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Document 62022CJ0345

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Sexta Secção) de 25 de abril de 2024.
    Maersk A/S contra Allianz Seguros y Reaseguros SA e Mapfre España Compañía de Seguros y Reaseguros SA contra MACS Maritime Carrier Shipping GmbH & Co.
    Pedidos de decisão prejudicial apresentados pela Audiencia Provincial de Pontevedra.
    Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil e comercial — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Artigo 25.o, n.o 1 — Contrato de transporte de mercadorias consignado num conhecimento de carga — Cláusula atributiva de jurisdição inserida nesse conhecimento de carga — Oponibilidade ao terceiro portador do conhecimento de carga — Direito aplicável — Regulamentação nacional que exige a negociação individual e separada da cláusula de jurisdição pelo terceiro portador do conhecimento de carga.
    Processos apensos C-345/22 a C-347/22.

    Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2024:349

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)

    25 de abril de 2024 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil e comercial — Regulamento (UE) n.o 1215/2012 — Artigo 25.o, n.o 1 — Contrato de transporte de mercadorias consignado num conhecimento de carga — Cláusula atributiva de jurisdição inserida nesse conhecimento de carga — Oponibilidade ao terceiro portador do conhecimento de carga — Direito aplicável — Regulamentação nacional que exige a negociação individual e separada da cláusula de jurisdição pelo terceiro portador do conhecimento de carga»

    Nos processos apensos C‑345/22 a C‑347/22,

    que têm por objeto três pedidos de decisão prejudicial apresentados, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Audiencia Provincial de Pontevedra (Audiência Provincial de Pontevedra, Espanha), por Decisões de 16 de maio de 2022, que deram entrada no Tribunal de Justiça em 25 de maio de 2022, nos processos

    Maersk A/S

    contra

    Allianz Seguros y Reaseguros, S. A. (C‑345/22 e C‑347/22),

    e

    Mapfre España Compañía de Seguros y Reaseguros, S. A.

    contra

    MACS Maritime Carrier Shipping GmbH & Co. (C‑346/22),

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

    composto por: P. G. Xuereb, exercendo funções de presidente de secção, A. Kumin (relator) e I. Ziemele, juízes,

    advogado‑geral: A. M. Collins,

    secretário: A. Calot Escobar,

    vistos os autos,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação da Maersk A/S e da MACS Maritime Carrier Shipping GmbH & Co., por C. Lopera Merino, abogada, G. Quintás Rodriguez e C. Zubeldía Blein, procuradoras,

    em representação da Allianz Seguros y Reaseguros S. A., por L. A. Souto Maqueda, abogado,

    em representação da Mapfre España Compañía de Seguros y Reaseguros S. A., por J. Tojeiro Sierto, abogado,

    em representação do Governo Espanhol, por M. J. Ruiz Sánchez, na qualidade de agente,

    em representação da Comissão Europeia, por S. Noë e C. Urraca Caviedes, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 16 de novembro de 2023,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    Os pedidos de decisão prejudicial têm por objeto a interpretação do artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1, a seguir «Regulamento Bruxelas I‑A»).

    2

    Estes pedidos foram apresentados no âmbito de três litígios que opõem, nos processos C‑345/22 e C‑347/22, a sociedade de transportes dinamarquesa Maersk A/S à companhia de seguros espanhola Allianz Seguros y Reaseguros, S. A. (a seguir «Allianz») e, no processo C‑346/22, a companhia de seguros espanhola Mapfre España Compañía de Seguros y Reaseguros, S. A. (a seguir «Mapfre») à sociedade de transportes alemã MACS Maritime Carrier Shipping GmbH & Co. (a seguir «MACS») a respeito da indemnização, pedida num órgão jurisdicional espanhol por essas duas companhias de seguros sucessoras dos direitos de terceiros adquirentes das mercadorias que foram transportadas por via marítima por essas sociedades de transporte, a título dos danos materiais que essas mercadorias sofreram por ocasião desses transportes, e da contestação, pelas referidas sociedades de transporte, da competência dos órgãos jurisdicionais espanhóis em razão de uma cláusula que atribui competência a um órgão jurisdicional do Reino Unido para conhecer dos litígios decorrentes dos contratos de transporte em causa no processo principal.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    Acordo de Saída

    3

    Com a Decisão (UE) 2020/135, de 30 de janeiro de 2020, relativa à celebração do Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (JO 2020, L 29, p. 1), o Conselho da União Europeia aprovou, em nome da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (CEEA), este acordo sobre a saída (JO 2020, L 29, p. 7, a seguir «Acordo de Saída»). O Acordo de Saída foi junto a essa decisão e entrou em vigor em 1 de fevereiro de 2020.

    4

    O artigo 67.o do Acordo de Saída, sob a epígrafe «Competência, reconhecimento e execução de decisões judiciais, e respetiva cooperação entre as autoridades centrais», prevê, no seu n.o 1:

    «No Reino Unido, bem como nos Estados‑Membros em situações que envolvam o Reino Unido, são aplicáveis os atos ou disposições a seguir enumerados, no que respeita a processos judiciais intentados antes do termo do período de transição e a processos ou ações relacionados com esses processos judiciais nos termos dos artigos 29.o, 30.o e 31.o do Regulamento [Bruxelas I‑A] […]:

    a)

    As disposições do Regulamento [Bruxelas I‑A] relativas à competência;

    […]»

    5

    Nos termos do artigo 126.o deste acordo, sob a epígrafe «Período de transição»:

    «É estabelecido um período de transição ou de execução, com início na data de entrada em vigor do presente Acordo e termo em 31 de dezembro de 2020.»

