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Documento 62019CJ0176

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 27 de junho de 2024.
Comissão Europeia contra Servier SAS e o.
Recurso de decisão do Tribunal Geral — Concorrência — Produtos farmacêuticos — Mercado do perindopril — Artigo 101.° TFUE — Acordos, decisões e práticas concertadas — Repartição de mercado — Concorrência potencial — Restrição da concorrência por objetivo — Estratégia para atrasar a entrada de versões genéricas do perindopril no mercado — Transação em litígios em matéria de patentes — Acordo de licença de patente — Acordo de cessão e de licença de tecnologia» — Artigo 102.° TFUE — Mercado relevante — Abuso de posição dominante.
Processo C-176/19 P.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral — Parte «Informações sobre as decisões não publicadas»

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2024:549

Processo C‑176/19 P

Comissão Europeia

contra

Servier SAS e o.

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 27 de junho de 2024

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Concorrência — Produtos farmacêuticos — Mercado do perindopril — Artigo 101.o TFUE — Acordos, decisões e práticas concertadas — Repartição de mercado — Concorrência potencial — Restrição da concorrência por objetivo — Estratégia para atrasar a entrada de versões genéricas do perindopril no mercado — Transação em litígios em matéria de patentes — Acordo de licença de patente — Acordo de cessão e de licença de tecnologia» — Artigo 102.o TFUE — Mercado relevante — Abuso de posição dominante»

  1. Recurso de decisão do Tribunal Geral — Fundamentos — Apreciação errada dos factos e dos elementos de prova — Inadmissibilidade — Fiscalização pelo Tribunal de Justiça da apreciação dos factos e dos elementos de prova — Exclusão, salvo em caso de desvirtuação — Fiscalização pelo Tribunal de Justiça da qualificação jurídica dada aos factos do litígio — Admissibilidade

    (Artigo 256.o, n.o 1, TFUE; Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 58.o, primeiro parágrafo)

    (cf. n.os 69‑75)

  2. Recurso de decisão do Tribunal Geral — Fundamentos — Simples repetição dos fundamentos e argumentos submetidos ao Tribunal Geral — Inadmissibilidade — Contestação da interpretação ou da aplicação do direito da União feita pelo Tribunal Geral — Admissibilidade

    [Artigo 256.o TFUE; Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 58.o, primeiro parágrafo; Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, artigos 168.°, n.o 1, alínea d), e 169.°, n.o 2]

    (cf. n.os 77‑79)

  3. Acordos, decisões e práticas concertadas — Infração à concorrência — Critérios de apreciação — Qualificação de uma empresa de concorrente potencial — Possibilidades reais e concretas de entrar no mercado — Critérios — Determinação firme e capacidade própria da empresa para entrar no mercado relevante — Inexistência de barreira intransponível — Apreciação — Existência de patentes que protejam um medicamento original ou um dos seus processos de fabrico — Qualificação de um fabricante de medicamentos genéricos de concorrente potencial do fabricante original titular das patentes

    (Artigo 101.o TFUE)

    (cf. n.os 91, 92, 100‑103, 130‑135, 425, 427‑440)

  4. Acordos, decisões e práticas concertadas — Infração à concorrência — Transação em litígios em matéria de patentes e acordo de licença de patente — Transações celebradas entre um fabricante de medicamentos originais e um fabricante de medicamentos genéricos — Acordo que contém cláusulas de não contestação de patentes e de não comercialização de produtos pelo fabricante de genéricos em determinados mercados — Qualificação de restrição por objetivo — Critérios — Grau de nocividade das transações em relação à concorrência no mercado em causa — Apreciação à luz do conteúdo, da génese e do contexto jurídico e económico das transações em causa — Necessidade de examinar os efeitos do comportamento anticoncorrencial sobre a concorrência — Inexistência — Empresas envolvidas que agiram sem intenção de impedir, restringir ou falsear a concorrência — Circunstâncias não determinantes

    (Artigo 101.o, n.o 1, TFUE)

    (cf. n.os 93‑96, 104‑108, 174‑184, 196‑200, 223‑226, 236‑244)

  5. Acordos, decisões e práticas concertadas — Infração à concorrência — Critérios de apreciação — Objetivo anticoncorrencial — Acordos de repartição dos mercados — Infração por objetivo — Inexistência de repartição estanque de mercados — Falta de pertinência

    (Artigo 101.o, n.o 1, TFUE)

    (cf. n.os 97, 215‑219)

