Choose the experimental features you want to try

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62021CJ0568

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 21 de setembro de 2023.
    Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid contra E. e S.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Raad van State (Países Baixos).
    Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Sistema de Dublim — Regulamento (UE) n.° 604/2013 — Critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional — Responsabilidade do Estado‑Membro que emitiu um título de residência ao requerente — Artigo 2.°, alínea l) — Conceito de “título de residência” — Cartão de identidade diplomático — Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas.
    Processo C-568/21.

    Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:683

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

    21 de setembro de 2023 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Sistema de Dublim — Regulamento (UE) n.o 604/2013 — Critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional — Responsabilidade do Estado‑Membro que emitiu um título de residência ao requerente — Artigo 2.o, alínea l) — Conceito de “título de residência” — Cartão de identidade diplomático — Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas»

    No processo C‑568/21,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Países Baixos), por Decisão de 25 de agosto de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de setembro de 2021, no processo

    Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid

    contra

    E.,

    S.,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

    composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, P. G. Xuereb, T. von Danwitz, A. Kumin (relator) e I. Ziemele, juízes,

    advogado‑geral: A. M. Collins,

    secretário: A. Calot Escobar,

    vistos os autos,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação de E. e S., por M. F. Wijngaarden, advocaat,

    em representação do Governo Neerlandês, por M. K. Bulterman e A. Hanje, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo Austríaco, por J. Schmoll e V. Strasser, na qualidade de agentes,

    em representação da Comissão Europeia, inicialmente, por L. Grønfeldt e W. Wils, e, em seguida, por W. Wils, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 9 de março de 2023,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, alínea l), do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida (JO 2013, L 180, p. 31; a seguir «Regulamento Dublim III»).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe o Staatssecretaris van Justitie en Veiligheid (Secretário de Estado da Justiça e Segurança, Países Baixos) (a seguir «Secretário de Estado») a E. e a S., que agem em nome próprio e em nome dos seus filhos menores, a respeito do indeferimento dos seus pedidos de proteção internacional.

    Quadro jurídico

    Direito internacional

    3

    Nos termos do artigo 2.o, da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de abril de 1961 e que entrou em vigor em 24 de abril de 1964 (Coletânea de Tratados das Nações Unidas, vol. 500, p. 95, a seguir «Convenção de Viena»):

    «O estabelecimento de relações diplomáticas entre Estados e o envio de missões diplomáticas permanentes efetuam‑se por mútuo consentimento.»

    4

    O artigo 4.o desta convenção estipula:

    «1.   O Estado acreditante deverá certificar‑se de que a pessoa que pretende nomear como chefe de missão perante o Estado acreditador obteve o agrément desse Estado.

    2.   O Estado acreditador não está obrigado a dar ao Estado acreditante as razões da recusa do agrément

    5

    O artigo 5.o, n.o 1, da referida convenção tem a seguinte redação:

    «O Estado acreditante poderá, depois de haver feito a devida notificação aos Estados acreditadores interessados, nomear um chefe de missão ou designar qualquer membro do pessoal diplomático perante dois ou mais Estados, a não ser que um dos Estados acreditadores a isso se oponha expressamente.»

    6

    O artigo 9.o da mesma convenção prevê:

    «1.   O Estado acreditador poderá a qualquer momento, e sem ser obrigado a justificar a sua decisão, notificar ao Estado acreditante que o chefe de missão ou qualquer membro do pessoal diplomático da missão é persona non grata ou que outro membro do pessoal da missão não é aceitável. O Estado acreditante, conforme o caso, retirará a pessoa em questão ou dará por terminadas as suas funções na missão. Uma pessoa poderá ser declarada non grata ou não aceitável mesmo antes de chegar ao território do Estado acreditador.

    2.   Se o Estado acreditante se recusar a cumprir, ou não cumpre dentro de um prazo razoável, as obrigações que lhe incumbem nos termos do parágrafo 1 deste artigo, o Estado acreditador poderá recusar‑se a reconhecer tal pessoa como membro da missão.»

    7

    O artigo 10.o, n.o 1, da Convenção de Viena tem a seguinte redação:

    «Serão notificados ao Ministério dos Negócios Estrangeiros do Estado acreditador, ou a outro Ministério em que se tenha convindo:

    a)

    A nomeação dos membros da missão, a sua chegada e partida definitiva ou o termo das suas funções na missão;

    b)

    A chegada e partida definitiva de pessoas pertencentes à família de um membro da missão e, ser for o caso, o facto de uma pessoa vir a ser ou deixar de ser membro da família de um membro da missão;

    […]»

    Direito da União

    8

    Nos termos dos considerandos 4 e 5 do Regulamento Dublim III:

    «(4)

    As conclusões do Conselho de Tampere precisaram igualmente que o [Sistema Europeu Comum de Asilo] deverá incluir, a curto prazo, um método claro e operacional para determinar o Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de asilo.

