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Document 62021TJ0524

Acórdão do Tribunal Geral (Oitava Secção) de 12 de outubro de 2022 (Extratos).
Hans-Wilhelm Saure contra Comissão Europeia.
Acesso aos documentos — Regulamento (CE) n.o 1049/2001 — Correspondência da Comissão com a AstraZeneza e as autoridades alemãs relativa às quantidades e aos prazos de entrega das vacinas contra a COVID‑19 — Exceção relativa à proteção dos processos judiciais — Documentos que foram apresentados no âmbito de um processo judicial que já tinha terminado no momento em que foi adotada a decisão que recusou conceder acesso aos documentos — Exceção relativa à proteção da vida privada e da integridade do indivíduo — Exceção relativa à proteção dos interesses comerciais de um terceiro.
Processo T-524/21.

ECLI identifier: ECLI:EU:T:2022:632

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção)

12 de outubro de 2022 ( *1 )

«Acesso aos documentos — Regulamento (CE) n.o 1049/2001 — Correspondência da Comissão com a AstraZeneza e as autoridades alemãs relativa às quantidades e aos prazos de entrega das vacinas contra a COVID‑19 — Exceção relativa à proteção dos processos judiciais — Documentos que foram apresentados no âmbito de um processo judicial que já tinha terminado no momento em que foi adotada a decisão que recusou conceder acesso aos documentos — Exceção relativa à proteção da vida privada e da integridade do indivíduo — Exceção relativa à proteção dos interesses comerciais de um terceiro»

No processo T‑524/21,

Hans‑Wilhelm Saure, residente em Berlim (Alemanha), representado por C. Partsch, advogado,

recorrente,

contra

Comissão Europeia, representada por G. Gattinara, K. Herrmann e A. Spina, na qualidade de agentes,

recorrida,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção),

composto, no momento da deliberação, por: J. Svenningsen (relator), presidente, C. Mac Eochaidh e J. Laitenberger, juízes,

secretário: S. Jund, administradora,

vistos os autos,

após a audiência de 12 de julho de 2022,

profere o presente

Acórdão ( 1 )

1

Com o seu recurso interposto ao abrigo do artigo 263.o TFUE, o recorrente, Hans‑Wilhelm Saure, requer a anulação, por um lado, da Decisão C(2021) 5327 final da Comissão, de 13 de julho de 2021, que indeferiu o pedido confirmativo de acesso a determinados documentos (a seguir «primeira decisão recorrida») e, por outro, da Decisão C(2022) 870 final da Comissão, de 7 de fevereiro de 2022, que recusou conceder acesso a determinados documentos (a seguir a «segunda decisão recorrida»).

Antecedentes do litígio

2

O recorrente é um jornalista que trabalha para o jornal diário alemão Bild.

3

Por carta de 29 de janeiro de 2021, o recorrente apresentou, ao abrigo do Regulamento (CE) n.o 1049/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2001, relativo ao acesso do público aos documentos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão (JO 2001, L 145, p. 43), à Comissão Europeia um pedido de acesso a cópias de toda a correspondência trocada desde 1 de abril de 2020 entre esta última e, por um lado, a sociedade AstraZeneca plc ou as suas filiais, bem como, por outro, a Chancelaria Federal da República Federal da Alemanha ou o Ministério Federal da Saúde deste Estado‑Membro a respeito desta sociedade e destas filiais, nomeadamente a respeito das quantidades e dos prazos de entrega das vacinas contra a COVID‑19 vendidas pela referida sociedade. Este pedido foi registado em 1 de fevereiro de 2021 com a referência GESTDEM 2021/0550.

4

Em 16 de março de 2021, o recorrente enviou à Comissão um pedido confirmativo visto que a Comissão não lhe tinha respondido no prazo previsto no artigo 7.o, n.o 1 do Regulamento n.o 1049/2001, conforme prorrogado nos termos do n.o 3 desta disposição.

5

No mesmo dia, os serviços da Comissão acusaram a receção do pedido confirmativo. Em 9 de abril seguinte, ou seja, no termo do prazo de tratamento deste pedido, estes serviços informaram o recorrente de que o referido pedido ainda estava a ser analisado e que este prazo havia sido prorrogado até 30 de abril seguinte, ou seja, até ao termo do prazo dos 15 dias úteis adicionais previstos no artigo 8.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1049/2001.