  6. Recurso de decisão do Tribunal Geral — Fundamentos — Crítica de fundamentos com influência sobre o dispositivo do acórdão impugnado — Fundamento operante

    (Artigo 256.o, n.o 1, TFUE; Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 58.o, primeiro parágrafo)

    (cf. n.os 111‑120)

  7. Recurso de decisão do Tribunal Geral — Fundamentos — Apreciação errada dos factos e dos elementos de prova — Inadmissibilidade — Fiscalização pelo Tribunal de Justiça da apreciação dos factos e dos elementos de prova — Exclusão, salvo em caso de desvirtuação — Fundamento relativo à desvirtuação dos elementos de prova — Leitura dos elementos de prova pelo Tribunal Geral manifestamente contrária à redação dos mesmos

    (Artigo 256.o, n.o 1, TFUE; Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 58.o, primeiro parágrafo)

    (cf. n.os 145‑154, 230‑232)

  8. Concorrência — Procedimento administrativo — Decisão da Comissão que declara a existência de uma infração — Meio de prova — Recurso a um conjunto de indícios — Grau de força probatória exigido tratando‑se dos indícios individualmente considerados — Admissibilidade da apreciação global de um conjunto de indícios — Situação em que a Comissão dispõe do conteúdo dos acordos anticoncorrenciais — Não incidência

    (Artigo 101.o, n.o 1, TFUE)

    (cf. n.os 271‑276)

  9. Acordos, decisões e práticas concertadas — Infração à concorrência — Critérios de apreciação — Distinção entre restrições por objetivo e por efeito — Restrição por objetivo — Grau suficiente de nocividade — Apreciação — Irrelevância dos efeitos pró‑concorrenciais em mercados não abrangidos pelo âmbito geográfico de infração

    (Artigo 101.o, n.o 1, TFUE)

    (cf. n.os 288‑290, 452, 453, 489)

  10. Acordos, decisões e práticas concertadas — Infração à concorrência — Critérios de apreciação — Distinção entre restrições por objetivo e por efeito — Restrição por efeito — Exame do funcionamento da concorrência na falta do acordo controvertido — Consideração da concorrência atual e potencial — Transação em litígios em matéria de patentes celebrado entre um laboratório de medicamentos originais e uma empresa de medicamentos genéricos — Dever de a Comissão demonstrar a situação concorrencial possível nos mercados do produto em causa sem a transação — Elaboração de um cenário contrafactual realista e credível — Necessidade de um ponto de referência temporal idêntico para a situação observada e o cenário contrafactual — Cenário contrafactual que não pode assentar em factos posteriores à data de celebração da transação — Cenário contrafactual que deve estabelecer as possibilidade realistas de comportamento da empresa de medicamentos genéricos

    (Artigo 101.o, n.o 1, TFUE)

    (cf. n.os 338‑356, 482‑486)

  11. Posição dominante — Mercado em questão — Delimitação — Critérios — Produtos farmacêuticos — Permutabilidade — Critérios de apreciação — Elasticidade da procura do produto farmacêutico em relação às alterações dos preços de outros produtos destinados à mesma indicação terapêutica

    (Artigo 102.o TFUE)

    (cf. n.os 381‑390)

  12. Recurso de decisão do Tribunal Geral — Recurso julgado procedente — Resolução do litígio quanto ao mérito pelo órgão jurisdicional de recurso — Requisito — Litígio em estado de ser julgado — Inexistência — Remessa do processo ao Tribunal Geral — Obrigação de remeter o processo a um tribunal constituído de forma distinta — Inexistência

    (Artigo 256.o, n.o 1, TFUE; Estatuto do Tribunal de Justiça, artigo 58.o, primeiro parágrafo; Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, artigos 216.°, n.o 1)

    (cf. n.o 417)

  13. Acordos, decisões e práticas concertadas — Infração à concorrência — Transação em litígios em matéria de patentes e acordo de licença de patente — Transações celebradas entre um fabricante de medicamentos originais e um fabricante de medicamentos genéricos — Acordo que contém cláusulas de não contestação de patentes e de não comercialização de produtos pelo fabricante de genéricos em determinados mercados — Contrapartida que consiste em conceder uma licença que autoriza o fabricante de genéricos a comercializar o medicamento em causa nos seus mercados principais — Qualificação de acordos de repartição do mercado que restringem a concorrência por objetivo — Critérios — Efeito incentivador da concessão da licença ao fabricante de genéricos sobre a sua renúncia a comercializar o seu produto nos mercados reservados ao fabricante dos medicamentos originais.

