode limitar‑se a indicar, por um lado, a situação de conjunto que levou à sua adoção e, por outro, os objetivos gerais que o ato se propõe alcançar (acórdãos de 22 de novembro de 2001, Países Baixos/Conselho, C‑301/97, Colet.,EU:C:2001:621, n.o 189, e Espanha/Conselho, n.o 121, supra, EU:C:2006:521, n.o 59).

123

Tendo em conta esta jurisprudência, importa concluir que a decisão impugnada foi fundamentada de forma juridicamente bastante. Por um lado, menciona a situação de conjunto que levou à sua adoção, concretamente a existência do acordo de associação com Marrocos que prevê, no seu artigo 16.o, a aplicação progressiva de uma maior liberalização das trocas comerciais recíprocas de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixes e de produtos da pesca (primeiro considerando da decisão impugnada), bem como o plano de ação da política europeia de vizinhança, adotado pelo Conselho de Associação UE‑Marrocos em julho de 2005, que inclui uma disposição específica tendo por objetivo uma maior liberalização das trocas comerciais de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixe e de produtos de pesca (segundo considerando da decisão impugnada). Por outro lado, indica os objetivos gerais que se propõe atingir, concretamente, uma maior liberalização das trocas recíprocas de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixes e de produtos da pesca, entre a União e o Reino de Marrocos.

124

No que diz respeito aos argumentos da Frente Polisário segundo os quais o Conselho não tem nenhuma preocupação com o Sara Ocidental, não procedeu a um estudo de impacto prévio antes da celebração do acordo visado pela decisão impugnada e, caso se tivesse debruçado sobre a questão da aplicabilidade ao território do Sara Ocidental do acordo visado pela decisão impugnada, teria renunciado à sua celebração, não pode deixar de se constatar que os mesmos não são relacionados com uma alegada violação do dever de fundamentação.

125

Na realidade, com esses argumentos, a Frente Polisário critica o Conselho por não ter analisado os elementos relevantes do caso concreto, antes da adoção da decisão impugnada. Para poder analisar esses argumentos, importa antes de mais determinar se e, sendo caso disso, em que condições é que o Conselho podia aprovar a celebração de um acordo com o Reino de Marrocos igualmente aplicável ao território do Sara Ocidental.

126

Por conseguinte, esses argumentos são analisados nos n.os 223 e seguintes, infra, em conjunto com os outros argumentos da recorrente relativos à execução e ao respeito pelas instituições da União do seu poder de apreciação.

127

Sem prejuízo da análise destes argumentos, há que julgar o primeiro fundamento improcedente.

Quanto ao segundo fundamento

128

A Frente Polisário alega que a decisão impugnada «padece de nulidade por violação de uma formalidade essencial», uma vez que o Conselho não a consultou antes da celebração do acordo visado por esta decisão, ainda que seja a «representante legítima do povo sarauí».

129

A Frente Polisário considera que a obrigação do Conselho de a consultar decorre do artigo 41.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Invoca, no mesmo contexto, o artigo 220.o, n.o 1, TFUE, que prevê o seguinte:

«A União estabelece toda a cooperação útil com os órgãos das Nações Unidas e das suas agências especializadas, o Conselho da Europa, a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa e a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos.

Além disso, a União assegura com outras organizações internacionais as ligações que considere oportunas.»

130

Por último, invoca uma «obrigação de consulta de origem internacional» que, segundo a recorrente, o Conselho tinha perante ela.

131

O Conselho e a Comissão contestam os argumentos da recorrente, alegando nomeadamente que o princípio do contraditório não se aplica aos processos de natureza normativa.

132

Há, com efeito, que recordar que, embora o artigo 41.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais preveja que todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável, o artigo 41.o, n.o 2, alínea a), da Carta dos Direitos Fundamentais prevê que este direito comporta nomeadamente o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente. Assim, a letra desta disposição só abrange as medidas individuais.

133

Além disso, o Tribunal decidiu por várias vezes que a jurisprudência relativa ao direito a ser ouvido não pode ser alargada ao contexto de um procedimento legislativo que conduz à adoção de medidas normativas de alcance geral que implicam uma escolha de política económica e que se aplicam à generalidade dos operadores em causa (acórdãos de 11 de dezembro de 1996, Atlanta e o./CE, T‑521/93, Colet.,EU:T:1996:184, n.o 70; de 11 de setembro de 2002, Alpharma/Conselho, T‑70/99, Colet.,EU:T:2002:210, n.o 388; e de 11 de julho de 2007, Sison/Conselho,T‑47/03, EU:T:2007:207, n.o 144).

134

A circunstância de a medida normativa ou de alcance geral em causa dizer direta e individualmente respeito ao interessado não pode modificar esta conclusão (v. acórdão Alpharma/Conselho, n.o 133, supra, EU:T:2002:210, n.o 388 e jurisprudência referida).

135

É certo que, no caso dos atos de alcance geral que preveem medidas restritivas no âmbito da política externa e de segurança comum contra pessoas singulares ou entidades, foi decidido que a garantia dos direitos de defesa, em princípio, é plenamente aplicável e que o interessado tem direito a que lhe seja dada a possibilidade de exprimir utilmente o seu ponto de vista sobre os factos que lhe foram imputados (v., neste sentido, acórdão de 12 de dezembro de 2006, Organisation des Modjahedines du peuple d’Iran/Conselho, T‑228/02, Colet.,EU:T:2006:384, n.os 91 a 108, e Sison/Conselho, n.o 133, supra, EU:T:2007:207, n.os 139 a 155).

136

Esta consideração é todavia motivada pelo facto de esses atos imporem medidas restritivas económicas e financeiras às pessoas ou entidades visadas por eles (acórdãos Organisation des Modjahedines du peuple d’Iran/Conselho, n.o 135, supra, EU:T:2006:384, n.o 98, e Sison/Conselho, n.o 133, supra, EU:T:2007:207, n.o 146). Por conseguinte, esta jurisprudência não é transponível para o caso em apreço.

137

Daqui resulta que, na medida em que a decisão impugnada foi adotada na sequência de um processo legislativo especial destinado a aprovar a celebração de um acordo de alcance e de aplicação geral, o Conselho não era obrigado a consultar a Frente Polisário previamente à sua adoção, ao invés do que esta última alega.

138

Por outro lado, também não decorre do direito internacional qualquer obrigação de consultar a Frente Polisário antes da adoção da decisão impugnada. A este respeito, importa observar que a recorrente não precisou a origem e o alcance da «obrigação de consulta de origem internacional» que invoca e refere vagamente nos seus articulados.

139

Por conseguinte, há que julgar o segundo fundamento improcedente.

Quanto aos outros fundamentos

140

O terceiro a décimo primeiro fundamentos da Frente Polisário têm por objeto a legalidade material da decisão impugnada. Como acima observado no n.o 117, a Frente Polisário alega, em substância, que, na medida em que aprovou a celebração de um acordo com o Reino de Marrocos que também é aplicável na parte do Sara Ocidental controlada por este último, apesar da falta de reconhecimento internacional das pretensões marroquinas sobre este território, a decisão impugnada padece de uma ilegalidade pela qual o Conselho é responsável. Esta ilegalidade resulta da violação do direito da União, pelos motivos aduzidos no âmbito do terceiro a oitavo fundamentos, e do direito internacional, pelos motivos aduzidos no âmbito do nono a décimo primeiro fundamentos.

141

Importa, pois, analisar se e, sendo caso disso, em que condições a União pode celebrar com um Estado terceiro um acordo como aquele que foi aprovado pela decisão impugnada, que também é aplicável a um território disputado.