    (5)

    Este método deverá basear‑se em critérios objetivos e equitativos, tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa. Deverá, permitir, nomeadamente, uma determinação rápida do Estado‑Membro responsável, por forma a garantir um acesso efetivo aos procedimentos de concessão de proteção internacional e a não comprometer o objetivo de celeridade no tratamento dos pedidos de proteção internacional.»

    9

    O artigo 2.o deste regulamento, com a epígrafe «Definições», enuncia:

    «Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

    […]

    c)

    “Requerente”: um nacional de um país terceiro ou um apátrida que apresentou um pedido de proteção internacional pendente de decisão definitiva;

    […]

    l)

    “Título de residência” uma autorização emitida pelas autoridades de um Estado‑Membro que permite a estad[a] de um nacional de um país terceiro ou de um apátrida no seu território, incluindo os documentos que comprovam a autorização de se manter no território, no âmbito de um regime de proteção temporária ou até que deixem de se verificar as circunstâncias que obstavam à execução de uma medida de afastamento, com exceção dos vistos e das autorizações de residência emitidos durante o período necessário para determinar o Estado‑Membro responsável, em conformidade com o presente regulamento, ou durante a análise de um pedido de proteção internacional ou de uma autorização de residência;

    […]»

    10

    Os artigos 7.o a 15.o do referido regulamento figuram no seu capítulo III, intitulado «Critérios de determinação do Estado‑Membro responsável». O artigo 7.o do mesmo regulamento, com a epígrafe «Hierarquia dos critérios», dispõe, no seu n.o 1:

    «Os critérios de determinação do Estado‑Membro responsável aplicam‑se pela ordem em que são enunciados no presente capítulo.»

    11

    O artigo 12.o do Regulamento Dublim III, com a epígrafe «Emissão de documentos de residência ou vistos», prevê, no seu n.o 1:

    «Se o requerente for titular de um título de residência válido, o Estado‑Membro que o tiver emitido é responsável pela análise do pedido de proteção internacional.»

    12

    O artigo 21.o deste regulamento, com a epígrafe «Apresentação de um pedido de tomada a cargo», enuncia, no seu n.o 1, primeiro parágrafo:

    «O Estado‑Membro ao qual tenha sido apresentado um pedido de proteção internacional e que considere que a responsabilidade pela análise desse pedido cabe a outro Estado‑Membro pode requerer a este último, o mais rapidamente possível e, em qualquer caso, no prazo de três meses a contar da apresentação do pedido na aceção do artigo 20.o, n.o 2, que proceda à tomada a cargo do requerente.»

    13

    O artigo 29.o do referido regulamento, com a epígrafe «Modalidades e prazos», dispõe, no seu n.o 1, primeiro parágrafo:

    «A transferência do requerente ou de outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável efetua‑se em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro requerente, após concertação entre os Estados‑Membros envolvidos, logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3.»

    Litígio no processo principal e questão prejudicial

    14

    E. e S., bem como os seus filhos menores, são nacionais de um país terceiro. O pai foi membro da missão diplomática do seu país junto do Estado‑Membro X e residiu no território deste último com a sua mulher e os seus filhos. Durante essa residência, foram‑lhes emitidos cartões de identidade diplomáticos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros desse Estado‑Membro.

    15

    Depois de terem deixado o Estado‑Membro X, E. e S. apresentaram, nos Países Baixos, pedidos de proteção internacional.

    16

    Em 31 de julho de 2019, o Secretário de Estado considerou que o Estado‑Membro X era, por força do artigo 12.o, n.o 1, do Regulamento Dublim III, responsável pela análise desses pedidos, uma vez que os cartões de identidade diplomáticos emitidos pelas autoridades deste Estado‑Membro constituíam títulos de residência. Em 25 de setembro de 2019, o referido Estado‑Membro aceitou os pedidos de tomada a cargo.

    17

    Por Decisões de 29 de janeiro de 2020, o Secretário de Estado recusou analisar os pedidos de proteção internacional apresentados por E. e S. com o fundamento de que o Estado‑Membro X era responsável pela sua análise.