    6

    O artigo 127.o do referido acordo, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação da transição», tem a seguinte redação:

    «1.   Salvo disposição em contrário do presente Acordo, o direito da União é aplicável ao Reino Unido e no seu território durante o período de transição.

    […]

    3.   Durante o período de transição, o direito da União aplicável nos termos do n.o 1 produz, no que respeita ao Reino Unido e no seu território, os mesmos efeitos jurídicos que produz na União e nos seus Estados‑Membros, e deve ser interpretado e aplicado em conformidade com os mesmos métodos e princípios gerais que são aplicáveis na União.

    […]»

    Convenção de Bruxelas

    7

    O artigo 17.o da Convenção relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em matéria civil e comercial, assinada em Bruxelas em 27 de setembro de 1968 (JO 1972, L 299, p. 32, EE 01 F1 p. 186), conforme alterada pela Convenção de 9 de outubro de 1978 relativa à adesão do Reino da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte (JO 1978, L 304, p. 1, e — texto alterado — p. 77, EE 01 F2 p. 131), pela Convenção de 25 de outubro de 1982 relativa à adesão da República Helénica (JO L 388, p. 1, EE 01 F3 p. 234) e pela Convenção de 26 de maio de 1989 relativa à adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa (JO 1989, L 285, p. 1, a seguir «Convenção de Bruxelas»), previa, no seu primeiro parágrafo:

    «Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado Contratante, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado Contratante têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência exclusiva. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:

    a)

    Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita;

    ou

    b)

    Em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si;

    ou

    c)

    No comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.

    […]»

    Regulamento Bruxelas I

    8

    O artigo 23.o do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1, a seguir «Regulamento Bruxelas I»), dispunha, no seu n.o 1:

    «Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado‑Membro, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva a menos que as partes convencionem em contrário. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:

    a)

    Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; ou

    b)

    Em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou

    c)

    No comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.»

    Regulamento Bruxelas I‑A

    9

    O capítulo II do Regulamento Bruxelas I‑A, sob a epígrafe «Competência», inclui uma secção 7, por sua vez intitulada «Extensão de competência». Nos termos do artigo 25.o deste regulamento, que consta desta secção:

    «1.   Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado‑Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário. O pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:

    a)

    Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita;

    b)

    De acordo com os usos que as partes tenham estabelecido entre si; ou

    c)

    No comércio internacional, de acordo com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial concreto em questão.

    […]

    5.   Os pactos atributivos de jurisdição que façam parte de um contrato são tratados como acordo independente dos outros termos do contrato.

    A validade dos pactos atributivos de jurisdição não pode ser contestada apenas com o fundamento de que o contrato não é válido.»

    Direito espanhol

    10

    O ponto XI do preâmbulo da Ley 14/2014 de Navegación Marítima (Lei 14/2014 relativa à Navegação Marítima), de 24 de julho de 2014 (BOE n.o 180, de 25 de julho de 2014, p. 59193, a seguir «LNM»), enuncia:

    «[…] O [título IX, capítulo I,] contém as chamadas regras especiais de jurisdição e de competência que, com base na aplicação preferencial, nesta matéria, das regras das convenções internacionais e do direito da União Europeia, visa evitar os abusos identificados, declarando nulas as cláusulas que preveem a submissão a uma jurisdição estrangeira ou a uma arbitragem no estrangeiro contidas nos contratos de utilização de um navio ou nos contratos acessórios de transporte marítimo, caso essas cláusulas não tenham sido objeto de uma negociação individual e separada. […]»

    11

    Nos termos do artigo 251.o da LNM, sob a epígrafe «Eficácia translativa»:

    «A transferência de um conhecimento de carga produz os mesmos efeitos que a entrega da mercadoria representada pelo conhecimento, sem prejuízo das ações penais e civis que podem ser intentadas por uma pessoa que tenha sido ilegalmente desapossada dessa mercadoria. O adquirente do conhecimento de carga adquire todos os direitos e ações do cedente sobre as mercadorias, com exceção das convenções de jurisdição e de arbitragem, que carecem do consentimento do adquirente nos termos do capítulo I do título IX.»

    12

    O artigo 468.o da LNM, sob a epígrafe «Cláusulas atributivas de jurisdição e de arbitragem», que figura no título IX, capítulo I, desta lei, dispõe, no seu primeiro parágrafo:

    «Sem prejuízo do disposto nas convenções internacionais vigentes em Espanha e das regras do direito da União, as cláusulas contidas nos contratos de utilização de um navio ou nos contratos acessórios de transporte marítimo que preveem a submissão a uma jurisdição estrangeira ou a uma arbitragem no estrangeiro são nulas e consideradas inexistentes caso não tenham sido negociadas individual e separadamente.