    (Artigo 101.o, n.o 1, TFUE)

    (cf. n.os 447‑473)

Resumo

O Tribunal de Justiça dá provimento aos recursos interpostos pela Comissão Europeia de dois acórdãos do Tribunal Geral ( 1 ) que anulam parcialmente a decisão pela qual a Comissão declarou a existência de cartéis e de um abuso de posição dominante no mercado do produto farmacêutico perindopril e aplicou coimas aos fabricantes de medicamentos envolvidos ( 2 ). Deste modo, o Tribunal de Justiça define a linha de demarcação entre, por um lado, as diligências legítimas dos fabricantes de medicamentos que consistem em resolver por transação verdadeiros litígios em matéria de patentes no setor farmacêutico e, por outro, os acordos que repartem de modo ilegal o mercado de um produto farmacêutico a coberto de transações em litígios em matéria de patentes.

O grupo farmacêutico Servier, cuja sociedade‑mãe, Servier SAS, tem sede em França (a seguir, individualmente ou em conjunto, «Servier»), desenvolveu o perindopril, medicamento pertencente à classe dos inibidores da enzima de conversão, indicado na medicina cardiovascular e principalmente destinado a combater a hipertensão e a insuficiência cardíaca. A patente relativa à molécula do perindopril, depositada no Instituto Europeu de Patentes (IEP) em 1981, expirou durante os anos 2000.

O ingrediente farmacêutico ativo do perindopril apresenta‑se sob a forma de sal, a erbumina. Em 1988, a Servier apresentou no IEP várias patentes relativas aos processos de fabrico do referido princípio ativo que expiravam em 16 de setembro de 2008.

Uma nova patente relativa ao perindopril e ao seu processo de fabrico foi depositada no IEP pela Servier em 2001 e concedida em 2004 (a seguir «patente 947»). Além disso, a Servier obteve patentes nacionais correspondentes à patente 947 em vários Estados‑Membros antes de estes serem partes na Convenção relativa à concessão de patentes europeias.

A partir de 2003, vários litígios opuseram a Servier a fabricantes de medicamentos genéricos que se preparavam para comercializar uma versão genérica do perindopril. Neste contexto, dez fabricantes de genéricos deduziram oposição contra a patente 947 no IEP, cuja Câmara de Recurso Técnica revogou a patente contestada em maio de 2009. Vários fabricantes de medicamentos genéricos contestaram também a validade da patente 947 em certos órgãos jurisdicionais nacionais. Por seu turno, a Servier intentou ações por contrafação, bem como pedidos de medidas inibitórias provisórias contra os fabricantes de medicamentos genéricos em causa, de entre os quais a sociedade eslovena KRKA, tovarna zdravil, d.d. (a seguir «Krka»).

Para pôr termo aos referidos litígios, a Servier celebrou, entre 2005 e 2007, transações com vários fabricantes de genéricos. Assim, a Servier celebrou com a Krka: uma transação relativa à patente 947 e às patentes nacionais equivalentes; um acordo de licença; e um acordo de cessão e de licença (a seguir «acordos Krka»). Estes acordos abrangiam todos os Estados que eram membros da União Europeia à data dos factos, bem como os não membros da União que constituíam os principais mercados da Krka.

Segundo a Comissão, a Servier e a Krka concluíram estes acordos com o objetivo ilegal de repartir o território dos países abrangidos em duas esferas de influência, cada uma integrando os seus mercados principais, no interior das quais podiam exercer as suas atividades com a segurança, no caso da Servier, de não sofrer, por parte da Krka, pressões concorrenciais que excedessem os limites resultantes destes acordos e, no caso da Krka, de não correr o risco de processos contrafação pela Servier.

Por decisão de 9 de julho de 2014 ( 3 ), a Comissão declarou que os acordos concluídos entre a Servier e a Krka e os outros fabricantes de genéricos constituíam restrições da concorrência proibidas pelo artigo 101.o TFUE. Além disso, considerou que a Servier tinha violado o artigo 102.o TFUE ao elaborar e ao aplicar uma estratégia de exclusão que abrangia o mercado do perindopril e da tecnologia relativa ao princípio ativo deste medicamento, em França, nos Países Baixos, na Polónia e no Reino Unido.

