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Document 62022CC0792

    Conclusões do advogado-geral Rantos apresentadas em 11 de abril de 2024.


    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2024:302

    Edição provisória

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    ATHANASIOS RANTOS

    apresentadas em 11 de abril de 2024 (1)

    Processo C792/22

    Parchetul de pe lângă Judecătoria Rupea,

    LV,

    CRA,

    LCM

    Processo Penal

    contra

    MG,

    sendo interveniente

    SC Energotehnica SRL Sibiu

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pela Curtea de Apel Braşov (Tribunal de Recurso de Braşov, Roménia)]

    «Reenvio prejudicial — Política social — Diretiva 89/391/CEE — Medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho — Princípio da efetividade do direito da União — Morte de um trabalhador durante uma intervenção — Processo penal e procedimento administrativo paralelos nos órgãos jurisdicionais nacionais — Sentença transitada em julgado do órgão jurisdicional administrativo segundo a qual essa intervenção não constitui um “acidente de trabalho” — Legislação nacional que prevê que essa sentença transitada em julgado tem autoridade de caso julgado perante o órgão jurisdicional penal — Faculdade de o órgão jurisdicional penal qualificar a referida intervenção de “acidente de trabalho” e de aplicar sanções penais e civis»






    I.      Introdução

    1.        Na sequência da morte de um eletricista durante uma intervenção numa instalação elétrica, foi instaurado um procedimento administrativo contra a sociedade empregadora da vítima e, paralelamente, um processo penal contra o encarregado de eletricista que trabalha para esta sociedade, por incumprimento das medidas legais de saúde e de segurança no trabalho e por homicídio por negligência, processo no âmbito do qual a família do eletricista falecido se constituiu parte civil contra a sociedade e o seu trabalhador encarregado.

    2.        No termo do procedimento administrativo, o órgão jurisdicional administrativo, por sentença transitada em julgado, declarou que essa intervenção não constituía um «acidente de trabalho» e, consequentemente, anulou as sanções administrativas aplicadas à sociedade. Além disso, a legislação nacional, conforme interpretada pelo Tribunal Constitucional do Estado‑Membro em causa, prevê que as sentenças transitadas em julgado dos órgãos jurisdicionais não penais sobre uma questão prévia num processo penal têm autoridade de caso julgado perante o órgão jurisdicional penal. Ora, a qualificação da referida intervenção como «acidente de trabalho» constituiria uma questão prévia.

    3.        Opõe‑se a Diretiva 89/391/CEE (2), que visa promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho, a essa legislação nacional, que impede o órgão jurisdicional penal chamado a decidir sobre a questão de apreciar se a mesma intervenção pode ser qualificada de «acidente de trabalho» e, assim, aplicar sanções penais ou civis à entidade patronal e ao seu [trabalhador] encarregado? Esta é, no essencial, a questão submetida pela Curtea de Apel Braşov (Tribunal de Recurso de Braşov, Roménia), o órgão jurisdicional penal no processo principal.

    4.        O presente processo, de caráter inédito, dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de especificar as modalidades de articulação das vias de recurso nacionais para que, no âmbito da aplicação da Diretiva 89/391, seja garantido o respeito pelo princípio da efetividade do direito da União para as partes interessadas e, em especial, a proteção dos direitos de defesa.

    II.    Quadro jurídico

    A.      Direito da União

    5.        A secção I da Diretiva 89/391, intitulada «Disposições gerais», inclui os seus artigos 1.° a 4.° O artigo 1.° desta diretiva, sob a epígrafe «Objeto», enuncia:

    «1.      A presente diretiva tem por objeto a execução de medidas destinadas a promover o melhoramento da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho.

    2.      Para esse efeito, a presente diretiva inclui princípios gerais relativos à prevenção dos riscos profissionais e à proteção da segurança e da saúde, à eliminação dos fatores de risco e de acidente, à informação, à consulta, à participação, de acordo com as legislações e/ou práticas nacionais, à formação dos trabalhadores e seus representantes, assim como linhas gerais para a aplicação dos referidos princípios.

    3.      A presente diretiva não prejudica as disposições nacionais e comunitárias, existentes ou futuras, mais favoráveis à proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho.»

    6.        O artigo 4.° da referida diretiva prevê:

    «1.      Os Estados‑Membros adotarão as disposições necessárias para garantir que as entidades patronais, os trabalhadores e os representantes dos trabalhadores sejam submetidos às disposições jurídicas necessárias à aplicação da presente diretiva.

    2.      Os Estados‑Membros garantirão, designadamente, um controlo e uma fiscalização adequados.»

    7.        O artigo 5.° da mesma diretiva, sob a epígrafe «Disposição geral», que figura na secção II, intitulada «Obrigações das entidades patronais», dispõe:

    «1.      A entidade patronal é obrigada a assegurar a segurança e a saúde dos trabalhadores em todos os aspetos relacionados com o trabalho.

    [...]

    3.      As obrigações dos trabalhadores no domínio da segurança social e da saúde no local de trabalho não afetam o princípio da responsabilidade da entidade patronal.

    4.      A presente diretiva não obsta à faculdade de os Estados‑Membros preverem a exclusão ou a diminuição da responsabilidade das entidades patronais relativamente a factos devidos a circunstâncias que lhes são estranhas, anormais e imprevisíveis ou a acontecimentos excecionais, cujas consequências não poderiam ter sido evitadas, apesar de todas as diligências empreendidas nesse sentido.

    Os Estados‑Membros não são obrigados a exercer a faculdade referida no parágrafo anterior.»

    B.      Direito romeno

    1.      Código Penal

    8.        O artigo 192.° da Legea nr. 286/2009, privind Codul penal (Lei n.° 286/2009, que aprova o Código Penal), de 17 de julho de 2009 (3), na versão em vigor à data dos factos do processo principal (a seguir «Código Penal»), sob a epígrafe «Homicídio por negligência», enuncia, no n.° 2:

    «O homicídio por negligência que resulte da inobservância das disposições legais ou das medidas de precaução previstas para o exercício de uma profissão ou de um ofício ou para o exercício de uma atividade específica é punido com pena de prisão de dois a sete anos. Quando a violação das disposições legais ou das medidas de precaução constitua, em si, um crime, aplicam‑se as regras relativas ao concurso de crimes.»

