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Document 62023CJ0062

Acórdão do Tribunal de Justiça (Décima Secção) de 13 de junho de 2024.
Pedro Francisco contra Subdelegación del Gobierno en Barcelona.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Juzgado de lo Contencioso-Administrativo n.° 5 de Barcelona.
Reenvio prejudicial — Direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros — Diretiva 2004/38/CE — Artigo 27.o — Restrições ao direito de entrada e ao direito de residência por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública — Comportamento que representa uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade — Recusa de emissão de um cartão de residência temporária de membro da família de um cidadão da União devido a antecedentes policiais — Relatório policial desfavorável devido a uma detenção.
Processo C-62/23.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2024:502

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção)

13 de junho de 2024 ( *1 ) ( i )

«Reenvio prejudicial — Direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros — Diretiva 2004/38/CE — Artigo 27.o — Restrições ao direito de entrada e ao direito de residência por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública — Comportamento que representa uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade — Recusa de emissão de um cartão de residência temporária de membro da família de um cidadão da União devido a antecedentes policiais — Relatório policial desfavorável devido a uma detenção»

No processo C‑62/23,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo n.o 5 de Barcelona (Tribunal do Contencioso Administrativo n.o 5 de Barcelona, Espanha), por Decisão de 9 de janeiro de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de fevereiro de 2023, no processo

Pedro Francisco

contra

Subdelegación del Gobierno en Barcelona,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção),

composto por: Z. Csehi, presidente de secção, E. Regan (relator), presidente da Quinta Secção, e D. Gratsias, juiz,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo Espanhol, por A. Pérez‑Zurita Gutiérrez, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por J. Baquero Cruz e E. Montaguti, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 27.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO 2004, L 158, p. 77, e retificação no JO 2004, L 229, p. 35).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Pedro Francisco à Subdelegación del Gobierno en Barcelona (Subdelegação do Governo em Barcelona, Espanha) (a seguir «autoridade competente») a respeito do indeferimento do seu pedido de cartão de residência temporária de membro da família de um cidadão da União.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O artigo 2.o da Diretiva 2004/38 dispõe:

«Para os efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

2. “Membro da família”:

[…]

b)

O parceiro com quem um cidadão da União contraiu uma parceria registada com base na legislação de um Estado‑Membro, se a legislação do Estado‑Membro de acolhimento considerar as parcerias registadas como equiparadas ao casamento, e nas condições estabelecidas na legislação aplicável do Estado‑Membro de acolhimento;

[…]»

4

O artigo 10.o, n.o 1, desta diretiva enuncia:

«O direito de residência dos membros da família de um cidadão da União que não tenham a nacionalidade de um Estado‑Membro é comprovado pela emissão de um documento denominado “cartão de residência de membro da família de um cidadão da União”, no prazo de seis meses a contar da apresentação do pedido. É imediatamente emitido um certificado de que foi requerido um cartão de residência.»

5

Nos termos do artigo 27.o, n.os 1 e 2, da referida diretiva:

«1.   Sob reserva do disposto no presente capítulo, os Estados‑Membros podem restringir a livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias, independentemente da nacionalidade, por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública. Tais razões não podem ser invocadas para fins económicos.

2.   As medidas tomadas por razões de ordem pública ou de segurança pública devem ser conformes com o princípio da proporcionalidade e devem basear‑se exclusivamente no comportamento da pessoa em questão. A existência de condenações penais anteriores não pode, por si só, servir de fundamento para tais medidas.

O comportamento da pessoa em questão deve constituir uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade. Não podem ser utilizadas justificações não relacionadas com o caso individual ou baseadas em motivos de prevenção geral.»

6

O artigo 30.o da mesma diretiva prevê, nos seus n.os 1 e 2:

«1.   Qualquer decisão nos termos do n.o 1 do artigo 27.o deve ser notificada por escrito às pessoas em questão, de uma forma que lhe permita compreender o conteúdo e os efeitos que têm para si.

2.   As pessoas em questão são informadas, de forma clara e completa, das razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública em que se baseia a decisão, a menos que isso seja contrário aos interesses de segurança do Estado.»