Assim, a Comissão aplicou à Servier coimas no montante total de 289727200 euros pelas infrações ao artigo 101.o TFUE, incluindo 37661800 euros pela sua participação nos acordos Krka, bem como uma coima de 41270000 euros pela infração ao artigo 102.o TFUE. Por seu turno, foi aplicada à Krka uma coima de dez milhões de euros pela infração ao artigo 101.o TFUE.

Chamado a conhecer dos recursos interpostos pela Servier e pela Krka, o Tribunal Geral constatou que a Comissão cometeu erros de direito ao qualificar os acordos Krka de infração na aceção do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, sem ter demonstrado a existência de uma restrição da concorrência por objetivo ou por efeito. No que respeita à infração ao artigo 102.o TFUE imputada à Servier, o Tribunal Geral considerou que a definição do mercado do perindopril adotada pela Comissão estava ferida de erros de apreciação suscetíveis de viciar as suas constatações relativas à posição dominante da Servier no mercado relevante.

Consequentemente, por dois Acórdãos proferidos em 12 de dezembro de 2018 ( 4 ), o Tribunal Geral anulou a decisão controvertida na parte em que declarou uma infração ao artigo 101.o TFUE relativamente aos acordos Krka e uma infração ao artigo 102.o TFUE, assim como as coimas aplicadas respetivamente à Servier e à Krka por essas infrações.

A Comissão interpôs dois recursos desses acórdãos do Tribunal Geral no Tribunal de Justiça.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Quanto à infração ao artigo 101.o TFUE

A. Existência de uma concorrência potencial entre a Servier e a Krka

O Tribunal de Justiça examina, em primeiro lugar, as alegações da Comissão relativas aos erros de interpretação e de aplicação do conceito de concorrência potencial cometidos pelo Tribunal Geral.

A título preliminar, o Tribunal de Justiça salienta que, para efeitos do exame, à luz do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, de práticas colusórias sob a forma de acordos de cooperação horizontal entre empresas, como os acordos Krka, há que determinar, numa primeira fase, se essas práticas podem ser qualificadas de restrição da concorrência por empresas que se encontram numa situação de concorrência, ainda que potencial. Se for este o caso, há que verificar, numa segunda fase, se, tendo em conta as suas características económicas, as referidas práticas são abrangidas pela qualificação de restrição da concorrência por objetivo. Quando o objetivo anticoncorrencial das referidas práticas não estiver provado, há que examinar os seus efeitos.

Feita esta precisão, o Tribunal de Justiça declara procedentes as alegações relativas a erros de interpretação e de aplicação do conceito de concorrência potencial, examinados vários considerandos da decisão controvertida relativos à questão da concorrência potencial entre a Krka e a Servier, bem como certas alegações apresentadas a este respeito por esta última.

Quanto ao mérito, o Tribunal de Justiça constata que, ao declarar que existiam, no momento da celebração das transações e dos acordos de licença Krka, indícios concordantes que podiam levar a Servier e a Krka a pensar que a patente 947 era válida, o Tribunal Geral deduziu destes indícios que a concorrência entre estas empresas nos mercados nacionais no interior da União estava agora excluída e que, portanto, já não existia concorrência potencial entre elas.

Ora, para chegar a esta conclusão quanto à inexistência de uma concorrência potencial, o Tribunal Geral devia ter verificado se a Comissão demonstrou a existência, à data da celebração dos acordos Krka, de possibilidades reais e concretas de a Krka entrar no mercado relevante e fazer concorrência com a Servier, tendo em conta diligências preparatórias suficientes e a inexistência de obstáculos de caráter intransponível a esta entrada.

Não obstante, em vez de proceder às verificações necessárias relativas a este ponto, o Tribunal Geral limitou‑se a afirmar que a Servier e a Krka estavam convencidas de que a patente 947 era válida e que o comportamento da Krka que consistia em manter a pressão concorrencial sobre a Servier se podia explicar pela sua vontade de reforçar a sua posição nas eventuais negociações com vista a uma transação acompanhada de um acordo de licença. Ao fazê‑lo, o Tribunal Geral errou quanto à relevância jurídica da situação das patentes nos mercados em causa, bem como das intenções subjetivas das partes. Além disso, não fundamentou a sua constatação implícita de que a Servier e a Krka já não eram concorrentes potenciais, apesar dos elementos da decisão controvertida se destinarem demonstrar o contrário.