    9.        O artigo 350.° deste código, sob a epígrafe «Incumprimento das medidas legais de segurança e de saúde no trabalho», prevê, nos n.os 1 e 3:

    «1)      O incumprimento por qualquer pessoa das obrigações e medidas previstas em matéria de segurança e de saúde no trabalho, que criar um perigo iminente de acidente de trabalho ou de doença profissional, é punido com pena de prisão de seis meses a três anos ou com pena de multa.

    [...]

    3)      Os factos referidos nos n.os 1 e 2 são punidos com pena de prisão de três meses a um ano ou com pena de multa quando cometidos por negligência.»

    2.      Código de Processo Penal

    10.      O artigo 52.° da Legea nr. 135/2010, privind Codul de procedură penală (Lei n.° 135/2010, que aprova o Código de Processo Penal), de 1 de julho de 2010 (4), na versão em vigor à data dos factos do processo principal (a seguir «Código de Processo Penal»), sob a epígrafe «Questões prévias», dispõe:

    «1)      O órgão jurisdicional penal é competente para conhecer de qualquer questão prévia à decisão do processo, mesmo que, pela sua natureza, essa questão seja da competência de outro órgão jurisdicional, exceto nas situações em que a competência não pertença aos tribunais.

    2)      A questão prévia deve ser julgada pelo órgão jurisdicional penal segundo as normas e os meios de prova relativos à matéria a que essa questão pertence.

    3)      As decisões definitivas proferidas por órgãos jurisdicionais diferentes dos penais sobre uma questão prévia num processo penal têm autoridade de caso julgado perante o órgão jurisdicional penal, com exceção das circunstâncias relativas à existência de um crime.»

    3.      Lei n.° 319/2006

    11.      A Legea nr. 319/2006 a securităţii şi sănătăţii în muncă (Lei n.° 319/2006, relativa à Segurança e à Saúde no Trabalho), de 14 de julho de 2006 (5) (a seguir «Lei n.° 319/2006»), transpõe a Diretiva 89/391 para a ordem jurídica romena. Nos termos do artigo 5.°, alínea g), desta lei:

    «Para efeitos da presente lei, entende‑se por:

    [...]

    g)      acidente de trabalho — lesão violenta do organismo ou intoxicação profissional aguda que ocorra durante a prestação do trabalho ou na execução das funções do serviço e que provoque uma incapacidade temporária para o trabalho de, pelo menos, 3 dias de calendário, invalidez ou morte.»

    12.      O artigo 7.°, n.° 4, alínea c), da referida lei enuncia:

    «Sem prejuízo das restantes disposições da presente lei, tendo em conta a natureza das atividades da empresa e/ou da unidade, a entidade patronal tem a obrigação:

    [...]

    c)      de tomar em consideração as capacidades dos trabalhadores no que respeita à segurança e à saúde no trabalho quando lhes confiar uma tarefa.»

    13.      O artigo 20.°, n.° 1, alínea b), da mesma lei prevê:

    «A entidade patronal deve garantir condições que permitam que cada trabalhador receba uma formação suficiente e adequada em matéria de segurança e de saúde no trabalho, nomeadamente sob a forma de informações e instruções específicas ao seu local e posto de trabalho:

    [...]

    b)      em caso de mudança de funções ou transferência.»

    14.      O artigo 22.° da Lei n.° 319/2006 dispõe:

    «Cada trabalhador deve prestar o seu trabalho de acordo com a sua formação e preparação e com as instruções recebidas da sua entidade patronal, de modo a não se expor, nem expor outras pessoas que possam ser afetadas pelas suas ações ou omissões no âmbito do seu trabalho, a riscos de acidente ou doença profissional.»

    4.      Decreto n.° 1146/2006

    15.      O anexo I do Hotărârea Guvernului nr. 1146/2006, privind cerințele minime de securitate și sănătate pentru utilizarea în muncă de către lucrători a echipamentelor de muncă (Decreto do Governo n.° 1146/2006, relativo aos Requisitos Mínimos de Segurança e Saúde para a Utilização de Equipamentos de Trabalho pelos Trabalhadores), de 30 de agosto de 2006 (6) (a seguir «Decreto n.° 1146/2006»), tem a seguinte redação:

    «[…]

    3.3.2.1.      Nas instalações e equipamentos de trabalho elétricos, a proteção contra a eletrocussão por contacto direto é assegurada por medidas técnicas, completadas por medidas organizacionais.

    [...]

    3.3.2.3.      A proteção contra a eletrocussão por contacto direto é assegurada pelas seguintes medidas organizacionais:

    a)      as intervenções em instalações elétricas (assistências, reparações, ligações, etc.) só devem ser efetuadas por eletricistas qualificados, autorizados e formados para os trabalhos em questão;

    b)      as intervenções devem ser efetuadas com base numa das formas de trabalho;

    [...]

    e)      as instruções de trabalho devem ser determinadas para cada intervenção em instalações elétricas;

    [...]

    3.3.2.4.      As intervenções em instalações, máquinas, equipamentos e aparelhos que utilizam eletricidade só são autorizadas com base nas seguintes formas de trabalho:

    [...]

    d)      ordens verbais (DV);

    [...]

    3.3.23.1.      No caso de instalações ou equipamentos de trabalho elétricos nos quais são efetuados trabalhos com ou sem corte da tensão elétrica, devem ser utilizados meios de proteção de isolamento elétrico.

    [...]

    3.3.23.4.      Os trabalhos sem corte da tensão elétrica em instalações e equipamentos elétricos devem ser efetuados por pessoal autorizado para os trabalhos sob tensão.

    [...]»

    III. Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação processual no Tribunal de Justiça

    16.      Decorre da decisão de reenvio que, em 5 de setembro de 2017, um eletricista, trabalhador da Energotehnica (a seguir «vítima») morreu por eletrocussão no decurso de uma intervenção que consistia em mudar uma luminária exterior de um poste de baixa tensão numa quinta de animais situada no município de Ticușu (Roménia), Províncis de Brașov (Roménia) (a seguir «intervenção em causa»).