    […]»

    Litígios nos processos principais e questões prejudiciais

    Processo C‑345/22

    13

    A Maersk Line Perú SAC, uma filial peruana da Maersk, celebrou, na qualidade de transportador, um contrato de transporte marítimo de mercadorias sujeito às condições CFR (custo e frete) com a Aquafrost Perú (a seguir «Aquafrost»), na qualidade de carregador, contrato que foi consignado num conhecimento de carga emitido em 9 de abril de 2018. No verso desse conhecimento de carga constava uma cláusula atributiva de jurisdição que tinha a seguinte redação:

    «[…] o presente conhecimento de carga é regido e interpretado de acordo com o direito inglês e quaisquer litígios dele decorrentes serão submetidos à High Court of Justice [(England & Wales)] [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales), Reino Unido], ficando excluída a competência jurisdicional dos tribunais de outro país. Por outro lado, o transportador tem o poder discricionário de intentar uma ação contra o operador perante o tribunal competente do local onde o operador exerce a sua atividade».

    14

    As mercadorias em causa foram adquiridas pela Oversea Atlantic Fish SL (a seguir «Oversea»), tornando‑se esta, assim, terceiro portador do conhecimento de carga. Na medida em que as referidas mercadorias chegaram danificadas ao porto de destino, a Allianz, sub‑rogada nos direitos da Oversea, intentou uma ação no Juzgado de lo Mercantil n.o 3 de Pontevedra (Tribunal de Comércio n.o 3 de Pontevedra, Espanha), pedindo à Maersk o pagamento do montante de 67449,71 euros a título de danos e juros. Esta ação foi intentada antes do termo do período de transição previsto no artigo 126.o do Acordo de Saída.

    15

    Invocando a cláusula atributiva de jurisdição mencionada no n.o 13 do presente acórdão, a Maersk contestou a competência dos órgãos jurisdicionais espanhóis.

    16

    Por Despacho de 26 de maio de 2020, o Juzgado de lo Mercantil n.o 3 de Pontevedra (Tribunal de Comércio de Pontevedra) julgou improcedente essa exceção de competência. A Maersk interpôs recurso deste despacho nesse órgão jurisdicional, ao qual foi negado provimento por Despacho de 2 de dezembro de 2020. Por outro lado, por Acórdão de 7 de julho de 2021, o referido órgão jurisdicional julgou procedente, quanto ao mérito, a ação da Allianz.

    17

    A Maersk recorreu deste acórdão na Audiencia Provincial de Pontevedra (Audiência Provincial de Pontevedra, Espanha), que é o órgão jurisdicional de reenvio, contestando a competência dos órgãos jurisdicionais espanhóis com o fundamento de que a referida cláusula atributiva de jurisdição é oponível ao terceiro portador do conhecimento de carga. Com efeito, há que aplicar o artigo 25.o do Regulamento Bruxelas I‑A, e não o artigo 251.o da LNM, o qual é contrário ao direito da União.

    18

    O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se a mesma cláusula atributiva de jurisdição é oponível ao terceiro portador do conhecimento de carga, apesar de este não o ter consentido de forma expressa, individual e separada quando adquiriu esse conhecimento de carga. Resulta do Acórdão de 18 de novembro de 2020, DelayFix (C‑519/19, EU:C:2020:933), que o Regulamento Bruxelas I‑A reforça a autonomia da vontade das partes contratantes na escolha da jurisdição aplicável em relação ao que se verificava na vigência do Regulamento Bruxelas I.

    19

    Por outro lado, decorre nomeadamente do n.o 27 do Acórdão de 16 de março de 1999, Castelletti (C‑159/97, EU:C:1999:142), que, no setor do tráfego marítimo internacional, existe uma presunção do conhecimento e do consentimento por parte da parte contratante quanto às cláusulas atributivas de jurisdição que figuram nos contratos de transporte, uma vez que se trata de uma estipulação comummente utilizada nesse setor.

    20

    Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha o caráter autónomo e a separabilidade das cláusulas atributivas de jurisdição, pelo que estas podem estar sujeitas, no que respeita à lei material aplicável, a um regime jurídico distinto do resto do contrato em que se inserem. Assim, uma cláusula atributiva de jurisdição pode ser válida mesmo que o próprio contrato seja nulo.

    21

    No caso específico dos conhecimentos de carga em matéria de transporte de mercadorias, que incluem uma cláusula atributiva de jurisdição e que são posteriormente adquiridos por um terceiro, o artigo 251.o da LNM remete para o artigo 468.o da LNM, o qual dispõe que essa cláusula é nula se não tiver sido negociada individual e separadamente por esse terceiro.

    22

    Esta regulamentação justifica‑se na exposição de motivos da LNM pela necessidade de proteger os interesses dos destinatários nacionais, portadores de conhecimentos de carga nos quais as partes originais inseriram uma cláusula atributiva de jurisdição, e que se encontram numa posição contratual mais frágil, nomeadamente no caso dos contratos de transporte marítimo com conhecimento de carga de linha regular. Com efeito, obrigar as empresas nacionais, os carregadores e os destinatários das mercadorias a submeterem os seus litígios a tribunais estrangeiros poderia, na prática, enfraquecer a sua proteção judicial.