Além disso, o Tribunal de Justiça sublinha que, no seu exame do contexto em que as transações e os acordos de licença Krka foram celebrados, o Tribunal Geral não só desvirtuou os termos claros e precisos de uma decisão de um órgão jurisdicional britânico relativa a um pedido reconvencional de anulação da patente 947 apresentado pela Krka, mas também desvirtuou o sentido e o alcance da decisão controvertida no que respeita aos efeitos de uma decisão da Divisão de Oposição do IEP, que validou esta patente.

Assim, o Tribunal de Justiça dá provimento às alegações da Comissão relativas a erros de interpretação e de aplicação do conceito de concorrência potencial cometidos pelo Tribunal Geral.

B. Qualificação dos acordos Krka de restrições da concorrência por objetivo

Em segundo lugar, o Tribunal de Justiça constata que o Tribunal Geral cometeu erros de direito ao concluir pela inexistência de uma restrição da concorrência por objetivo.

Nos acórdãos impugnados, o Tribunal Geral considerou que, perante um verdadeiro litígio relativo a uma patente, uma transação nesse litígio que inclua cláusulas restritivas da concorrência, associada a um acordo de licença relativo a essa patente, só pode ser qualificada de restrição da concorrência por objetivo se a Comissão puder demonstrar que esse acordo de licença não constitui uma transação celebrada em condições normais de mercado e oculta, assim, um pagamento compensatório.

Todavia, segundo o Tribunal de Justiça, este raciocínio abstrai da própria natureza das transações em causa, que não consistem numa simples transação num litígio de patente contra pagamento compensatório, mas sim num acordo de repartição de mercado em duas zonas, uma das quais, além disso, não abrangida pelo âmbito de infração ao artigo 101.o TFUE.

Este erro de direito levou o Tribunal Geral a verificar a qualificação da prática ilícita imputada à Servier e à Krka como restrição da concorrência por objetivo ao analisar a forma e as características jurídicas dos acordos destinados a aplicar essa prática, quando lhe cabia apreciar o grau de nocividade económica dos referidos acordos, procedendo a uma análise detalhada das suas características, bem como dos seus objetivos e do contexto económico e jurídico em que se insere.

Por outro lado, ao considerar que, uma vez que as transações e os acordos Krka não reservaram uma parte do mercado à Krka, não se pode concluir pela existência de uma repartição de mercados, o Tribunal Geral cometeu ainda um erro de interpretação do artigo 101.o, n.o 1, alínea c), TFUE, uma vez que a proibição dos acordos de repartição de mercados prevista nesta disposição não se limita aos acordos que instauram uma repartição «estanque» dos mercados.

Além disso, o Tribunal Geral cometeu outro erro de direito ao formular, no seu raciocínio relativo à inexistência de restrição da concorrência por objetivo, considerações relativas ao caráter alegadamente hipotético dos efeitos potenciais dos acordos em causa, quando não há que verificar nem, a fortiori, que demonstrar os efeitos na concorrência de práticas qualificadas de restrições da concorrência por objetivo, incluindo no âmbito da eventual questão de saber se o comportamento em causa apresenta o grau de lesão exigido para efeitos dessa qualificação.

De igual modo, ao acusar a Comissão de não ter demonstrado, em substância, que a Servier ou a Krka tinham a intenção de restringir a concorrência entre elas, apesar de não ser necessária tal demonstração para prova da existência de uma restrição da concorrência por objetivo, o Tribunal Geral cometeu também um erro de direito.

Além disso, o Tribunal Geral violou o princípio da livre administração da prova ao considerar que existe uma distinção jurídica, no que respeita à consideração de elementos fragmentados e dispersos para demonstrar a existência de uma infração, entre as situações em que a Comissão dispõe, como no caso em apreço, e em que não dispõe do conteúdo de acordos anticoncorrenciais. Em seguida, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito adicional ao declarar que as deduções resultantes de extratos parciais de cartas ou de outros documentos que devem demonstrar as intenções das partes não podem facilmente pôr em causa uma conclusão baseada no próprio conteúdo dos acordos.

Por último, o Tribunal de Justiça recorda que a possibilidade de uma licença de patente produzir, em certos mercados geográficos, efeitos pró‑concorrenciais é totalmente irrelevante para apreciar se deve ser qualificada de restrição da concorrência por objetivo, ao abrigo do artigo 101.o, n.o 1, TFUE. Tendo em conta os efeitos positivos do acordo de licença Krka nos mercados principais da Krka, o Tribunal Geral cometeu, portanto, um erro de interpretação e de aplicação do artigo 101.o, n.o 1, TFUE, tanto mais que os mercados principais da Krka não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação geográfica da infração ao artigo 101.o TFUE.