Quanto à existência de uma proibição absoluta de celebração de um acordo que pode ser aplicado a um território disputado

142

Importa antes de mais determinar se os fundamentos e argumentos invocados pela Frente Polisário permitem concluir que existe uma proibição absoluta de celebração, pelo Conselho, de um acordo internacional suscetível de ser aplicado a um território disputado.

– Quanto ao terceiro fundamento

143

No seu terceiro fundamento, a recorrente faz referência às disposições e à jurisprudência relativas ao respeito dos direitos fundamentais por parte da União para sustentar que, ao decidir «publicar um acordo que despreza o direito à autodeterminação do povo sarauí e que tem como efeito imediato o encorajamento da política de anexação conduzida por Marrocos, potência ocupante, o Conselho viola os princípios da liberdade, da segurança e da justiça, virando as costas ao respeito dos direitos fundamentais e dos sistemas jurídicos dos Estados‑Membros».

144

Segundo a Frente Polisário «há violação da liberdade, uma vez que a liberdade de um povo é ignorada, e, pior, combatida por esta decisão, que encoraja o domínio económico e visa alterar a estrutura da população de modo a tornar cada vez mais complexa a perspetiva de um referendo de autodeterminação». A Frente Polisário invoca igualmente uma «violação da segurança e da segurança jurídica», fazendo referência às alegadas violações dos «direitos individuais» do «povo sarauí» por parte de «um regime anexionista», bem como à falta de valor da certificação de origem emitida pelas autoridades marroquinas para a exportação dos produtos originários do Sara Ocidental. Invoca, por último, uma «violação das liberdades, quer das liberdades coletivas do povo sarauí […] quer do desrespeito da propriedade, da liberdade de circulação, da liberdade de expressão, dos direitos de defesa e do princípio da dignidade».

145

Importa realçar, como recorda a Frente Polisário, que é certo que o artigo 6.o TUE prevê que a União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais, sendo que, nos termos do artigo 67.o TFUE, a União constitui um espaço de liberdade, segurança e justiça, no respeito dos direitos fundamentais e dos diferentes sistemas jurídicos dos Estados‑Membros.

146

Destas disposições ou da Carta dos Direitos Fundamentais não decorre, todavia, uma proibição absoluta de a União celebrar um acordo com um Estado terceiro respeitante a trocas económicas em matéria de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixes e de produtos da pesca, que também pode ser aplicado a um território controlado por este Estado terceiro sem que a soberania sobre esse território seja internacionalmente reconhecida.

147

A questão de saber em que condições esse acordo pode ser celebrado sem violar a obrigação da União de reconhecer os direitos fundamentais será analisada, com os demais argumentos da recorrente relacionados com a aplicação e o respeito por parte das instituições da União do seu poder de apreciação, nos n.os 223 e seguintes, infra.

148

Sem prejuízo desta análise, importa julgar improcedente o terceiro fundamento, na medida em que é imputada ao Conselho a violação de uma alegada proibição absoluta de celebração de um acordo como o que está em causa no caso vertente.

– Quanto ao quarto fundamento

149

Com o seu quarto fundamento, a Frente Polisário alega que a decisão impugnada deve ser anulada por ser contrária ao princípio da coerência das políticas da União previsto no artigo 7.o TFUE, nos termos do qual «[a] União assegura a coerência entre as suas diferentes políticas e ações, tendo em conta o conjunto dos seus objetivos». Em seu entender, a decisão impugnada «dá aval a uma soberania de facto do [Reino de] Marrocos sobre o território do Sara Ocidental» e «dá apoio político e económico ao [Reino de] Marrocos, que viola o direito da ONU e o princípio da soberania», apesar de nenhum Estado europeu ter reconhecido a soberania do Reino de Marrocos sobre o Sara Ocidental e de a União ter sido aceite como membro observador da ONU.

150

A Frente Polisário considera, por conseguinte, que o «princípio da coerência» proíbe a União de adotar atos cujo efeito direto é violar o direito à autodeterminação, apesar de os Estados‑Membros respeitarem esse direito, recusando reconhecer a soberania do Reino de Marrocos sobre o Sara Ocidental.

151

Por último, a Frente Polisário alega que «há outra incoerência manifesta». Segundo a recorrente, a União «não pode sancionar algumas violações de direitos, como por exemplo fez em relação à Síria, e dar o seu aval a outras, sobretudo quando se trata de normas de jus cogens».

152

Na réplica, a Frente Polisário invoca uma «terceira incoerência da União». Sustenta que o serviço de ajuda humanitária da Comissão concede ajudas elevadas aos refugiados sarauís instalados em campos (v. n.o 16, supra), ao mesmo tempo que o Conselho, com a adoção da decisão impugnada, «contribui para reforçar o controlo do Sara Ocidental por parte do [Reino de] Marrocos, e in fine para criar refugiados sarauís».

153

Há que constatar que os argumentos da Frente Polisário não podem assentar no artigo 7.o TUE. Todas as políticas da União resultam de diferentes disposições dos Tratados constitutivos e dos atos adotados em aplicação destas disposições. A alegada «incoerência» de um ato com a política da União num determinado domínio implica necessariamente que o ato em causa seja contrário a uma disposição, regra ou princípio que rege esta política. Este simples facto, se demonstrado, seria suficiente para conduzir à anulação do ato em causa, sem que fosse necessário invocar o artigo 7.o TUE.

154

No caso vertente, para invocar a violação do princípio da coerência, a Frente Polisário parte da premissa de que a aprovação, pela decisão impugnada, do acordo entre a União e o Reino de Marrocos em causa «dá aval» à «soberania» deste último sobre o Sara Ocidental. Esta premissa está contudo errada: do acordo em causa não consta nenhuma cláusula com esse efeito e o simples facto de a União admitir a aplicação dos termos do acordo pelo Reino de Marrocos relativamente a produtos agrícolas ou da pesca exportados para a União a partir da parte do território do Sara Ocidental que este controla, ou aos produtos que são importados para esse território, não equivale a um reconhecimento da soberania marroquina sobre esse território.

155

O argumento segundo o qual a União viola o «direito da ONU» ou o jus cogens não tem nenhuma relação com a alegada violação do artigo 7.o TFUE. O referido argumento consiste apenas em reiterar os argumentos aduzidos em apoio do décimo fundamento, que será analisado em seguida.

156

O argumento baseado na adoção pela União de medidas restritivas em relação à situação existente noutros países também não é suficiente para demonstrar uma alegada «incoerência» da política da União. Há que recordar que, como decorre nomeadamente da jurisprudência relativa às medidas restritivas adotadas em relação à situação na Síria, o Conselho dispõe de um poder discricionário na matéria (v., neste sentido, acórdão de 13 de setembro de 2013, Makhlouf/Conselho, T‑383/11, Colet.,EU:T:2013:431, n.o 63). Por conseguinte, não pode ser‑lhe imputada uma incoerência por adotar medidas restritivas face à situação de um país e não de outro.

157

Por último, no que respeita à «terceira incoerência» invocada pela Frente Polisário na réplica, importa constatar que o facto de a União dar apoio aos refugiados sarauís instalados em campos ao mesmo tempo que celebra acordos com o Reino de Marrocos, como o que foi aprovado pela decisão impugnada, longe de constituir uma incoerência na sua política, demonstra, pelo contrário, que a União não quer tomar partido no diferendo que opõe a recorrente ao Reino de Marrocos, apoiando os esforços da ONU com vista a uma solução justa e duradoura deste diferendo através de negociações.

158

Por conseguinte, o quarto fundamento deve ser julgado improcedente.

