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Document 62023CJ0265

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Sexta Secção) de 11 de julho de 2024.
    Process penal contra DM e o.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Okrazhen sad - Sliven.
    Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Luta contra a criminalidade organizada — Decisão‑quadro 2008/841/JAI — Direito à ação e a um tribunal imparcial — Artigos 47.o e 52.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Duração excessiva da fase preliminar do processo penal — Violações substanciais embora sanáveis das regras processuais de que a acusação enferma — Direito de o arguido pôr termo à ação penal que lhe foi instaurada.
    Processo C-265/23.

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2024:602

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)

    11 de julho de 2024 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Luta contra a criminalidade organizada — Decisão‑quadro 2008/841/JAI — Direito à ação e a um tribunal imparcial — Artigos 47.o e 52.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Duração excessiva da fase preliminar do processo penal — Violações substanciais embora sanáveis das regras processuais de que a acusação enferma — Direito de o arguido pôr termo à ação penal que lhe foi instaurada»

    No processo C‑265/23 [Volieva] ( i ),

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Okrazhen sad — Sliven (Tribunal Regional de Sliven, Bulgária), por decisão de 12 de abril de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 25 de abril de 2023, no processo penal contra

    DM,

    AV,

    WO,

    AQ,

    sendo interveniente:

    Okrazhna prokuratura — Sliven,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

    composto por: T. von Danwitz, presidente de secção, L. Bay Larsen (relator), vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Sexta Secção, e P. G. Xuereb, juiz,

    advogado‑geral: P. Pikamäe,

    secretário: A. Calot Escobar,

    vistos os autos,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação de DM, por KS e ZY,

    em representação da Comissão Europeia, por M. Wasmeier e I. Zaloguin, na qualidade de agentes,

    vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841/JAI do Conselho, de 24 de outubro de 2008, relativa à luta contra a criminalidade organizada (JO 2008, L 300, p. 42), lido em conjugação com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE e com os artigos 47.o e 52.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra DM e outras pessoas singulares, por associação criminosa e corrupção.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    Decisão‑Quadro 2008/841

    3

    O artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841, sob a epígrafe «Circunstâncias especiais», dispõe:

    «Cada Estado‑Membro pode tomar as medidas necessárias para garantir que as penas previstas no artigo 3.o possam ser reduzidas ou que o autor da infração possa beneficiar de uma isenção de pena caso, nomeadamente:

    a)

    Renuncie às atividades criminosas; e

    b)

    Forneça às autoridades administrativas ou judiciárias informações que essas autoridades não teriam podido obter de outro modo e que as ajudem a:

    i)

    prevenir, fazer cessar ou limitar os efeitos da infração,

    ii)

    identificar ou levar a julgamento os demais autores da infração,

    iii)

    encontrar provas,

    iv)

    privar a organização criminosa de recursos ilícitos ou do produto das suas atividades criminosas, ou

    v)

    impedir a prática de outras infrações a que se refere no artigo 2.o»

    Direito búlgaro

    4

    Na sua versão em vigor de 29 de abril de 2006 a 28 de maio de 2010, o artigo 334.o do Nakazatelno protsesualen kodeks (Código de Processo Penal, a seguir «NPK»), sob a epígrafe «Poderes do tribunal de recurso», previa, no seu n.o 4, que o tribunal de recurso podia anular o veredicto e arquivar o processo penal, nomeadamente quando o órgão jurisdicional de primeira instância não tivesse exercido os poderes que lhe eram conferidos pelo artigo 369.o, n.o 4, do NPK.

    5

    Na sua versão em vigor de 29 de abril de 2006 a 28 de maio de 2010, o artigo 368.o do NPK, sob a epígrafe «Pedido do arguido ao tribunal», tinha a seguinte redação:

    «1)

    Se tiverem decorrido mais de dois anos desde a constituição de arguido por uma infração penal grave no âmbito do processo de instrução e mais de um ano nos outros casos, o arguido pode pedir que o processo seja apreciado pelo tribunal.

    2)

    Nos casos a que se refere o n.o 1, o arguido apresenta um pedido ao tribunal de primeira instância competente, que deverá avocar imediatamente o processo.»