6

Em 23 de abril de 2021, a União Europeia, representada pela Comissão, intentou uma ação judicial no tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Língua Francesa de Bruxelas, Bélgica) contra a sociedade AstraZeneca a respeito da execução do contrato de compra antecipada celebrado com esta.

7

Em 30 de abril de 2021, os serviços da Comissão informaram novamente o recorrente de que não podia ser dada resposta no prazo fixado ao pedido confirmativo e informaram que estavam a fazer tudo o que estava ao seu alcance para que lhe fosse dada uma resposta o mais rapidamente possível. Nesta data, a não apresentação de uma resposta ao pedido confirmativo deu origem a uma decisão tácita negativa respeitante aos documentos pedidos, em conformidade com o disposto no artigo 8.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1049/2001, da qual o recorrente interpôs um recurso de anulação que foi registado sob o número de processo T‑232/21 e que foi indeferido pelo Despacho de 18 de março de 2022, Saure/Comissão (T‑232/21, não publicado, EU:T:2022:165).

8

Por Despacho de 18 de junho de 2021, o juiz das medidas provisórias, no âmbito da ação judicial que opunha a União à AstraZeneca, condenou esta última a entregar aos Estados‑Membros da União 50 milhões de doses de vacinas adicionais, de acordo com um calendário de entregas a respeitar, sob pena de condenação numa sanção pecuniária compulsória.

9

Em 13 de julho de 2021, a secretária‑geral da Comissão adotou a primeira decisão recorrida, em resposta ao pedido confirmativo de 16 de março de 2021. Em especial, esta decisão identificou diversos documentos e indicou que havia que recusar o acesso a esses documentos porque estavam abrangidos pela exceção relativa à proteção dos processos judiciais, prevista no artigo 4.o, n.o 2, segundo travessão, do Regulamento n.o 1049/2001, uma vez que a ação judicial se encontrava pendente no Tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Língua Francesa de Bruxelas).

10

Em 3 de setembro de 2021, a Comissão, num comunicado de imprensa, indicou que a Union e a AstraZeneca tinham chegado a acordo para pôr termo ao litígio que se encontrava pendente no Tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Língua Francesa de Bruxelas). Este órgão jurisdicional registou a desistência da instância na Sentença de 15 de outubro seguinte.

11

Em 7 de fevereiro de 2022, a secretária‑geral da Comissão, atendendo ao termo do processo judicial e após reexame do pedido confirmativo de 16 de março de 2021, adotou, ao abrigo do artigo 4.o, n.o 7, do Regulamento n.o 1049/2001, a segunda decisão recorrida, da qual resulta que substitui a primeira decisão recorrida.

12

Em primeiro lugar, a Comissão indicou que a exceção relativa à proteção dos processos judiciais se aplicava aos seguintes documentos:

um anexo da proposta apresentada pela AstraZeneca (a seguir «documento n.o 1.2»);

um documento de 12 de junho de 2020 trocado entre a AstraZeneca e os Governos de vários Estados‑Membros com vista à negociação e à celebração de um contrato de financiamento (a seguir «documento n.o 2»);

um projeto de contrato de financiamento enviado pela AstraZeneca em 24 de junho de 2020 aos Governos de vários Estados‑Membros (a seguir «documento n.o 3»);

um documento de 20 de novembro de 2020 respeitante à transferência do segundo pagamento escalonado previsto no contrato de compra antecipada celebrado com a AstraZeneca (a seguir «documento n.o 5»);

as apresentações utilizadas pela AstraZeneca nas suas reuniões do Comité Diretor de 4 de dezembro de 2020, de 22 de janeiro, 1, 11, 19 e 23 de fevereiro, bem como de 11 de março de 2021 (a seguir «documento n.o 6»);

uma apresentação utilizada pela AstraZeneca numa reunião de 7 de dezembro de 2020 (a seguir «documento n.o 7»);

uma apresentação utilizada pela AstraZeneca numa reunião de 19 de janeiro de 2021 (a seguir «documento n.o 8»);

um documento relativo às datas de entrega das vacinas (a seguir «documento n.o 9») acompanhado de cinco anexos (a seguir «documentos n.os 9.1 a 9.5»);

uma apresentação utilizada pela AstraZeneca numa reunião do Comité Diretor de 25 de janeiro de 2021 (a seguir «documento n.o 10»).