    17.      No âmbito de um procedimento administrativo, a Inspectoratul Teritorial de Muncă Brașov (Inspeção Territorial do Trabalho de Brașov, Roménia, a seguir «ITM») procedeu a uma investigação, que incluiu a inquirição de testemunhas e a obtenção de documentos relevantes relativos à segurança e à saúde no trabalho. Na sequência dessa investigação, a ITM lavrou um auto de investigação em 9 de setembro de 2019 (a seguir «auto de investigação»), no qual qualificou a intervenção em causa de «acidente de trabalho mortal».

    18.      No âmbito desse auto, a ITM aplicou coimas administrativas à Energotehnica por ter aprovado a intervenção numa instalação em funcionamento, sem corte da tensão elétrica, por pessoal não autorizado e não formado, e por não ter dado conhecimento ao trabalhador do material que faz parte de temas específicos de formação. Essas sanções não foram efetivamente aplicadas, tendo sido suspensas até ao termo do processo penal. Nenhuma sanção administrativa foi aplicada a um empregado da sociedade, uma vez que, em conformidade com o artigo 39.°, n.° 1, da Lei n.° 319/2006, apenas os atos praticados por entidades patronais que se encontrem numa das situações previstas nesta lei constituem infrações administrativas, e não os atos praticados pelos trabalhadores.

    19.      A Energotehnica interpôs um recurso contencioso administrativo contra a ITM perante o Tribunalul Sibiu (Tribunal Regional de Sibiu, Roménia), pedindo a anulação do auto de investigação. Apenas foram ouvidas duas testemunhas, colegas da vítima. Por Sentença de 10 de fevereiro de 2021, esse órgão jurisdicional deu provimento ao recurso e anulou parcialmente o auto de investigação no que se refere às conclusões relativas à Energotehnica. A este respeito, o referido órgão jurisdicional considerou, por um lado, que a intervenção em causa tinha ocorrido fora do horário de trabalho e, por outro, que nenhuma prova confirmava que tinha sido dada uma ordem verbal à vítima para proceder a essa intervenção. A ITM interpôs recurso dessa Sentença perante a Curtea de Apel Alba Iulia (Tribunal de Recurso de Alba Iulia, Roménia), que, por Acórdão de 14 de junho de 2021, julgou procedente a exceção de nulidade invocada pela Energotehnica e declarou a anulação do recurso por falta de fundamentação.

    20.      Paralelamente ao procedimento administrativo, foi instaurado um processo penal pelo procurador do Parchetul de pe lângă Judecătoria Rupea (Ministério Público junto do Tribunal de Primeira Instância de Rupea, Roménia). Por Despacho de Acusação de 31 de julho de 2020, MG, na qualidade de encarregado de eletricista da Energotehnica, foi demandado perante a Judecătoria Rupea (Tribunal de Primeira Instância de Rupea) pela prática dos seguintes crimes: por um lado, incumprimento das medidas legais de saúde e de segurança no trabalho, referidas no artigo 350.°, n.os 1 e 3, do Código Penal e, por outro, homicídio por negligência, conforme previsto no artigo 192.°, n.° 2, do Código Penal, com a aplicação do artigo 38.°, n.° 1, do mesmo código, relativo ao concurso real de crimes. Segundo esse Despacho de acusação, em 5 de setembro de 2017, por volta das 18 horas, após o horário de trabalho, MG, responsável pelo local de trabalho, com as funções específicas de organização do trabalho, formação do pessoal executante e adoção de medidas para assegurar os dispositivos de segurança no trabalho e o equipamento de proteção previsto nas instruções específicas em cada local de trabalho, deu à vítima, que estava sob a sua coordenação, uma ordem de trabalho verbal para efetuar a intervenção em causa sem a adoção das medidas de saúde e de segurança no trabalho exigidas, a saber, confiar apenas essa tarefa ao pessoal qualificado na profissão de eletricista, autorizado e formado para o trabalho em questão, sob a supervisão de um trabalhador encarregado, e, nas condições em que foi efetuada essa intervenção, sem cortar a tensão da instalação elétrica em funcionamento e sem utilizar luvas de proteção de isolamento elétrico.

    21.      No âmbito desse processo penal instaurado contra MG, foram ouvidas as testemunhas oculares e juntos aos autos do processo os documentos relevantes relativos à saúde e à segurança no trabalho. Foram igualmente apresentados os autos do processo de investigação relativo à intervenção em causa, incluindo o auto de investigação. Ainda no âmbito do referido processo penal, LV, CRA e LCM, respetivamente, mulher, filha e filho da vítima, constituíram‑se partes civis (a seguir «partes civis») e pediram a condenação de MG e da Energotehnica no pagamento de uma indemnização pela morte da vítima. Nenhum procedimento criminal foi instaurado contra a Energotehnica, que tem apenas a qualidade de parte civilmente responsável, no sentido de que, nos termos do direito civil romeno, esta sociedade tem a obrigação legal ou contratual de reparar total ou parcialmente, exclusiva ou solidariamente, o prejuízo causado pelo crime e é considerada responsável no âmbito do processo.

    22.      Por Sentença penal de 24 de dezembro de 2021, a Judecătoria Rupea (Tribunal de Primeira Instância de Rupea) considerou que MG devia ser absolvido da prática dos crimes de incumprimento das medidas legais de segurança e de saúde no trabalho e de homicídio por negligência. Além disso, esse órgão jurisdicional julgou improcedente a ação cível intentada pelas partes civis contra MG e a Energotehnica. A este respeito, o referido órgão jurisdicional que conhece do mérito considerou, primeiro, que não ficou provado, além de qualquer dúvida razoável, que MG tenha dado uma ordem de trabalho verbal, uma vez que o único depoimento comprovativo dessa ordem de trabalho é o depoimento de uma testemunha ocular que, porém, não é corroborado por nenhuma outra prova direta, enquanto outros trabalhadores também presentes negaram ter ouvido a referida ordem de trabalho. Segundo, o mesmo órgão jurisdicional considerou que a intervenção em causa tinha ocorrido por volta das 18 h 30‑18 h 40, ou seja, após o horário de trabalho (considerado entre as 17 h 00 e as 18 h 00), razão pela qual essa intervenção não podia ser qualificada de «acidente de trabalho».

