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Document 62022CJ0042

Acórdão do Tribunal de Justiça (Nona Secção) de 9 de março de 2023.
Generali Seguros, S. A., contra Autoridade Tributária e Aduaneira.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal Administrativo.
Reenvio prejudicial — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Isenção do IVA — Artigo 135.°, n.° 1, alínea a) — Isenção das operações de seguro e de resseguro — Artigo 136.°, alínea a) — Isenção das entregas de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta — Conceito de “operações de seguro” — Revenda de salvados adquiridos aos segurados — Princípio da neutralidade fiscal.
Processo C-42/22.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:183

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

9 de março de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Isenção do IVA — Artigo 135.o, n.o 1, alínea a) — Isenção das operações de seguro e de resseguro — Artigo 136.o, alínea a) — Isenção das entregas de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta — Conceito de “operações de seguro” — Revenda de salvados adquiridos aos segurados — Princípio da neutralidade fiscal»

No processo C‑42/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), por Decisão de 16 de dezembro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 19 de janeiro de 2022, no processo

Generali Seguros, S.A., anteriormente Global — Companhia de Seguros, S.A.,

contra

Autoridade Tributária e Aduaneira,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: L. S. Rossi, presidente de secção, J.‑C. Bonichot e O. Spineanu‑Matei (relatora), juízes,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Generali Seguros, S.A., por P. Braz, advogado,

em representação do Governo português, por P. Barros da Costa, C. Bento, R. Campos Laires e A. Rodrigues, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por P. Caro de Sousa e J. Jokubauskaitė, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1; a seguir «Diretiva IVA»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Generali Seguros, S.A., anteriormente Global — Companhia de Seguros, S.A., uma seguradora, à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal), a respeito do caráter tributável ou isento, para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), de operações de revenda de salvados realizadas por esta companhia de seguros.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos do considerando 66 da Diretiva IVA:

«A obrigação de transpor a presente diretiva para o direito nacional deverá limitar‑se às disposições que constituam alterações de fundo relativamente às diretivas anteriores. A obrigação de transpor as disposições inalteradas decorre das diretivas anteriores.»

4

O artigo 1.o, n.o 2, desta diretiva dispõe:

«O princípio do sistema comum do IVA consiste em aplicar aos bens e serviços um imposto geral sobre o consumo exatamente proporcional ao preço dos bens e serviços, seja qual for o número de operações ocorridas no processo de produção e de distribuição anterior ao estádio de tributação.

Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço.

[...]»

5

O artigo 2.o, n.o 1, alínea a), da referida diretiva prevê:

«Estão sujeitas ao IVA as seguintes operações:

a)

As entregas de bens efetuadas a título oneroso no território de um Estado‑Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade».

6

Nos termos do artigo 14.o, n.o 1, da mesma diretiva:

«Entende‑se por “entrega de bens” a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário.»

7

O artigo 24.o, n.o 1, da Diretiva IVA tem a seguinte redação:

«Entende‑se por “prestação de serviços” qualquer operação que não constitua uma entrega de bens.»

8

O artigo 135.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva dispõe:

«Os Estados‑Membros isentam as seguintes operações:

a)

As operações de seguro e de resseguro, incluindo as prestações de serviços relacionadas com essas operações efetuadas por corretores e intermediários de seguros».

9

O artigo 136.o, alínea a), da referida diretiva enuncia:

«Os Estados‑Membros isentam as seguintes operações:

a)

As entregas de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta por força do disposto nos artigos 132.°, 135.°, 371.°, 375.°, 376.°, 377.°, no n.o 2 do artigo 378.o, no n.o 2 do artigo 379.o e nos artigos 380.° a 390.°, desde que tais bens não tenham conferido direito à dedução do IVA».

10

As disposições reproduzidas nos n.os 8 e 9 do presente acórdão correspondem, respetivamente, ao artigo 13.o, B, alínea a), e ao artigo 13.o, B, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme (JO 1977, L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54; a seguir «Sexta Diretiva»).