13

Por outro lado, ao abrigo da exceção relativa à proteção dos processos judiciais, a Comissão recusou parcialmente acesso a mensagens de correio eletrónico trocadas entre a Comissão e a AstraZeneca em 27 de julho de 2020 (a seguir «documento n.o 11»).

14

Em segundo lugar, a Comissão, ao abrigo da exceção relativa à proteção da vida privada e da integridade do indivíduo, prevista no artigo 4.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 1049/2001, recusou parcialmente acesso a determinados documentos, nos quais ocultou dados pessoais de representantes da AstraZeneca e de membros do pessoal da Comissão que não ocupam funções de chefia. Estavam em causa os seguintes documentos:

a mensagem de correio eletrónico enviada à Comissão que continha a proposta da AstraZeneca (a seguir «documento n.o 1.1»);

as mensagens de correio eletrónico trocadas entre a AstraZeneca, a Comissão e o Governo alemão entre 2 e 13 de julho de 2020 (a seguir «documento n.o 4»);

o documento n.o 11;

o contrato de compra antecipada celebrado em 27 de agosto de 2020 entre a AstraZeneca e a Comissão (a seguir «documento n.o 12»).

15

Em terceiro lugar, a Comissão indicou que a exceção relativa à proteção dos interesses comerciais, prevista no artigo 4.o, n.o 2, primeiro travessão do Regulamento n.o 1049/2001, justificava que só fosse concedido acesso parcial aos seguintes documentos:

às atas das reuniões do Comité Diretor de 4 de dezembro de 2020, de 22 de janeiro, de 1, 11, 19 e 23 de fevereiro, bem como de 11 de março de 2021 (a seguir «documentos n.os 6.1 a 6.6»);

ao documento n.o 12.

16

Por outro lado, por considerar que o documento que continha a proposta apresentada pela AstraZeneca (a seguir «documento n.o 1») estava abrangido por uma presunção geral de confidencialidade ao abrigo da exceção relativa à proteção dos interesses comerciais, a Comissão recusou o acesso à totalidade do referido documento.

17

Em quarto lugar, a Comissão concedeu acesso completo aos dois anexos do documento n.o 11.

Pedidos das partes

18

Na petição, o recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

anular a primeira decisão recorrida;

condenar a Comissão nas despesas.

19

No pedido de não conhecimento do mérito, a Comissão conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

declarar que já não há que conhecer do mérito do recurso;

condenar cada parte a suportar as suas próprias despesas.

20

No requerimento de adaptação da petição, o recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne anular a segunda decisão recorrida.

21

Na resposta ao requerimento de adaptação da petição, o recorrente conclui pedindo que o Tribunal Geral se digne:

negar provimento ao recurso conforme este resulta da sua versão adaptada;

condenar o recorrente nas despesas.

Questão de direito

[Omissis]

Quanto aos pedidos de anulação da segunda decisão recorrida

28

Em apoio do pedido de anulação da segunda decisão recorrida, o recorrente invoca três fundamentos, relativos à inaplicabilidade das três exceções invocadas pela Comissão para justificar a recusa de acesso aos documentos pedidos.

Quanto ao primeiro fundamento, relativo à inaplicabilidade do artigo 4.o, n.o 2, segundo travessão, do Regulamento n.o 1049/2001

29

O recorrente alega que a exceção relativa à proteção dos processos judiciais só se aplica enquanto um litígio estiver pendente perante um órgão jurisdicional. Ora, tendo já sido encerrado o processo que correu no tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Língua Francesa de Bruxelas), a divulgação dos documentos pedidos já não pode prejudicar um processo judicial na aceção do artigo 4.o, n.o 2, segundo travessão, do Regulamento n.o 1049/2001. Alega, por outro lado, que o artigo 871.o bis do code judiciaire (a seguir «Código de Processo Civil») belga não permite derrogar a redação clara deste artigo.

30

A Comissão alega que mesmo depois de um processo judicial ter sido encerrado, a exceção relativa à proteção dos processos judiciais continua a aplicar‑se ao presente caso em relação a determinados documentos apresentados no âmbito do referido processo. Considera que a recusa de acesso aos documentos em causa era necessária para garantir nomeadamente o respeito pela integridade do processo judicial.