Direito espanhol

7

O artigo 2.o do Real Decreto 240/2007, sobre entrada, libre circulación y residencia en España de ciudadanos de los Estados miembros de la Unión europea y de otros Estados parte en el Acuerdo sobre el Espacio Económico Europeu (Decreto Real 240/2007, relativo à Entrada, à Liberdade de Circulação e à Residência em Espanha de Cidadãos dos Estados‑Membros da União Europeia e de outros Estados Partes no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu), de 16 de fevereiro de 2007 (BOE n.o 51, de 28 de fevereiro de 2007, p. 8558), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Decreto Real 240/2007»), dispõe:

«O presente decreto real é igualmente aplicável, nos termos por este previstos, aos membros da família de um nacional de outro Estado‑Membro da União Europeia ou de outro Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu [, de 2 de maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3], seja qual for a sua nacionalidade, quando os acompanhem ou a eles se reúnam, e que a seguir se enumeram:

[…]

b)

O parceiro com o qual mantenha uma união análoga à dos cônjuges inscrita num registo público estabelecido para esse efeito num Estado‑Membro da [União] ou num Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, que impeça a possibilidade de dois registos simultâneos no referido Estado, e desde que essa inscrição não tenha sido cancelada, o que deverá ser comprovado de modo suficiente. Em todo o caso, as situações de casamento e de inscrição como união de facto registada são consideradas incompatíveis entre si;

[…]»

8

O artigo 2.o‑A do Decreto Real 240/2007 enuncia:

«[…]

3.   O pedido de cartão de membro da família de um cidadão da União deve ser acompanhado dos seguintes documentos:

[…]

d)

no caso de união de facto, a prova da existência de uma relação estável com o nacional de um Estado‑Membro da União ou de outros Estados partes no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu e a duração da vida em comum.

4.   As autoridades avaliam caso a caso a situação pessoal do requerente e tomam uma decisão fundamentada, tendo em conta os seguintes critérios:

a)

no que diz respeito aos membros da família, as autoridades avaliam o nível de dependência financeira ou física, o grau de parentesco com o nacional de um Estado‑Membro da União ou de outros Estados partes no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu e, se for caso disso, a gravidade da doença ou da incapacidade que exigem que o nacional cuide pessoalmente do membro da sua família ou a duração da vida em comum anterior. Em todo o caso, considera‑se que a vida em comum está demonstrada quando se faça prova fiável de uma vida em comum contínua de 24 meses no país de origem.

b)

em caso de união de facto, são considerados parceiros estáveis os que possam provar a existência de uma relação permanente. Em todo o caso, essa relação considera‑se demonstrada através da prova de um período de vida em comum de pelo menos um ano contínuo, salvo se tiverem filhos em comum, caso em que é suficiente a prova de uma vida em comum estável devidamente demonstrada.

5.   Qualquer decisão das autoridades deve ser fundamentada.»

9

O artigo 8.o, n.o 1, deste decreto real prevê:

«Os membros da família de um nacional de um Estado‑Membro da [União] ou de outro Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu especificados no artigo 2.o do presente decreto real, que não sejam nacionais de um desses Estados, podem, quando o acompanhem ou a ele se reúnam, residir em Espanha por um período superior a três meses e estão sujeitos à obrigação de pedir e de obter um “cartão de residência de membro da família de um cidadão da União”.»

10

O artigo 15.o, n.os 1 e 5, do referido decreto real tem a seguinte redação:

«1.   Se, por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública, relativamente aos cidadãos de um Estado‑Membro da [União] ou de outro Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, ou aos membros das suas famílias, for justificado, pode ser tomada uma das medidas seguintes:

a)

Proibição da entrada em território espanhol, mesmo que as pessoas em questão apresentem a documentação prevista no artigo 4.o do presente decreto real.

b)

Recusa da inscrição no [Registro Central de Extranjeros] [Registo Central de Estrangeiros, Espanha] ou da expedição ou renovação dos cartões de residência previstos no presente decreto real.

c)

Decisão de afastamento ou de repulsão do território espanhol.

Só pode ser tomada uma decisão de afastamento relativamente a cidadãos de um Estado‑Membro da [União] ou de outro Estado parte no Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, ou a membros das suas famílias, independentemente da sua nacionalidade, que tenham adquirido o direito de residência permanente em Espanha se existirem razões graves de ordem pública ou de segurança pública. Antes de ser tomada uma decisão nesse sentido, é também necessário tomar em consideração a duração da residência e a integração social e cultural da pessoa em questão em Espanha, a sua idade, o seu estado de saúde, a sua situação familiar e económica e a importância dos vínculos com o seu país de origem.

