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Document 62022CC0634

Conclusões do advogado-geral M. Campos Sánchez-Bordona apresentadas em 23 de novembro de 2023.
Processo penal contra OT e o.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski gradski sad.
Reenvio prejudicial — Valores e objetivos da União Europeia — Artigo 2.o TUE — Estado de direito — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Jurisdição independente e imparcial — Reorganização das competências jurisdicionais num Estado‑Membro — Extinção de um tribunal criminal especial — Inadmissibilidade do pedido de decisão prejudicial.
Processo C-634/22.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:913

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 23 de novembro de 2023 ( 1 )

Processo C‑634/22

OT,

PG,

CR,

VT,

MD,

sendo interveniente:

Sofiyska gradska prokuratura

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária)]

«Reenvio prejudicial — Valores e objetivos da União — Estado de direito — Artigo 19.o TUE — Decisão 2006/929/CE — Tribunal independente e imparcial — Extinção de um tribunal criminal especial — Extinção relacionada com uma suposta falta de independência»

1.

Por lei adotada em 2022 ( 2 ), o legislador búlgaro extinguiu, entre outros órgãos da administração da justiça, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, a seguir, «TCE») e estabeleceu o modo como deviam ser reafetados a outros tribunais os juízes que, até à entrada em vigor da nova Lei, ali desempenhavam funções.

2.

A ZIDZZSV estabeleceu, além disso, que os processos penais de primeira instância nos quais tenha havido uma audiência no TCE, como sucede no presente caso, são da competência do Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária, a seguir, «TCS») ( 3 ), embora a respetiva apreciação continue a ser da responsabilidade da formação de julgamento que realizara a audiência.

3.

O pedido de decisão prejudicial submetido ao Tribunal de Justiça foi subscrito pelos membros da formação jurisdicional do TCE (atualmente do TCS) que tinha realizado a audiência de um determinado processo penal. Essa formação jurisdicional manifesta as suas dúvidas quanto à compatibilidade com o direito da União da reforma legislativa de 2022, no que se refere à extinção do TCE.

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União. Decisão 2006/929/CE ( 4 )

4.

O artigo 1.o, primeiro parágrafo, dispõe:

«[A]Bulgária deve, até 31 de março de cada ano, e pela primeira vez até 31 de março de 2007, apresentar à Comissão um relatório sobre os progressos realizados relativamente a cada um dos objetivos de referência previstos no anexo.»

5.

Os objetivos a atingir pela Bulgária são estabelecidos no anexo:

«1)

Adotar as alterações constitucionais que suprimam qualquer ambiguidade relativamente à independência e à responsabilização do sistema judiciário.

2)

Garantir processos judiciais mais transparentes e eficazes, mediante a adoção e aplicação de nova legislação sobre o sistema judiciário e de um novo Código de Processo Civil. Apresentar relatórios sobre o impacto desta nova legislação e dos Códigos de Processo Penal e Administrativo, nomeadamente durante a fase de instrução.

3)

Prosseguir a reforma do sistema judiciário, por forma a reforçar o profissionalismo, a responsabilização e a eficácia. Avaliar o impacto desta reforma e publicar anualmente os seus resultados.

4)

Realizar inquéritos profissionais e imparciais sobre as alegações de corrupção de alto nível e apresentar relatórios sobre a matéria. Elaborar relatórios sobre as inspeções internas de instituições públicas e sobre a publicação das declarações patrimoniais dos altos funcionários do Estado.

5)

Tomar medidas suplementares para prevenir e combater a corrupção, nomeadamente nas fronteiras e no âmbito da administração local.

6)

Aplicar uma estratégia destinada a lutar contra a criminalidade organizada, especialmente centrada nos delitos graves, no branqueamento de capitais e no confisco sistemático dos bens dos criminosos. Apresentar relatórios sobre as investigações, acusações e condenações novas e em curso nestes domínios.»

B.   Direito nacional

1. Zakon za sadebtana vlast ( 5 )

6.

O artigo 194.o, n.o 1, prevê:

«[…] Em caso de extinção de órgãos jurisdicionais, procuradorias ou serviços de investigação, ou em caso de redução do respetivo número de lugares ocupados, o Colégio competente do Conselho Superior da Magistratura cria os lugares correspondentes noutra autoridade, de idêntica natureza, do sistema judiciário, se possível na mesma circunscrição do tribunal de recurso, e afeta a esses lugares, sem concurso, os juízes, procuradores e juízes de instrução.»

2. ZIDZZSV

7.

Em conformidade com a disposição transitória 43:

«A partir da entrada em vigor da presente lei são extintos o TCE, o Apelativen spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal de recurso penal especial)], a Spetsializirana prokuratura [(Procuradoria especial)] e a Apelativna spetsializirana prokuratura [(Procuradoria especial de recurso)].»

8.

A disposição transitória 44 refere:

«(1) Os juízes do TCE […] são reafetados nas condições e nos termos do procedimento previstos no artigo 194.o, n.o 1.

(2) No prazo de catorze dias após a publicação da presente lei, as pessoas a que se refere o n.o 1 podem apresentar requerimento ao Colégio de Juízes do Conselho Superior da Magistratura declarando que pretendem ser reintegrados no cargo judicial que ocupavam antes da sua afetação ao TCE […].

(3) No prazo de trinta dias após o termo do prazo do n.o 2, o Colégio de Juízes do Conselho Superior da Magistratura adota uma decisão sobre a criação de cargos judiciais nos tribunais, correspondentes aos extintos no TCE […], atendendo ao volume de trabalho do respetivo tribunal [ ( 6 )].

(4) Após o termo do prazo previsto no n.o 3, o Colégio de Juízes do Conselho Superior da Magistratura reafeta os juízes a contar da entrada em vigor da presente lei.

(5) As decisões do Colégio de Juízes do Conselho Superior da Magistratura a que se refere o n.o 4 são imediatamente executórias.»

9.

A disposição transitória 49 refere:

«Os processos penais de primeira instância no TCE em que não tenha havido nenhuma audiência preliminar antes da entrada em vigor da presente lei são remetidos aos tribunais competentes no prazo de sete dias após a entrada em vigor da presente lei.»

10.

A disposição transitória 50 tem a seguinte redação:

«(1) Após a entrada em vigor da presente lei, os processos penais de primeira instância no [TCE] em que tenha havido uma audiência preliminar são da competência do [TCS] e a sua apreciação continua a cargo da formação jurisdicional que realizou a audiência.