31

A Comissão alega igualmente o seu dever de cooperação leal com as autoridades judiciárias que lhe impõe que não divulgue determinados documentos que foram apresentados no decurso deste processo e que foram qualificados de confidenciais ao abrigo do artigo 871.o bis do Código de Processo Civil belga.

32

Por outro lado, o recorrente não invocou nenhum interesse público superior suscetível de justificar a divulgação destes documentos ao público.

33

Nos termos do artigo 4.o, n.o 2, segundo travessão, do Regulamento n.o 1049/2001, as instituições recusarão o acesso aos documentos cuja divulgação pudesse prejudicar a proteção de proteção dos processos judiciais, exceto quando um interesse público superior imponha a divulgação.

34

Por outro lado, nos termos do primeiro período do artigo 4.o, n.o 7, do Regulamento n.o 1049/2001, as exceções previstas nos n.os 1 a 3 só são aplicáveis durante o período em que a proteção se justifique com base no conteúdo do documento.

35

Daqui resulta que a aplicação da exceção prevista no artigo 4.o, n.o 2, segundo travessão, do Regulamento n.o 1049/2001 está necessariamente limitada no tempo uma vez que só se opõe à divulgação dos documentos enquanto persistir, atendendo ao conteúdo destes últimos, o risco de que o processo judicial seja afetado (v., neste sentido, Acórdão de 6 de fevereiro de 2020, Compañía de Tranvías de la Coruña/Comissão, T‑485/18, EU:T:2020:35, n.o 43 e jurisprudência referida).

36

Segundo a jurisprudência, a proteção destes processos explica‑se pela necessidade de que sejam assegurados o respeito pelo princípio de igualdade das armas e da boa administração da justiça (v., neste sentido, Acórdão de 21 de setembro de 2010, Suécia e o./API e Comissão, C‑514/07 P, C‑528/07 P e C‑532/07 P, EU:C:2010:541, n.o 85).

37

No que se refere ao respeito pelo princípio de igualdade de armas, foi nomeadamente declarado que embora o conteúdo de documentos que expõem a posição de uma instituição num litígio deva ser objeto de debate público, as críticas aos mesmos podem influenciar indevidamente a posição defendida pela instituição perante os órgãos jurisdicionais em causa (v. Acórdão de 6 de fevereiro de 2020, Compañía de Tranvías de la Coruña/Comissão, T‑485/18, EU:T:2020:35, n.o 39 e jurisprudência referida).

38

No que se refere à boa administração da justiça e à integridade do processo judicial, a exclusão da atividade judicial do âmbito de aplicação do direito de acesso aos documentos justifica‑se à luz da necessidade de garantir, ao longo de todo o processo judicial, que os debates entre as partes e a deliberação do órgão jurisdicional em causa sobre o processo que lhe foi submetido decorrem com toda a serenidade, sem pressões externas sobre a atividade judicial (v. Acórdão de 6 de fevereiro de 2020, Compañía de Tranvías de la Coruña/Comissão, T‑485/18, EU:T:2020:35, n.o 40 e jurisprudência referida).

39

No caso em apreço, há que salientar que os documentos aos quais o acesso foi recusado pela Comissão dizem respeito às quantidades e à entrega das vacinas fabricadas pela AstraZeneca e que em 16 de março de 2021, data em que o recorrente apresentou um pedido confirmativo, estes documentos estavam na posse desta Instituição.

40

Só mais tarde é que estes documentos foram apresentados no âmbito de uma ação judicial intentada no tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Língua Francesa de Bruxelas) em 23 de abril de 2021 que teve por objeto a entrega de vacinas a título da compra antecipada celebrada com a AstraZeneca. O referido processo judicial terminou em 15 de outubro seguinte, data na qual o órgão jurisdicional registou a desistência da instância, o que pôr definitivamente termo a este processo.

41

Por conseguinte, na data em que foi adotada a segunda decisão recorrida, em 7 de fevereiro de 2022, já estava encerrado o processo judicial suscetível de justificar a aplicação da exceção relativa à proteção dos referidos processos.