    23.      O procurador e as partes civis interpuseram recurso dessa sentença perante a Curtea de Apel Brașov (Tribunal de Recurso de Brașov), o órgão jurisdicional de reenvio. Perante esse órgão jurisdicional, o procurador alegou que existem provas além de qualquer dúvida razoável da ordem verbal dada por MG à vítima para efetuar a intervenção em causa, fazendo referência ao depoimento de uma testemunha ocular, que é corroborada pelas afirmações de outros trabalhadores presentes no local. As partes civis afirmaram que existem provas que sustentam a acusação, invocando o depoimento da mesma testemunha ocular e o auto de investigação.

    24.      O órgão jurisdicional de reenvio refere que, chamado a decidir do recurso interposto no âmbito do processo penal instaurado contra MG, cumpre‑lhe examinar no processo toda a matéria de direito e de facto, uma vez que o recurso tem efeito plenamente devolutivo. Nestas condições, esse órgão jurisdicional pode examinar novamente as provas produzidas em primeira instância e novas provas, bem como proceder a uma nova apreciação de todas as provas. No entanto, o referido órgão jurisdicional salienta que o Tribunalul Sibiu (Tribunal Regional de Sibiu) já se pronunciou sobre os factos no processo principal, considerando que a intervenção em causa não constituía um acidente de trabalho. O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que essa conclusão pode ser‑lhe imposta com autoridade de caso julgado, uma vez que esta situação processual constitui uma «questão prévia» no processo penal, na aceção do artigo 52.° do Código de Processo Penal.

    25.      A este respeito, esse órgão jurisdicional salienta que a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional, Roménia), através do Acórdão n.° 102/2021, de 17 de fevereiro de 2021, julgou procedente uma exceção de inconstitucionalidade do artigo 52.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, que enunciava que as decisões definitivas proferidas por órgãos jurisdicionais diferentes dos penais sobre uma questão prévia num processo penal têm autoridade de caso julgado perante o órgão jurisdicional penal, com exceção das circunstâncias relativas à existência de um crime. A Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) terá, assim, declarado inconstitucional a expressão «com exceção das circunstâncias relativas à existência de um crime» constante desta disposição. Neste contexto, a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) terá, nomeadamente, decidido que as questões prévias constituem aspetos do processo que têm natureza extra penal, devem ser resolvidas antes da decisão sobre as questões relativas ao mérito do processo penal e dizem respeito à existência de uma componente essencial da estrutura do crime, como a situação anterior à prática de um crime ou um elemento essencial do conteúdo do crime.

    26.      No caso em apreço, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a qualificação da intervenção em causa como «acidente de trabalho» constitui uma componente essencial da estrutura do crime, tendo caráter de elemento de facto ou de direito cuja existência deve ser verificada antes da justa resolução do processo penal, e que pode, deste modo, ser considerado uma «questão prévia», na aceção do artigo 52.°, n.° 3, do Código de Processo Penal.

    27.      O órgão jurisdicional de reenvio sublinha igualmente que, no processo principal, o Tribunalul Sibiu (Tribunal Regional de Sibiu) ou a Curtea de Apel Alba Iulia (Tribunal de Recurso de Alba Iulia) podiam ordenar a suspensão da instância com base em diferentes fundamentos processuais, nomeadamente, em aplicação da regra segundo a qual o processo penal suspende o processo civil no estado em que se encontrar, conforme prevista no Código de Processo Civil romeno. No entanto, no presente processo, a suspensão do processo devido à existência de um processo penal pendente não foi suscitada perante os órgãos jurisdicionais administrativos, sem que implique consequências processuais, uma vez que a suspensão do processo é facultativa para o órgão jurisdicional cível, em conformidade com o disposto no Código de Processo Civil.

    28.      O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que, em circunstâncias em que as partes civis no processo penal não participaram no procedimento administrativo e em que a entidade patronal obteve ganho de causa neste último processo apenas contra a autoridade administrativa competente (a saber, a ITM), deveria ordenar a absolvição de MG pelos crimes que lhe são imputados, o que teria por consequência a improcedência da ação cível intentada pelas partes civis se, como exige o Acórdão n.° 102/2021 da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional), conferir plena autoridade de caso julgado à decisão do órgão jurisdicional administrativo que qualifica a intervenção em causa como «externa ao trabalho». Ora, essa situação violaria o princípio da proteção dos trabalhadores e o princípio da responsabilidade da entidade patronal consagrados no artigo 1.°, n.os 1 e 2, bem como no artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 89/391, lidos à luz do artigo 31.°, n.° 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

    29.      Nestas condições, a Curtea de Apel Braşov (Tribunal de Recurso de Braşov) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)      O princípio da proteção dos trabalhadores e o princípio da responsabilidade da entidade patronal, consagrados no artigo 1.°, n.os 1 e 2, e no artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva [89/391], transposta para o direito nacional pela [Lei n.° 319/2006], [lidos à luz do] artigo 31.°, n.° 1, da [Carta], opõem‑se a uma regulamentação como a aplicável no processo principal, [conforme interpretada] por uma decisão do tribunal constitucional nacional por força da qual um órgão jurisdicional administrativo pode, a pedido da entidade patronal e no âmbito de um processo em que apenas intervieram a entidade patronal e a autoridade administrativa estatal, decidir definitivamente que um acontecimento não é um acidente de trabalho na aceção da referida diretiva e impedir assim o órgão jurisdicional penal — chamado a pronunciar‑se tanto pelo Ministério Público no âmbito de uma ação penal contra o trabalhador responsável, como pela parte civil no âmbito de uma ação cível contra a mesma entidade patronal enquanto parte civilmente responsável no processo penal e contra o seu trabalhador responsável — de proferir uma decisão diferente no que respeita à qualificação do mesmo acontecimento de acidente de trabalho, aspeto que constitui um elemento constitutivo dos crimes objeto do processo penal (sem o qual não é possível estabelecer nem uma responsabilidade penal nem uma responsabilidade civil derivada da penal), tendo em conta a autoridade de caso julgado da decisão administrativa definitiva?