(2) Os juízes das formações jurisdicionais que não tenham sido reafetados ao [TCS] são mandatados para participar na apreciação dos processos até ao termo do procedimento.

(3) Os juízes da formação de julgamento que tenham apreciado os processos penais de primeira instância nos quais foi proferida sentença são mandatados para proceder à respetiva fundamentação caso não tenham sido reafetados ao [TCS].

[…]»

11.

A disposição transitória 59, n.o 1, dispõe:

«O [TCS] sucede no ativo, no passivo, nos direitos e nas obrigações do [TCE].»

12.

Nos termos da disposição transitória 67:

«A lei entra em vigor três meses após a sua publicação no [Jornal Oficial], com exceção dos n.os 1, 2, 5, 6, 18, 28, 32, 34, 44, 45, 57 e 58, que entram em vigor no dia da publicação.»

3. Nakazatelno protsesualen kodeks ( 7 )

13.

O artigo 30.o, n.o 2, prevê:

«Não pode fazer parte da formação de julgamento o juiz ou o júri que, devido a outras circunstâncias, possa ser considerado parcial ou com um interesse direto ou indireto na decisão do litígio.»

14.

O artigo 31.o refere:

«(1) Nos casos previstos nos artigos 29.o e 30.o, os juízes, o júri e o secretário devem pedir escusa.

(2) As partes podem requerer a recusa até ao início do processo, exceto se os respetivos fundamentos surgiram ou foram conhecidos posteriormente.

(3) Os pedidos de recusa devem ser fundamentados.

(4) O órgão jurisdicional decide imediatamente do fundamento da escusa e dos pedidos de recusa por deliberação secreta com a participação de todos os membros da formação.»

II. Matéria de facto, litígio e questões prejudiciais

15.

No TCE foi instaurado, em 2018, um processo penal contra várias pessoas acusadas de associação criminosa com vista à prática de crimes de extorsão.

16.

Aberta a fase de julgamento dos arguidos, foram realizadas doze audiências públicas e outras foram suspensas, por diversas razões processuais, ao longo dos anos de 2020, 2021 e 2022 ( 8 ).

17.

Em momento algum do processo penal as partes pediram a recusa da formação de julgamento do TCE que conhece do processo (isto é, do presidente da secção e do júri).

18.

Ainda durante o referido processo, iniciou‑se o procedimento de consulta pública sobre o projeto da ZIDZZSV, que previa a extinção do TCE.

19.

No âmbito dessa consulta, em 25 de fevereiro de 2022 foi convocada uma reunião do Grazhdanski savet kam Vissh ia sadeben savet (Conselho de Cidadãos do Conselho Superior da Magistratura) em que participaram, designadamente, o presidente da secção de reenvio e o advogado de defesa de um dos arguidos (interveio como representante de uma organização não governamental).

20.

Nessas audiências:

O advogado defendeu a dissolução do TCE e manifestou o seu apoio à exposição de motivos do projeto de lei.

O presidente da secção do TCE pronunciou‑se contra o desaparecimento deste órgão jurisdicional. Como o próprio declara no despacho de reenvio, por diversas vezes expressara publicamente a sua opinião de que «a extinção [do TCE], do modo como foi efetuada e pelas razões invocadas, é contrária ao princípio do Estado de direito, põe em causa a independência desta autoridade judicial e a separação de poderes e constitui um meio de pressão em relação aos outros dois poderes» ( 9 ).

21.

Após a aprovação da ZIDZZSV, a formação de julgamento que tinha realizado uma audiência no TCE, e que agora faz parte do TCS, submete ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

«1)

Devem o artigo 2.o, o artigo 6.o, n.os 1 e 3, e o artigo 19.o n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [(a seguir, “Carta”)], ser interpretados no sentido de que a extinção de um órgão jurisdicional na sequência de uma alteração da [ZZSV] ([…] com efeitos a partir de 27 de julho de 2022) põe em causa a independência desse órgão jurisdicional, tendo em conta que os juízes desse órgão jurisdicional devem continuar a apreciar, até à referida data e mesmo posteriormente, os processos nele pendentes em que já tenha havido audiência preliminar, quando a justificação para a extinção do órgão jurisdicional seja que esta medida permite salvaguardar o respeito do princípio constitucional da independência do poder judicial e proteger os direitos constitucionais dos cidadãos, sem, no entanto, serem expostos adequadamente os factos que levam a concluir que esses princípios foram violados?

2)

Devem as referidas disposições do direito da União ser interpretadas no sentido de que se opõem a disposições nacionais como as da Lei que Altera e Complementa a Lei Judiciária [ZZSV] […], que, pelos motivos invocados, levaram à extinção total de uma autoridade judiciária independente da Bulgária [o TCE] e à transferência dos seus juízes (incluindo o juiz da formação que conhece do processo penal em concreto) para vários outros órgãos jurisdicionais, mas obriga esses juízes a retomarem a tramitação dos processos já pendentes e por eles instaurados no órgão jurisdicional extinto?

3)

Em caso de resposta afirmativa, e tendo igualmente em conta o primado do direito da União, que atos processuais devem ser realizados pelos juízes dos órgãos jurisdicionais recém‑extintos nos processos do órgão jurisdicional extinto (que, por lei, devem ser concluídos), tendo em conta também a sua obrigação de apreciar com o maior rigor se devem pedir escusa nesses processos com fundamento em parcialidade? Que consequências daí decorreriam para as decisões processuais do órgão jurisdicional recém‑extinto, no que respeita aos processos que devem ser concluídos e aos atos jurídicos que põem termo a esses processos?»

III. Tramitação processual no Tribunal de Justiça

22.

O pedido de decisão prejudicial foi registado no Tribunal de Justiça em 10 de outubro de 2022.

23.

Apresentaram observações escritas o Governo Polaco e a Comissão.

24.

Não foi considerada imprescindível a realização de uma audiência pública.

IV. Análise

A.   Observações preliminares

25.

No presente reenvio prejudicial verificam‑se algumas circunstâncias que devem ser assinaladas:

O pedido de decisão prejudicial provém de uma formação de julgamento formalmente integrada no TCS, que é responsável pela decisão a proferir num processo penal até então pendente num tribunal diferente (o TCE). Como já se referiu, desde a entrada em vigor da nova lei de 26 de abril de 2022, o TCS substituiu o TCE ( 10 ).