Tendo em conta os erros acima referidos, o Tribunal de Justiça conclui que o raciocínio do Tribunal Geral relativo à inexistência de restrição da concorrência por objetivo induzida pelos acordos Krka está, no seu conjunto, ferido de ilegalidade.

C. Qualificação dos acordos Krka de restrições da concorrência por efeito

Em terceiro lugar, o Tribunal de Justiça censura a conclusão do Tribunal Geral segundo a qual a Comissão não tinha demonstrado que os acordos Krka tinha tido por efeito restringir a concorrência, uma vez que essa instituição não conseguiu provar que, sem os acordos controvertidos, a Krka teria provavelmente entrado nos mercados principais da Servier.

A este respeito, o Tribunal de Justiça recorda que, para apreciar a existência de efeitos anticoncorrenciais causados por um acordo entre empresas, há que comparar a situação concorrencial resultante desse acordo com a que existiria na sua ausência. Este método, dito «contrafactual», implica a necessidade de tomar em consideração o quadro concreto em que este acordo se insere. Assim, o cenário contrafactual, considerado previsto a partir da inexistência do referido acordo, deve ser realista e credível.

Tendo em conta este esclarecimento, o Tribunal de Justiça declara que o Tribunal Geral ignorou, sob três aspetos principais, as características do método contrafactual para efeitos da aplicação do artigo 101.o TFUE.

Primeiro, o Tribunal Geral declarou que a apreciação dos efeitos anticoncorrenciais da transação Krka assentava numa abordagem hipotética e num exame incompleto destes efeitos, uma vez que a Comissão não tinha integrado no cenário contrafactual o desenrolar real dos acontecimentos posteriores a este acordo. Ora, este raciocício do Tribunal Geral abstrai do facto de que o cenário contrafactual que, por definição, é hipotético, no sentido de que não se concretizou, não pode assentar em elementos posteriores à celebração do referido acordo.

Segundo, o Tribunal Geral cometeu um erro ao considerar que a jurisprudência no sentido de que um acordo entre empresas pode ser qualificado de restrição da concorrência por efeito devido aos seus efeitos potenciais deixa de ser aplicável quando esse acordo tiver sido posto em prática, pelo facto de os efeitos reais do referido acordo na concorrência podem ser observados. Com efeito, quando, tal como no caso em apreço, um acordo não conduz à alteração, mas, pelo contrário, à manutenção do número ou do comportamento de empresas concorrentes já presentes num mercado, uma simples comparação entre as situações verificadas no referido mercado antes e depois da execução do acordo é insuficiente para permitir concluir pela inexistência de efeito anticoncorrencial, uma vez que o efeito anticoncorrencial está ligado ao desaparecimento garantido, devido a esse acordo, de uma fonte de concorrência que, no momento da celebração desse acordo, continua a ser potencial.

Terceiro, resulta da jurisprudência que, quando estabelece o cenário contrafactual com vista a examinar uma transação em litígios em matéria de patentes que opõe um fabricante de medicamentos originais a um fabricante de medicamentos genéricos, a Comissão não está obrigada a efetuar uma conclusão definitiva relativamente às possibilidades de sucesso do fabricante de medicamentos genéricos no litígio relativo à patente ou à probabilidade da celebração de um acordo menos restritivo. Daqui resulta que o Tribunal Geral cometeu um erro de interpretação e de aplicação do artigo 101.o, n.o 1, TFUE ao considerar que a Comissão não provou que, sem a transação, a Krka teria provavelmente entrado nos mercados em causa e que a prossecução dos processos contenciosos que contestavam validade da patente 947 teria permitido, de forma provável e até plausível, uma invalidação mais rápida ou mais completa desta patente.

O Tribunal de Justiça conclui que os erros de direito assim identificados ferem de ilegalidade a totalidade do raciocínio do Tribunal Geral que rejeita a qualificação de restrição da concorrência por efeito dos acordos Krka.

Quanto à infração ao artigo 102.o TFUE

Em quarto lugar, o Tribunal de Justiça exclui a conclusão do Tribunal Geral segundo a qual a definição do mercado do produto relevante adotada pela Comissão para efeitos do seu exame da existência de um abuso de posição dominante pela Servier está ferida de erros suscetíveis de viciar este exame. A este respeito, o Tribunal Geral critica, nomeadamente, a Comissão de ter restringido erradamente o mercado relevante apenas ao perindopril, com exclusão dos outros medicamentos pertencentes à classe dos inibidores da enzima de conversão (a seguir «medicamentos IEC»).