Direito português

11

O artigo 9.o, pontos 29 e 33, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, aprovado pelo Decreto‑Lei n.o 394‑B/84, de 26 de dezembro de 1984 (Diário da República, I série‑A, n.o 297, de 26 de dezembro de 1984), na sua versão aplicável aos factos do litígio no processo principal (a seguir «Código do IVA»), dispõe:

«Estão isentas do imposto:

[...]

29)

As operações de seguro e resseguro, bem como as prestações de serviços conexas, efetuadas pelos corretores e intermediários de seguro;

[...]

33)

As transmissões de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta, quando não tenham sido objeto do direito à dedução, e bem assim as transmissões de bens cuja aquisição ou afetação tenha sido feita com exclusão do direito à dedução nos termos do n.o 1 do artigo 21.o»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12

A Generali Seguros é uma companhia de seguros que, no âmbito das suas atividades, efetua a aquisição de salvados resultantes de sinistros ocorridos com os seus segurados e, em seguida, procede à sua revenda a terceiros, sem liquidar o IVA sobre essas vendas.

13

Em resultado de uma ação de inspeção respeitante ao exercício de 2007, a Autoridade Tributária e Aduaneira considerou que as vendas de salvados efetuadas pela Generali Seguros, por se considerarem transmissões de bens corpóreos a título oneroso, estavam sujeitas ao pagamento do IVA nos termos do Código do IVA e não podiam beneficiar de nenhuma das isenções previstas nesse código. Em consequência, procedeu à liquidação do IVA sobre essas vendas no montante de 17213,70 euros, acrescido de juros compensatórios.

14

A Generali Seguros efetuou o pagamento desse montante, mas contestou estar em dívida no âmbito da impugnação judicial que apresentou no Tribunal Tributário de Lisboa (Portugal).

15

Nesse órgão jurisdicional, a Generali Seguros alegou que a venda de salvados deve ser qualificada, nas circunstâncias em causa no processo principal, como uma operação isenta de IVA. Invocou, por um lado, o artigo 9.o, ponto 29, do Código do IVA, que isenta «as operações de seguro e resseguro, bem como as prestações de serviços conexas, efetuadas pelos corretores e intermediários de seguros», e, por outro, o artigo 9.o, ponto 33, desse código, que isenta «as transmissões de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta, quando não tenham sido objeto do direito à dedução».

16

Por Sentença de 30 de dezembro de 2017, o referido órgão jurisdicional julgou improcedente a impugnação judicial da Generali Seguros.

17

Essa sociedade interpôs recurso da referida sentença para o Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), que é o órgão jurisdicional de reenvio.

18

Nesse órgão jurisdicional, a Generali Seguros alega que a operação de revenda de salvados por uma companhia que exerce como atividade principal a atividade de seguros é conexa com essa atividade e indissociável da atividade normal de negociação e pagamento de indemnizações em caso de sinistro, pelo que se integra no objeto dessa companhia.

19

O referido órgão jurisdicional sublinha que a questão de saber se essa operação está isenta de IVA nos termos do artigo 9.o, ponto 29 ou 33, do Código do IVA, disposições que visam transpor, respetivamente, o artigo 13.o, B, alíneas a) e c), da Sexta Diretiva para o ordenamento jurídico português, é objeto de uma importante controvérsia doutrinal e jurisprudencial em Portugal. Por conseguinte, considera que deve submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial para verificar a qualificação dessa operação à luz das disposições pertinentes dessa diretiva e da Diretiva IVA.

20

Nestas circunstâncias, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O artigo 13.o, [...], [B, alínea a)], da Sexta Diretiva [...] e, por conseguinte, o atual artigo 135.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva do IVA devem ser interpretados no sentido de o conceito de “operações de seguro e de resseguro” compreender, para efeitos de isenção de IVA, atividades conexas ou complementares como a aquisição e venda de salvados?