    23

    O órgão jurisdicional de reenvio sustenta que seria problemático aplicar o artigo 251.o da LNM para colmatar eventuais lacunas existentes no direito da União. Além disso, existe uma contradição entre esta disposição e a jurisprudência do Tribunal de Justiça resultante, nomeadamente, do Acórdão de 9 de novembro de 2000, Coreck (C‑387/98, EU:C:2000:606, n.o 23). Com efeito, uma vez que, por força do direito espanhol, as cláusulas atributivas de jurisdição e as cláusulas de arbitragem só vinculam as partes se forem o resultado comprovado de uma negociação individual e separada, a cessão dos direitos decorrentes de um conhecimento de carga teria sido incompleta.

    24

    Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a eventual inaplicabilidade da legislação nacional em causa no processo principal.

    25

    Com efeito, primeiro, o órgão jurisdicional de reenvio considera, baseando‑se tanto no artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A como na jurisprudência resultante dos Acórdãos de 3 de julho de 1997, Benincasa (C‑269/95, EU:C:1997:337), e de 18 de novembro de 2020, DelayFix (C‑519/19, EU:C:2020:933), que a validade de uma cláusula atributiva de jurisdição deve ser examinada à luz da lei do Estado ao qual esta cláusula atribui a competência, pelo que, no caso em apreço, há que aplicar o direito inglês, e não o artigo 468.o da LNM. Segundo, admitindo que o artigo 251.o da LNM é aplicável ao litígio no processo principal, esse órgão jurisdicional considera que a forma que o consentimento a uma cláusula atributiva de jurisdição deve revestir é regulada pelo direito da União e não pelo direito nacional, a fim de evitar que cada Estado‑Membro imponha condições diferentes a este respeito. Terceiro, o referido órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à conformidade do artigo 251.o da LNM com a jurisprudência resultante do Acórdão de 9 de novembro de 2000, Coreck (C‑387/98, EU:C:2000:606), uma vez que, por força desta disposição, os direitos e as obrigações relativos a uma cláusula atributiva de jurisdição contida num conhecimento de carga estão excluídos dos que são transferidos para o terceiro portador desse conhecimento de carga.

    26

    Nestas condições, a Audiencia Provincial de Pontevedra (Audiência Provincial de Pontevedra) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    A norma do artigo 25.o do [Regulamento Bruxelas I‑A], que prevê que a nulidade do pacto de jurisdição deve ser apreciada à luz da lei do Estado‑Membro designado competente pelas partes, abrange também, numa situação como a do processo principal, a questão da validade da extensão da cláusula a um terceiro que não é parte no contrato onde se insere a cláusula?

    2)

    Em caso de transferência do conhecimento de [carga] a um terceiro, destinatário da mercadoria, que não teve intervenção no contrato entre o carregador e o transportador marítimo, é compatível com o artigo 25.o do [Regulamento Bruxelas I‑A], e com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia relativa à sua interpretação, uma norma como a do artigo 251.o da [LNM], que exige, para que a cláusula de jurisdição seja oponível a esse terceiro, que esta seja negociada com o mesmo “individual e separadamente”?

    3)

    É possível, de acordo com o direito da União Europeia, que a legislação dos Estados‑Membros imponha requisitos adicionais de validade para que cláusulas de jurisdição incluídas em conhecimentos de [carga] produzam efeitos relativamente a terceiros?

    4)

    Uma norma como a do artigo 251.o da [LNM], que prevê que a cessão da posição contratual do terceiro portador é apenas parcial, excluindo as cláusulas de extensão de jurisdição, implica a introdução de um requisito adicional de validade destas cláusulas, contrária ao artigo 25.o do Regulamento [Bruxelas I‑A]?»

    Processo C‑346/22

    27

    A MACS, na qualidade de transportador, e a Tunacor Fisheries Ltd, na qualidade de carregador, celebraram um contrato de transporte marítimo de mercadorias sujeito às condições CFR (custo e frete), que foi consignado num conhecimento de carga emitido em 13 de abril de 2019. No verso desse conhecimento de carga constava uma cláusula atributiva de jurisdição que tinha a seguinte redação:

    «O presente conhecimento de carga é regido pelo direito inglês e quaisquer litígios dele decorrentes serão submetidos à High Court of Justice [(England & Wales)] [Tribunal Superior de Justiça (Inglaterra e País de Gales)].»

    28

    As mercadorias em causa foram adquiridas pela Fortitude Fishing SL (a seguir «Fortitude»), tornando‑se esta, assim, terceiro portador do conhecimento de carga. Na medida em que as referidas mercadorias chegaram danificadas ao porto de destino, a Mapfre, sub‑rogada nos direitos da Fortitude, intentou uma ação no Juzgado de lo Mercantil n.o 3 de Pontevedra (Tribunal de Comércio n.o 3 de Pontevedra), pedindo à MACS um pagamento no montante de 80187,90 euros a título de danos e juros. Esta ação foi intentada antes do termo do período de transição previsto no artigo 126.o do Acordo de Saída.

    29

    Invocando a cláusula atributiva de jurisdição mencionada no n.o 27 do presente acórdão, a MACS contestou a competência dos órgãos jurisdicionais espanhóis.

    30

    Por Despacho de 3 de maio de 2021, o Juzgado de lo Mercantil n.o 3 de Pontevedra (Tribunal de Comércio de Pontevedra) declarou‑se incompetente.