Quanto a este ponto, o Tribunal de Justiça recorda que a determinação do mercado relevante, prévia à apreciação de uma eventual posição dominante na aceção do artigo 102.o TFUE, pressupõe que se defina, em primeiro lugar, o mercado do produto e, em segundo lugar, o seu mercado geográfico.

Além disso, resulta da jurisprudência que o conceito de mercado relevante implica um grau suficiente de permutabilidade entre os produtos ou os serviços que façam parte. No que respeita, mais especificamente, à análise da substituibilidade económica entre medicamentos, esta deve ser apreciada à luz das transferências das vendas entre medicamentos destinadas a uma mesma indicação terapêutica, induzidas pelas alterações dos preços relativos desses medicamentos. A constatação da inexistência de tal substituibilidade revela a existência de um mercado distinto, independentemente das suas causas.

Ora, tendo a Comissão concluído pela falta de permutabilidade entre o perindopril e os outros medicamentos IEC, atendendo à constatação, não refutada pela Servier, da relativa elasticidade da procura de perindopril face à forte diminuição dos preços dos outros medicamentos IEC nos mercados em causa, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao censurar a Comissão por ter limitado o mercado relevante apenas ao perindopril.

Uma vez que o Tribunal Geral tinha em seguida considerado que a conclusão da Comissão quanto à existência de uma posição dominante da Servier no mercado da tecnologia relativa ao princípio ativo do perindopril se baseava na restrição culposa do mercado relevante, o Tribunal de Justiça constata que estas apreciações do Tribunal Geral assentam numa premissa errada e estão, por isso, também feridas de ilegalidade.

Visto que os fundamentos da Comissão relativos aos erros acima referidos foram julgados procedentes, o Tribunal de Justiça anula parcialmente os acórdãos recorridos.

Quanto aos recursos de anulação interpostos pela Servier e pela Krka

O Tribunal de Justiça considera, em quinto lugar, que o processo pode ser julgado no que respeita aos fundamentos invocados pela Servier e pela Krka no Tribunal Geral, com vista a contestar a qualificação, na decisão controvertida, das transações e acordos de licença Krka como restrição da concorrência por objetivo, bem como a qualificação da transação e do acordo de cessão e de licença Krka como restrição da concorrência por efeito.

No que respeita, por um lado, à qualificação das transações e acordos de licença Krka como restrição de concorrência por objetivo, o Tribunal de Justiça verifica, num primeiro momento, se a Comissão podia validamente qualificar estes acordos de restrição da concorrência potencial exercida pela Krka sobre a Servier. Para este efeito, examina se existiam, à data da celebração dos referidos acordos, possibilidades reais e concretas de a Krka entrar no mercado do perindopril e fazer concorrência à Servier.

A este respeito, o Tribunal de Justiça sublinha que a existência de uma patente que protege o processo de fabrico de um princípio ativo caído no domínio público não pode, enquanto tal, ser considerada um obstáculo intransponível à entrada no mercado de medicamentos genéricos à base desse princípio ativo. Daqui resulta que a existência de tal patente não impede que se qualifique de concorrente potencial do fabricante do medicamento original em causa um fabricante de medicamentos genéricos que tem efetivamente a firme determinação e capacidade própria para entrar no mercado e que, com as suas diligências, se mostra pronto a contestar a validade dessa patente e a assumir o risco de, no momento da sua entrada no mercado, ser confrontado com uma ação por contrafação intentada pelo titular dessa patente.

No que respeita à determinação firme da Krka em prosseguir os seus esforços com vista à comercialização do seu perindopril, apesar das derrotas judiciais sofridas em 2006 nos litígios em matéria de patentes que a opunham à Servier, o Tribunal de Justiça refere que resulta dos elementos de prova referidos pela Comissão na decisão controvertida que a Krka não tinha cessado os seus esforços para entrar nos mercados principais da Servier.

Por outro lado, o facto de a Krka negociar com a Servier com o objetivo de celebrar as transações e acordos de licença Krka também não basta para demonstrar que a Krka já não tinha a firme determinação de fazer concorrência à Servier.