[…]

5.   A adoção das medidas previstas nos n.os 1 a 4 anteriores rege‑se pelos critérios seguintes:

a)

Deve ser feita em conformidade com a legislação respeitante à ordem pública e à segurança pública e com as disposições regulamentares em vigor nesta matéria.

b)

Pode ser revogada oficiosamente ou a requerimento de parte, quando deixem de subsistir as razões que a fundamentaram.

c)

Não pode ser feita com fins económicos.

d)

As medidas tomadas por razões de ordem pública ou de segurança pública devem basear‑se exclusivamente no comportamento da pessoa em questão, o qual deve constituir uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade, que será avaliada pelo órgão competente para a decisão com base nos relatórios das autoridades policiais, titulares da ação penal ou judiciais que constem do processo. A existência de condenações penais anteriores não pode, por si só, servir de fundamento a tais medidas.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

11

Pedro Francisco, nacional de um país terceiro, é parceiro de uma nacional espanhola. A sua união está inscrita no Registo de Uniões Estáveis da Catalunha (Espanha). Em 21 de dezembro de 2021, apresentou um pedido de cartão de residência temporária de membro da família de um cidadão da União à autoridade competente.

12

Durante a análise desse pedido, a autoridade competente contactou a Dirección General de Policía (Direção‑Geral da Polícia, Espanha), que emitiu um relatório desfavorável devido a uma detenção de que Pedro Francisco foi alvo, em 3 de julho de 2020, como presumível autor de uma infração à saúde pública e por pertencer a organizações e grupos criminosos, sem que a polícia tenha procedido a nenhuma investigação para determinar se essa detenção tinha dado origem a um procedimento penal. Este relatório indica que o registo criminal de Pedro Francisco está limpo.

13

Após o seu pedido de cartão de residência temporária de membro da família de um cidadão da União ter sido indeferido, em 14 de junho de 2022, por decisão da autoridade competente, Pedro Francisco interpôs recurso contencioso administrativo dessa decisão no Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo n.o 5 de Barcelona (Tribunal do Contencioso Administrativo n.o 5 de Barcelona, Espanha), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

14

Este tem dúvidas quanto à relevância dos antecedentes policiais de Pedro Francisco, a saber, a detenção mencionada no n.o 12 do presente acórdão, no âmbito da análise desse pedido. Com efeito, as restrições à liberdade de circulação e de residência por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública, em conformidade com o artigo 27.o da Diretiva 2004/38, devem ser proporcionadas e basear‑se exclusivamente no comportamento da pessoa em causa, que deve representar uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade.

15

Ora, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que os antecedentes policiais apenas se referem a factos presumivelmente imputados à pessoa em questão, cuja realidade deve ser demonstrada através de provas produzidas no decurso de um processo e apreciadas numa decisão judicial. Daqui decorre que não é possível fazer uma apreciação negativa de factos cuja veracidade não foi demonstrada e, por conseguinte, concluir que esses factos são constitutivos de uma ameaça real.

16

Além disso, esse órgão jurisdicional entende que, caso viesse a considerar‑se que os antecedentes policiais podem servir de base para efetuar essa apreciação, seria necessário, à luz do artigo 27.o da Diretiva 2004/38, que a autoridade competente mencionasse expressamente e de forma detalhada os factos em que assentam e os processos judiciais a que eventualmente deram origem, a fim de confirmar que não se trata de meras suposições iniciais.

17

Nestas condições, o Juzgado de lo Contencioso‑Administrativo n.o 5 de Barcelona (Tribunal do Contencioso Administrativo n.o 5 de Barcelona) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1.

Deve o artigo 27.o da Diretiva 2004/38/CE ser interpretado no sentido de que os antecedentes policiais podem constituir a base ou o fundamento do comportamento da pessoa em questão na apreciação da questão de saber se se trata de uma ameaça real, tendo em conta que a finalidade do processo penal é demonstrar a sua realidade?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, deve, à luz do artigo 27.o da diretiva, entender‑se que a autoridade governamental deve mencionar expressa e pormenorizadamente os factos que os fundamentam e os processos judiciais que tenham sido instaurados, bem como a sua tramitação subsequente, a fim de confirmar que não se trata de meras suposições iniciais?»

Quanto às questões prejudiciais

18

Com as suas questões, que importa analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 27.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2004/38 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma autoridade nacional competente tenha em conta uma detenção aplicada à pessoa em causa para apreciar se o comportamento dessa pessoa constitui uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade, se for caso disso, na condição de serem tomados em consideração, expressamente e de forma detalhada, os factos em que essa detenção assenta e as suas eventuais consequências judiciais.