    31

    A Mapfre recorreu desta decisão na Audiencia Provincial de Pontevedra (Audiência Provincial de Pontevedra), que é também o órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑346/22, alegando, por um lado, que os órgãos jurisdicionais espanhóis eram competentes, uma vez que a Fortitude não era parte no contrato de transporte celebrado entre a MACS e a Tunacor Fisheries nem interveio nesse transporte e, por outro, que, por força do artigo 251.o da LNM, a referida cláusula atributiva de jurisdição não lhe é oponível.

    32

    Em contrapartida, a MACS contesta a competência dos órgãos jurisdicionais espanhóis pelo facto de a mesma cláusula atributiva de jurisdição ser oponível ao terceiro portador do conhecimento de carga. Com efeito, há que aplicar o artigo 25.o do Regulamento Bruxelas I‑A, e não o artigo 251.o da LNM, o qual é contrário ao direito da União.

    33

    Tendo as mesmas dúvidas que as evocadas no processo C‑345/22, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais, no essencial, idênticas às submetidas nesse processo.

    Processo C‑347/22

    34

    A Maersk Line Perú, na qualidade de transportador, e a Aquafrost, na qualidade de carregador, celebraram um contrato de transporte marítimo de mercadorias sujeito às condições CFR (custo e frete), que foi consignado num conhecimento de carga emitido em 2 de agosto de 2018. No verso desse conhecimento de carga constava uma cláusula atributiva de jurisdição redigida em termos idênticos aos da cláusula atributiva de jurisdição em causa no processo C‑345/22.

    35

    As mercadorias em causa foram adquiridas pela Oversea, tornando‑se esta, assim, terceiro portador do conhecimento de carga. Na medida em que as referidas mercadorias chegaram danificadas ao porto de destino, a Allianz, sub‑rogada nos direitos da Oversea, intentou uma ação no Juzgado de lo Mercantil n.o 3 de Pontevedra (Tribunal de Comércio de Pontevedra), pedindo à Maersk um pagamento no montante de 106093,65 euros a título de danos e juros. Esta ação foi intentada antes do termo do período de transição previsto no artigo 126.o do Acordo de Saída.

    36

    Invocando a cláusula atributiva de jurisdição mencionada no n.o 34 do presente acórdão, a Maersk contestou a competência dos órgãos jurisdicionais espanhóis.

    37

    Por Despacho de 20 de outubro de 2020, o Juzgado de lo Mercantil n.o 3 de Pontevedra (Tribunal de Comércio de Pontevedra) julgou improcedente essa exceção. A Maersk não interpôs recurso desta decisão. Por outro lado, por Acórdão de 9 de julho de 2021, esse órgão jurisdicional julgou procedente, quanto ao mérito, a ação da Allianz.

    38

    A Maersk recorreu desta decisão na Audiencia Provincial de Pontevedra (Audiência Provincial de Pontevedra), que é também o órgão jurisdicional de reenvio no processo C‑347/22, contestando a competência dos órgãos jurisdicionais espanhóis com o fundamento de que a referida cláusula atributiva de jurisdição é oponível ao terceiro portador do conhecimento de carga. Com efeito, há que aplicar o artigo 25.o do Regulamento Bruxelas I‑A, e não o artigo 251.o da LNM, o qual é contrário ao direito da União.

    39

    Tendo as mesmas dúvidas que as evocadas no processo C‑345/22, o órgão jurisdicional de reenvio decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça questões prejudiciais, no essencial, idênticas às submetidas nesse processo.

    Tramitação processual no Tribunal de Justiça

    40

    Por Decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 15 de julho de 2022, os processos C‑345/22, C‑346/22 e C‑347/22 foram apensados para efeitos da fase escrita e oral e da decisão que ponha termo à instância.

    Quanto às questões prejudiciais

    Observações preliminares

    41

    Quanto à questão de saber se o âmbito de aplicação do Regulamento Bruxelas I‑A, cuja interpretação é solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio, abrange uma situação como a que está em causa nos processos principais, importa salientar, por um lado, que, através das cláusulas atributivas de jurisdição em causa nesses processos, a competência para conhecer dos litígios decorrentes dos contratos de transporte marítimo em causa nos referidos processos foi atribuída a um órgão jurisdicional do Reino Unido e, por outro, que o Acordo de saída entrou em vigor em 1 de fevereiro de 2020.

    42

    Assim sendo, por força do artigo 67.o, n.o 1, alínea a), do Acordo de saída, as disposições relativas à competência que figuram no Regulamento Bruxelas I‑A aplicam‑se no Reino Unido bem como nos Estados‑Membros em situações que envolvam este Estado, aos processos judiciais intentados antes do termo do período de transição previsto no artigo 126.o deste acordo (Acórdão de 24 de novembro de 2022, Tilman,C‑358/21, EU:C:2022:923, n.o 28).

    43

    Além disso, nos termos do artigo 127.o, n.os 1 e 3, do referido acordo, durante esse período de transição, o direito da União é, por um lado, aplicável ao Reino Unido e, por outro, interpretado e aplicado em conformidade com os mesmos métodos e princípios gerais que são aplicáveis na União.

    44

    Por conseguinte, visto que resulta das decisões de reenvio que a Allianz e a Mapfre intentaram as respetivas ações antes de 31 de dezembro de 2020 e, portanto, antes do termo do referido período de transição, há que constatar, à semelhança do Governo Espanhol e da Comissão Europeia nas suas observações escritas, que, não obstante a saída do Reino Unido da União, o Regulamento Bruxelas I‑A é aplicável aos litígios nos processos principais.