As questões prejudiciais são enviadas pela formação de julgamento atualmente competente (do TCS) cujos membros realizaram uma audiência quando faziam parte do TCE. Por conseguinte, não houve alteração na composição pessoal da formação de julgamento no que se refere especificamente a este processo ( 11 ).

A interpretação que é pedida ao Tribunal de Justiça não está relacionada com as condutas infratoras que se discutem no processo penal, nem com a independência ou a imparcialidade, enquanto tal, da específica formação jurisdicional chamada a julgar os arguidos. Nem estes últimos nem a Procuradoria búlgara intervieram no reenvio prejudicial e, segundo os elementos fornecidos, ninguém pôs em causa, concretamente, a independência ou a imparcialidade daquela formação de julgamento.

O pedido de decisão prejudicial, pelo contrário, limita‑se a questionar se a extinção do TCE é incompatível com o direito da União, por comprometer a independência do próprio TCE.

26.

Na realidade, o despacho de reenvio centra‑se na crítica à reforma do sistema judiciário efetuada, em 2022, pelo legislador búlgaro através da ZIDZZSV. No despacho alega‑se que os motivos invocados para extinguir o TCE não estão baseados em factos que justifiquem essa necessidade.

27.

As duas primeiras questões prejudiciais dizem diretamente respeito à questão de saber se a extinção do TCE e a subsequente transferência dos seus membros para outros órgãos jurisdicionais é compatível com o direito da União. A terceira interroga o Tribunal de Justiça sobre os atos processuais a seguir pelos juízes do tribunal extinto em caso de resposta afirmativa às duas primeiras perguntas.

28.

Nestas circunstâncias, não surpreende que tanto a Comissão como o Governo Polaco, as únicas partes no processo no Tribunal de Justiça, tenham levantado objeções à admissibilidade do reenvio prejudicial. É sobre estas que me irei debruçar a seguir.

B.   Admissibilidade.

1. Objeções do Governo Polaco e da Comissão (em resumo)

29.

Segundo o Governo Polaco:

A resposta às perguntas submetidas não é necessária à resolução do litígio de origem, no qual não está implicado o direito da União. Este litígio não tem nenhum nexo de ligação com o direito da União, o que afastaria a aplicabilidade da Carta.

A extinção de órgãos jurisdicionais nacionais é um processo puramente interno, fora da competência da União.

30.

Na opinião da Comissão:

O tribunal de reenvio apenas questiona se respeita o princípio da imparcialidade objetiva. No entanto, como esse mesmo tribunal não tem razões subjetivas para pedir escusa e as partes no processo a quo não questionaram a sua independência nem puseram em causa a sua imparcialidade mediante recusa dos seus membros, as dúvidas que suscita são puramente hipotéticas.

Os motivos que levaram o legislador búlgaro a adotar a ZIDZZSV estão relacionados com a necessidade de efetuar alterações estruturais nos órgãos da justiça penal especializada, dos quais não faz parte o tribunal de reenvio (o TCS). Por conseguinte, as questões submetidas seriam irrelevantes para a resolução do litígio.

2. Apreciação

31.

Das objeções apresentadas pode ser excluída, desde logo, a que é suscitada pelo Governo Polaco quanto à incompetência do Tribunal de Justiça (ou da União Europeia, em geral) para se pronunciar sobre a estrutura dos sistemas jurisdicionais dos Estados‑Membros.

32.

A esse argumento, repetido pelo Governo Polaco em litígios mais ou menos semelhantes a este, o Tribunal de Justiça já respondeu por diversas vezes. Em sucessivos acórdãos sublinhou que, embora a organização da justiça nos Estados‑Membros seja da competência destes últimos, no exercício dessa competência não deixam de estar vinculados a respeitar as obrigações que para eles decorrem do direito da União ( 12 ). Exigir aos Estados‑Membros que respeitem estas obrigações (no que aqui interessa, respeitar a independência dos seus órgãos jurisdicionais) não significa que a União pretenda exercer ela própria a referida competência ( 13 ).

33.

A constância dessa jurisprudência é sobejamente conhecida. Para referir apenas um acórdão recente do Tribunal de Justiça ( 14 ), nele é declarado que, embora a repartição ou a reorganização das competências jurisdicionais num Estado‑Membro esteja, em princípio, abrangida pela liberdade dos Estados‑Membros garantida no artigo 4.o n.o 2, TUE, esta está sujeita à condição de que essa repartição ou reorganização não prejudique o respeito pelo valor do Estado de direito, estabelecido no artigo 2.o TUE, e os requisitos decorrentes, a este respeito, do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, incluindo os relativos à independência e à imparcialidade dos tribunais.

34.

É mais significativa a objeção de inadmissibilidade centrada no facto de o litígio de origem não ter uma ligação suficiente com as disposições do direito da União cuja interpretação é solicitada pelo tribunal de reenvio. Estas disposições são o artigo 2.o TUE, o artigo 6.o n.os 1 e 3, TUE, e o artigo 19.o n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 47.o da Carta.

35.

Dessas disposições, contudo, considero que só artigo 19.o TUE, n.o 1, segundo parágrafo, poderia ser pertinente para responder ao pedido de decisão prejudicial, uma vez que:

Como salienta a Comissão, a aplicabilidade do artigo 2.o TUE adviria, de modo indireto, do facto de o valor do Estado de direito, afirmado naquele preceito, ser concretizado no artigo 19.o TUE ( 15 ). Assim, é este e não aquele, que é suscetível de ter influência no presente caso.

O artigo 6.o TUE e o artigo 47.o da Carta não seriam, em princípio, relevantes, já que no processo penal submetido ao tribunal de reenvio não se aplica o direito da União no sentido do artigo 51.o, n.o 1, da Carta ( 16 ).

36.

Circunscrito o debate à interpretação do artigo 19.o TUE, n.o 1, segundo parágrafo, num processo com as características do dos autos, a sua resolução pode ser abordada com base numa perspetiva mais estrita ou numa interpretação mais lata daquela disposição.

37.

A primeira perspetiva é a que o Tribunal de Justiça adotou, em dado momento, para declarar inadmissíveis dois pedidos de decisão prejudicial que tinham alguns traços comuns com o caso em apreço ( 17 ). Na fundamentação dessa declaração de inadmissibilidade, o acórdão considerou que a invocação da defesa da independência judicial, no âmbito de um pedido de decisão prejudicial, não podia prescindir da ligação com o direito da União ( 18 ).

38.