    6

    Na sua versão em vigor de 29 de abril de 2006 a 28 de maio de 2010, o artigo 369.o do NPK, sob a epígrafe «Exame do processo», dispunha:

    «1)

    O tribunal decide do pedido em formação singular no prazo de sete dias e, se considerar que estão preenchidas as condições referidas no artigo 368.o, n.o 1, remete o processo ao procurador do Ministério Público, dando‑lhe a possibilidade de o submeter ao tribunal para apreciação no prazo de dois meses mediante a apresentação de uma acusação ou de uma proposta no sentido de isentar o autor da infração da responsabilidade penal e de lhe ser aplicada uma sanção administrativa ou um acordo de negociação de pena, ou de pôr termo ao processo penal e de informar desse facto o tribunal.

    2)

    Se, no prazo de dois meses, o procurador do Ministério Público não tiver exercido os poderes que lhe são conferidos no n.o 1 ou se o tribunal não tiver homologado o acordo de negociação de pena, o tribunal conhece do processo em formação singular e extingue o processo penal por despacho proferido à porta fechada. Após a prolação do despacho, o processo penal prossegue contra os coautores e no respeitante às outras infrações imputadas ao arguido.

    3)

    Se o procurador do Ministério Público tiver exercido os seus poderes nos termos do n.o 1, mas tiverem sido cometidas violações substanciais das regras processuais no processo de instrução, o tribunal, decidindo em formação singular à porta fechada, extingue o processo e remete o processo ao procurador do Ministério Público para que este sane as violações e o processo seja submetido ao tribunal no prazo de um mês.

    4)

    Se o procurador do Ministério Público não submeter o processo ao tribunal no prazo referido no n.o 3, se a violação substancial dos requisitos processuais não tiver sido sanada ou se forem cometidas novas violações, o tribunal, decidindo em formação singular à porta fechada, põe termo ao processo penal por despacho.

    5)

    Os atos do tribunal referidos nos n.os 2 e 4 são definitivos.»

    7

    A partir de 28 de maio de 2010, o legislador búlgaro suprimiu, no artigo 334.o, n.o 4, do NPK, a possibilidade de o tribunal de recurso anular o veredicto e pôr termo ao processo penal se o tribunal de primeira instância não tiver exercido os poderes que lhe confere o artigo 369.o, n.o 4, desse código. O legislador nacional revogou também as disposições do capítulo 26 do referido código, a saber, os seus artigos 368.o e 369.o, precisando que os processos já pendentes seriam levados até ao fim da forma prevista anteriormente.

    8

    Na sua versão em vigor de 13 de agosto de 2013 a 5 de novembro de 2017, o artigo 334.o, n.o 4, do NPK previa novamente, tal como na sua versão em vigor de 29 de abril de 2006 a 28 de maio de 2010, que o tribunal de recurso podia anular o veredicto e pôr termo ao processo penal, nomeadamente quando o tribunal de primeira instância não tivesse exercido os poderes que lhe eram conferidos pelo artigo 369.o, n.o 4, do NPK.

    9

    Na sua versão em vigor de 13 de agosto de 2013 a 5 de novembro de 2017, o NPK incluía também um capítulo 26 no qual figuravam os artigos 368.o e 369.o desse código. O primeiro artigo estava redigido nos mesmos termos que na versão do referido código em vigor de 29 de abril de 2006 a 28 de maio de 2010. O mesmo acontecia com o artigo 369.o do mesmo código, tendo apenas sido alargado para três meses, em vez de dois, o prazo fixado no n.o 1 deste último artigo.

    10

    Na sua versão em vigor a partir de 5 de novembro de 2017, o artigo 334.o, n.o 4, do NPK deixou de prever que o tribunal de recurso pode anular a sentença e pôr termo ao processo penal se, no tribunal de primeira instância, as violações substanciais das regras processuais não tiverem sido sanadas ou se forem cometidas novas violações.

    11

    Na sua versão em vigor a partir de 5 de novembro de 2017, o artigo 368.o do NPK, sob a epígrafe «Aceleração do processo de instrução», tem a seguinte redação:

    «1)

    Se tiverem decorrido mais de dois anos desde a constituição de arguido por uma infração penal grave no âmbito do processo de instrução e mais de seis meses nos outros casos, o arguido, a vítima e a pessoa coletiva lesada podem requerer que a instrução do processo seja acelerada. Esses prazos não incluem o período em que o processo esteve pendente no tribunal ou suspenso nos termos do artigo 25.o

    2)

    O pedido a que se refere o n.o 1 deve ser apresentado por intermédio do procurador do Ministério Público, que deve transmitir imediatamente o processo ao tribunal.