42

Neste contexto, há que recordar que é certo que um documento que não foi elaborado no contexto de um processo judicial específico pode ser protegido ao abrigo da exceção prevista no artigo 4.o, n.o 2, segundo travessão, do Regulamento n.o 1049/2001 se, na data em que for apresentada a resposta ao pedido de acesso, esse documento já tiver sido apresentado no âmbito desse processo judicial (Acórdão de 29 de outubro de 2020, Intercept Pharma e Intercept Pharmaceuticals/EMA, C‑576/19 P, EU:C:2020:873, n.o 48).

43

No entanto, por um lado, resulta da definição ampla do conceito de «documento», conforme enunciado no artigo 3.o, alínea a), do Regulamento n.o 1049/2001, bem como da formulação e da própria existência de uma exceção relativa à proteção dos processos judiciais, que o legislador da União não pretendeu excluir a atividade contenciosa das instituições do direito de acesso dos cidadãos, tendo previsto, a este respeito, que essas instituições podem recusar divulgar os documentos relativos a um processo judicial quando essa divulgação prejudicar o processo a que dizem respeito (v. Acórdão de 27 de fevereiro de 2015, Breyer/Comissão, T‑188/12, EU:T:2015:124, n.o 43 e jurisprudência referida).

44

Por outro lado, resulta do primeiro período do artigo 4.o, n.o 7, do Regulamento n.o 1049/2001 que, para determinar se um documento é abrangido por uma das exceções ao direito de acesso aos documentos previstas nos n.os 1 a 3 deste artigo, só o conteúdo do documento pedido é relevante (Acórdão de 29 de outubro de 2020, Intercept Pharma e Intercept Pharmaceuticals/EMA, C‑576/19 P, EU:C:2020:873, n.o 36).

45

Do acima indicado nos n.os 43 e 44 resulta que a circunstância de um documento ter sido apresentado no âmbito de um processo judicial implica apenas que esse documento é suscetível de ser protegido ao abrigo da exceção prevista no artigo 4.o, n.o 2, segundo travessão, do Regulamento n.o 1049/2001, situação que há que verificar à luz do conteúdo deste documento, em conformidade com o disposto no artigo 4.o, n.o 7, do Regulamento n.o 1049/2001.

46

Por outras palavras, para avaliar se, conforme o recorrente alega, a exceção relativa à proteção dos processos judiciais já não podia justificar a recusa de acesso aos documentos controvertidos depois de este processo ter sido encerrado, há que examinar se, atendendo ao conteúdo destes documentos, a Comissão provou que a respetiva divulgação continuaria a prejudicar esse processo.

47

Ora, no caso em apreço, a Comissão não explicou de que forma o acesso aos documentos em causa podia, atendendo ao seu conteúdo, continuar a prejudicar de forma concreta e efetiva um processo judicial que já tinha sido encerrado no momento em que foi adotada a decisão que recusou o acesso àqueles documentos.

48

Assim, na medida em que do exame concreto do conteúdo dos documentos controvertidos não resulta semelhante explicação, é com razão que o recorrente alega em substância que a divulgação de um documento apresentado no âmbito do processo judicial em causa já não pode prejudicar a atividade judicial do órgão jurisdicional nacional chamado perante o qual a ação esteve pendente uma vez que essa atividade terminou depois de o processo ter sido encerrado. Do mesmo modo, nestas circunstâncias, esta divulgação também não é, em princípio, suscetível de comprometer a defesa do autor do referido documento nem, por conseguinte, de prejudicar o princípio de igualdade das armas, conforme a Comissão reconheceu na audiência, durante a qual esta última se concentrou sobre a necessidade de garantir o respeito pela integridade dos processos judiciais. Ora, quanto a esta última questão, há também que constatar que, depois de o processo ter sido encerrado, os debates entre as partes e a deliberação do órgão jurisdicional em causa sobre a ação decorreram com total serenidade, sem que a atividade jurisdicional tenha sofrido pressões externas.

49

Esta conclusão não é posta em causa pelo n.o 132 do Acórdão de 21 de setembro de 2010, Suécia e o./API e Comissão (C‑514/07 P, C‑528/07 P e C‑532/07 P, EU:C:2010:541), ao qual a Comissão se referiu na audiência. Com efeito, neste processo, o Tribunal de Justiça declarou que uma instituição pode recusar o acesso a articulados redigidos no âmbito de um processo judicial encerrado quando, depois de examinado o conteúdo desses articulados, se verificar que estes continham argumentos utilizados em apoio da posição jurídica defendida por essa instituição noutro processo judicial semelhante que ainda se encontre pendente. Nesse caso, não é de excluir que a divulgação desses articulados poderá prejudicar este último processo.