2)

O artigo 13.o, [...], [B, alínea c)], da Sexta Diretiva [...] e, por conseguinte, o posterior artigo 136.o, alínea a), da Diretiva do IVA devem ser interpretados no sentido de a aquisição e venda de salvados se considerar afeta exclusivamente a uma [atividade] isenta, desde que tais bens não tenham conferido direito à dedução do IVA?

3)

É contrário ao princípio da neutralidade do IVA a não isenção de IVA sobre a venda dos salvados pelas seguradoras, nos casos em que não tenha havido direito à dedução do IVA?»

Quanto às questões prejudiciais

21

Com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre o destino das operações, tendo em conta o sistema comum do IVA, que consistem em uma companhia de seguros proceder à revenda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia, que a mesma adquiriu aos seus segurados.

22

A título preliminar, no que respeita ao direito da União aplicável ratione temporis ao litígio no processo principal, importa salientar que resulta do artigo 413.o da Diretiva IVA que esta entrou em vigor em 1 de janeiro de 2007. O considerando 66 desta diretiva indica que a obrigação de a transpor para o direito nacional deverá limitar‑se às disposições que constituam alterações de fundo relativamente às diretivas anteriores e que a obrigação de transpor as disposições inalteradas decorre das diretivas anteriores.

23

Ora, o artigo 135.o, n.o 1, alínea a), e o artigo 136.o, alínea a), da Diretiva IVA correspondem, respetivamente, ao artigo 13.o, B, alínea a), e ao artigo 13.o, B, alínea c), da Sexta Diretiva, de modo que a obrigação de transposição que lhes diz respeito resulta desta última diretiva. Por conseguinte, uma vez que o litígio no processo principal tem por objeto correções em sede de IVA relativas ao ano de 2007, a Diretiva IVA é aplicável a este litígio (v., por analogia, Acórdão de 4 de outubro de 2017, Federal Express Europe, C‑273/16, EU:C:2017:733, n.os 30 e 31).

24

Além disso, importa igualmente salientar que, embora as questões submetidas digam respeito a operações que consistem na compra, por uma companhia de seguros, de salvados pertencentes aos seus segurados e na revenda desses salvados a terceiros, resulta da decisão de reenvio que o litígio no processo principal se refere unicamente ao tratamento fiscal dessa operação de revenda para efeitos de IVA.

25

Em consequência, para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio que lhe permita decidir este litígio, é necessário reformular as questões submetidas no sentido de que se referem unicamente às operações de revenda a terceiros, por uma companhia de seguros, de salvados adquiridos aos seus segurados.

Quanto à primeira questão

26

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 135.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, estão abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição e, portanto, estão isentas ao abrigo da mesma.

27

É necessário salientar, a título preliminar, que, por um lado, resulta dos elementos dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que, no regime português do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, em caso de sinistro que implique a perda total do veículo coberto pelo seguro, o segurado e a companhia de seguros têm a possibilidade de decidir sobre a transferência da propriedade do salvado para essa companhia. Para esse efeito, esta é obrigada a comunicar o valor a que está disposta a comprar esse salvado ao segurado, a fim de lhe permitir tomar uma decisão. Na hipótese de essa transferência se realizar, a referida companhia procede, em seguida, como aconteceu nas situações em causa no processo principal, à revenda do referido salvado a um terceiro. O montante pago pela companhia de seguros ao segurado inclui o valor do salvado, assim determinado.

28

Por outro lado, importa recordar que as isenções previstas no artigo 135.o, n.o 1, da Diretiva IVA constituem conceitos autónomos do direito da União que têm por objetivo evitar divergências na aplicação do regime do IVA de um Estado‑Membro para outro (Acórdão de 25 de julho de 2018, DPAS, C‑5/17, EU:C:2018:592, n.o 28 e jurisprudência referida), que devem, por conseguinte, ser interpretadas de maneira uniforme no território de todos os Estados‑Membros.