– Quanto ao quinto fundamento

159

Em apoio do seu quinto fundamento, a Frente Polisário invoca o artigo 2.o TUE, o artigo 3.o, n.o 5, TUE e o artigo 21.o TUE, bem como o artigo 205.o TFUE. Alega que a decisão impugnada é contrária aos valores fundamentais da União que presidem à sua ação externa. Em seu entender, ao aprovar a celebração do acordo em causa na decisão impugnada, o Conselho «despreza as resoluções da ONU e o acordo entre o [Reino de] Marrocos e a Frente Polisário para a organização de um referendo sobre a autodeterminação, ao encorajar a política ilícita de anexação por parte do [Reino de] Marrocos». Considera que «bastava congelar a aplicação do acordo», uma vez que o Conselho «[sabia] perfeitamente que o desenvolvimento económico do [Reino de] Marrocos no território do Sara Ocidental vis[ava] alterar as estruturas sociais e [c]orromper a própria ideia de um referendo».

160

Nos termos do artigo 2.o TUE:

«A União funda‑se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Esses valores são comuns aos Estados‑Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.»

161

O artigo 3.o, n.o 5, TUE dispõe o seguinte:

«Nas suas relações com o resto do mundo, a União afirma e promove os seus valores e interesses e contribui para a proteção dos seus cidadãos. Contribui para a paz, a segurança, o desenvolvimento sustentável do planeta, a solidariedade e o respeito mútuo entre os povos, o comércio livre e equitativo, a erradicação da pobreza e a proteção dos direitos do Homem, em especial os da criança, bem como para a rigorosa observância e o desenvolvimento do direito internacional, incluindo o respeito dos princípios da Carta das Nações Unidas.»

162

O artigo 21.o TUE, constante do título V, capítulo 1, do Tratado UE, tem a seguinte redação:

«1.   A ação da União na cena internacional assenta nos princípios que presidiram à sua criação, desenvolvimento e alargamento, e que é seu objetivo promover em todo o mundo: democracia, Estado de direito, universalidade e indivisibilidade dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais, respeito pela dignidade humana, princípios da igualdade e solidariedade e respeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas e do direito internacional.

A União procura desenvolver relações e constituir parcerias com os países terceiros e com as organizações internacionais, regionais ou mundiais que partilhem dos princípios enunciados no primeiro parágrafo. Promove soluções multilaterais para os problemas comuns, particularmente no âmbito das Nações Unidas.

2.   A União define e prossegue políticas comuns e ações e diligencia no sentido de assegurar um elevado grau de cooperação em todos os domínios das relações internacionais, a fim de:

a)

Salvaguardar os seus valores, interesses fundamentais, segurança, independência e integridade;

b)

Consolidar e apoiar a democracia, o Estado de direito, os direitos do Homem e os princípios do direito internacional;

c)

Preservar a paz, prevenir conflitos e reforçar a segurança internacional, em conformidade com os objetivos e os princípios da Carta das Nações Unidas, com os princípios da Ata Final de Helsínquia e com os objetivos da Carta de Paris, incluindo os respeitantes às Fronteiras externas;

d)

Apoiar o desenvolvimento sustentável nos planos económico, social e ambiental dos países em desenvolvimento, tendo como principal objetivo erradicar a pobreza;

e)

Incentivar a integração de todos os países na economia mundial, inclusivamente através da eliminação progressiva dos obstáculos ao comércio internacional;

f)

Contribuir para o desenvolvimento de medidas internacionais para preservar e melhorar a qualidade do ambiente e a gestão sustentável dos recursos naturais à escala mundial, a fim de assegurar um desenvolvimento sustentável;

[…]

3.   […]

A União vela pela coerência entre os diferentes domínios da sua ação externa e entre estes e as suas outras políticas. O Conselho e a Comissão, assistidos pelo Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, asseguram essa coerência e cooperam para o efeito.»

163

Por último, o artigo 205.o TFUE, constante da quinta parte do Tratado FUE, com a epígrafe «Disposições gerais relativas à ação externa da União», dispõe que «[a] ação da União na cena internacional ao abrigo da presente parte assenta nos princípios, prossegue os objetivos e é conduzida em conformidade com as disposições gerais enunciadas no capítulo 1 do título V do Tratado [UE]».

164

Segundo a jurisprudência, as instituições da União gozam de um amplo poder de apreciação no domínio das relações económicas externas ao qual pertence o acordo em causa na decisão impugnada (v., neste sentido, acórdão de 6 de julho de 1995, Odigitria/Conselho e Comissão, T‑572/93, Colet.,EU:T:1995:131, n.o 38).

165

Por conseguinte, não pode admitir‑se que decorre dos «valores que fundam a União», ou das disposições invocadas pela Frente Polisário no presente fundamento, que a celebração pelo Conselho de um acordo com um Estado terceiro que pode ser aplicado num território disputado é, em todos os casos, proibida.

166

Além do mais, a questão do exercício, pelo Conselho, do amplo poder de apreciação que lhe é reconhecido pela jurisprudência acima referida no n.o 164, bem como os elementos relevantes que importa ter em conta neste contexto, será analisada em seguida (v. n.os 223 e seguintes, infra).

167

Sem prejuízo desta análise, o quinto fundamento deve ser julgado improcedente.

– Quanto ao sexto fundamento

168

No sexto fundamento, a recorrente alega que a decisão impugnada é contrária ao objetivo de desenvolvimento durável «uma vez que permite que a potência ocupante aumente a exploração de recursos naturais de um povo autónomo». A este respeito faz referência ao artigo 11.o TFUE, nos termos do qual «[a]s exigências em matéria de proteção do ambiente devem ser integradas na definição e execução das políticas e ações da União, em especial com o objetivo de promover um desenvolvimento sustentável». Invoca igualmente vários textos da ONU e da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

169

A recorrente acrescenta que o Reino de Marrocos «conduz uma política de anexação, ao gerir os assuntos do Sara Ocidental através do seu Ministério da Administração Interna e ao recusar […] prestar contas da sua administração à ONU». A Frente Polisário deduz daqui que a decisão impugnada «não só […] priva o povo sarauí do direito ao seu desenvolvimento mas encoraja uma política de espoliação económica que tem como principal finalidade destruir a sociedade sarauí».

170

Na réplica, a Frente Polisário acrescenta que «grandes sociedades controladas por Marrocos exploram recursos [do Sara Ocidental] com a expressa finalidade de roubar o povo sarauí, para reforçar a economia de Marrocos e consolidar de facto a anexação marroquina».

171

Nesta fase, basta realçar que também não resulta das acima referidas alegações da Frente Polisário nem das disposições que ela invoca uma proibição absoluta de o Conselho celebrar um acordo com um Estado terceiro suscetível de ser aplicado num território disputado.

172

Por conseguinte, este argumento deve ser julgado improcedente na medida em que deva ser entendido no sentido de que consiste em alegar uma violação dessa proibição. A argumentação da Frente Polisário deve de resto ser analisada no quadro da questão do exercício do poder de apreciação do Conselho (v. n.os 223 e seguintes, infra).

– Quanto ao sétimo fundamento

173

O sétimo fundamento é, de acordo com a formulação da recorrente, baseado no «facto de a decisão impugnada ser contrária aos princípios e objetivos da ação externa da União no domínio da cooperação para o desenvolvimento». A recorrente refere o artigo 208.o, n.o 2, TFUE, nos termos do qual «[a] União e os Estados‑Membros respeitarão os compromissos e terão em conta os objetivos aprovados no âmbito [da ONU] e das demais organizações internacionais competentes». A recorrente também invoca o artigo 220.o TFUE (v. n.o 129, supra).