    3)

    O tribunal decide em formação singular à porta fechada no prazo de 15 dias.»

    12

    Na sua versão em vigor a partir de 5 de novembro de 2017, o artigo 369.o do NPK, sob a epígrafe «Decisão do tribunal — Medidas de aceleração do processo penal», dispõe:

    «1)

    O tribunal pronuncia‑se analisando a complexidade factual e jurídica do processo, a eventual existência de atrasos na execução das ações de recolha, verificação e avaliação das provas e dos meios de prova, bem como as razões desses atrasos.

    2)

    Se concluir por um atraso injustificado, o tribunal fixará um prazo adequado para a prática dos atos. O despacho é definitivo.

    3)

    Podem ser apresentados novos requerimentos de aceleração após o termo do prazo referido no n.o 2.»

    13

    Nesta mesma versão do NPK, estes dois últimos artigos continuam a ser abrangidos pelo capítulo 26 desse código.

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    14

    Em 5 de julho de 2013, foram constituídas arguidas cinco pessoas, entre as quais DM, por associação criminosa, nos termos do artigo 321.o, n.o 3, do Nakazatelen Kodeks (Código Penal), e por corrupção, nos termos do artigo 301.o, n.o 1, do mesmo código.

    15

    Em 31 de agosto de 2015, devido à duração excessiva da instrução penal, DM requereu ao Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária) que o processo fosse analisado por esse tribunal de acordo com o disposto no artigo 368.o, n.o 1, do NPK, na sua versão em vigor de 13 de agosto de 2013 a 5 de novembro de 2017.

    16

    Por Despacho de 30 de setembro de 2015, o referido tribunal, com base no artigo 369.o, n.o 1, do NPK, na sua versão em vigor de 13 de agosto de 2013 a 5 de novembro de 2017, remeteu o processo penal à Spetsializirana prokuratura (Procuradoria Especializada, Bulgária), fixando‑lhe um prazo de três meses para deduzir acusação ou uma proposta para isentar o autor da infração da responsabilidade penal e aplicar‑lhe uma sanção administrativa ou um acordo de negociação de pena, ou para pôr termo ao processo penal e informar desse facto o tribunal.

    17

    Em 8 de janeiro de 2016, a Procuradoria Especializada submeteu o processo ao Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) submetendo‑lhe uma acusação contra quatro arguidos, entre os quais DM, pelas infrações penais mencionadas no n.o 14 do presente acórdão.

    18

    Por Despacho de 3 de fevereiro de 2016, o juiz‑relator pôs termo ao processo devido a violações substanciais embora sanáveis das regras processuais e remeteu o processo à Procuradoria Especializada para que esta sanasse essas violações.

    19

    Esta deduziu nova acusação no prazo de um mês e submeteu‑a ao Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial), em 22 de março de 2016.

    20

    No processo que correu os seus termos nesse tribunal, DM requereu que, nos termos do artigo 369.o, n.o 4, terceira situação, do NPK, na sua versão em vigor de 13 de agosto de 2013 a 5 de novembro de 2017, fosse posto termo ao processo penal contra si instaurado devido a novas violações das regras processuais, cometidas durante a instrução penal. Com efeito, entendia que a acusação não fora enunciada de forma clara e precisa para que o arguido a pudesse compreender, organizar eficazmente a sua defesa e apresentar provas pertinentes.

    21

    No entanto, em 27 de junho de 2016, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) indeferiu esse requerimento, declarando a acusação conforme com os requisitos legais de precisão e clareza, previstos no artigo 246.o do NPK.

    22

    Por Decisão de 19 de novembro de 2019, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) declarou DM culpado das infrações penais que lhe eram imputadas e condenou‑o numa pena privativa de liberdade e em multa e privou‑o dos direitos relacionados com a sua função.

    23

    Em sede de recurso, o Apelativen spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Penal Especial, Bulgária), por Acórdão de 9 de novembro de 2020, anulou integralmente esse veredicto devido a violações substanciais embora sanáveis das regras processuais, que residiam na desconformidade da acusação de 22 de março de 2016 com os requisitos legais de clareza e de precisão, previstos no artigo 246.o do NPK, e remeteu o processo ao Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial).