29

Além disso, os termos utilizados para designar as isenções referidas no artigo 135.o da Diretiva IVA são de interpretação estrita, dado que constituem exceções ao princípio geral segundo o qual o IVA é cobrado sobre cada entrega de bens e sobre cada prestação de serviços efetuadas a título oneroso por um sujeito passivo. Todavia, a interpretação desses termos deve ser conforme aos objetivos prosseguidos por essas isenções e respeitar as exigências do princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA. Assim, essa regra de interpretação estrita não significa que os termos utilizados para definir as referidas isenções devam ser interpretados de maneira a privá‑las dos seus efeitos (Acórdão de 17 de janeiro de 2013, Woningstichting Maasdriel, C‑543/11, EU:C:2013:20, n.o 25 e jurisprudência referida).

30

É à luz destas considerações preliminares que é necessário determinar se as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 135.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva IVA.

31

Nos termos desta disposição, os Estados‑Membros isentam as «[a]s operações de seguro e de resseguro, incluindo as prestações de serviços relacionadas com essas operações efetuadas por corretores e intermediários de seguros».

32

O objetivo desta isenção diz respeito essencialmente à dificuldade em determinar a matéria coletável correta de IVA para os prémios de seguro relativos à cobertura do risco [v., neste sentido, Acórdão de 8 de outubro de 2020, United Biscuits (Pensions Trustees) e United Biscuits Pension Investments, C‑235/19, EU:C:2020:801, n.o 32].

33

No que respeita, em primeiro lugar, ao conceito de «operações de seguro», na aceção do artigo 135.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva IVA, estas operações caracterizam‑se pelo facto de o segurador, mediante o pagamento prévio de um prémio pelo segurado, se comprometer a fornecer a este último, em caso de realização do risco coberto, a prestação acordada no momento da celebração do contrato [Acórdãos de 25 de fevereiro de 1999, CPP, C‑349/96, EU:C:1999:93, n.o 17, e de 8 de outubro de 2020, United Biscuits (Pensions Trustees) e United Biscuits Investments, C‑235/19, EU:C:2020:801, n.o 30 e jurisprudência referida]. A própria essência dessas operações reside no facto de o segurado se proteger do risco de perdas financeiras, que são incertas mas potencialmente importantes, através de um prémio cujo pagamento é, do seu ponto de vista, certo mas limitado (Acórdão de 16 de julho de 2015, Mapfre asistencia e Mapfre warranty, C‑584/13, EU:C:2015:488, n.o 42).

34

Além disso, a identidade do destinatário da prestação tem importância para efeitos da definição das operações de seguro, as quais implicam, pela sua própria natureza, a existência de uma relação contratual entre o prestador do serviço de seguro e a pessoa cujos riscos são cobertos pelo seguro, ou seja, o segurado (v., por analogia, Acórdãos de 8 de março de 2001, Skandia, C‑240/99, EU:C:2001:140, n.o 41, e de 22 de outubro de 2009, Swiss Re Germany Holding, C‑242/08, EU:C:2009:647, n.o 36).

35

Ora, há que constatar que as operações de venda de salvados, como as que estão em causa no processo principal, ocorrem ao abrigo de convenções distintas de contratos de seguro que cobrem esses veículos, celebrados pela companhia de seguros com pessoas que não os segurados e que não estão abrangidas por uma relação de seguro.

36

Com efeito, a venda de um bem é alheia à cobertura de um risco e o preço corresponde ao valor do bem em causa no momento dessa venda. A determinação da matéria coletável do IVA não suscita dificuldades em tal caso.