19

A título preliminar, importa observar que o litígio no processo principal resulta da recusa de a autoridade competente conceder ao recorrente no processo principal um cartão de residência temporária de membro da família de um cidadão da União, ao passo que o artigo 10.o, n.o 1, dessa diretiva prevê, nomeadamente, que o direito de residência dos membros da família de um cidadão da União que não tenham a nacionalidade de um Estado‑Membro é comprovado pela emissão de um documento denominado «cartão de residência de membro da família de um cidadão da União».

20

Este recorrente é parceiro de uma nacional espanhola, estando a sua união inscrita no Registo de Uniões Estáveis da Catalunha, pelo que o referido recorrente deve ser considerado um «membro da família de um cidadão da União», na aceção do artigo 2.o, ponto 2, alínea b), da referida diretiva.

21

Por outro lado, como alega a Comissão Europeia, não resulta das informações de que o Tribunal de Justiça dispõe que a nacional espanhola de que é parceiro tenha exercido a sua liberdade de circulação na União, pelo que o recorrente no processo principal não pode, em princípio, retirar um direito de residência resultante nem da Diretiva 2004/38 nem do artigo 21.o TFUE [v., neste sentido, Acórdão de 27 de fevereiro de 2020, Subdelegación del Gobierno en Ciudad Real (Cônjuge de um cidadão da União), C‑836/18, EU:C:2020:119, n.o 29].

22

Todavia, nos termos do artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação dos Tratados e dos atos adotados pelas instituições da União. No âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais, instituída neste artigo, compete exclusivamente ao juiz nacional apreciar, atendendo às particularidades de cada caso, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial, para poder proferir a sua decisão, como a relevância das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Por conseguinte, quando as questões submetidas pelos órgãos jurisdicionais nacionais tenham por objeto a interpretação de uma disposição do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 26 de outubro de 2023, Lineas — Concessões de Transportes e o., C‑207/22, C‑267/22 e C‑290/22, EU:C:2023:810, n.o 48 e jurisprudência referida).

23

Em aplicação desta jurisprudência, o Tribunal de Justiça já se declarou reiteradamente competente para se pronunciar sobre os pedidos de decisão prejudicial respeitantes a disposições do direito da União em situações nas quais os factos do processo principal se situavam fora do âmbito de aplicação do direito da União, mas nas quais as referidas disposições tinham sido declaradas aplicáveis pela legislação nacional, a qual era conforme, nas soluções dadas a situações não abrangidas pelo direito da União, com as soluções acolhidas por este (Acórdão de 26 de outubro de 2023, Lineas — Concessões de Transportes e o., C‑207/22, C‑267/22 e C‑290/22, EU:C:2023:810, n.o 49 e jurisprudência referida).

24

Com efeito, nessas situações, existe um interesse efetivo da União em que, para evitar divergências de interpretação futuras, as disposições procedentes do direito da União sejam interpretadas de modo uniforme [Acórdão de 12 de dezembro de 2019, G.S. e V.G. (Ameaça para a ordem pública), C‑381/18 e C‑382/18, EU:C:2019:1072, n.o 42 e jurisprudência].

25

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio precisou que o artigo 15.o, n.o 5, alínea d), do Decreto Real 240/2007, que circunscreve o conceito de «ordem pública», conceito já estabelecido no artigo 27.o da Diretiva 2004/38, é interpretado pelo Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha) à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça. Ora, como o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de observar, esse Decreto Real 240/2007, que visa transpor essa diretiva para o ordenamento jurídico espanhol, aplica‑se não só aos pedidos de reagrupamento familiar apresentados por um nacional de um país terceiro, membro da família de um cidadão da União que exerceu a sua liberdade de circulação, abrangidos pelo âmbito de aplicação da referida diretiva, mas também, de acordo com jurisprudência constante do Tribunal Supremo (Supremo Tribunal), aos pedidos de reagrupamento familiar apresentados por um nacional de país terceiro, membro da família de um nacional espanhol que nunca exerceu a sua liberdade de circulação [v., neste sentido, Acórdão de 27 de fevereiro de 2020, Subdelegación del Gobierno en Ciudad Real (Cônjuge de um cidadão da União), C‑836/18, EU:C:2020:119, n.o 30].

26

No caso, resulta das informações de que o Tribunal de Justiça dispõe que, no litígio no processo principal, tanto o pedido de cartão de residência temporária de membro da família de um cidadão da União como a recusa por parte da autoridade competente se basearam nas disposições do Decreto Real 240/2007.