    2)      Em caso de resposta afirmativa à [primeira questão], deve o princípio do primado do direito da União ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação ou a uma prática nacional por força da qual os tribunais comuns nacionais estão vinculados pelas decisões do tribunal constitucional nacional e não podem, por este motivo e sob pena de cometerem uma infração disciplinar, deixar oficiosamente de aplicar a jurisprudência resultante dessas decisões, mesmo que considerem, à luz de um acórdão do Tribunal de Justiça, que essa jurisprudência é contrária ao artigo 1.°, n.os 1 e 2, e ao artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva [89/391], transposta para o direito nacional pela Lei n.° 319/2006, [lidos à luz do] artigo 31.°, n.° 1, da [Carta]?»

    30.      Foram apresentadas observações escritas ao Tribunal de Justiça pelo Parchetul de pe lângă Judecătoria Rupea (Ministério Público junto do Tribunal de Primeira Instância de Rupea), pelo Governo Romeno e pela Comissão Europeia.

    31.      Conforme solicitado pelo Tribunal de Justiça, as presentes conclusões centrar‑se‑ão na análise da primeira questão prejudicial.

    IV.    Análise

    32.      Com a primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 89/391 deve ser interpretada no sentido de que se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual um órgão jurisdicional administrativo pode decidir, por sentença transitada em julgado que tem autoridade de caso julgado perante o órgão jurisdicional penal, que um evento não constitui um «acidente de trabalho», com a consequência de o órgão jurisdicional penal chamado a decidir deixar de poder aplicar sanções penais ou civis à entidade patronal e ao seu trabalhador encarregado.

    A.      Quanto à admissibilidade da primeira questão prejudicial

    33.      Nas suas observações escritas, o Governo Romeno invocou a inadmissibilidade da primeira questão prejudicial e, em consequência, a da segunda questão prejudicial, com o fundamento, primeiro, de que a disposição de direito nacional cuja conformidade com a Diretiva 89/391 está em causa, a saber, o artigo 52.° do Código de Processo Penal, diz respeito à questão da autoridade de caso julgado. Segundo, o artigo 5.°, n.° 1, desta diretiva consagra a obrigação geral de segurança que incumbe à entidade patronal, sem se pronunciar sobre uma forma específica de responsabilidade. Ora, o litígio no processo principal tem por objeto a responsabilidade penal de um trabalhador pela morte de outro trabalhador, ao passo que a referida diretiva, cuja interpretação é solicitada, diz respeito às obrigações da entidade patronal para com os trabalhadores. Deste modo, o órgão jurisdicional de reenvio não é chamado a pronunciar‑se sobre uma relação jurídica abrangida pelo âmbito de aplicação da mesma diretiva.

    34.      No caso em apreço, há que salientar que a família da vítima se constituiu parte civil perante o órgão jurisdicional de reenvio contra MG e a Energotehnica. Por conseguinte, esse órgão jurisdicional é efetivamente chamado a decidir de uma ação intentada contra a entidade patronal, que pode incorrer em responsabilidade civil se a intervenção em causa for qualificada de «acidente de trabalho». Além disso, a questão da aplicação de sanções cíveis à entidade patronal está ligada ao alcance do princípio da autoridade de caso julgado da sentença proferida pelo órgão jurisdicional administrativo. Assim, as regras processuais relativas às ações judiciais previstas na legislação nacional em causa estão relacionadas com a imputação da responsabilidade à entidade patronal no caso de, no âmbito da aplicação da Diretiva 89/391 pelo Estado‑Membro em causa, não ter assegurado a proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho.

    35.      Por conseguinte, considero que a primeira questão prejudicial é admissível.

    B.      Quanto à resposta à primeira questão prejudicial

    36.      Importa recordar que a Diretiva 89/391 foi adotada com base no artigo 118.°‑A do Tratado CEE (atual, após alteração, artigo 153.° TFUE), por força do qual os Estados‑Membros se empenham em promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho e estabelecem como objetivo a harmonização, no progresso, das condições existentes neste domínio. O artigo 1.°, n.os 1 e 2, da diretiva enuncia, assim, que esta tem por objeto a execução de medidas destinadas a promover o melhoramento da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho e que, para esse efeito, inclui princípios gerais relativos à prevenção dos riscos profissionais e à proteção da segurança e da saúde, à eliminação dos fatores de risco e de acidente, à informação, à consulta, à participação, de acordo com as legislações e/ou práticas nacionais, à formação dos trabalhadores e seus representantes, assim como linhas gerais para a aplicação dos referidos princípios.

    37.      Além disso, o artigo 4.° da diretiva prevê, no n.° 1, que os Estados‑Membros adotarão as disposições necessárias para garantir que as entidades patronais, os trabalhadores e os representantes dos trabalhadores sejam submetidos às disposições jurídicas necessárias à aplicação da mesma diretiva e, no n.° 2, que os Estados‑Membros garantirão, designadamente, um controlo e uma fiscalização adequados (7). O artigo 5.°, n.° 1, da Diretiva 89/391 dispõe, igualmente, que a entidade patronal é obrigada a assegurar a segurança e a saúde dos trabalhadores em todos os aspetos relacionados com o trabalho. Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, não se pode afirmar que impende sobre a entidade patronal uma responsabilidade objetiva por força unicamente do artigo 5.°, n.° 1, da diretiva, uma vez que esta disposição se limita a consagrar a obrigação geral de segurança que recai sobre a entidade patronal, sem se pronunciar sobre nenhum tipo de responsabilidade (8).

    38.      Os n.os 3 e 4 deste artigo 5.° especificam que as obrigações dos trabalhadores no domínio da segurança e da saúde no local de trabalho não afetam o princípio da responsabilidade da entidade patronal e que a diretiva não obsta à faculdade de os Estados‑Membros preverem a exclusão ou a diminuição da responsabilidade das entidades patronais relativamente a factos devidos a circunstâncias que lhes são estranhas, anormais e imprevisíveis ou a acontecimentos excecionais, cujas consequências não poderiam ter sido evitadas, apesar de todas as diligências empreendidas nesse sentido.