37

A este respeito, é irrelevante o facto de, como foi salientado no n.o 27 do presente acórdão, essa operação incidir sobre o salvado resultante de um sinistro coberto pela companhia de seguros que o vendeu e que o montante da indemnização devida ao segurado em consequência desse sinistro inclua o preço de aquisição desse salvado. Com efeito, o valor do salvado constitui o valor residual, após o sinistro, do veículo segurado e, portanto, não faz parte, por definição, do dano sofrido pelo segurado. Por conseguinte, esse preço não faz parte da indemnização de seguro propriamente dita, sendo pago ao segurado em execução de um contrato de compra e venda distinto da convenção de seguro e separável desta.

38

Por conseguinte, uma operação de venda de salvados como as que estão em causa no processo principal não constitui uma «operação de seguro», na aceção do artigo 135.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva IVA.

39

Por último, é necessário constatar que essa operação de venda não pode ser considerada como estando indissociavelmente ligada ao contrato de seguro relativo ao veículo em causa e, por esse facto, como devendo ter o mesmo tratamento fiscal que esse contrato.

40

É certo que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, em determinadas circunstâncias, várias operações formalmente distintas, suscetíveis de ser realizadas separadamente e de dar assim lugar, em cada caso, à tributação ou à isenção, devem ser consideradas uma operação única quando não sejam independentes. Está em causa uma operação única, nomeadamente, quando dois ou vários elementos ou atos fornecidos pelo sujeito passivo ao cliente estão tão estreitamente ligados que formam, objetivamente, uma única prestação económica indissociável, cuja decomposição revestiria um caráter artificial. É também o que sucede nos casos em que uma ou várias prestações constituem uma prestação principal e a outra ou as outras prestações constituem uma ou várias prestações acessórias que partilham do destino fiscal da prestação principal (Acórdão de 16 de abril de 2015, Wojskowa Agencja Mieszkaniowa w Warszawie, C‑42/14, EU:C:2015:229, n.o 31 e jurisprudência referida).

41

No entanto, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que, embora todas as operações de seguro apresentem, por natureza, um nexo com o bem que visam cobrir, pelo que existe uma determinada conexão entre esta operação e uma outra operação relativa a esse mesmo bem, esse nexo não pode bastar, por si só, para determinar se existe ou não uma prestação única complexa para efeitos de IVA (v., neste sentido, Acórdão de 17 de janeiro de 2013, BGŻ Leasing, C‑224/11, EU:C:2013:15, n.o 36).

42

No caso em apreço, como foi referido no n.o 35 do presente acórdão, as vendas dos salvados em causa no processo principal resultam de convenções distintas dos contratos de seguro que cobrem esses veículos e que são celebrados pela companhia de seguros com outras pessoas que não os segurados. Além disso, resulta do n.o 27 do presente acórdão que estes últimos, proprietários originais desses salvados, não são obrigados a cedê‑los a essa companhia, pelo que a decisão desses segurados é independente desses contratos de seguro e tomada posteriormente à sua celebração, e mesmo à materialização do risco coberto.

43

Assim, não se pode considerar que o facto de vendas como as que estão em causa no processo principal serem realizadas por uma companhia de seguros e dizerem respeito a salvados resultantes de sinistros cobertos por essa companhia tenha por consequência que essas vendas e os contratos de seguro relativos a esses veículos estejam tão estreitamente ligados que formem, objetivamente, do ponto de vista económico, um todo cuja decomposição revestiria um caráter artificial.

44

No que respeita, em segundo lugar, ao conceito de «prestações de serviços relacionadas [com] operações [de seguro e de resseguro,] efetuadas por corretores e intermediários de seguros», na aceção do artigo 135.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva IVA, é necessário salientar que as «prestações de serviços» são definidas no artigo 24.o, n.o 1, desta diretiva como qualquer operação que não constitua uma entrega de bens.

45

Ora, a venda de um salvado constitui uma «entrega de bens» na aceção do artigo 14.o, n.o 1, da referida diretiva, que visa a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário. Por conseguinte, essa venda não pode ser abrangida pelo conceito referido no número anterior.

46

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 135.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição.

Quanto à segunda questão

47

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo n.o 136, alínea a), da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição e, portanto, estão isentas ao abrigo da mesma.