50

Ora, no caso em apreço, não estava pendente mais nenhum processo judicial, nem estava sequer iminente uma propositura de uma ação, no momento em que a segunda decisão recorrida foi adotada.

51

Não obstante esta constatação, a Comissão alega, no entanto, que, independentemente do conteúdo dos documentos controvertidos, estava obrigada a recusar o acesso a estes últimos para respeitar as exigências previstas no artigo 871.o bis do Código de Processo Civil belga.

52

Este artigo tem nomeadamente a seguinte redação:

«As partes […] que, devido à sua participação num processo judicial, ou devido ao seu acesso a documentos que fazem parte de semelhante processo judicial, tenham tido conhecimento de segredos comerciais ou de putativos segredos comerciais […] que o juiz, em resposta a um pedido devidamente fundamentado de uma parte interessada ou oficiosamente, qualificou de confidencial, não estão autorizadas a utilizar nem a divulgar esse segredo comercial ou esse putativo segredo comercial.

Este dever de confidencialidade […] mantém‑se depois de o processo judicial ter sido encerrado.»

53

Por outras palavras, uma parte num processo judicial não está autorizada a divulgar um segredo comercial ou um putativo segredo comercial de que tomou conhecimento pelo facto de ter participado no processo, inclusivamente depois de este ter sido encerrado, se o juiz tiver decidido que era necessário manter a confidencialidade desse segredo.

54

No entanto, a Comissão não pode invocar este artigo para justificar a aplicação do artigo 4.o, n.o 2, segundo travessão, do Regulamento n.o 1049/2001 e, por conseguinte, a recusa de acesso aos documentos em causa.

55

Em primeiro lugar, há que salientar que o artigo 871.o bis do Código de Processo Civil belga tem por objeto a transposição do artigo 9.o, n.o 1, da Diretiva (UE) 2016/943 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2016, relativa à proteção de know‑how e de informações comerciais confidenciais (segredos comerciais) contra a sua aquisição, utilização e divulgação ilegais (JO 2016, L 157, p. 1).

56

Ora, o considerando 11 desta diretiva enuncia que esta não deverá afetar a aplicação de regras da União ou nacionais que requeiram a divulgação de informações, incluindo segredos comerciais, ao público ou às autoridades públicas. Também não deverá afetar a aplicação de regras que permitam às autoridades públicas recolher informações para o desempenho das suas funções, ou de regras que permitam ou exijam a divulgação subsequente de informações pertinentes ao público por parte dessas autoridades públicas. Tais regras incluem em particular, as regras sobre a divulgação, pelas instituições e pelos organismos da União ou pelas autoridades públicas nacionais, de informações empresariais que detenham nos termos do Regulamento n.o 1049/2001.

57

Daqui resulta que a Comissão não pode invocar em seu benefício uma disposição do direito nacional que transpôs esta diretiva para se eximir de cumprir as obrigações que lhe incumbem por força do disposto no Regulamento n.o 1049/2001.

58

Em segundo lugar, por um lado, há que recordar, conforme resulta do acima exposto no n.o 39 e como a Comissão confirmou na audiência, que os documentos controvertidos não são documentos que a Comissão detém devido à sua participação no processo judicial na aceção do artigo 871.o bis do Código de Processo Civil belga uma vez que estes já estavam na sua posse antes de esta ação ter sido intentada.

59

Por outro lado, há que observar que, na segunda decisão recorrida, a Comissão se referiu a um despacho do juiz nacional através do qual este último decidiu que determinados documentos apresentados no âmbito daquele processo continuariam a estar abrangidos pela obrigação de proteger a sua confidencialidade em conformidade com o disposto no artigo 871.o bis do Código de Processo Civil belga.

60

No entanto, resulta em substância das respostas da Comissão a uma medida de organização do processo que o órgão jurisdicional nacional chamado a pronunciar‑se naquele processo não adotou nenhuma decisão ao abrigo deste artigo. Com efeito, foram as próprias partes que celebraram um acordo segundo o qual, ao abrigo do referido artigo, manter‑se‑ia a confidencialidade de determinados documentos apresentados durante aquele processo, acordo esse que aliás se destinava a substituir uma decisão do juiz a este respeito.