174

Concretamente, a Frente Polisário observa que «[a] letra do artigo [208.°, n.o 2, TFUE], no qual é empregue o termo ‘aprovados’, permite opor à União […] os compromissos e objetivos que figuram nas resoluções da [ONU], de entre as quais a Declaração do Milénio e as resoluções em cuja elaboração a [União] participou».

175

Não pode deixar de se constatar que a argumentação da recorrente, como acima exposta no n.o 174, não permite de forma alguma compreender o que esta imputa ao Conselho e por que razão a decisão impugnada é contrária «aos princípios e objetivos da ação externa da União no domínio da cooperação para o desenvolvimento» ou aos textos da ONU, de entre os quais a Declaração do Milénio. Consequentemente, o presente fundamento deve ser julgado inadmissível.

– Quanto ao oitavo fundamento

176

O oitavo fundamento é relativo a uma violação do princípio da proteção da confiança legítima. Depois de recordar a jurisprudência na matéria, a Frente Polisário alega que podia legitimamente crer que a União e as suas instituições respeitavam o direito internacional.

177

Como recorda a própria recorrente, decorre de jurisprudência constante que o princípio da proteção da confiança legítima pode ser invocado por qualquer particular que se encontre numa situação na qual a Administração da União, ao fornecer‑lhe garantias precisas, criou nele esperanças fundadas. Constituem tal tipo de garantias, independentemente da forma como foram comunicadas, as informações precisas, incondicionais e concordantes que emanem de fontes autorizadas e fiáveis. Em contrapartida, ninguém pode invocar a violação deste princípio na falta de garantias precisas que a Administração alegadamente lhe tenha fornecido (v. acórdão de 19 de novembro de 2009, Denka International/Comissão, T‑334/07, Colet.,EU:T:2009:453, n.o 148 e jurisprudência referida).

178

No caso vertente, não pode deixar de se constatar que a recorrente não invoca nenhuma garantia precisa que lhe tenha sido fornecida pela Administração da União quanto ao seu comportamento na matéria, de modo que o presente fundamento, baseado na violação do princípio da proteção da confiança legítima, não pode ser acolhido. O argumento nos termos do qual, em substância, a decisão impugnada viola o direito internacional deve ser analisado no âmbito do décimo primeiro fundamento, precisamente baseado na violação do direito internacional.

– Considerações preliminares relativas à aplicação do direito internacional

179

Na medida em que a Frente Polisário invoca uma violação de vários acordos internacionais celebrados pela União (nono fundamento) e a violação do «direito internacional geral» (décimo fundamento), as seguintes considerações são pertinentes para efeitos da apreciação da legalidade de um ato da União à luz do direito internacional.

180

Como resulta do artigo 3.o, n.o 5, TUE, a União contribui para a rigorosa observância e para o desenvolvimento do direito internacional. Por conseguinte, quando a União adota um ato, é obrigada a respeitar o direito internacional na sua totalidade, incluindo o direito internacional consuetudinário que vincula as instituições da União (v. acórdão de 21 de dezembro de 2011, Air Transport Association of America e o., C‑366/10, Colet.,EU:C:2011:864, n.o 101 e jurisprudência referida).

181

Por outro lado, em conformidade com os princípios do direito internacional, as instituições da União, que têm competência para negociar e celebrar acordos internacionais, podem acordar com os Estados terceiros em causa os efeitos que as disposições desses acordos devem produzir na ordem jurídica interna das partes contratantes. Só se esta questão não tiver sido expressamente regulada pelo acordo é que caberá aos órgãos jurisdicionais competentes da União pronunciar‑se sobre esta questão, à semelhança do que sucede com qualquer outra questão de interpretação relativa à aplicação do acordo na União (v. acórdão Air Transport Association of America e o., n.o 180, supra, EU:C:2011:864, n.o 49 e jurisprudência referida).

182

Há também que recordar que, por força do artigo 216.o, n.o 2, TFUE, quando forem celebrados acordos internacionais pela União, as instituições da União estão vinculadas por tais acordos e, por conseguinte, estes prevalecem sobre os atos da União. Daqui resulta que a validade de um ato da União pode ser afetada pela incompatibilidade desse ato com essas regras do direito internacional (v. acórdão Air Transport Association of America e o., n.o 180, supra, EU:C:2011:864, n.os 50, 51 e jurisprudência referida).

183

Todavia, em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça também decidiu que a União deve estar vinculada por essas regras (v. acórdão Air Transport Association of America e o., n.o 180, supra, EU:C:2011:864, n.o 52 e jurisprudência referida).

184

Considerou, em seguida, que um órgão jurisdicional da União só pode proceder ao exame da validade de um ato jurídico da União, à luz de um tratado internacional, quando a sua natureza e a sua sistemática a isso não se oponham (v. acórdão Air Transport Association of America e o., n.o 180, supra, EU:C:2011:864, n.o 53 e jurisprudência referida).

185

Por último, quando a natureza e a sistemática do tratado em causa permitem uma fiscalização da validade do ato jurídico da União à luz das disposições desse tratado, é ainda necessário que as disposições desse tratado invocadas para efeitos do exame da validade do ato jurídico da União se revelem incondicionais e suficientemente precisas. Tal condição está preenchida sempre que a disposição invocada contenha uma obrigação clara e precisa que não esteja dependente, na sua execução ou nos seus efeitos, da intervenção de um ato posterior (v. acórdão Air Transport Association of America e o., n.o 180, supra, EU:C:2011:864, n.os 54, 55 e jurisprudência referida).

186

Importa ter em conta as considerações precedentes na análise do nono a décimo primeiro fundamentos a que se procederá em seguida.

– Quanto ao nono fundamento

187

No âmbito do nono fundamento, a recorrente alega que a a decisão impugnada deve ser anulada, «por ser contrária a vários acordos internacionais que vinculam a União».

188

Em primeiro lugar, a recorrente invoca o acordo de associação com Marrocos e, em particular, o seu preâmbulo, que faz referência ao respeito dos princípios da Carta das Nações Unidas, bem como o seu artigo 2.o, nos termos do qual o respeito dos princípios democráticos e dos direitos humanos fundamentais inspirará as políticas interna e externa da União e do Reino de Marrocos e constitui um elemento essencial do presente acordo.

189

Segundo a recorrente, a decisão impugnada é contrária aos referidos princípios uma vez que «viola o direito à autodeterminação e os direitos que dele decorrem, nomeadamente a soberania sobre os recursos naturais e a primazia dos interesses dos habitantes do Sara Ocidental». A recorrente acrescenta que «o [Reino de] Marrocos viola o direito à autodeterminação, que é condição sine qua non do respeito dos direitos humanos e das liberdades políticas e económicas» e faz novamente referência à «política anexionista do [Reino de] Marrocos» que «se destina a impedir a organização do referendo sobre a autodeterminação».

190

Em segundo lugar, a recorrente invoca a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, assinada em Montego Bay, em 10 de dezembro de 1982 (a seguir «Convenção de Montego Bay»), entrada em vigor em 16 de novembro de 1994 e aprovada em nome da União pela Decisão 98/392/CE do Conselho, de 23 de março de 1998, relativa à celebração pela Comunidade Europeia da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 10 de dezembro de 1982 e do Acordo de 28 de julho de 1994, relativo à aplicação da parte XI da convenção (JO L 179, p. 1). Alega que, em conformidade com as disposições da Convenção de Montego Bay, o povo do Sara Ocidental tem direitos soberanos sobre as águas adjacentes à costa do Sara Ocidental. Enquanto «potência ocupante», o Reino de Marrocos deve exercer os direitos de que o povo do Sara Ocidental é titular no respeito do princípio da primazia dos interesses deste. No entanto, viola sistematicamente essas regras e utiliza o controlo do mar para manter a sua presença no Sara Ocidental. Segundo a recorrente, através da decisão impugnada, o Conselho viola «estas disposições», na medida em que, ao «aumentar a liberalização das trocas em matéria de pesca com Marrocos, reforça a posição de Marrocos que exerce indevidamente direitos sobre esta parte do mar». A recorrente acrescenta que o Reino de Marrocos «explora estas águas exclusivamente no seu interesse, procurando o lucro imediato e de forma a criar um contexto económico que dificulta a realização de um referendo sobre a autodeterminação».