    Quanto à primeira questão em cada um dos processos apensos

    45

    Com a sua primeira questão em cada um dos processos apensos, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A deve ser interpretado no sentido de que a oponibilidade de uma cláusula atributiva de jurisdição ao terceiro portador do conhecimento de carga em que essa cláusula está inserida é regulada pelo direito do Estado‑Membro de um ou vários órgãos jurisdicionais designados por essa cláusula.

    46

    Nos termos do artigo 25.o, n.o 1, primeiro período, do Regulamento Bruxelas I‑A, «[s]e as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado‑Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado‑Membro, substantivamente nulo».

    47

    Assim, esta disposição não esclarece se uma cláusula atributiva de jurisdição pode ser cedida, para além do círculo das partes num contrato, a um terceiro, parte num contrato ulterior e que sucede, total ou parcialmente, nos direitos e nas obrigações de uma das partes no contrato inicial (Acórdão de 18 de novembro de 2020, DelayFix,C‑519/19, EU:C:2020:933, n.o 40 e jurisprudência referida).

    48

    Além disso, embora resulte do artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A que a validade substantiva de uma cláusula atributiva de jurisdição é apreciada à luz do direito do Estado‑Membro de um ou vários órgãos jurisdicionais designados por essa cláusula, não é menos verdade que a oponibilidade dessa cláusula a um terceiro no contrato, como um terceiro portador do conhecimento de carga, não se enquadra na validade substantiva dessa cláusula, como salientou o advogado‑geral nos n.os 54 a 56 das suas conclusões, mas nos seus efeitos, cuja apreciação sucede necessariamente à da sua validade substantiva, devendo esta última ser efetuada tendo em consideração as relações entre as partes iniciais do contrato.

    49

    Por conseguinte, o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A não especifica os efeitos de uma cláusula atributiva de jurisdição em relação a um terceiro nem o direito nacional aplicável a este respeito.

    50

    Assim sendo, há que recordar que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, relativa ao artigo 17.o, primeiro parágrafo, da Convenção de Bruxelas e ao artigo 23.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I, que uma cláusula atributiva de jurisdição inserida num conhecimento de carga é oponível a um terceiro no contrato quando tiver sido considerada válida na relação entre o carregador e o transportador e, nos termos do direito nacional aplicável, o terceiro portador, ao adquirir esse conhecimento de carga, tiver sucedido nos direitos e obrigações do carregador. Nesse caso, não é necessário que o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se verifique se esse terceiro aceitou essa cláusula (Acórdãos de 19 de junho de 1984, Russ,71/83, EU:C:1984:217, n.os 24 e 25, e de 7 de fevereiro de 2013, Refcomp,C‑543/10, EU:C:2013:62, n.o 34 e jurisprudência referida).

    51

    O Tribunal de Justiça deduziu daí, relativamente a estas disposições da Convenção de Bruxelas e do Regulamento Bruxelas I, que unicamente no caso de, em conformidade com o direito nacional substantivo aplicável, conforme determinado em aplicação das regras de direito internacional privado do órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se, o terceiro portador do conhecimento de carga ter sucedido ao contratante originário em todos os direitos e obrigações é que uma cláusula atributiva de jurisdição a que este terceiro não deu o seu consentimento pode, no entanto, ser invocada contra este último (Acórdãos de 9 de novembro de 2000, Coreck,C‑387/98, EU:C:2000:606, n.os 24, 25 e 30, e de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide,C‑352/13, EU:C:2015:335, n.o 65). Inversamente, quando o direito nacional aplicável não prevê uma relação de substituição dessa natureza, esse órgão jurisdicional deve verificar a realidade do consentimento do referido terceiro a essa cláusula (Acórdão de 7 de fevereiro de 2013, Refcomp,C‑543/10, EU:C:2013:62, n.o 36 e jurisprudência referida).

    52

    Embora seja verdade que o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A está redigido em termos parcialmente diferentes do artigo 17.o, primeiro parágrafo, da Convenção de Bruxelas e do artigo 23.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I, importa, todavia, constatar, à semelhança do advogado‑geral nos n.os 51 a 54 das suas conclusões e como resulta, em substância, do Acórdão de 24 de novembro de 2022, Tilman (C‑358/21, EU:C:2022:923, n.o 34), que a jurisprudência exposta nos n.os 50 e 51 do presente acórdão é transponível para esta disposição do Regulamento Bruxelas I‑A.

    53

    Com efeito, por um lado, uma vez que o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A já não prevê uma condição segundo a qual pelo menos uma das partes deve ter domicílio num Estado‑Membro, há que constatar que a supressão desta exigência reforça a autonomia da vontade das partes quanto à escolha do órgão ou órgãos jurisdicionais competentes, sem que essa supressão tenha influência na definição dos efeitos de uma cláusula atributiva de jurisdição em relação a um terceiro no contrato. Por outro lado, uma vez que esta disposição passa a designar o direito nacional aplicável para apreciar a validade substantiva dessa cláusula, há que considerar, tendo em conta o que resulta do n.o 48 do presente acórdão, que esta nova regra de conflito de leis não regula, em contrapartida, a oponibilidade da cláusula em causa a esse terceiro.