27

À luz destas precisões preliminares, há que recordar que o direito de residência na União dos cidadãos da União e dos membros da sua família não é incondicional, podendo estar sujeito a limitações e condições previstas no Tratado FUE e nas disposições adotadas em sua aplicação (Acórdão de 13 de julho de 2017, E,C‑193/16, EU:C:2017:542, n.o 16 e jurisprudência referida).

28

A este respeito, as limitações a este direito decorrem, em particular, do artigo 27.o, n.o 1, da Diretiva 2004/38, disposição que prevê que os Estados‑Membros podem adotar medidas que restrinjam a livre circulação e residência de um cidadão da União ou de um membro da sua família, independentemente da nacionalidade, por razões de ordem pública ou de segurança pública, não podendo tais razões, porém, ser invocadas para fins puramente económicos (v., neste sentido, Acórdão de 13 de julho de 2017, E,C‑193/16, EU:C:2017:542, n.o 17 e jurisprudência referida).

29

Segundo jurisprudência constante, embora, no essencial, os Estados‑Membros sejam livres de determinar, em conformidade com as suas necessidades nacionais, que podem variar de um Estado‑Membro para outro e de uma época para outra, as exigências de ordem pública e de segurança pública, nomeadamente enquanto justificação de uma derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de pessoas, estas exigências devem, contudo, ser entendidas em sentido estrito, de modo que o seu alcance não pode ser determinado unilateralmente por cada um dos Estados‑Membros sem fiscalização das instituições da União [Acórdão de 2 de maio de 2018, K. e H. F. (Direito de residência e alegações de crimes de guerra), C‑331/16 e C‑366/16, EU:C:2018:296, n.o 40 e jurisprudência referida].

30

Por força do artigo 27.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2004/38, as medidas tomadas por razões de ordem pública ou de segurança pública devem ser conformes com o princípio da proporcionalidade e devem basear‑se exclusivamente no comportamento da pessoa em questão.

31

Além disso, o artigo 27.o, n.o 2, segundo parágrafo, subordina a adoção de tais medidas à condição de o comportamento da pessoa em causa representar uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade.

32

Daqui resulta que as medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública só podem ser tomadas, nos termos do artigo 27.o, n.o 1, da Diretiva 2004/38, se, em conformidade com o n.o 2 deste artigo, após uma apreciação caso a caso por parte das autoridades nacionais competentes, se verificar que o comportamento individual dessa pessoa representa atualmente um perigo real e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade [v., neste sentido, Acórdão de 2 de maio de 2018, K. e H.F. (Direito de residência e alegações de crimes de guerra), C‑331/16 e C‑366/16, EU:C:2018:296, n.o 52 e jurisprudência referida].

33

Neste contexto, importa observar que o Tribunal de Justiça declarou que, para efeitos da adoção de medidas baseadas em razões de ordem pública ou de segurança pública, na aceção do artigo 27.o, n.o 2, da Diretiva 2004/38, as infrações ou os atos imputados à pessoa em causa e que não tenham dado origem a uma condenação penal, tais como a detenção do recorrente no processo principal enquanto presumível autor de infrações, podem constituir elementos relevantes, desde que sejam tidos em conta no âmbito de uma apreciação casuística que cumpra os requisitos previstos nesta disposição [v., neste sentido, Acórdão de 2 de maio de 2018, K. e H.F. (Direito de residência e alegações de crimes de guerra), C‑331/16 e C‑366/16, EU:C:2018:296, n.o 53].

34

A este respeito, importa precisar que, de acordo com o artigo 27.o, n.o 2, primeiro parágrafo, segundo período, desta diretiva, a existência de condenações penais anteriores não pode, por si só, servir de fundamento para tais medidas. O mesmo se aplica, a fortiori, a elementos como a detenção em causa no processo principal. Embora uma detenção possa ser tomada em consideração pela autoridade nacional competente, a mera existência dessa detenção não pode, portanto, justificar automaticamente a adoção dessas medidas.

35

Com efeito, na falta de condenação definitiva, ou mesmo de procedimento penal, a referida detenção reflete apenas a existência de suspeitas que recaem sobre a pessoa em causa, pelo que é ainda mais necessária uma análise que tenha em conta todos os elementos pertinentes que caracterizam a sua situação [v., neste sentido, Acórdão de 2 de maio de 2018, K. e H.F. (Direito de residência e alegações de crimes de guerra), C‑331/16 e C‑366/16, EU:C:2018:296, n.os 54 e 55].

36

Além disso, só se pode concluir que o comportamento de uma pessoa que foi detida representa uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade em presença de elementos concordantes, objetivos e precisos que permitam demonstrar a fiabilidade das suspeitas que recaem sobre essa pessoa devido a essa detenção.