    24

    Em 3 de fevereiro de 2021, este último órgão jurisdicional remeteu, por sua vez, o processo ao Ministério Público para que este sanasse as violações substanciais das regras processuais cometidas durante a instrução penal no que respeitava à preparação da acusação.

    25

    Em 7 de julho de 2022, a Procuradoria Especializada apresentou uma nova acusação contra DM e os três outros arguidos.

    26

    Na sequência de alterações legislativas e incidentes processuais, o processo acabou por ser distribuído ao Okrazhen sad — Sliven (Tribunal Regional de Sliven, Bulgária), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

    27

    Esse tribunal refere que, a partir de 5 de novembro de 2017, foi suprimida a possibilidade de pôr termo ao processo penal em caso de duração excessiva da instrução penal e em caso de violações substanciais repetidas embora sanáveis das regras processuais. Assim, o Apelativen Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Penal Especial), que anulou a decisão do tribunal de primeira instância, em 9 de novembro de 2020, precisamente devido às violações cometidas na redação da acusação de 22 de março de 2016 e à desconformidade desse ato com os requisitos legais de precisão e de clareza, previstos no artigo 246.o do NPK, não pôde pôr termo ao processo penal contra DM.

    28

    Ora, se o tribunal de primeira instância tivesse aplicado corretamente o artigo 369.o, n.o 4, terceira situação, do NPK, na sua versão em vigor de 13 de agosto de 2013 a 5 de novembro de 2017, deveria ter sido posto termo ao processo penal contra DM em 2016.

    29

    A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, tendo em conta a jurisprudência do Konstitusionen sad (Tribunal Constitucional, Bulgária), segundo a qual a proibição da retroatividade da lei é violada quando a nova avaliação jurídica das consequências de um direito já adquirido, embora num quadro jurídico diferente, implique a revogação dos direitos, ou quando se verifiquem consequências negativas nas situações já constituídas, é inconstitucional, à luz do princípio do Estado de direito, que o legislador imponha posteriormente consequências negativas a particulares que adquiriram direitos e atuaram em conformidade com o quadro jurídico existente.

    30

    Esta jurisprudência é aplicável no caso presente, precisamente devido às diferenças substanciais nas disposições relevantes do NPK antes e depois de 5 de novembro de 2017. A partir de 22 de março de 2016, DM adquiriu, na vigência do NPK, na sua versão em vigor de 13 de agosto de 2013 a 5 de novembro de 2017, o direito a que fosse posto termo ao processo penal contra si nos termos do artigo 369.o, n.o 4, terceira situação, desse código. Entende que pouco importa, para efeitos do exercício desse direito, que, no seguimento de um erro judicial, este só tenha sido detetado mais de cinco anos depois, sob o domínio de outra lei que não rege os processos em curso e que, neste sentido, tem consequências desfavoráveis nos mesmos. Com efeito, conforme resulta das considerações expostas, isso seria contrário aos princípios constitucionais em vigor na Bulgária.

    31

    Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, os artigos 368.o e 369.o do NPK, na sua versão em vigor de 13 de agosto de 2013 a 5 de novembro de 2017, aplicaram a faculdade concedida aos Estados‑Membros, no artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841, de isentarem de pena o autor da infração em determinadas circunstâncias, no caso, devido à inação das autoridades responsáveis pelo inquérito ou às violações substanciais das regras processuais cometidas durante a instrução penal, quando se trate de infrações relacionadas com a criminalidade organizada.

    32

    Na opinião desse órgão jurisdicional, a redação dos artigos 368.o e 369.o do NPK, na sua versão em vigor a partir de 5 de novembro de 2017, uma vez que é substancialmente diferente da que resultava da versão anterior desse código, sem no entanto prever disposições transitórias no que respeita aos processos pendentes instaurados na vigência dessa versão anterior, tem por efeito suprimir a possibilidade de um arguido beneficiar do direito adquirido à extinção da ação penal intentada contra si, o que é contrário ao direito da União.

    33

    Estas disposições do NPK são contrárias ao artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841, uma vez que impedem a aplicação, na Bulgária, de medidas que garantam que, em determinadas circunstâncias, o autor de uma infração relacionada com a criminalidade organizada possa ser isento de pena, depois de essas medidas terem sido adotadas e de os arguidos terem adquirido o direito de delas beneficiarem. São também contrárias ao artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, dado que privam as pessoas constituídas arguidas pelas infrações visadas pela Decisão‑Quadro 2008/841 do meio processual que lhes é oferecido para que o seu caso seja decidido num prazo razoável. Por último, são contrárias ao artigo 52.o da Carta, lido em conjugação com o artigo 47.o da mesma, porquanto restringem a aplicação de um meio processual efetivo previsto no direito nacional na aplicação de uma decisão‑quadro da União, pondo assim em causa a equidade de todo o processo penal.