    39.      Decorre do texto da Diretiva 89/391 que, embora faça referência ao princípio da responsabilidade da entidade patronal e estabeleça obrigações de ordem geral relativas à proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores em todos os aspetos relacionados com o trabalho, a diretiva não contém nenhuma disposição específica relativa às sanções aplicáveis pelos Estados‑Membros às entidades patronais que não tenham cumprido essas obrigações. Além disso, foram adotadas pelo legislador da União várias diretivas especiais, na aceção do artigo 16.°, n.° 1, da Diretiva 89/391 (9), designadamente, as Diretivas 89/654/CEE (10), 89/656/CEE (11) e 2009/104/CE (12). No entanto, estas diretivas também não contêm disposições específicas relativas à aplicação de sanções às entidades patronais que não tenham assegurado a proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores (13).

    40.      Por outro lado, o artigo 31.° da Carta, sob a epígrafe «Condições de trabalho justas e equitativas», prevê, no seu n.° 1, que «[t]odos os trabalhadores têm direito a condições de trabalho saudáveis, seguras e dignas». Por conseguinte, esta disposição, referida pelo órgão jurisdicional de reenvio na sua primeira questão prejudicial, não tem por objeto as sanções aplicáveis quando não seja assegurada a proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores.

    41.      No que respeita, mais especificamente, à intervenção em causa, cuja qualificação como «acidente de trabalho» é objeto do processo principal, observo que, nos termos do artigo 34.°, n.° 1, da Carta, a União reconhece e respeita o direito de acesso às prestações de segurança social e aos serviços sociais que concedem proteção em casos como, designadamente, os acidentes de trabalho. Em contrapartida, o direito da União não regula, atualmente, os critérios que permitem qualificar um evento de «acidente de trabalho» nem as sanções aplicáveis à entidade patronal na sequência desse acidente, nem as regras de determinação da indemnização a atribuir à vítima.

    42.      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a conformidade com o direito da União da regra processual prevista pela legislação nacional segundo a qual a sentença transitada em julgado do órgão jurisdicional administrativo que considera que a intervenção em causa não constitui um «acidente de trabalho» tem autoridade de caso julgado perante esse órgão jurisdicional de reenvio, ou seja, perante um órgão jurisdicional penal, o que impediria de aplicar uma pena a MG e sanções civis a MG e/ou à Energotehnica (14).

    43.      A este respeito, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, na falta de regulamentação da União nesta matéria, cabe a cada Estado‑Membro, por força do princípio da autonomia processual dos Estados‑Membros, definir as regras do procedimento administrativo e do processo judicial destinadas a garantir um nível elevado de salvaguarda dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União (15). Estas regras não devem ser menos favoráveis do que as que respeitam a ações similares previstas para a proteção dos direitos derivados da ordem jurídica interna (princípio da equivalência) nem devem tornar impossível ou excessivamente difícil, na prática, o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade)(16). Além disso, no que respeita especificamente à autoridade de caso julgado, na falta de regulamentação da União nesta matéria, as modalidades de aplicação do princípio da autoridade de caso julgado também fazem parte da ordem jurídica interna dos Estados‑Membros, em virtude do princípio da autonomia processual destes últimos, no respeito, contudo, dos princípios da equivalência e da efetividade (17).

    44.      Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, no que diz respeito ao princípio da efetividade, cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, visto como um todo, na tramitação deste e nas suas particularidades, perante as várias instâncias nacionais. Nesta perspetiva, há que tomar em consideração, sendo caso disso, os princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, como a proteção dos direitos de defesa, o princípio da segurança jurídica e o bom desenrolar do processo (18).

    45.      Por outras palavras, quando os Estados‑Membros definem as modalidades processuais das ações judiciais destinadas a assegurar a salvaguarda dos direitos conferidos pela Diretiva 89/391, devem garantir o respeito do direito à ação e a um tribunal imparcial, consagrado no artigo 47.° da Carta, que constitui uma reafirmação do princípio da proteção jurisdicional efetiva (19).

    46.      Por conseguinte, quando escolhem as sanções, os Estados‑Membros devem respeitar o princípio da efetividade que exige a aplicação de sanções efetivas e dissuasoras, sem contudo exigir, em princípio, que as sanções revistam uma natureza particular (20). Assim, as sanções podem ser de natureza penal e/ou civil. Na falta da aplicação de sanções a uma entidade patronal que não cumpre as disposições nacionais que transpõem a Diretiva 89/391, a saber, no caso em apreço, a Lei n.° 319/2006, o efeito útil e a proteção efetiva dos direitos garantidos por esta diretiva seriam postos em causa, enquanto o artigo 153.°, n.° 1, alínea a), TFUE visa a melhoria do ambiente de trabalho para proteger a saúde e a segurança dos trabalhadores.

    47.      O processo principal tem por objeto a possibilidade de aplicar sanções penais e civis relacionada, não com o princípio ne bis in idem (21), mas com o princípio da autoridade de caso julgado, uma vez que o órgão jurisdicional administrativo já considerou que a intervenção em causa não podia ser qualificada de «acidente de trabalho». A este respeito, saliento que a aplicação do princípio «o processo penal suspende o processo civil» impõe ao juiz cível, quando, pelos mesmos factos, tenham sido instaurados um processo civil e um processo penal, a suspensão da instância até ser proferida uma decisão definitiva em sede penal (22). No caso em apreço, o direito romeno aplica o princípio inverso, ou seja, o de que o processo civil (23) suspende o processo penal. Com efeito, resulta da decisão de reenvio que, no processo principal, o órgão jurisdicional administrativo poderia ter suspendido a instância até ser proferida a decisão definitiva do órgão jurisdicional penal, mas que tal suspensão da instância é facultativa para o órgão jurisdicional administrativo, o que tem por consequência a aplicação do artigo 52.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, segundo o qual as sentenças transitadas em julgado de órgãos jurisdicionais não penais sobre uma questão prévia num processo penal têm autoridade de caso julgado perante o órgão jurisdicional penal (24).

    48.      À luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, há que concluir que essa disposição não é contrária ao direito da União, visto que permite evitar que sejam adotadas decisões contraditórias suscetíveis de prejudicar a segurança jurídica (25), sem prejuízo, conforme indicado no n.° 43 das presentes conclusões, do respeito pelo princípio da efetividade do direito da União.