191

Em terceiro lugar, a recorrente invoca uma violação do «critério de origem» que resulta, em seu entender, da Convenção de Montego Bay, do acordo de associação com Marrocos e do seu Protocolo n.o 4, do Acordo de parceria no domínio da pesca entre a Comunidade Europeia e o Reino de Marrocos, aprovado em nome da Comunidade pelo Regulamento (CE) n.o 764/2006 do Conselho, de 22 de maio de 2006 (JO L 141, p. 1), bem como do Acordo sob forma de troca de cartas relativo à aplicação provisória do Acordo de cooperação em matéria de pescas marítimas entre a Comunidade Europeia e o Reino de Marrocos, rubricado em Bruxelas em 13 de novembro de 1995 e aprovado em nome da Comunidade pela Decisão 95/540/CE do Conselho, de 7 de dezembro de 1995 (JO L 306, p. 1).

192

Segundo a recorrente, «[p]ara determinar o âmbito de aplicação dos diferentes acordos que vinculam a [União] e os seus Estados‑Membros ao [Reino de] Marrocos, a Convenção [de Montego Bay] constitui a referência relevante e define sem qualquer equívoco este âmbito de aplicação como sendo o território do [Reino de] Marrocos».

193

Independentemente da própria questão de saber se os diferentes acordos e convenções referidas pela recorrente podem, à luz da jurisprudência acima referida nos n.os 184 a 185, ser tomados em consideração para efeitos da análise da validade de um ato da União, importa constatar que, com exceção da Convenção de Montego Bay, os outros acordos invocados pela recorrente são acordos celebrados entre a União e o Reino de Marrocos, concretamente as mesmas partes que as que celebraram o acordo aprovado pela decisão impugnada. Com efeito, um destes acordos é o acordo de associação com Marrocos que o acordo visado pela decisão impugnada visa precisamente alterar.

194

Nestas condições, mesmo admitindo que algumas cláusulas do acordo cuja celebração foi aprovada pela decisão impugnada estão em contradição com as cláusulas dos acordos anteriores celebrados entre a União e o Reino de Marrocos e invocados pela recorrente, tal não constitui nenhuma ilegalidade, na medida em que a União e o Reino de Marrocos são livres para, a qualquer momento, alterar acordos passados entre eles através de um novo acordo, como o que está em causa na decisão impugnada.

195

No que diz respeito à Convenção de Montego Bay, importa recordar que, como decidiu o Tribunal de Justiça, a natureza e a sistemática desta Convenção se opõem a que os tribunais da União possam apreciar a validade de um ato da União à luz desta última (acórdão de 3 de junho de 2008, Intertanko e o., C‑308/06, Colet.,EU:C:2008:312, n.o 65).

196

A recorrente invoca, contudo, esta Convenção para alegar, no essencial, que os produtos da pesca provenientes das águas adjacentes à costa do Sara Ocidental fazem parte dos recursos naturais deste último.

197

A este respeito, já foi observado que o acordo cuja celebração foi aprovada pela decisão impugnada também se aplica ao Sara Ocidental e aos produtos provenientes deste território e dos seus recursos naturais, independentemente dos recursos em causa e da questão de saber se os mesmos devem ou não ser determinados em aplicação da Convenção de Montego Bay.

198

No entanto, nada nos argumentos invocados pela recorrente no presente fundamento demonstra que a celebração pelo Conselho de um acordo com um Estado terceiro relativo a um território disputado seja, em qualquer caso, proibida.

199

Por conseguinte, na medida em que deva ser entendido no sentido de que consiste em alegar uma violação dessa proibição absoluta, o presente fundamento deve improceder. Se houver lugar a entender os argumentos da recorrente, ou alguns deles, no sentido em que consistem na alegação de um erro manifesto de apreciação do Conselho, basta recordar que a questão do exercício do poder de apreciação de que o Conselho dispõe nesta matéria é analisada nos n.os 223 e seguintes.

– Quanto ao décimo fundamento

200

Com o seu décimo fundamento, a Frente Polisário alega que a decisão impugnada deve ser anulada, por ser contrária ao direito à autodeterminação, norma imperativa do direito internacional, e aos direitos que dele decorrem. Alega que a decisão impugnada confirma a posição do Reino de Marrocos na sua política de ocupação e de «colonização económica» do Sara Ocidental.

201

A Frente Polisário alega igualmente que a decisão impugnada cria obrigações para as quais não deu o seu acordo, em violação do efeito relativo dos tratados. Acrescenta que a União é obrigada a respeitar o «direito internacional humanitário» do qual resultam, segundo a recorrente, as disposições do regulamento anexo à Convenção relativa às leis e costumes da guerra terrestre assinada em Haia, em 18 de outubro de 1907, da Convenção relativa à proteção das pessoas civis em tempo de guerra, assinada em Genebra, em 12 de agosto de 1949, e do Tratado que institui o Tribunal Penal Internacional, assinado em Roma, em 17 de julho de 1998. Alega que, ao adotar a decisão impugnada, o Conselho «permitiu que o Reino de Marrocos consolidasse a sua política de colonização do Sara Ocidental, a partir da vertente económica».

202

Importa antes de mais constatar que nada na decisão impugnada ou no acordo cuja celebração foi aprovada por aquela implica o reconhecimento pela União das reivindicações marroquinas no Sara Ocidental. O mero facto de o acordo em questão também se aplicar aos produtos exportados a partir de, ou importados para, a parte do Sara Ocidental controlada pelo Reino de Marrocos não equivale a esse reconhecimento.

203

No que respeita ao argumento baseado no efeito relativo dos tratados, contrariamente ao que alega a Frente Polisário, o acordo visado pela decisão impugnada, apesar de a afetar direta e individualmente, não implica nenhum compromisso por sua parte, na medida em que esse acordo só se aplica à parte do Sara Ocidental sob controlo marroquino e enquanto esse controlo persistir. Se eventualmente a Frente Polisário alargasse o seu controlo a todo o território do Sara Ocidental na sequência do referendo sobre a autodeterminação previsto, é evidente que a Frente Polisário não estaria vinculada pelas disposições do acordo em questão, celebrado entre o Reino de Marrocos e a União.

204

No que diz respeito ao argumento baseado na violação do direito humanitário, importa constatar que a argumentação da recorrente é lapidar e não permite compreender como, e em que medida, a celebração do acordo visado pela decisão impugnada viola este direito.

205

Em geral, nada nos argumentos ou nos elementos invocados pela recorrente demonstra a existência de uma regra de direito internacional consuetudinário que proíba a celebração de um tratado internacional que possa ser aplicado num território disputado.

206

A questão foi submetida ao Tribunal Internacional de Justiça, mas este não se pronunciou sobre ela no acórdão proferido no processo relativo a Timor‑Leste (Portugal c. Austrália, CIJ Recueil 1995, p. 90), pelo facto de, para tal, aquele tribunal ter de decidir da legalidade do comportamento da República da Indonésia sem que esse Estado tivesse dado o seu consentimento (acórdão Portugal c. Austrália, já referido, n.o 35).