61

A este respeito, há em especial que constatar que, no documento através do qual deram conhecimento do seu acordo amigável ao juiz nacional, as partes, no dispositivo dos seus pedidos, requereram expressamente ao tribunal de première instance francophone de Bruxelles (Tribunal de Primeira Instância de Língua Francesa de Bruxelas) que «[r]egiste […] que o dever de confidencialidade conforme foi referido nas [suas] mensagens de correio eletrónico […] se mantém depois de terminado o processo judicial, em conformidade com o disposto no artigo 871.o bis, [n.o] 1, [terceiro] parágrafo, do [c]ode judiciaire».

62

Ora, na sua Sentença de 15 de outubro de 2021, o órgão jurisdicional nacional limitou‑se, por um lado, a «tomar nota a desistência da instância das autoras» e, por outro, a «tomar nota de que as partes chegaram a acordo quanto às despesas», não tendo tomado posição sobre o pedido por meio do qual as partes o convidavam a «tomar nota» de que a confidencialidade de determinados documentos se manteria depois de finda a instância.

63

Também não resulta do Despacho de Medidas Provisórias de 18 de junho de 2021 que o juiz decidiu que determinados documentos apresentados no decurso do processo judicial deviam ser qualificados de confidenciais ao abrigo do artigo 871.o bis do Código de Processo Civil belga. Com efeito, este despacho limita‑se a indicar que, «[n]a audiência de 26 de maio de 2021, e depois de para tal terem sido interpeladas, as partes confirmaram que a indicação de confidencialidade aposta nalgumas peças processuais e nalguns excertos dos seus pedidos não impede que [sejam retomadas] algumas das respetivas passagens [neste] despacho», sem mencionar este artigo nem o seu conteúdo.

64

Nestas condições, há que considerar que a Comissão não pode, através de um simples acordo celebrado com uma sociedade terceira, restringir o direito de que gozam todos os cidadãos da União e que está diretamente consagrado no artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1049/2001 de aceder aos documentos que estejam na posse desta Instituição. No mesmo sentido, reconhecer que uma instituição pode invocar semelhante acordo em seu benefício para recusar o acesso a documentos que detém equivaleria a autorizá‑la a contornar a obrigação que lhe incumbe de conceder acesso a esses documentos, exceto nos casos em que a sua divulgação prejudica um dos interesses protegidos pelo artigo 4.o do Regulamento n.o 1049/2001.

65

Também decorre do que precede que, uma vez em que as próprias partes se puseram de acordo para considerar que os documentos eram confidenciais, sem nenhuma intervenção do órgão jurisdicional nacional para além da acima referida nos n.os 61 a 63, a Comissão não pode alegar em seu benefício o seu dever de cooperação leal para com as autoridades judiciárias dos Estados‑Membros para justificar a recusa de acesso a esses documentos.

66

Em terceiro lugar, há que notar que a finalidade do artigo 871.o bis do Código de Processo Civil belga, que visa proteger os segredos comerciais, é diferente da finalidade prosseguida pelo artigo 4.o, n.o 2, segundo travessão, do Regulamento n.o 1049/2001, que visa assegurar o respeito pelo princípio de igualdade das armas, bem como o da boa administração da justiça e da integridade do processo judicial. Deste modo, o mero facto de os documentos controvertidos conterem segredos comerciais ou putativos segredos comerciais não permite, seja como for, que se explique de que forma o acesso a esses documentos pode concreta e efetivamente continuar a prejudicar o processo judicial que já tinha sido encerrado no momento em que a segunda decisão recorrida foi adotada.

67

Por conseguinte, sem que se exclua que um documento que contém um segredo comercial possa estar abrangido por uma ou por outra das exceções previstas no artigo 4.o do Regulamento n.o 1049/2001, como a exceção relativa à proteção dos interesses comerciais, o que cabe à instituição em causa verificar à luz do conteúdo do documento em questão, o mero facto de esse segredo comercial ter sido revelado no âmbito de um processo judicial entretanto encerrado e de ter sido qualificado pelas partes na instância de confidencial, na aceção do artigo 871.o bis do Código de Processo Civil belga, não é suficiente para justificar a aplicação aos documentos em causa da exceção prevista no artigo 4.o, n.o 2, segundo travessão, do Regulamento n.o 1049/2001.