    49.      Acrescento que, quando um órgão jurisdicional administrativo conhece do mérito da causa, apreciando pormenorizadamente todos os elementos de prova relativos à qualificação de um evento como «acidente de trabalho», o simples facto de o órgão jurisdicional administrativo ser preponderante em relação ao órgão jurisdicional penal não pode implicar, enquanto tal, uma menos boa administração da justiça. Com efeito, o processo penal não pode ser considerado, por definição, mais favorável à vítima e/ou às partes civis do que o procedimento administrativo, uma vez que, como enuncia o artigo 48.°, n.° 1, da Carta, cujo conteúdo corresponde ao do artigo 6.°, n.° 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma a 4 de novembro de 1950, todo o arguido se presume inocente enquanto não tiver sido legalmente provada a sua culpa (26). Assim, perante o órgão jurisdicional penal, o arguido deve beneficiar do direito à presunção de inocência.

    50.      No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio sublinha que o procedimento administrativo apenas opôs a Energotehnica à ITM, sem que o procurador e as partes civis tenham intervindo nesse procedimento, enquanto estes estão representados no âmbito do processo penal.

    51.      A este respeito, não decorre claramente da decisão de reenvio se as partes civis tiveram, efetivamente, a possibilidade de intervir no órgão jurisdicional administrativo para, nomeadamente, apresentarem elementos de prova em apoio da qualificação da intervenção em causa como «acidente de trabalho». Se assim for, mesmo que na prática não tenham intervindo, a Diretiva 89/391 não se opõe a uma legislação ao abrigo da qual um órgão jurisdicional administrativo pode decidir em última análise que um evento não constitui um acidente de trabalho por decisão que tem autoridade de caso julgado perante o órgão jurisdicional penal.

    52.      Em contrapartida, se as partes civis foram privadas de qualquer possibilidade de intervir no órgão jurisdicional administrativo, considero que o princípio da efetividade do direito da União não é respeitado. Com efeito, conforme indicado no n.° 44 das presentes conclusões, este princípio implica o respeito dos direitos de defesa e, designadamente, que as partes interessadas tenham tido a possibilidade de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista. A este respeito, no caso em apreço, não se afigura concebível que a família da vítima não beneficie do direito a uma proteção jurisdicional efetiva garantido no artigo 47.° da Carta, isto é, que seja privada do acesso aos tribunais (27).

    53.      Assim, em tal caso, como salientou a Comissão nas suas observações escritas, as partes civis devem ter a garantia de poder apresentar, perante o órgão jurisdicional penal, novos elementos de prova que não puderam ser discutidos perante o órgão jurisdicional administrativo, designadamente, quanto à questão da qualificação da intervenção em causa como «acidente de trabalho». A sentença transitada em julgado de um órgão jurisdicional administrativo não pode, nestas condições, ter autoridade de caso julgado perante o órgão jurisdicional penal e este último deve dar às partes civis a possibilidade de nele intervir, embora, em última análise, esta situação seja dificilmente conciliável com o respeito pelo princípio da segurança jurídica, uma vez que tal intervenção pode conduzir a sentenças contraditórias entre os órgãos jurisdicionais administrativo e penal. Se for esse o caso, cabe ao Estado‑Membro em causa escolher os mecanismos processuais que lhe pareçam mais adequados para permitir a conciliação de tais sentenças contraditórias (28).

    54.      Atendendo a todas as considerações precedentes, proponho que se responda à primeira questão prejudicial que a Diretiva 89/391 deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual um órgão jurisdicional administrativo pode decidir, por sentença transitada em julgado que tem autoridade de caso julgado perante o órgão jurisdicional penal, que um evento não constitui um «acidente de trabalho», com a consequência de o órgão jurisdicional penal deixar de poder aplicar sanções penais ou civis à entidade patronal e ao seu trabalhador encarregado, desde que seja garantido o respeito pelo princípio da efetividade do direito da União, o que implica que as partes civis devem ter efetivamente a possibilidade de apresentar elementos de prova relativos à qualificação desse acontecimento como «acidente de trabalho» perante o órgão jurisdicional penal, caso tenham sido privadas da possibilidade de apresentar esses elementos perante o órgão jurisdicional administrativo.

    V.      Conclusão

    55.      À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda à primeira questão prejudicial submetida pela Curtea de Apel Braşov (Tribunal de Recurso de Braşov, Roménia) do seguinte modo:

    A Diretiva 89/391/CEE do Conselho, de 12 de junho de 1989, relativa à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho,

    deve ser interpretada no sentido de que:

    não se opõe a uma legislação nacional ao abrigo da qual um órgão jurisdicional administrativo pode decidir, por sentença transitada em julgado que tem autoridade de caso julgado perante o órgão jurisdicional penal, que um evento não constitui um «acidente de trabalho», com a consequência de o órgão jurisdicional penal deixar de poder aplicar sanções penais ou civis à entidade patronal ou ao seu trabalhador encarregado, desde que seja garantido o respeito pelo princípio da efetividade do direito da União, o que implica que as partes civis devem ter efetivamente a possibilidade de apresentar elementos de prova relativos à qualificação desse acontecimento como «acidente de trabalho» perante o órgão jurisdicional penal, caso tenham sido privadas da possibilidade de apresentar esses elementos perante o órgão jurisdicional administrativo.


    1      Língua original: francês.


    2      Diretiva do Conselho, de 12 de junho de 1989, relativa à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho (JO 1989, L 183, p. 1). Relativamente ao processo de adoção desta diretiva, v. Walters, D., « The Framework Directive», Regulating Health and Safety Management in the European Union: A Study of the Dynamics of Change, Bruxelles, P.I.E. Peter Lang S.A., 2002, pp. 39 a 57.


    3      Monitorul Oficial al României, parte I, n.° 510 de 24 de julho de 2009.


    4      Monitorul Oficial al României, parte I, n.° 486 de 15 de julho de 2010.


    5      Monitorul Oficial al României, parte I, n.° 646, de 26 de julho de 2006.


    6      Monitorul Oficial al României, parte I, n.° 815 de 3 de outubro de 2006.


    7      Embora o órgão jurisdicional de reenvio não tenha referido o artigo 4.° da Diretiva 89/391 na sua primeira questão prejudicial, importa recordar que, no âmbito do processo de cooperação previsto no artigo 267.° TFUE, o Tribunal de Justiça pode ser levado a fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio todos os elementos de interpretação do direito da União que possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. Cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do referido direito que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio (v., nomeadamente, Acórdão de 16 de novembro de 2023, Ministerstvo vnútra Slovenskej republiky, C‑283/22, EU:C:2023:886, n.º 34 e jurisprudência referida).