    54

    Por conseguinte, se, no caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio vier a declarar que a Oversea e a Fortitude, na qualidade de terceiros portadores de conhecimentos de carga, ficam, respetivamente, sub‑rogadas na totalidade dos direitos e obrigações da Aquafrost e da Tunacor Fisheries, enquanto carregadores e, portanto, de partes iniciais nos contratos de transporte em causa nos processos principais, esse órgão jurisdicional deve deduzir daí, em conformidade com o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A, conforme interpretado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, que as cláusulas atributivas de jurisdição em causa nesses processos são oponíveis a esses terceiros. Em contrapartida, esta disposição não é pertinente no âmbito da apreciação da questão de saber se os referidos terceiros ficam sub‑rogados na totalidade dos direitos e das obrigações desses carregadores, sendo esta sub‑rogação regulada pelo direito nacional substantivo aplicável, conforme determinado em aplicação das regras de direito internacional privado do Estado‑Membro a que pertence o órgão jurisdicional de reenvio.

    55

    Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão em cada um dos processos apensos que o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A deve ser interpretado no sentido de que a oponibilidade de uma cláusula atributiva de jurisdição ao terceiro portador do conhecimento de carga em que essa cláusula está inserida não é regulada pelo direito do Estado‑Membro de um ou vários órgãos jurisdicionais designados por essa cláusula. A referida cláusula é oponível a este terceiro se, ao adquirir esse conhecimento de carga, ficar sub‑rogado na totalidade dos direitos e obrigações de uma das partes iniciais do contrato, o que deve ser apreciado em conformidade com o direito nacional substantivo aplicável, como determinado em aplicação das regras de direito internacional privado do Estado‑Membro do órgão jurisdicional chamado a conhecer do litígio.

    Quanto à segunda a quarta questões em cada um dos processos apensos

    56

    Com a segunda a quarta questões em cada um dos processos apensos, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional por força da qual um terceiro num contrato de transporte de mercadorias celebrado entre um transportador e um carregador, terceiro este que adquire o conhecimento de carga em que esse contrato está consignado e se torna, assim, portador desse conhecimento de carga, fica sub‑rogado na totalidade dos direitos e obrigações desse carregador, com exceção dos que decorrem de uma cláusula atributiva de jurisdição inserida no referido conhecimento de carga, sendo essa cláusula unicamente oponível a esse terceiro se este a tiver negociado individual e separadamente.

    57

    Tendo em conta o que resulta dos n.os 50 a 52 e 55 do presente acórdão, há que interpretar o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A no sentido de que uma cláusula atributiva de jurisdição inserida num conhecimento de carga é oponível ao terceiro portador desse conhecimento de carga quando, por um lado, foi considerada válida na relação entre o carregador e o transportador que celebraram o contrato de transporte consignado no referido conhecimento de carga e que, por outro, nos termos do direito nacional aplicável, conforme determinado em aplicação das regras de direito internacional privado do Estado‑Membro do órgão jurisdicional chamado a conhecer do litígio, este terceiro, ao adquirir o mesmo conhecimento de carga, fica sub‑rogado na totalidade dos direitos e obrigações de uma dessas partes iniciais do contrato.

    58

    Ora, no caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio não forneceu informações suscetíveis de pôr em causa a validade das cláusulas atributivas de jurisdição em causa nos processos principais. Por conseguinte, incumbirá a esse órgão jurisdicional verificar se, nos termos do direito nacional aplicável, cada um dos terceiros portadores de conhecimentos de carga em causa nesses processos fica sub‑rogado na totalidade dos direitos e obrigações dos carregadores em causa. Se for esse o caso, não é necessário verificar a realidade do consentimento de cada um destes terceiros relativamente a essas cláusulas.

    59

    A este respeito, como resulta das decisões de reenvio, o órgão jurisdicional de reenvio parece considerar que o direito espanhol é o direito nacional aplicável. Todavia, o artigo 251.o da LNM, lido em conjugação com o artigo 468.o desta lei, prevê, em substância, que o adquirente do conhecimento de carga adquire todos os direitos e ações do cedente sobre as mercadorias, com exceção das cláusulas atributivas de jurisdição, que carecem do consentimento do adquirente, sendo essas cláusulas nulas e consideradas inexistentes caso não tenham sido negociadas individual e separadamente.

    60

    Por conseguinte, há que constatar, à semelhança da Comissão nas suas observações escritas e do advogado‑geral no n.o 61 das suas conclusões, que essa legislação nacional tem por efeito contornar o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A, conforme interpretado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, e é, portanto, contrária a esta última disposição.

    61

    Com efeito, segundo as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, o artigo 251.o da LNM, lido em conjugação com o artigo 468.o desta lei, impõe aos órgãos jurisdicionais nacionais em causa que verifiquem a existência do consentimento de um terceiro a uma cláusula atributiva de jurisdição inserida no conhecimento de carga que adquire, ainda que fique sub‑rogado na totalidade dos direitos e obrigações do carregador que celebrou o contrato consignado nesse conhecimento de carga.

    62

    Além disso, há que salientar que esta regulamentação nacional não respeita a jurisprudência resultante do Acórdão de 9 de novembro de 2000, Coreck (C‑387/98, EU:C:2000:606, n.o 25), uma vez que tem por efeito conferir mais direitos ao terceiro portador do conhecimento de carga do que detinha o carregador ao qual sucedeu, podendo este terceiro optar por não estar vinculado pela extensão de competência celebrada entre as partes iniciais do contrato.