68

Atendendo a tudo o que precede, há que julgar procedente o primeiro fundamento.

[Omissis]

Quanto ao terceiro fundamento, relativo à inaplicabilidade do artigo 4.o, n.o 2, primeiro travessão, do Regulamento n.o 1049/2001

[Omissis]

104

Tendo o primeiro fundamento sido julgado procedente e não tendo a Comissão invocado nenhuma outra exceção na segunda decisão recorrida para justificar a recusa de acesso aos documentos n.os 1.2, 2, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 9.1 a 9.5 e 10, bem como a uma parte do documento n.o 11, há que anular a referida decisão na parte em que recusa ao recorrente o acesso a estes documentos.

105

No que se refere mais especificamente ao documento n.o 1.2, constituído por um anexo da proposta apresentada pela AstraZeneca (documento n.o 1), há que salientar, conforme resulta do acima indicado no n.o 97, que é certo que a Comissão indicou na segunda decisão recorrida que a proposta e os seus anexos estavam abrangidos por uma presunção geral de confidencialidade segundo a qual a sua divulgação prejudicaria a proteção dos interesses comerciais da AstraZeneca. No entanto, em resposta a uma questão colocada pelo Tribunal Geral na audiência, a Comissão indicou que não pretendia invocar a exceção relativa à proteção dos interesses comerciais em relação ao documento n.o 1.2, que é exclusivamente abrangido pela exceção relativa à proteção dos processos judiciais.

106

Em contrapartida, na parte em que tem por objeto a segunda decisão recorrida na parte em que recusou o acesso aos documentos n.os 1, 1.1, 4, 6.1 a 6.6 e 12, bem como aos dados do documento n.o 11 que estão abrangidos pela exceção relativa à vida privada e à integridade do indivíduo, há que negar provimento ao presente recurso.

[Omissis]

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL GERAL (Oitava Secção)

decide:

 

1)

Já não há que conhecer do mérito dos pedidos de anulação da Decisão C(2021) 5327 final da Comissão Europeia, de 13 de julho de 2021, que indeferiu o pedido confirmativo de acesso a determinados documentos.

 

2)

A Decisão C(2022) 870 final da Comissão, de 7 de fevereiro de 2022, é anulada na parte em que recusou a Hans‑Wilhelm Saure o acesso aos seguintes documentos:

um anexo da proposta apresentada pela AstraZeneca (documento n.o 1.2);

um documento de 12 de junho de 2020 trocado entre a AstraZeneca e os Governos de vários Estados‑Membros com vista à negociação e à celebração de um contrato de financiamento (documento n.o 2);

um projeto de contrato de financiamento enviado pela AstraZeneca em 24 de junho de 2020 aos Governos de vários Estados‑Membros (documento n.o 3);

um documento de 20 de novembro de 2020 relativo à transferência do segundo pagamento escalonado previsto no contrato de compra antecipada celebrado com a AstraZeneca (documento n.o 5);

as apresentações utilizadas pela AstraZeneca nas reuniões do Comité Diretor de 4 de dezembro de 2020, de 22 de janeiro, de 1, 11, 19 e 23 de fevereiro, bem como de 11 de março de 2021 (documento n.o 6);

uma apresentação utilizada pela AstraZeneca numa reunião de 7 de dezembro de 2020 (documento n.o 7);

uma apresentação utilizada pela AstraZeneca numa reunião de 19 de janeiro de 2021 (documento n.o 8);

um documento relativo às datas de entrega das vacinas (documento n.o 9) acompanhado de cinco anexos (documentos n.os 9.1 a 9.5);

uma apresentação utilizada pela AstraZeneca numa reunião do Comité Diretor de 25 de janeiro de 2021 (documento n.o 10);

uma parte das mensagens de correio eletrónico trocadas entre a Comissão e a AstraZeneca em 27 de julho de 2020 (documento n.o 11).

 

3)

É negado provimento ao recurso quanto ao restante.

 

4)

A Comissão Europeia é condenada nas despesas.

 

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 12 de outubro de 2022.

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

( 1 ) Apenas são reproduzidos os números do presente acórdão cuja publicação o Tribunal Geral considera útil.

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