    34

    Neste contexto, o Okrazhen sad — Sliven (Tribunal Regional de Sliven) suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    Devem as disposições conjugadas dos artigos 52.o e 47.o da [Carta], bem como do artigo 4.o da [Decisão Quadro 2008/841], e do artigo 19.o, n.o 1, [segundo parágrafo, TUE], quando estejam em causa processos penais relativos a factos que sejam abrangidos pelo âmbito de aplicação do direito da União, ser interpretadas no sentido de que se opõem a uma legislação nacional como a do [processo principal], a qual revoga o direito do arguido ao arquivamento do processo penal contra ele instaurado no caso de tal direito ter surgido durante a vigência de uma lei que previa tal possibilidade, mas que, devido a um erro judicial, apenas foi declarado após a revogação dessa lei?

    2)

    Quais seriam as [ações] de que o arguido deveria dispor, na aceção do artigo 47.o da [Carta], e, em especial, deverá um órgão jurisdicional nacional arquivar, na totalidade, o processo penal instaurado contra esse arguido quando a formação de julgamento previamente chamada a pronunciar‑se não o fez, não obstante os respetivos requisitos se encontrarem preenchidos nos termos da lei nacional em vigor àquela data?»

    Quanto às questões prejudiciais

    Quanto à primeira questão

    35

    Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Decisão‑Quadro 2008/841, em especial o seu artigo 4.o, lido em conjugação com os artigos 47.o e 52.o da Carta, bem como com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que suprime, na pendência da ação penal instaurada contra um arguido, o direito deste último a que seja posto termo a esse processo quando não tenham sido sanadas as violações substanciais embora sanáveis das regras processuais de que a acusação enfermava.

    36

    A este respeito, há que lembrar que o âmbito de aplicação da Carta está definido no seu artigo 51.o, n.o 1, nos termos do qual, no que respeita à ação dos Estados‑Membros, as disposições da Carta os têm por destinatários apenas quando apliquem o direito da União (Acórdão de 19 de novembro de 2019, TSN e AKT, C‑609/17 e C‑610/17, EU:C:2019:981, n.o 42).

    37

    Há que verificar, portanto, se se deve considerar que essa legislação nacional procede à aplicação da Decisão‑Quadro 2008/841, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, e se, consequentemente, o artigo 47.o desta última é aplicável a situações como a que está em causa no processo principal (v., por analogia, Acórdão de 19 de novembro de 2019, TSN e AKT, C‑609/17 e C‑610/17, EU:C:2019:981, n.o 45).

    38

    Como resulta dos seus considerandos 1 e 3, a Decisão‑Quadro 2008/841 procede de uma abordagem comum dos problemas transfronteiriços como a criminalidade organizada e deve, por um lado, englobar as infrações habitualmente cometidas no âmbito de uma organização criminosa e, por outro, prever, contra as pessoas singulares e coletivas que tenham cometido tais infrações ou por elas sejam responsáveis, sanções que correspondam à gravidade dessas infrações.

    39

    Nos termos dos artigos 2.o e 3.o dessa decisão‑quadro, cada Estado‑Membro deve tomar as medidas necessárias para que, nomeadamente, seja considerado infração um tipo de conduta relacionado com uma organização criminosa e que consista no facto de qualquer pessoa participar ativamente, de forma intencional e com conhecimento do objetivo e da atividade geral da organização criminosa e da sua intenção de cometer as infrações em causa, nas suas atividades criminosas, incluindo o fornecimento de informações ou meios materiais, o recrutamento de novos membros e qualquer forma de financiamento das suas atividades, tendo conhecimento de que tal participação contribuirá para a realização da atividade criminosa da organização. A este respeito, cada Estado‑Membro deve tomar as medidas necessárias para que essa infração seja punível com pena de prisão máxima de entre dois e cinco anos pelo menos.