48

O artigo 136.o, alínea a), da Diretiva IVA prevê a isenção das entregas de bens afetos exclusivamente a uma atividade isenta por força, nomeadamente, do artigo 135.o desta diretiva, desde que tais bens não tenham conferido direito à dedução do IVA.

49

No âmbito do artigo 136.o, alínea a), da Diretiva IVA, o termo «afetos» refere‑se ao facto de um bem se destinar a uma determinada utilização, no caso em apreço, a ser utilizado para as necessidades de uma atividade que consiste em realizar operações de seguro, conforme definidas nos n.os 33 e 34 do presente acórdão.

50

Ora, tal não é o caso dos bens que uma companhia de seguros adquire, resultantes dos sinistros que cobre e que destina não à utilização no âmbito da sua atividade seguradora, mas a serem revendidos, no estado em que se encontram e sem terem sido utilizados, a terceiros. Esta última circunstância basta, aliás, para demonstrar que esses bens não são relevantes no âmbito dessa atividade seguradora.

51

Por conseguinte, há que responder à segunda questão que o artigo 136.o, alínea a), da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição.

Quanto à terceira questão

52

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe à não isenção das operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, quando essas aquisições não tenham conferido direito à dedução do IVA.

53

O princípio da neutralidade fiscal reflete‑se no regime das deduções, regime que visa desonerar inteiramente o empresário do encargo do IVA devido ou pago no quadro de todas as suas atividades económicas. O sistema comum do IVA garante, por conseguinte, uma neutralidade perfeita quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, independentemente dos respetivos fins ou resultados, desde que essas atividades estejam elas próprias sujeitas a IVA (Acórdão de 13 de março de 2014, Malburg, C‑204/13, EU:C:2014:147, n.o 41 e jurisprudência referida).

54

Embora, como resulta do n.o 29 do presente acórdão, a interpretação das disposições da Diretiva IVA que preveem isenções deva respeitar as exigências do princípio da neutralidade fiscal, este último não permite, no entanto, alargar o âmbito de aplicação de uma isenção na falta de uma disposição inequívoca. Com efeito, este princípio não é uma norma de direito primário que possa determinar a validade de uma isenção, mas um princípio de interpretação que deve ser aplicado paralelamente com o princípio de que as isenções são de interpretação estrita (Acórdãos de 19 de julho de 2012, Deutsche Bank, C‑44/11, EU:C:2012:484, n.o 45, e de 8 de julho de 2021, Rádio Popular, C‑695/19, EU:C:2021:549, n.o 44 e jurisprudência referida).

55

A exclusão de operações como as que estão em causa no processo principal do âmbito de aplicação das isenções previstas no artigo 135.o, n.o 1, alínea a), e no artigo 136.o, alínea a), da Diretiva IVA não pode, por conseguinte, ser posta em causa pelo facto de ser contrária ao princípio da neutralidade fiscal.

56

Por conseguinte, há que responder à terceira questão que o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA deve ser interpretado no sentido de que não se opõe à não isenção das operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, quando essas aquisições não tenham conferido direito à dedução do IVA.

Quanto às despesas

57

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

 

1)

O artigo 135.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado,

deve ser interpretado no sentido de que:

as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição.

 

2)

O artigo 136.o, alínea a), da Diretiva 2006/112

deve ser interpretado no sentido de que:

as operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, não são abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição.

 

3)

O princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado

deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe à não isenção das operações de uma companhia de seguros que consistem na venda a terceiros de salvados, resultantes de sinistros cobertos por essa companhia e que esta adquiriu aos seus segurados, quando essas aquisições não tenham conferido direito à dedução do IVA.

 

Rossi

Bonichot

Spineanu‑Matei

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 9 de março de 2023.

O Secretário

A. Calot Escobar

A Presidente de Secção

L. S. Rossi


( *1 ) Língua do processo: português.

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