207

A recorrente também apresentou uma carta, datada de 29 de janeiro de 2002, enviada pelo secretário‑geral adjunto para os assuntos jurídicos, consultor jurídico da ONU, ao presidente do Conselho de Segurança, em resposta a um pedido de parecer apresentado pelos membros do Conselho de Segurança sobre a legalidade das decisões das autoridades marroquinas a respeito de concursos e da assinatura de contratos de prospeção dos recursos minerais do Sara Ocidental celebrados com sociedades estrangeiras.

208

Nessa carta, o consultor jurídico da ONU passou em revista as regras do direito internacional, a jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça e a prática dos Estados na matéria. Observou, nomeadamente, o seguinte no n.o 24 da sua carta:

«Ainda que limitada, a recente prática dos Estados indica que as potências que [administram um território], e os Estados terceiros, têm a seguinte opinio juris: se os recursos dos territórios não autónomos são explorados em benefício dos povos desses territórios, em seu nome, ou em consulta com os seus representantes, considera‑se que esta exploração é compatível com as obrigações que incumbem às potências que [exercem a referida administração] ao abrigo da [Carta das Nações Unidas] e em conformidade com as resoluções da Assembleia Geral, bem como com o princípio da ‘soberania permanente sobre os recursos naturais’ que aí é consagrada.»

209

Foi com esta base que deu a seguinte resposta à questão que lhe foi submetida:

«[A]inda que os contratos objeto do pedido do Conselho de Segurança não sejam por si só ilegais, se as atividades de prospeção e de exploração forem levadas a cabo com desprezo pelos interesses e pela vontade do povo do Sara Ocidental, as mesmas violam os princípios de direito internacional aplicáveis às atividades relativas aos recursos minerais dos territórios não autónomos.» (n.o 25 da sua carta)

210

Daqui resulta que o consultor jurídico da ONU também não considerou que a celebração de um acordo internacional suscetível de ser aplicado num território disputado era proibida pelo direito internacional.

211

Por conseguinte, o presente fundamento improcede, na medida em que deva ser entendido no sentido de que consiste em alegar uma violação, por parte do Conselho, de uma norma de «direito internacional geral» da qual decorre uma proibição absoluta de celebrar acordos internacionais suscetíveis de serem aplicados num território disputado. Os argumentos aduzidos pela recorrente no presente fundamento, na medida em que dizem respeito ao exercício, pelo Conselho, do poder de apreciação de que dispõe, serão analisados nos n.os 223 e seguintes, infra.

– Quanto ao décimo primeiro fundamento

212

No décimo primeiro e último fundamento a recorrente invoca várias disposições do projeto de artigos sobre a responsabilidade das organizações internacionais por atuação internacionalmente ilícita, como adotado em 2011 pela Comissão de Direito Internacional da ONU, para alegar que, ao adotar a decisão impugnada, o Conselho responsabiliza internacionalmente a União por factos internacionalmente ilícitos.

213

Este fundamento não traz, contudo, nada de novo em relação à restante argumentação da recorrente. Há que recordar que o presente recurso é um recurso de anulação e não uma ação de indemnização. A questão não é saber se a União é extracontratualmente responsável pela adoção da decisão impugnada, o que pressupõe que esta padeça de ilegalidade. A questão é precisamente de saber se a decisão impugnada está ferida de ilegalidade. Ora, a este respeito, a recorrente não aduz nenhum argumento novo, limitando‑se a reiterar as alegações segundo as quais, em substância, ao celebrar em nome da União o acordo aprovado pela decisão impugnada, o Conselho violou o direito internacional.

214

Por conseguinte, há que julgar este fundamento improcedente.

– Conclusão a respeito da existência de uma proibição absoluta de celebração de acordos internacionais aplicáveis num território disputado

215

Decorre de todas as considerações precedentes que nada nos fundamentos e argumentos da recorrente permite concluir que o direito da União ou o direito internacional proíbe em absoluto a celebração com um Estado terceiro de um acordo que poderia ser aplicado num território disputado.

216

A jurisprudência do Tribunal Geral também confirma esta conclusão.

217

O Tribunal Geral foi chamado a decidir a questão da legalidade de um acordo internacional, celebrado entre a União e outro Estado terceiro e que também podia ser aplicado num território disputado, no processo que deu origem ao acórdão Odigitria/Conselho e Comissão, n.o 164, supra (EU:T:1995:131).

218

Esse acórdão dizia respeito a uma ação de indemnização intentada por uma sociedade proprietária de um barco de pesca que arvorava pavilhão grego e que foi apresado pelas autoridades da Guiné‑Bissau por pescar sem licença na zona marítima deste último Estado. Verificou‑se que o barco em questão tinha uma licença de pesca emitida pelas autoridades senegalesas, mas que pescava em águas que quer a República do Senegal quer a República da Guiné‑Bissau reivindicavam como fazendo parte das respetivas zonas marítimas. A Comunidade Económica Europeia, como na altura existia, celebrara acordos de pesca com aqueles dois Estados terceiros que tinham por objeto a totalidade das suas zonas marítimas. A recorrente nesse processo buscava a reparação, por parte da Comunidade, do prejuízo que alegava ter sofrido devido ao apresamento do seu barco e, neste contexto, invocava a alegada ilegalidade da não exclusão do âmbito de aplicação dos acordos de pesca celebrados entre a Comunidade e cada um dos dois Estados terceiros em questão da zona que era objeto do diferendo entre eles (acórdão Odigitria/Conselho e Comissão, n.o 164, supra, EU:T:1995:131, n.os 1 a 13 e 25).

219

O Tribunal Geral considerou que esta omissão não constituía nenhuma ilegalidade. Em substância, concluiu que, no exercício do amplo poder de apreciação de que as instituições da União gozam no domínio das relações externas e no da política agrícola comum (que também abrange as pescas), podiam, sem cometer um erro manifesto de apreciação, decidir que não havia lugar à exclusão da zona em questão dos acordos de pesca celebrados com os dois Estados acima referidos, apesar do diferendo existente entre eles no que respeita às águas reivindicadas como fazendo parte das suas zonas marítimas (v., neste sentido, acórdão Odigitria/Conselho e Comissão, n.o 164, supra, EU:T:1995:131, n.o 38).

220

Do acórdão em questão decorre assim a contrario que a celebração de um acordo assinado entre a União e um Estado terceiro que pode ser aplicado num território disputado não é, de qualquer modo, contrária ao direito da União ou ao direito internacional que a União é obrigada a respeitar.

221

Com efeito, se assim fosse, no n.o 38 do acórdão Odigitria/Conselho e Comissão, n.o 164, supra (EU:T:1995:131), o Tribunal Geral não podia ter‑se referido a um poder de apreciação das instituições da União a propósito da questão de saber se havia que incluir a zona contestada entre a República do Senegal e a República da Guiné‑Bissau no âmbito de aplicação dos acordos de pesca celebrados com esses dois Estados. Se essa inclusão fosse contrária ao direito da União ou ao direito internacional, que as instituições da União são obrigadas a respeitar, é evidente que as mesmas não dispunham de nenhum poder de apreciação em relação a esta questão.

222

Importa igualmente recordar que também não decorre das considerações que figuram na carta do consultor jurídico da ONU, acima referida nos n.os 207 a 210, uma proibição absoluta de celebração de um acordo relativo a um território disputado. Com efeito, o consultor jurídico da ONU salientou em substância que só se a exploração dos recursos naturais do Sara Ocidental fosse levada a cabo «com desprezo pelos interesses e pela vontade do povo» deste território, é que a mesma «viola[ria] os princípios de direito internacional».