    40

    Quanto ao artigo 4.o dessa decisão‑quadro, este prevê que cada Estado‑Membro pode tomar as medidas necessárias para que as penas previstas no seu artigo 3.o possam ser reduzidas ou o autor da infração possa beneficiar de uma isenção de pena quando, por exemplo, renuncie às suas atividades criminosas e forneça às autoridades administrativas ou judiciárias informações que estas não pudessem ter obtido de outro modo, e que as ajudem a prevenir, fazer cessar ou limitar os efeitos da infração, identificar ou levar a julgamento os demais autores da infração, encontrar provas, privar a organização criminosa de recursos ilícitos ou do produto das suas atividades criminosas ou impedir a prática de outras infrações a que se refere no artigo 2.o da mesma decisão‑quadro.

    41

    Ora, uma regulamentação nacional que prevê o direito de um arguido a que seja posto termo ao seu processo penal quando não tenham sido sanadas as violações substanciais embora sanáveis das regras processuais de que a acusação enfermava não está abrangida pelo artigo 4.o ou por outras disposições da Decisão‑Quadro 2008/841. Com efeito, tal regulamentação nacional prevê que, em certas condições, é posto termo à ação penal contra o arguido, ao passo que o artigo 4.o desta decisão‑quadro dispõe que os Estados‑Membros podem prever que, em certas condições, o autor da infração possa beneficiar de uma redução ou de uma isenção de pena.

    42

    Assim, o artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841 pressupõe que a pessoa em causa seja o autor da infração, à qual pode ser concedido o benefício de uma redução ou de uma isenção de pena, quando a referida regulamentação nacional apenas diz respeito a um arguido que pode beneficiar, em determinadas condições, do direito a que seja posto termo ao processo penal contra si instaurado.

    43

    Por conseguinte, a regulamentação nacional que tem por efeito suprimir este último direito também não pode estar abrangida pelo artigo 4.o da Decisão‑Quadro 2008/841, nem por outras disposições desta.

    44

    Resulta destas considerações que, uma vez que não se pode considerar que a legislação em causa no processo principal procede à aplicação da Decisão‑Quadro 2008/841, na aceção do artigo 51.o, n.o 1, da Carta, nem o artigo 47.o nem outras disposições desta última são aplicáveis a uma situação como a que está em causa no processo principal.

    45

    Quanto ao artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, há que lembrar que esta disposição prevê que os Estados‑Membros devem instituir os meios processuais necessários para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União.

    46

    No âmbito de um processo prejudicial, deve existir entre o litígio pendente no órgão jurisdicional de reenvio e as disposições do direito da União cuja interpretação é pedida uma conexão tal, que essa interpretação responda a uma necessidade objetiva para a decisão que esse órgão jurisdicional deve tomar (v., neste sentido, Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny, C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.os47 e 48).

    47

    No caso, como resulta dos n.os 43 e 44 do presente acórdão, o litígio no processo principal não apresenta nenhuma conexão com as disposições do direito da União cuja interpretação é pedida. Em especial, este litígio não está relacionado com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, sobre o qual incide a primeira questão. Por conseguinte, o órgão jurisdicional de reenvio não é chamado a aplicar esta disposição para chegar à solução de mérito a dar ao referido litígio (v., por analogia, Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny, C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, n.o 49).

    48

    Em face de todas estas considerações, há que responder à primeira questão que a Decisão‑Quadro 2008/841, em especial o seu artigo 4.o, lida em conjugação com os artigos 47.o e 52.o da Carta e com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional que, na pendência do processo penal instaurado contra um arguido, suprime o direito deste último a que seja posto termo a esse processo quando não tenham sido sanadas as violações substanciais embora sanáveis das regras processuais de que a acusação enfermava.

    Quanto à segunda questão

    49

    Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

    Quanto às despesas

    50

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sexta Secção) declara:

     

    A Decisão‑Quadro 2008/841/JAI do Conselho, de 24 de outubro de 2008, relativa à luta contra a criminalidade organizada, e em particular o seu artigo 4.o, lida em conjugação com os artigos 47.o e 52.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE,

     

    deve ser interpretada no sentido de que:

     

    não se opõe a uma regulamentação nacional que, na pendência do processo penal instaurado contra um arguido, suprime o direito deste último a que seja posto termo a esse processo quando não tenham sido sanadas as violações substanciais embora sanáveis das regras processuais de que a acusação enfermava.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: búlgaro.

    ( i ) O nome do presente processo é um nome fictício. Não corresponde ao nome verdadeiro de nenhuma das partes no processo.

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