37

Assim, no âmbito da apreciação global do comportamento pessoal do indivíduo em causa para determinar se esse comportamento constitui tal ameaça, há que tomar em consideração os elementos em que se baseia a referida detenção e, em especial, a natureza e a gravidade das infrações ou dos atos imputados a esse indivíduo, o nível da sua participação individual nas mesmas e a eventual existência de motivos de exclusão da sua responsabilidade penal. Esta apreciação global deve também ter em conta o período de tempo decorrido desde a suposta prática dessas infrações ou desses atos e do comportamento posterior do referido indivíduo [v., neste sentido, Acórdão de 2 de maio de 2018, K. e H.F. (Direito de residência e alegações de crimes de guerra), C‑331/16 e C‑366/16, EU:C:2018:296, n.o 66].

38

Daqui resulta que a autoridade nacional competente pode ter em conta uma detenção de que a pessoa em causa foi alvo, desde que proceda à sua própria apreciação global do comportamento pessoal da mesma, em conformidade com o artigo 27.o, n.o 2, da Diretiva 2004/38. Esta autoridade deve, a esse título, por um lado e pelo menos, tomar em consideração, expressamente e de forma detalhada, os factos em que essa detenção assenta e, por outro, ter em conta a existência ou não de eventuais processos judiciais instaurados, bem como, se for caso disso, a sua tramitação subsequente.

39

Esta interpretação é, aliás, corroborada pelo artigo 30.o desta diretiva, cujo n.o 1 enuncia que qualquer decisão nos termos do seu artigo 27.o, n.o 1, deve ser notificada por escrito às pessoas em questão, de uma forma que lhe permita compreender o conteúdo e os efeitos que têm para si, enquanto o n.o 2, desse artigo 30.o, precisa que as pessoas em questão devem ser informadas, de forma clara e completa, das razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública em que se baseia a decisão, a menos que isso seja contrário aos interesses de segurança do Estado, circunstância que, tendo em conta as informações de que o Tribunal de Justiça dispõe, não parece ser relevante no processo principal.

40

Por outro lado, importa recordar que, no âmbito da sua apreciação, a autoridade nacional competente deve também ter em conta o facto de, como resulta do artigo 27.o, n.o 2, da referida diretiva e da jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma medida restritiva do direito à livre circulação e de residência de um cidadão da União ou de um membro da sua família só poder ser justificada se respeitar o princípio da proporcionalidade, o que pressupõe que se determine se essa medida é adequada para garantir a realização do objetivo que prossegue e não vai além do necessário para o alcançar. Essa avaliação implica que se pondere, por um lado, a ameaça que o comportamento pessoal da pessoa em causa representa para os interesses fundamentais da sociedade de acolhimento e, por outro, a proteção dos direitos que a mesma diretiva confere aos cidadãos da União e aos membros da sua família. No contexto desta avaliação, importa ter em conta os direitos fundamentais, cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça, em particular o direito ao respeito pela vida privada e familiar tal como enunciado no artigo 7.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e no artigo 8.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 [v., neste sentido, Acórdão de 2 de maio de 2018, K. e H.F. (Direito de residência e alegações de crimes de guerra), C‑331/16 e C‑366/16, EU:C:2018:296, n.os 61 a 63 e jurisprudência referida].

41

Em face destas considerações, há que responder às questões submetidas que o artigo 27.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2004/38 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que uma autoridade nacional competente tenha em conta uma detenção aplicada à pessoa em causa para apreciar se o comportamento dessa pessoa constitui uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade, desde que, no âmbito da apreciação global desse comportamento, sejam tomados em consideração, expressamente e de forma detalhada, os factos em que essa detenção assenta e as suas eventuais consequências judiciais.

Quanto às despesas

42

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Décima Secção) declara:

 

O artigo 27.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE

 

deve ser interpretado no sentido de que:

 

não se opõe a que uma autoridade nacional competente tenha em conta uma detenção aplicada à pessoa em causa para apreciar se o comportamento dessa pessoa constitui uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade, desde que, no âmbito da apreciação global desse comportamento, sejam tomados em consideração, expressamente e de forma detalhada, os factos em que essa detenção assenta e as suas eventuais consequências judiciais.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.

( i ) Na sequência de uma verificação de texto por parte da Unidade Portuguesa, o Dispositivo foi objeto de uma alteração de ordem linguística, posteriormente à sua disponibilização em linha.

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