Esta jurisprudência poderia ser resumida afirmando que o Tribunal de Justiça não pode interpretar o artigo 19.o TUE, n.o 1, segundo parágrafo (na medida em que consagra a independência como um pressuposto para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva nos domínios abrangidos pelo direito da União) convertendo o mecanismo do artigo 267.o TFUE numa espécie de ação por incumprimento ( 19 ).

39.

Por conseguinte, se um juiz nacional pede ao Tribunal de Justiça que interprete o artigo 19.o TUE, n.o 1, segundo parágrafo, o despacho de reenvio deve demonstrar que existe um nexo entre este artigo do TUE e o litígio de origem. A aplicação do artigo 19.o TUE, n.o 1, segundo parágrafo, exigiria esse vínculo, para que a situação objeto do litígio no órgão jurisdicional nacional se inscreva no âmbito de aplicação do direito da União ( 20 ).

40.

Ora, mesmo sob esta perspetiva mais estrita, devo recordar que o nexo de conexão pode existir quando, embora não sejam aplicáveis ao mérito do litígio suscitado no tribunal nacional normas materiais de direito da União, esse tribunal exija a interpretação de outras disposições do direito da União que lhe « permita resolver as questões processuais de direito nacional antes de poder decidir sobre o mérito dos litígios que lhe foram submetidos» ( 21 ).

41.

É percetível, todavia, uma certa evolução na jurisprudência do Tribunal de Justiça, até ao ponto de admitir pedidos de decisão prejudicial de interpretação do artigo 19.o TUE, n.o 1, segundo parágrafo, em cuja origem (o litígio submetido ao juiz a quo) não se aplica outra disposição específica do direito da União, e nos quais, em bom rigor, a situação jurídica controvertida no órgão jurisdicional nacional é desprovida de elementos, substantivos ou processuais, que a relacionem com o direito da União.

42.

Esta evolução permitiu ao Tribunal de Justiça dar resposta a pedidos de decisão prejudicial no quais os órgãos jurisdicionais de reenvio, após invocarem o artigo 19.o TUE, n.o 1, segundo parágrafo, afastavam‑se do litígio concreto a decidir e suscitavam questões relativas a disposições gerais sobre a organização dos seus sistemas jurisdicionais nacionais, que eles próprios consideravam lesivas da independência judicial ( 22 ).

43.

Nesta linha jurisprudencial salienta‑se o facto de o Tribunal de Justiça admitir pedidos de decisão prejudicial apresentados por um órgão jurisdicional polaco (no decurso de diversos processos penais), para pedir a interpretação do artigo 19.o TUE, n.o 1, segundo parágrafo, relativamente à composição do órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se nos referidos processos ( 23 ).

44.

Não considero necessário abordar agora os delicados problemas suscitados por esta jurisprudência, uma vez que no processo em apreço se verifica um fator singular, cuja presença determina que a reforma do sistema judiciário búlgaro tenha de cumprir certas exigências expressamente plasmadas numa decisão que faz parte do direito da União.

45.

Com efeito, essa reforma (da qual a ZIDZZSV, a que se refere o pedido de decisão prejudicial, é parte integrante) pode e deve ser valorada em função da sua adequação ao padrão da independência judicial a que aludem os «objetivos» constantes do anexo da Decisão 2006/929, que estabelece um mecanismo de cooperação e de verificação dos progressos realizados na Bulgária no domínio da reforma judicial ( 24 ).

46.

Na mesma medida, um órgão jurisdicional búlgaro pode apresentar ao Tribunal de Justiça as suas dúvidas sobre a compatibilidade de uma lei nacional (que regula a sua situação na estrutura jurisdicional desse Estado‑Membro) com as obrigações resultantes do direito da União, incluindo as que se referem à independência do tribunal penal que deve decidir o litígio de origem.

47.

Por conseguinte, não se pode afirmar que o pedido de decisão prejudicial agora submetido ao Tribunal de Justiça não tem uma conexão suficiente com o direito da União ( 25 ).

48.

Ora, devo recordar que, quando responde a um pedido de decisão prejudicial, não cabe ao Tribunal de Justiça declarar diretamente, ele próprio, a incompatibilidade de uma norma nacional com o direito da União, mas fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio os elementos de interpretação deste direito que considere oportunos ( 26 ).

49.

As restantes objeções à admissão do pedido de decisão prejudicial podem ser ultrapassadas se se tiver em consideração que dizem respeito, efetivamente, ao mérito das questões submetidas:

o facto de os membros do órgão jurisdicional de reenvio não terem pedido escusa no processo a quo, nem as respetivas partes terem pedido a sua recusa, pode ser determinante para valorar a sua independência e imparcialidade naquele processo, no que respeita à apreciação de mérito do pedido de decisão prejudicial.

diz respeito também à apreciação de mérito, e não à fase de admissibilidade do pedido de decisão prejudicial, a análise dos motivos que levaram o legislador búlgaro a adotar a reforma dos tribunais penais especializados, bem como a influência da extinção do TCE na idoneidade dos seus membros para continuarem a conhecer do processo penal no TCS.

50.

Em suma, considero que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

C.   Quanto à primeira questão prejudicial

51.

O tribunal de reenvio pretende saber se a alteração introduzida pela ZIDZZSV, uma vez que extingue um determinado órgão jurisdicional (o TCE), «põe em causa a independência desse órgão jurisdicional». Para esclarecer as suas dúvidas, pede ao Tribunal de Justiça que declare se essa reforma é compatível com o artigo 2.o TUE, o artigo 6.o n.os 1 e 3, TUE, e o artigo 19.o n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 47.o da Carta.

52.

Como já afirmei, destas disposições do TUE e da Carta só é relevante, no que aqui interessa, o artigo 19.o n.o 1, segundo parágrafo, TUE, na medida que dele decorre a exigência de independência dos órgãos jurisdicionais nacionais.

53.

De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, esta exigência comporta dois aspetos:

«O primeiro aspeto, de ordem externa, requer que a instância em causa exerça as suas funções com total autonomia, sem estar sujeita a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a nenhuma entidade e sem receber ordens ou instruções de nenhuma proveniência, estando assim protegida contra intervenções ou pressões externas suscetíveis de afetar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões» ( 27 ).

«O segundo aspeto, de natureza interna, está relacionado com a noção de imparcialidade e é relativo à equidistância em relação às partes em litígio e aos seus respetivos interesses no que diz respeito ao objeto do litígio. Este último aspeto requer o respeito da objetividade e a inexistência de qualquer interesse na solução do litígio além da estrita aplicação do direito» ( 28 ).