Tendo em conta o que precede, o Tribunal de Justiça conclui que a Krka era um concorrente potencial da Servier à data da celebração das transações e acordos de licença Krka.

O Tribunal de Justiça verifica, num segundo momento, se a Comissão considerou erradamente que as transações e acordos de licença Krka tinham por objetivo repartir os mercados do perindopril.

A este respeito, o Tribunal de Justiça sublinha que o facto de as transações em litígio em matéria de patentes, bem como os acordos de licença associados a tais acordos, poderem ser celebrados com um objetivo suscetível de ser legítimo não os pode isentar da aplicação do artigo 101.o TFUE, se se verificar que os referidos acordos visam restringir a concorrência. No caso em apreço, resulta, além disso, claramente dos termos das transações e acordos de licença Krka e das circunstâncias que rodeiam a sua celebração de que estão ligados no plano económico e não podem ser examinados separadamente.

Ora, o efeito conjugado do acordo de licença Krka, pelo qual a Servier renunciou a opor‑se à comercialização pela Krka de uma versão genérica do perindopril nos mercados principais desta última, e a transação, que prevê uma obrigação de não contrafação pela Krka nos mercados principais da Servier, equivale, de um ponto de vista económico, a um quid pro quo que permite à Servier e à Krka manterem, cada nos seus respetivos mercados principais, uma posição mais favorável. Esse conjunto de acordos implica, em princípio, uma repartição desses mercados e, portanto, uma restrição da concorrência por objetivo, que não pode ser relativizada nem compensada por eventuais efeitos positivos ou pró‑concorrenciais seja em que mercado for.

Tendo em conta estes elementos, o Tribunal de Justiça declara que as provas apresentadas na decisão controvertida demonstram a existência da prática que tinha por finalidade a Servier e a Krka repartirem o mercado do perindopril através das transações e acordos de licença Krka e bastam para justificar a qualificação dessa prática como restrição da concorrência por objetivo.

No que respeita, por outro lado, à qualificação da transação e do acordo de cessão e de licença Krka como restrição da concorrência por efeito, o Tribunal de Justiça recorda que incumbia à Comissão comparar a situação concorrencial resultante destes acordos com a situação concorrencial resultante de um cenário contrafactual realista e credível. Ora, na medida em que, no caso em apreço, a restrição da concorrência em causa dizia respeito à eliminação da fonte de concorrência potencial exercida pela Krka sobre a Servier, a análise do cenário contrafactual correspondia, em substância, à da existência desta concorrência potencial.

À luz destes esclarecimentos, o Tribunal de Justiça constata que a Comissão podia validamente considerar que a Krka representava uma das ameaças mais imediatas para a Servier, devido ao facto de dispor de possibilidades reais e concretas de entrar nos mercados em França, nos Países Baixos e no Reino Unido. Sem os acordos Krka, essa possibilidade de entrada por parte da Krka, através do seu perindopril, não teria sido eliminada. Consequentemente, a Comissão demonstrou que a eliminação, graças à execução dos referidos acordos, desta fonte de concorrência potencial tinha por efeito restringir a concorrência de forma sensível. Este efeito, que não é hipotético nem potencial, mas bem real, é suscetível de justificar a qualificação de restrição da concorrência por efeito adotada na decisão controvertida.

Após tais decisões sobre determinados fundamentos invocados pela Servier e pela Krka no Tribunal Geral, o Tribunal de Justiça constata que o litígio não está, todavia, em condições de ser julgado no seu todo. Por conseguinte, remete o processo ao Tribunal Geral para que este se pronuncie sobre a questão da qualificação do acordo de cessão e de licença Krka de restrição da concorrência por objetivo, bem como, no processo Comissão/Servier e o. (C‑176/19 P), sobre os restantes fundamentos relativos à infração ao artigo 102.o TFUE e sobre os fundamentos subsidiários que visam contestar o montante da coima.


( 1 ) Acórdãos de 12 de dezembro de 2018, Servier e o./Comissão (T‑691/14, EU:T:2018:922) e Krka/Comissão (T‑684/14, EU:T:2018:918) (a seguir, em conjunto, «acórdãos impugnados»).

( 2 ) Decisão C(2014) 4955 final da Comissão, de 9 de julho de 2014, relativa a um processo nos termos dos artigos 101.° e 102.° [TFUE] [Processo AT.39612 Perindopril (Servier)] (a seguir «decisão controvertida»).

( 3 ) V. nota de rodapé 2.

( 4 ) V. nota de rodapé 1.

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