Quanto ao poder de apreciação das instituições da União e quanto aos elementos que estas devem ter em conta

223

Atendendo ao exposto e como decorre da jurisprudência acima recordada no n.o 164, deve concluir‑se que as instituições da União dispõem de um amplo poder de apreciação no que diz respeito à questão de saber se há ou não que celebrar com um Estado terceiro um acordo que será aplicável num território disputado.

224

Reconhecer‑lhes esse poder é ainda mais justificado pelo facto de, como de resto resulta da carta do consultor jurídico da ONU, acima referida, as normas e princípios do direito internacional aplicáveis na matéria serem complexos e imprecisos. Daqui decorre que a fiscalização jurisdicional deve necessariamente limitar‑se à questão de saber se a instituição competente da União, no caso vertente o Conselho, ao aprovar a celebração de um acordo como o que foi aprovado pela decisão impugnada, cometeu erros manifestos de apreciação (v., neste sentido, acórdão de 16 de junho de 1998, Racke, C‑162/96, Colet.,EU:C:1998:293, n.o 52).

225

Assim sendo, em particular nos casos em que uma instituição da União dispõe de um amplo poder de apreciação, para averiguar se a mesma cometeu um erro manifesto de apreciação, o juiz da União deve verificar se esta instituição analisou, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos pertinentes do caso concreto, elementos esses que apoiam as conclusões deles extraídas (acórdãos de 21 de novembro de 1991, Technische Universität München, C‑269/90, Colet.,EU:C:1991:438, n.o 14, e de 22 de dezembro de 2010, Gowan Comércio Internacional e Serviços, C‑77/09, Colet.,EU:C:2010:803, n.o 57).

226

Ora, como foi acima observado no n.o 125, no essencial, a Frente Polisário critica precisamente o Conselho por, quando adotou a decisão impugnada, não ter analisado previamente os elementos relevantes do caso vertente, em especial a eventual aplicação do acordo cuja celebração foi aprovada pela decisão impugnada ao Sara Ocidental e aos produtos exportados a partir deste território.

227

A este respeito, como observado no n.o 146, supra, embora seja verdade que da Carta dos Direitos Fundamentais, invocada pela recorrente no seu terceiro fundamento, não resulta uma proibição absoluta da União de celebrar um acordo suscetível de ser aplicado num território disputado, não é menos certo que a proteção dos direitos fundamentais da população desse território se reveste de particular importância e que, por conseguinte, constitui uma questão que o Conselho deve analisar antes de aprovar esse acordo.

228

No que em particular toca a um acordo destinado, nomeadamente, a facilitar a exportação para a União de diversos produtos provenientes do território em questão, o Conselho deve analisar, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos relevantes para garantir que as atividades de produção dos produtos destinados à exportação não são levadas a cabo em detrimento da população do território em questão nem implicam violações dos seus direitos fundamentais, de entre os quais, nomeadamente, os direitos à dignidade do ser humano, à vida e à integridade do ser humano (artigos 1.° a 3.° da Carta dos Direitos Fundamentais), a proibição da escravidão e do trabalho forçado (artigo 5.o da Carta dos Direitos Fundamentais), a liberdade profissional (artigo 15.o da Carta dos Direitos Fundamentais), a liberdade de empresa (artigo 16.o da Carta dos Direitos Fundamentais), o direito de propriedade (artigo 17.o da Carta dos Direitos Fundamentais), o direito a condições de trabalho justas e equitativas, a proibição do trabalho infantil e proteção dos jovens no trabalho (artigos 31.° e 32.° da Carta dos Direitos Fundamentais).

229

As considerações do consultor jurídico da ONU quanto às obrigações decorrentes do direito internacional, como acima resumidas nos n.os 208 e 209, conduzem à mesma conclusão.

230

O Conselho alega a este respeito que «[n]ão é por ter celebrado um acordo com um país terceiro que a União é ou pode vir a ser responsável pelas eventuais ações cometidas por este país, quer estas correspondam ou não a violações dos direitos fundamentais».

231

Esta tese é correta, mas ignora o facto de que, se permitir a exportação para os seus Estados‑Membros de produtos provenientes deste outro país, fabricados ou obtidos em condições que não respeitam os direitos fundamentais da população do território do qual provêm, a União corre o risco de encorajar indiretamente essas violações ou de retirar benefícios delas.

232

Esta consideração é ainda mais relevante no caso de um território, como o Sara Ocidental, que é administrado, de facto, por um Estado terceiro, no caso vertente o Reino de Marrocos, que não está incluído nas fronteiras internacionalmente reconhecidas desse Estado terceiro.

233

Importa igualmente ter em conta o facto de o Reino de Marrocos não ter nenhum mandato, concedido pela ONU ou por outra instância internacional, para administrar este território e de ser pacífico que não transmitiu à ONU informações relativas a este território, como os previstos no artigo 73.o, alínea e), da Carta das Nações Unidas.

234

Este artigo prevê o seguinte:

«Os membros das Nações Unidas que assumiram ou assumam responsabilidades pela administração de territórios cujos povos ainda não se governem completamente a si mesmos reconhecem o princípio do primado dos interesses dos habitantes desses territórios e aceitam, como missão sagrada, a obrigação de promover no mais alto grau, dentro do sistema de paz e segurança internacionais estabelecido na presente Carta, o bem‑estar dos habitantes desses territórios, e, para tal fim:

[…]

e)

Transmitir regularmente ao secretário‑geral, para fins de informação, sujeitas às reservas impostas por considerações de segurança e de ordem constitucional, informações estatísticas ou de outro caráter técnico relativas às condições económicas, sociais e educacionais dos territórios pelos quais são respetivamente responsáveis e que não estejam compreendidos entre aqueles a que se referem os capítulos XII [relativo ao regime internacional de tutela] e XIII [relativo ao Conselho de Tutela].»

235

A falta de comunicação das informações previstas no artigo 73.o, alínea e), da Carta das Nações Unidas pelo Reino de Marrocos em relação ao Sara Ocidental levanta, no mínimo, dúvidas quanto a saber se o Reino de Marrocos reconhece o princípio da primazia dos interesses dos habitantes deste território e a obrigação de favorecer, na medida do possível, a sua prosperidade, como prevê esta disposição. Acresce que resulta dos autos e, nomeadamente, do texto apresentado pela recorrente, concretamente um discurso proferido pelo Rei de Marrocos em 6 de novembro de 2004, que o Reino de Marrocos considera que o Sara Ocidental faz parte do seu território.

236

O Conselho alegou que nenhuma das disposições da decisão impugnada ou do acordo nela aprovado «conduzia a concluir que a exploração dos recursos do Sara Ocidental se realizaria em detrimento dos habitantes do referido território, nem que impedi[ria] o [Reino de] Marrocos de garantir que a exploração dos recursos naturais era conduzida em benefício dos habitantes do Sara Ocidental e no seu interesse».

237

É certo que a Frente Polisário não criticou o Conselho por ter incluído na decisão impugnada termos suscetíveis de conduzir a uma exploração dos recursos do Sara Ocidental em detrimento dos seus habitantes.

238

Todavia, como acima observado no n.o 231, a exportação para a União de produtos provenientes, nomeadamente, do Sara Ocidental é facilitada pelo acordo em questão. Com efeito, tal faz parte dos objetivos do referido acordo. Por conseguinte, caso se verifique que o Reino de Marrocos explora os recursos do Sara Ocidental em detrimento dos seus habitantes, a celebração do acordo aprovado pela decisão impugnada pode encorajar indiretamente tal exploração.