54.

Ora, nem o tribunal de reenvio (o TCS) nem as partes no processo penal contestaram que esta instância «exerça as suas funções com total autonomia, sem estar sujeita a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a nenhuma entidade e sem receber ordens ou instruções de nenhuma proveniência».

55.

Também não foi posta em causa, no processo de origem, a imparcialidade subjetiva dos atuais membros do TCS e que anteriormente faziam parte do TCE. Nem os membros do tribunal de reenvio invocaram fundamentos para pedir escusa, nem consta que os arguidos ou o Ministério Público tenham promovido, a qualquer momento, a recusa dos magistrados do TCE que, após a reforma, exercem as suas funções no TCS.

56.

Do anteriormente exposto pode inferir‑se que não há razões para pôr em causa a independência e a imparcialidade dos membros do tribunal de reenvio.

57.

No entanto, haveria que perguntar se, independentemente de os membros de um tribunal coletivo não se sentirem (subjetivamente) ameaçados na sua independência, e efetivamente não tenham sido recusados nem tenham pedido escusa num determinado processo, o quadro jurídico com base no qual devem decidir fornece elementos que permitem inferir (objetivamente) a existência dessa ameaça ( 29 ).

58.

A este respeito, refira‑se, antes de mais, que a reordenação da arquitetura jurisdicional de um Estado‑Membro pode implicar, logicamente, o desaparecimento de órgãos até então existentes ou a reafetação das suas competências, sem que estas medidas, em si mesmas, ponham em risco a independência judicial.

59.

Na mesma ordem de ideias, o princípio da separação de poderes (a que alude o despacho de reenvio) não obsta a que o poder legislativo adote, dentro dos limites constitucionais, as normas que, em cada momento, considere mais adequadas quanto à estrutura jurisdicional. Órgãos jurisdicionais cuja existência se justificava num determinado momento podem ser extintos noutro, sem que isto implique, repito, que seja posta em causa a independência judicial ( 30 ).

60.

Nesta fase, já se pode inferir que a primeira questão prejudicial versa, na realidade, não sobre a independência de determinados juízes (e do júri) que têm de decidir do processo penal, ou sobre o grau de independência do TCS enquanto tal, mas sim exclusivamente sobre a eventual ameaça que a extinção do TCE possa representar para «a independência desse órgão jurisdicional [o TCE]» ( 31 ), atendendo às razões que determinaram a reforma legislativa.

61.

O tribunal de reenvio expõe no despacho de remessa os motivos alegados pelo legislador búlgaro em defesa desse desaparecimento, designadamente o relativo à independência dos órgãos jurisdicionais ( 32 ). Em sua opinião, esses motivos são infundados, uma vez que a reforma controvertida, longe de preservar a independência judicial, constituiria, ela própria, um atentado a esse princípio ( 33 ).

62.

A análise desta abordagem não pode ser feita sem ter em consideração, a título preliminar, qual a função do Tribunal de Justiça no âmbito do artigo 267.o TFUE:

por um lado, já recordei que, neste tipo de processos, não cabe ao Tribunal de Justiça declarar diretamente, ele próprio, a incompatibilidade de uma norma nacional com o direito da União, mas apenas fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio os elementos de interpretação desse direito que considere oportunos.

por outro lado, e como corolário do anteriormente exposto, não pode ser pedida ao Tribunal de Justiça uma decisão sobre a reforma legislativa controvertida in toto, pois a sua função limita‑se a fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio apreciações sobre a influência do direito da União, à luz dos efeitos que essa reforma eventualmente tenha produzido, em concreto, sobre a natureza institucional do tribunal que tem de decidir o processo penal.

63.

Partindo destas premissas, concordo com a Comissão quanto ao facto de que a reordenação de um sistema judiciário com vista a uma melhor garantia da independência dos tribunais não é passível de crítica, nem tem de implicar, em si mesma, uma redução da independência dos tribunais nacionais.

64.

Nessa mesma linha, o legislador nacional pode tão legitimamente optar por um sistema de justiça penal com tribunais comuns competentes para conhecer de todo o tipo de crimes como por outro sistema que concentre num determinado tribunal especializado a competência para conhecer de determinadas condutas infratoras especialmente graves. Um ou outro modelo encontra‑se nos diversos Estados‑Membros que, repito, são livres de adotar qualquer um deles ou de o alterar.

65.

O legislador búlgaro justificou a reforma de 2022 enquanto expressão da sua vontade de reordenar o sistema judiciário nacional com vista a uma maior eficácia dos seus órgãos ( 34 ) e a uma melhor garantia da sua independência. Se assim for, pode aceitar‑se que responde a «motivos legítimos atinentes, em especial, a uma repartição dos recursos disponíveis que permita assegurar uma boa administração da justiça» ( 35 ).

66.

A estes motivos alude, justamente, a própria Comissão, no seu relatório sobre a situação do Estado de direito na Bulgária correspondente a 2022 ( 36 ), sem que os mesmos sejam postos em causa.

67.

É certo que o tribunal de reenvio contesta (e com veemência) que a fundamentação da ZIDZZSV corresponda a alguns factos verificados na realidade. O despacho de apresentação do pedido de decisão prejudicial dedica a maior parte da sua exposição a repetir as críticas que, no decurso da aprovação do projeto de lei da reforma judicial, foram feitas por diversos juízes às novas medidas, entre os quais se encontra o subscritor do pedido de decisão prejudicial.

68.

Considero que o Tribunal de Justiça não deve intervir na polémica suscitada a este respeito durante o processo legislativo e, ainda menos, ser eco de um processo de intenções destinado a fazer prevalecer as alegadas verdadeiras intenções do poder legislativo sobre as que este descreve ao expor os motivos da lei adotada.

69.

É suficiente referir, como orientação, que da ZIDZZSV não se deduz, quaisquer que tenham sido os argumentos que lhe serviram de base ( 37 ), que faltasse independência ou imparcialidade a algum dos membros do tribunal extinto. De outro modo, não se explicaria que os juízes que desempenhavam as suas funções no TCE tivessem sido reafetados, após a dissolução deste, a outros órgãos jurisdicionais ( 38 ) e, sobretudo, que lhes fosse permitido decidir no respetivo termo os processos penais a seu cargo no próprio TCE.

70.