    8      Acórdão de 14 de junho de 2007, Comissão/Reino Unido (C‑127/05, EU:C:2007:338, n.º 42).


    9      Esta disposição enuncia que «[o] Conselho adotará, sob proposta da Comissão, fundamentada no artigo 118.º‑A do Tratado, diretivas especiais, nomeadamente nos domínios referidos no anexo».


    10      Diretiva do Conselho, de 30 de novembro de 1989, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para os locais de trabalho (Primeira Diretiva especial, na aceção do n.° 1 do artigo 16.° da Diretiva 89/391/CEE) (JO 1989, L 393, p. 1).


    11      Diretiva do Conselho, de 30 de novembro de 1989, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de proteção individual no trabalho (Terceira Diretiva especial, na aceção do n.° 1 do artigo 16.° da Diretiva 89/391/CEE) (JO 1989, L 393, p. 18).


    12      Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho no trabalho (Segunda Diretiva especial, na aceção do n.° 1 do artigo 16.° da Diretiva 89/391/CEE) (JO 2009, L 260, p. 5).


    13      Paralelamente, outras diretivas relativas à aplicação da política social da União contêm, por sua vez, disposições específicas relativas às sanções aplicáveis, como a Diretiva 2000/78/CE do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional (JO 2000, L 303, p. 16), cujo artigo 17.° enuncia que «[o]s Estados‑Membros determinam o regime de sanções aplicável às violações das disposições nacionais aprovadas em execução da presente diretiva, e adotam as medidas necessárias para assegurar a aplicação dessas disposições. As sanções, em que se pode incluir o pagamento de indemnizações à vítima, devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas [...]».


    14      Recordo que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, segundo o direito interno, a autoridade de caso julgado da sentença de um órgão jurisdicional administrativo abrange os elementos do presente processo e, sendo caso disso, examinar as consequências previstas no referido direito (v., por analogia, Acórdão de 7 de abril de 2022, Avio Lucos, C‑116/20, EU:C:2022:273, n.º 99 e jurisprudência referida).


    15      Acórdão de 12 de janeiro de 2023, Nemzeti Adatvédelmi és Információszabadság Hatóság (C‑132/21, EU:C:2023:2, n.º 45).


    16      Acórdão de 12 de janeiro de 2023, Nemzeti Adatvédelmi és Információszabadság Hatóság (C‑132/21, EU:C:2023:2, n.º 48 e jurisprudência referida). O princípio da equivalência impõe que as disposições processuais nacionais que regulam situações sujeitas ao direito da União não sejam menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes submetidas ao direito interno (v. Acórdão de 3 de junho de 2021, Bankia, C‑910/19, EU:C:2021:433, n.° 46). Uma vez que o respeito deste princípio não foi posto em causa pelo órgão jurisdicional de reenvio e que o Tribunal de Justiça não dispõe de nenhum elemento suscetível de suscitar dúvidas quanto à conformidade da legislação nacional em causa no processo principal com o referido princípio, este último não será, portanto, mencionado mais adiante.


    17      Despacho de 7 de março de 2023, Willy Hermann Service (C‑561/22, EU:C:2023:167, n.° 25 e jurisprudência referida).


    18      V. Acórdão de 25 de janeiro de 2024, Caixabank (Prescrição de reembolso dos encargos hipotecários) (C‑810/21 a C‑813/21, EU:C:2024:81, n.° 45 e jurisprudência referida).


    19      V., por analogia, Acórdão de 12 de janeiro de 2023, Nemzeti Adatvédelmi és Információszabadság Hatóság (C‑132/21, EU:C:2023:2, n.° 50 e jurisprudência referida).


    20      V., neste sentido, Acórdãos de 2 de maio de 2018, Scialdone (C‑574/15, EU:C:2018:295, n.° 33), e de 17 de maio de 2023, Cezam (C‑418/22, EU:C:2023:418, n.° 28 e jurisprudência referida).


    21      Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, o princípio ne bis in idem proíbe o cúmulo tanto de procedimentos como de sanções que tenham natureza penal, na aceção do artigo 50.° da Carta, pelos mesmos factos e contra a mesma pessoa (Acórdão de 25 de janeiro de 2024, Parchetul de pe lângă Curtea de Apel Craiova e o., C‑58/22, EU:C:2024:70, n.° 46 e jurisprudência referida). Ora, em todo o caso, no caso em apreço, o procedimento administrativo e o processo penal foram instaurados contra pessoas diferentes.


    22      V. conclusões do advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe nos processos apensos CRPNPAC e Vueling Airlines (C‑370/17 e C‑37/18, EU:C:2019:592, nota 106).


    23      Como salienta o órgão jurisdicional de reenvio, o órgão jurisdicional administrativo é um órgão jurisdicional cível, lato sensu.


    24      V. n.° 27 das presentes conclusões.


    25      V., neste sentido, em matéria de IVA, Acórdão de 24 de fevereiro de 2022, SC Cridar Cons (C‑582/20, EU:C:2022:114, n.° 38).


    26      Observo que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, este princípio é aplicável quando se trate de determinar os elementos objetivos constitutivos de uma infração suscetível de conduzir à aplicação de sanções administrativas com caráter penal (v. Acórdão de 10 de novembro de 2022, DELTA STROY 2003, C‑203/21, EU:C:2022:865, n.º 51 e jurisprudência referida).


    27      V., neste sentido, Acórdão de 30 de janeiro de 2024, Agentsia «Patna infrastruktura» (Financiamento europeu de Infraestruturas Rodoviárias) (C‑471/22, EU:C:2024:99, n.º 46 e jurisprudência referida).


    28      V., por analogia, conclusões do advogado‑geral Richard de la Tour no processo Nemzeti Adatvédelmi és Információszabadság Hatóság (C‑132/21, EU:C:2022:661, n.° 67).

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