239

No que diz respeito ao argumento segundo o qual o Reino de Marrocos não está impedido pelos termos do acordo de garantir que a exploração dos recursos naturais do Sara Ocidental é realizada em benefício dos seus habitantes, basta observar que o acordo também não garante uma exploração dos recursos naturais do Sara Ocidental que seja vantajosa para os seus habitantes. O acordo é a este respeito completamente neutro, limitando‑se nomeadamente a facilitar a exportação para a União dos produtos do Sara Ocidental, quer provenham ou não de uma exploração vantajosa para os seus habitantes.

240

Na realidade, este argumento do Conselho demonstra que, para ele, é apenas ao Reino de Marrocos que incumbe garantir o caráter vantajoso, para os habitantes da parte do Sara Ocidental que controla, da exploração desses recursos naturais.

241

Ora, tendo nomeadamente em conta o facto de a soberania do Reino de Marrocos sobre o Sara Ocidental não ser reconhecida pela União, nem pelos seus Estados‑Membros, nem, em geral, pela ONU, bem como a inexistência de qualquer mandato internacional que possa justificar a presença marroquina nesse território, o Conselho, no âmbito da análise de todos os elementos relevantes do caso vertente com vista ao exercício do seu amplo poder de apreciação a respeito da celebração, ou não, de um acordo com o Reino de Marrocos suscetível de ser igualmente aplicável ao Sara Ocidental, devia, ele próprio, garantir que não havia indícios de uma exploração dos recursos naturais do território do Sara Ocidental, sob controlo de Marrocos, que pudesse fazer‑se em detrimento dos seus habitantes e prejudicar os seus direitos fundamentais. O Conselho não pode limitar‑se a considerar que incumbe ao Reino de Marrocos garantir que nenhuma exploração desta natureza ocorrerá.

242

A este respeito, importa observar que a Frente Polisário qualifica a exploração dos recursos naturais do Sara Ocidental sob controlo marroquino de «exploração económica cujo objeto é a alteração da estrutura da sociedade sarauí». Acrescenta que informou a ONU dos seus protestos relativos ao projeto do acordo aprovado pela decisão impugnada. Os seus argumentos apresentados no âmbito do quinto e sexto fundamentos (v. n.os 159, 169 e 170, supra) também vão neste sentido.

243

A Frente Polisário também juntou aos autos um relatório detalhado do seu advogado que contém, nomeadamente, alegações de acordo com as quais, em substância, as explorações agrícolas no Sara Ocidental são controladas por pessoas e empresas estrangeiras não indígenas, exclusivamente orientadas para a exportação e que assentam na extração da água proveniente de bacias não renováveis situadas em profundidade. Nesse relatório, remete‑se para um relatório publicado por uma organização não governamental que confirma essas alegações.

244

Não decorre dos argumentos do Conselho nem dos elementos que este último juntou aos autos que o mesmo tenha procedido a uma análise como a acima referida no n.o 241. No que respeita às alegações da Frente Polisário referidas nos n.os 242 e 243, supra, o Conselho não fez nenhum comentário particular e não as desmentiu, o que leva a pensar que não analisou a questão de saber se a exploração dos recursos naturais do Sara Ocidental sob controlo marroquino era ou não feita em benefício da população deste território.

245

Decorre, todavia, dos elementos invocados pela Frente Polisário que essas alegações foram objeto de uma certa difusão e que lhe foram nomeadamente comunicadas pela ONU. As mesmas não podiam, por conseguinte, ser ignoradas pelo Conselho, sendo certo que a sua verosimilhança devia ter sido analisada por este.

246

Os argumentos do Conselho, acima resumidos nos n.os 230 e 236, demonstram pelo contrário que este considera que a questão de saber se a exploração dos recursos do Sara Ocidental é ou não feita em prejuízo da população local apenas diz respeito às autoridades marroquinas. Ora, pelos motivos expostos nos n.os 227 a 233, supra, esta tese não pode ser admitida.

247

Daqui resulta que o Conselho não respeitou a sua obrigação de analisar todos os elementos do caso vertente antes da adoção da decisão impugnada. Por conseguinte, importa dar provimento ao recurso e anular a decisão impugnada na parte em que aprova a aplicação do acordo nela visado ao Sara Ocidental.

248

Atendendo a esta conclusão, o Tribunal Geral não tem de se pronunciar sobre a admissibilidade das peças acima mencionadas no n.o 27, cuja tomada em consideração não é necessária no caso vertente.

Quanto às despesas

249

Nos termos do artigo 134.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal Geral, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Por outro lado, o artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo dispõe que as instituições que intervenham no processo devem suportar as respetivas despesas.

250

No caso vertente, o Conselho e a Comissão foram vencidos. Embora a Frente Polisário apenas tenha pedido a sua condenação nas despesas nas suas observações sobre o articulado de intervenção da Comissão (v. n.o 31, supra), importa observar que, segundo jurisprudência, as partes podem apresentar pedidos sobre as despesas posteriormente, inclusivamente na audiência, embora não o tenham feito na petição [v. acórdão de 14 de dezembro de 2006, Mast‑Jägermeister/IHMI — Licorera Zacapaneca (VENADO com quadro e o.), T‑81/03, T‑82/03 e T‑103/03, Colet.,EU:T:2006:397, n.o 116 e jurisprudência referida].

251

Por conseguinte, há que condenar o Conselho e a Comissão a suportar as suas próprias despesas, bem como as despesas efetuadas pela Frente Polisário.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção)

decide:

 

1)

A Decisão 2012/497/UE do Conselho, de 8 de março de 2012, relativa à celebração do Acordo sob forma de Troca de Cartas entre a União Europeia e o Reino de Marrocos respeitante às medidas de liberalização recíprocas em matéria de produtos agrícolas, de produtos agrícolas transformados, de peixe e de produtos da pesca, à substituição dos Protocolos n.os 1, 2 e 3 e seus anexos e às alterações do Acordo Euromediterrânico que cria uma Associação entre as Comunidades Europeias e os seus Estados‑Membros, por um lado, e o Reino de Marrocos, por outro, é anulada na parte em que aprova a aplicação do referido acordo ao Sara Ocidental.

 

2)

O Conselho da União Europeia e a Comissão Europeia suportarão as suas próprias despesas, bem como as despesas efetuadas pela Frente Popular para a Libertação de Saguia‑el‑hamra e Rio de Oro (Frente Polisário).

 

Gratsias

Kancheva

Wetter

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 10 de dezembro de 2015.

Assinaturas

Índice

 

Antecedentes do litígio

 

Quanto ao estatuto internacional do Sara Ocidental

 

Quanto à decisão impugnada e aos seus antecedentes

 

Tramitação processual e pedidos das partes

 

Quanto à admissibilidade

 

Quanto à capacidade para agir da Frente Polisário

 

Quanto à afetação direta e individual da Frente Polisário pela decisão impugnada

 

Quanto ao mérito

 

Quanto ao primeiro fundamento

 

Quanto ao segundo fundamento

 

Quanto aos outros fundamentos

 

Quanto à existência de uma proibição absoluta de celebração de um acordo que pode ser aplicado a um território disputado

 

— Quanto ao terceiro fundamento

 

— Quanto ao quarto fundamento

 

— Quanto ao quinto fundamento

 

— Quanto ao sexto fundamento

 

— Quanto ao sétimo fundamento

 

— Quanto ao oitavo fundamento

 

— Considerações preliminares relativas à aplicação do direito internacional

 

— Quanto ao nono fundamento

 

— Quanto ao décimo fundamento

 

— Quanto ao décimo primeiro fundamento

 

— Conclusão a respeito da existência de uma proibição absoluta de celebração de acordos internacionais aplicáveis num território disputado

 

Quanto ao poder de apreciação das instituições da União e quanto aos elementos que estas devem ter em conta

 

Quanto às despesas


( *1 ) Língua do processo: francês.

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