Sendo esse o caso quanto à independência dos juízes que exerciam as suas funções no TCE, a fortiori o mesmo se passará no que diz respeito ao tribunal comum (o TCS) que lhe sucedeu. Repito que da decisão de reenvio não resulta o mínimo indício acerca de eventuais deficiências desse tribunal (o TCS) no que toca às garantias de independência e imparcialidade dos seus membros.

71.

Tendo em conta estas considerações, sugiro responder à primeira questão prejudicial no sentido de que o artigo 19.o n.o 1, segundo parágrafo, TUE, não se opõe à reforma do sistema judiciário de um Estado‑Membro na sequência da qual se procede à extinção de um tribunal penal especial, transferindo as suas competências para outro tribunal comum, e se dispõe igualmente que a apreciação dos processos penais pendentes no tribunal extinto em que já tenha havido uma audiência deve continuar a cargo da formação de julgamento até então competente.

D.   Quanto à segunda questão prejudicial

72.

Na parte em que não repete a primeira, com esta questão prejudicial o tribunal de reenvio manifesta as suas dúvidas sobre a compatibilidade com o direito da União ( 39 ) de uma das consequências imediatas da reforma judicial búlgara: «a transferência dos juízes (incluindo o juiz da formação que conhece do processo penal em concreto) [do TCE] para vários outros tribunais, mas obrigam esses juízes a retomarem a tramitação dos processos já pendentes e por eles instaurados no órgão jurisdicional extinto».

73.

Segundo o Tribunal de Justiça, as transferências não consentidas de um juiz para outro tribunal «podem constituir um meio de exercer um controlo sobre o conteúdo das decisões judiciais, uma vez que podem não só afetar o alcance das atribuições dos magistrados em causa e o tratamento dos processos que lhes foram confiados mas também ter consequências significativas na vida e na carreira destes e, assim, produzir efeitos análogos aos de uma sanção disciplinar» ( 40 ).

74.

O princípio da inamovibilidade judicial não tem, contudo, caráter absoluto, e «pode sofrer exceções quando motivos legítimos e imperiosos o justifiquem, no respeito do princípio da proporcionalidade» ( 41 ).

75.

Neste processo, há que salientar que a transferência para o TCS dos membros da formação de julgamento que, no TCE, já tinham realizado a audiência não teve nenhuma influência no desenvolvimento do processo penal específico ainda pendente de decisão: os processos em que (como no presente caso) os membros do TCE tinham realizado uma audiência continuam a estar a seu cargo no TCS, onde têm de os decidir.

76.

Afigura‑se, assim, que a garantia de inamovibilidade dos juízes para conhecer de um processo foi respeitada, uma vez que a ZIDZZSV previu uma espécie de perpetuatio jurisdictionis ( 42 ) a favor de quem tinha competência para proferir decisão no processo penal. Não houve, portanto, uma destituição de juízes que os tenha impedido de continuar a tramitação de um processo penal em que já tinham intervindo, mediante a realização de uma ou várias audiências públicas.

77.

Este dado torna desnecessário entrar em considerações abstratas acerca do caráter consensual ou obrigatório das transferências, em geral, dos juízes búlgaros que desempenhavam funções no TCE e agora as desempenham no TCS ou em outros órgãos jurisdicionais.

78.

De qualquer modo, o processo de reafetação dos juízes nos seus novos cargos após a entrada em vigor da ZIDZZSV parece estar sujeito a garantias de objetividade ( 43 ), sem que o pedido de decisão prejudicial incida, especificamente, sobre este ponto. Os critérios diretores dessa reafetação baseiam‑se nos que, de um modo geral, se consagram na legislação anterior aplicável ao Poder Judicial ( 44 ) e não há suspeitas de arbitrariedade quanto aos mesmos. Concretamente, nada indica que a reafetação dos membros do tribunal extinto a órgãos jurisdicionais de idêntica natureza tenha caráter análogo ao de uma sanção disciplinar.

79.

Estamos, assim, perante uma formação de julgamento integrada inicialmente num tribunal (o TCE) que passou a fazer parte de outro tribunal (o TCS) cuja independência não é posta em questão. Essa formação de julgamento, além do mais, trouxe consigo para este segundo tribunal o processo pendente da sua apreciação no primeiro tribunal, processo esse que está na origem do pedido de decisão prejudicial.

80.

Neste contexto, é difícil, novamente, declarar que de algum modo tenha sido posta em causa a independência do tribunal de reenvio devido à transferência dos membros da formação de julgamento para o TCS, como consequência da reorganização do sistema jurisdicional penal búlgaro.

E.   Terceira questão prejudicial

81.

Com a terceira questão prejudicial, o tribunal de reenvio pretende esclarecimentos acerca dos atos processuais que, caso se verifique a incompatibilidade da reforma controvertida com o direito da União, devem ser realizados pelos juízes do tribunal extinto (TCE) nos processos a seu cargo antes dessa extinção.

82.

Com esta redação, não será necessário dar resposta a esta questão se o Tribunal de Justiça considerar, ao pronunciar‑se sobre as duas anteriores, que não há motivos no pedido de decisão prejudicial para concluir pela existência de incompatibilidade entre uma legislação nacional, como a ZIDZZSV, e o direito da União.

83.

De qualquer modo, a terceira questão prejudicial seria, na minha opinião, improcedente. O processo principal, como referi reiteradamente, tem por objeto um processo que, instaurado no TCE, passou para o TCS, órgão jurisdicional que submete o pedido de decisão prejudicial, e que será decidido pelos mesmos juízes que tinham realizado uma audiência no TCE antes da extinção deste.

84.

Por conseguinte, os juízes do TCE não poderiam realizar nenhum ato processual enquanto juízes do TCE. Só poderão agir enquanto juízes do TCS, pelo que deve entender‑se que a terceira questão prejudicial é referida aos atos a realizar pelo TCS se às duas primeiras questões for dada uma resposta afirmativa, o que, na minha opinião, não deve acontecer no presente caso.

V. Conclusão

85.

Atendendo ao exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda ao Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária) nos seguintes termos:

«O artigo 19.o TUE, n.o 1, segundo parágrafo,

deve ser interpretado no sentido de que:

Não se opõe à reforma do sistema judiciário de um Estado‑Membro na sequência da qual se procede à extinção de um tribunal penal especial e à transferência das suas competências para outro tribunal comum, e se dispõe igualmente que a apreciação dos processos penais pendentes no tribunal extinto em que já tenha havido uma audiência deve continuar a estar a cargo da formação de julgamento até então competente.