    63

    Nestas condições, há que recordar que, para garantir a efetividade de todas as disposições do direito da União, o princípio do primado impõe, nomeadamente, aos órgãos jurisdicionais nacionais que interpretem, na medida possível, o seu direito interno em conformidade com o direito da União [Acórdão de 8 de março de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Efeito direto), C‑205/20, EU:C:2022:168, n.o 35 e jurisprudência referida].

    64

    A obrigação de interpretação conforme do direito nacional conhece, todavia, certos limites e não pode, designadamente, servir de fundamento a uma interpretação contra legem do direito nacional [Acórdão de 8 de março de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Efeito direto), C‑205/20, EU:C:2022:168, n.o 36 e jurisprudência referida].

    65

    Importa, também, recordar que o princípio do primado impõe ao juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito da União, a obrigação, na impossibilidade de proceder a uma interpretação da regulamentação nacional conforme com as exigências do direito da União, de assegurar o pleno efeito das exigências deste direito no litígio que é chamado a decidir, afastando, se necessário, a aplicação, por sua própria iniciativa, de qualquer regulamentação ou prática nacional, ainda que posterior, nos casos em que seja contrária a uma disposição do direito da União diretamente aplicável, como uma disposição de um regulamento, sem que tenha de pedir ou de esperar pela supressão prévia desta regulamentação ou prática nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional [v., neste sentido, Acórdãos de 21 de janeiro de 2021, Whiteland Import Export,C‑308/19, EU:C:2021:47, n.o 31, e de 8 de março de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg‑Fürstenfeld (Efeito direto), C‑205/20, EU:C:2022:168, n.os 37 e 57 e jurisprudência referida].

    66

    No caso em apreço, o artigo 251.o da LNM remete para as disposições do título IX, capítulo I, desta lei no que respeita à exigência relativa ao consentimento do adquirente de um conhecimento de carga às cláusulas atributivas de jurisdição inseridas nesse conhecimento de carga. Ora, o artigo 468.o da LNM, que faz parte deste capítulo I, prevê que é «[s]em prejuízo […] das regras do direito da União, [que] as cláusulas contidas nos contratos de utilização de um navio ou nos contratos acessórios de transporte marítimo que preveem a submissão a uma jurisdição estrangeira ou a uma arbitragem no estrangeiro são nulas e consideradas inexistentes caso não tenham sido negociadas individual e separadamente».

    67

    Por conseguinte, incumbirá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se o artigo 251.o da LNM, lido em conjugação com o artigo 468.o desta lei, pode ser interpretado no sentido de que a regra nele prevista, segundo a qual o adquirente do conhecimento de carga adquire todos os direitos e ações do cedente sobre as mercadorias, com exceção das cláusulas atributivas de jurisdição e das cláusulas de arbitragem se estas não tiverem sido negociadas individual e separadamente por esse adquirente, só é aplicável a uma situação se esta última não estiver abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A. Se esse órgão jurisdicional vier a concluir que não é esse o caso, deve deixar de aplicar essa norma nacional nos litígios nos processos principais, visto que é contrária a essa disposição do direito da União diretamente aplicável.

    68

    Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à segunda a quarta questões em cada um dos processos apensos que o artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento Bruxelas I‑A deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional por força da qual um terceiro num contrato de transporte de mercadorias celebrado entre um transportador e um carregador, terceiro este que adquire o conhecimento de carga em que esse contrato está consignado e se torna, assim, portador desse conhecimento de carga, fica sub‑rogado na totalidade dos direitos e obrigações desse carregador, com exceção dos que decorrem de uma cláusula atributiva de jurisdição inserida no referido conhecimento de carga, sendo essa cláusula unicamente oponível a esse terceiro se este a tiver negociado individual e separadamente.

    Quanto às despesas

    69

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sexta Secção) declara:

     

    1)

    O artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

    deve ser interpretado no sentido de que:

    a oponibilidade de uma cláusula atributiva de jurisdição ao terceiro portador do conhecimento de carga em que essa cláusula está inserida não é regulada pelo direito do Estado‑Membro de um ou vários órgãos jurisdicionais designados por essa cláusula. A referida cláusula é oponível a este terceiro se, ao adquirir esse conhecimento de carga, ficar sub‑rogado na totalidade dos direitos e obrigações de uma das partes iniciais do contrato, o que deve ser apreciado em conformidade com o direito nacional substantivo aplicável, como determinado em aplicação das regras de direito internacional privado do Estado‑Membro do órgão jurisdicional chamado a conhecer do litígio.

     

    2)

    O artigo 25.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1215/2012

    deve ser interpretado no sentido de que:

    se opõe a uma regulamentação nacional por força da qual um terceiro num contrato de transporte de mercadorias celebrado entre um transportador e um carregador, terceiro este que adquire o conhecimento de carga em que esse contrato está consignado e se torna, assim, portador desse conhecimento de carga, fica sub‑rogado na totalidade dos direitos e obrigações desse carregador, com exceção dos que decorrem de uma cláusula atributiva de jurisdição inserida no referido conhecimento de carga, sendo essa cláusula unicamente oponível a esse terceiro se este a tiver negociado individual e separadamente.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: espanhol.

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