Não se opõe a que, no âmbito dessa reforma do sistema judiciário, se proceda à reafetação dos juízes do tribunal extinto para outros tribunais de idêntica natureza, mediante critérios objetivos quanto aos quais não há nenhuma suspeita de arbitrariedade.»


( 1 ) Língua original: espanhol.

( 2 ) Zakon za izmenenie i dopalnanie na Zakona za sadebnata vlast [Lei que altera e completa a Lei da Organização do Sistema Judiciário (a seguir, «ZIDZZSV»)]. Darzhaven vestnik n.o 32, de 26 de abril de 2022.

( 3 ) Nos termos da ZIDZZSV, o TCS sucede ao TCE no ativo, no passivo, nos direitos e nas obrigações do órgão extinto.

( 4 ) Decisão da Comissão, de 13 de dezembro de 2006, que estabelece um mecanismo de cooperação e de verificação dos progressos realizados na Bulgária relativamente a objetivos de referência específicos nos domínios da reforma judiciária e da luta contra a corrupção e a criminalidade organizada (JO 2006, L 354, p. 58), revogada pela Decisão (UE) 2023/1785 da Comissão, de 15 de setembro de 2023, (JO 2023, L 229, p. 91).

( 5 ) Lei da Organização do Sistema Judiciário. Darzhaven vestnik n.o 64, de 7 de agosto de 2007 («ZZSV»).

( 6 ) Como é referido no despacho de reenvio, deste número constava em seguida um período que foi declarado inconstitucional pelo Acórdão n.o 7 do Konstitutsionen Sad (Tribunal Constitucional), de 14 de julho de 2022. Esse período tinha a seguinte redação: «Pelo menos um quarto dos juízes do extinto TCE […] são reafetados a um único órgão jurisdicional».

( 7 ) Código de Processo Penal

( 8 ) A decisão de reenvio enumera pormenorizadamente as audiências públicas realizadas no processo em que houve oportunidade de denunciar a eventual parcialidade do julgador. Salientam, designadamente, a audiência preliminar realizada em 28 de janeiro de 2020 e a que teve lugar em 2 de junho de 2020, que deu início à fase de julgamento. Desde essa data, e até 27 de maio de 2022, foram realizadas doze audiências públicas; em seis delas foram prestados depoimentos de testemunhas, ao passo que nas restantes o processo não avançou por diversas faltas de comparência.

( 9 ) N.o 3, in fine, do despacho de reenvio.

( 10 ) Em vários reenvios prejudiciais apresentados inicialmente pelo TCE, como o decidido pelo Acórdão de 30 de março de 2023, IP e o. (Estabelecimento da materialidade dos factos no processo principal ‑ II) (C‑269/22, EU:C:2023:275), «[p]or ofício de 5 de agosto de 2022, o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia) informou o Tribunal de Justiça de que, na sequência de uma alteração legislativa que entrou em vigor em 27 de julho de 2022, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) foi dissolvido e que alguns processos penais pendentes neste último órgão jurisdicional, incluindo o processo principal, lhe foram transferidos a partir dessa data» (n.o 13).

( 11 ) Assim consta da segunda questão prejudicial: os juízes do tribunal extinto (o TCE) são obrigados a retomar no tribunal que lhe sucedeu (o TCS) os processos já pendentes e por eles instaurados no órgão jurisdicional extinto.

( 12 ) Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, RS (Efeito dos acórdãos de um tribunal constitucional) (C‑430/21, EU:C:2022:99); a seguir, «Acórdão RS», n.o 38, e jurisprudência aí referida.

( 13 ) Acórdão de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal) (C‑619/18, EU:C:2019:531); a seguir, «Acórdão Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal)», n.o 52.

( 14 ) Acórdão de 5 de junho de 2023, Comissão/Polónia (Independência e vida privada dos juízes) (C‑204/21, EU:C:2023:442, n.o 263).

( 15 ) Acórdão RS, n.o 39, e jurisprudência aí referida.

( 16 ) Acórdão RS, n.o 34, e jurisprudência aí referida: «o reconhecimento do […] direito à ação, num determinado caso, pressupõe que a pessoa que o invoca se baseie em direitos ou liberdades garantidos pelo direito da União […] ou que essa pessoa seja objeto de procedimentos que constituem uma aplicação do direito da União, no sentido do artigo 51.o, n.o 1, da Carta».

( 17 ) Nos processos C‑558/18 e C‑563/18, EU:C:2020:234, Acórdão de 26 de março de 2020, Miasto Łowicz e Prokurator Generalny (EU:C:2020:234; a seguir, «Acórdão Miasto Łowicz e Prokurator Generalny») perguntava‑se ao Tribunal de Justiça se o artigo 19.o TUE, n.o 1, segundo parágrafo, «[obsta] a disposições que eliminam as garantias de processos disciplinares independentes contra os juízes na Polónia, em razão da influência política na condução dos processos disciplinares e no risco de utilização do regime disciplinar para o controlo político do conteúdo das decisões judiciais».

( 18 ) Acórdão Miasto Łowicz e Prokurator Generalny. No n.o 49 o Tribunal de Justiça refere que «[…] os litígios nos processos principais não apresentam, quanto à matéria de fundo, nenhum nexo de ligação com o direito da União, nomeadamente com o artigo 19.o TUE, n.o 1, segundo parágrafo, sobre o qual versam as questões prejudiciais, nem os órgãos jurisdicionais de reenvio têm, por conseguinte, de aplicar este direito ou a referida disposição, a fim de resolver esses litígios».

( 19 ) Ibidem, n.o 47.

( 20 ) Tal não significa, no entanto, que tenha de se verificar precisamente a mesma ligação que é exigida pelo artigo 51.o, n.o 1, da Carta. V., neste sentido, Acórdão de 27 de fevereiro de 2018, Associação Sindical dos Juízes Portugueses (C‑64/16, EU:C:2018:117), n.o 29.

( 21 ) Acórdão Miasto Łowicz e Prokurator Generalny, n.o 51. O sublinhado é meu.

( 22 ) O alargamento do critério de admissão neste género de pedidos de decisão prejudicial é percetível, por exemplo, no Acórdão de 13 de julho de 2023, YP e o. (Levantamento da imunidade e suspensão de um juiz) (C‑615/20 e C‑671/20, EU:C:2023:562),

( 23 ) Acórdão de 16 de novembro de 2021, Prokuratura Rejonowa w Mińsku Mazowieckim e o. (C‑748/19 a C‑754/19, EU:C:2021:931).

( 24 ) Em casos equivalentes relativos à Roménia, o Tribunal de Justiça declarou que «uma legislação nacional abrangida pelo âmbito de aplicação da Decisão 2006/928 [em substância, idêntica à Decisão 2006/929] deve respeitar as exigências decorrentes do direito da União, especialmente do artigo 2.o e do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE» [Acórdão de 11 de maio de 2023, Inspecţia Judiciară (C‑817/21, EU:C:2023:391, n.o 43), com referência do Acórdão RS, n.o 57]. Mais recentemente, no Acórdão de 7 de setembro de 2023, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România (C‑216/21, EU:C:2023:628), o Tribunal de Justiça acedeu a pronunciar‑se sobre a interpretação do artigo 19.o TUE, n.o 1, segundo parágrafo, e da Decisão 2006/928 em resposta a um pedido de decisão prejudicial sobre o regime de promoção dos juízes romenos.

( 25 ) No Acórdão de 13 de julho de 2023, YP e o. (Levantamento da imunidade e suspensão de um juiz) (C‑615/20 e C‑671/20, EU:C:2023:562, n.o 41), recorda‑se, com referência ao Acórdão de 16 de novembro de 2021, Prokuratura Rejonowa w Mińsku Mazowieckim e o. (C‑748/19 a C‑754/19, EU:C:2021:931, n.o 54), que alegações como as agora apresentadas pelo Governo Polaco «dizem respeito, em substância, ao alcance e, portanto, à interpretação das disposições do direito da União sobre as quais incide a [questão prejudicial], bem como aos efeitos suscetíveis de decorrer dessas disposições, tendo em conta, especialmente, o primado desse direito. Tais argumentos, que dizem respeito ao mérito das questões submetidas, não podem, assim, pela sua natureza, conduzir à sua inadmissibilidade».

( 26 ) Acórdão de 21 de setembro de 2023, Romaqua Group (C‑510/22, EU:C:2023:694, n.o 22): «Embora também não caiba ao Tribunal de Justiça, decidindo a título prejudicial, pronunciar‑se ele próprio sobre a eventual incompatibilidade da legislação nacional em causa no processo principal com esses artigos do Tratado FUE, este é, em contrapartida, competente para os interpretar».

( 27 ) Acórdão RS, n.o 41.

( 28 ) Loc. ult. cit., com referência aos Acórdãos Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal), n.os 72 e 73, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o. (C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 224).

( 29 ) O Tribunal de Justiça referiu‑se à independência e imparcialidade objetivas, nomeadamente, no Acórdão de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal) (C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 129), com referência ao Acórdão do TEDH de 6 de maio de 2003, Kleyn e o. c. Países Baixos (CE:ECHR:2003:0506JUD003934398, § 192 e jurisprudência aí referida), e de 6 de novembro de 2018, Ramos Nunes de Carvalho e Sá c. Portugal (CE:ECHR:2018:1106JUD005539113, § 150 e jurisprudência aí referida).

( 30 ) Na própria arquitetura jurisdicional da União, depois de ter sido prevista pelo Tratado de Nice, em 2003, a possibilidade de criar tribunais especializados, em 2 de novembro de 2004 o Conselho da União Europeia decidiu instituir o Tribunal da Função Pública, cuja missão, até então desempenhada pelo Tribunal Geral da União Europeia, consistia em decidir os litígios entre esta e o seu pessoal. Em 2015, o legislador da União decidiu aumentar progressivamente o número de juízes do Tribunal Geral até chegar a 56 e transferir para este Tribunal as competências do Tribunal da Função Pública. Este último foi dissolvido em 1 de setembro de 2016.

( 31 ) É um pouco estranho que a questão provenha da formação que é integrada num tribunal diferente (o TCS). No entanto, dada a identidade pessoal entre ambas as formações de julgamento, interrogar‑se sobre o respeito do princípio da independência relativamente à extinção do TCE permitiria fazê‑lo em relação ao efeito principal dessa extinção, ou seja, à atribuição de novas competências ao TCS, que é o órgão jurisdicional de reenvio.

( 32 ) N.o 42 do despacho de reenvio.

( 33 ) N.o 43 do despacho de reenvio.

( 34 ) N.o 15 do despacho de reenvio.

( 35 ) Acórdão de 6 de outubro de 2021, W. Ż (Secção de Fiscalização Extraordinária e dos Processos de Direito Público do Supremo Tribunal — Nomeação) (C‑487/19, EU:C:2021:798); a seguir, «Acórdão W.Z.», n.o 118.

( 36 ) SWD(2022) 502 final, p. 10, 15 e 16.

( 37 ) No n.o 19 do despacho de reenvio, o tribunal a quo afirma que só poderiam existir conjeturas sobre os interesses subjacentes à extinção dos órgãos jurisdicionais especializados na falta de qualquer justificação em termos factuais e de provas objetivas sobre o funcionamento destes órgãos, no âmbito do processo legislativo.

( 38 ) Partilho esta apreciação com a Comissão, que entende que «se o legislador tivesse dúvidas quanto à independência desses magistrados pelo facto de terem pertencido ao órgão jurisdicional extinto, não teria previsto a sua reafetação incondicional para prosseguirem a sua atividade jurisdicional como magistrados. Além disso, o legislador encarregou os magistrados de continuarem a apreciar os processos pendentes que lhes tinham sido distribuídos enquanto juízes do [TCE] e, de facto, dissipa qualquer dúvida de que a sua pertença a esse órgão jurisdicional poder pôr em causa a sua imparcialidade no tratamento de determinados processos penais» (n.o 37 das suas observações escritas; tradução não oficial da versão francesa).

( 39 ) Concretamente, com as mesmas disposições do TUE e da Carta sobre as quais incide a primeira questão prejudicial.

( 40 ) Acórdão W. Ż., n.o 115.

( 41 ) Acórdão Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal), n.o 76.

( 42 ) Na senda do antigo aforismo semel competens semper competens (uma vez competente, sempre competente).

( 43 ) Sobretudo após o Acórdão n.o 7 do Konstitutsionen Sad (Tribunal Constitucional), de 14 de julho de 2022, que referi na nota 6.

( 44 ) Nos termos da disposição transitória 44 da ZIDZZSV, os juízes do TCE são reafetados nas condições e nos termos do procedimento previstos no artigo 194.o, n.o 1, de Lei da Organização do Sistema Judiciário.

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