    18

    E. e S. interpuseram recursos dessas decisões no rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância de Haia, Países Baixos). Em apoio desses recursos, alegaram que o Estado‑Membro X não era responsável pela análise dos seus pedidos, porque as autoridades desse Estado‑Membro nunca lhes tinham emitido um título de residência. Foi ao abrigo do seu estatuto diplomático que beneficiaram de um direito de residência, o qual decorria diretamente da Convenção de Viena.

    19

    Por Sentença de 20 de março de 2020, o rechtbank Den Haag (Tribunal de Primeira Instância de Haia) deu provimento aos recursos, concluindo que o Secretário de Estado tinha considerado erradamente o Estado‑Membro X responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional. Esse órgão jurisdicional sublinhou que os cartões de identidade diplomáticos emitidos pelas autoridades desse Estado‑Membro não podiam ser considerados uma autorização de residência, uma vez que E. e S. já dispunham de um direito de residência no referido Estado‑Membro ao abrigo da Convenção de Viena.

    20

    O Secretário de Estado interpôs recurso daquela sentença no Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Países Baixos), o órgão jurisdicional de reenvio, alegando que os cartões de identidade diplomáticos emitidos a E. e a S. pelo Estado‑Membro X estão abrangidos pelo conceito de «título de residência» na aceção do artigo 2.o, alínea l), do Regulamento Dublim III.

    21

    O Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) refere que é facto assente que as autoridades do Estado‑Membro X emitiram cartões de identidade diplomáticos a E. e a S., e que esses cartões ainda eram válidos no momento em que estes apresentaram os seus pedidos de proteção internacional nos Países Baixos. Além disso, o Estado‑Membro X emitiu esses cartões de identidade diplomáticos em conformidade com a Convenção de Viena, sendo que o Reino dos Países Baixos e o Estado‑Membro X são partes nesta convenção.

    22

    Segundo o mesmo órgão jurisdicional, a determinação do Estado‑Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados por E. e S. pressupõe que se responda à questão de saber se um cartão de identidade diplomático emitido por um Estado‑Membro ao abrigo da Convenção de Viena constitui um título de residência na aceção do artigo 2.o, alínea l), do Regulamento Dublim III.

    23

    Ora, a resposta a esta questão não pode ser deduzida diretamente desta disposição, nem do sistema estabelecido por este regulamento, nem das regras pertinentes do direito internacional público. Além disso, a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa ao referido regulamento não oferece mais esclarecimentos a este respeito e afigura‑se que as práticas dos Estados‑Membros divergem neste aspeto.

    24

    Nestas condições, o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

    «Deve o artigo 2.o, proémio e alínea l), do [Regulamento Dublim III] ser interpretado no sentido de que um cartão de identidade diplomático emitido por um Estado‑Membro ao abrigo da [Convenção de Viena] constitui uma autorização de residência na aceção da referida disposição?»

    Quanto à questão prejudicial

    Quanto à admissibilidade do pedido de decisão prejudicial

    25

    O Governo austríaco questiona a admissibilidade do presente pedido de decisão prejudicial com o fundamento de que a interpretação solicitada do Regulamento Dublim III não tem utilidade real para a resolução do litígio no processo principal. Com efeito, no caso em apreço, o Reino dos Países Baixos passou a ser responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional em causa, uma vez que, embora o Estado‑Membro X tenha aceitado os pedidos de tomada a cargo dos recorridos no processo principal, a transferência dos requerentes para este último Estado‑Membro não ocorreu no prazo de seis meses previsto no artigo 29.o, n.o 1, deste regulamento.

    26

    A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação de uma regra de direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES, C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.o 46 e jurisprudência referida).

    27

    Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação de uma regra da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 12 de janeiro de 2023, DOBELES HES, C‑702/20 e C‑17/21, EU:C:2023:1, n.o 47 e jurisprudência referida).

    28

    Importa igualmente recordar que, em conformidade com o artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento Dublim III, a transferência do requerente ou de outra pessoa do Estado‑Membro requerente para o Estado‑Membro responsável efetua‑se em conformidade com o direito nacional do Estado‑Membro requerente, após concertação entre os Estados‑Membros envolvidos, logo que seja materialmente possível e, o mais tardar, no prazo de seis meses a contar da aceitação do pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa por outro Estado‑Membro ou da decisão final sobre o recurso ou revisão, nos casos em que exista efeito suspensivo nos termos do artigo 27.o, n.o 3 deste regulamento.

    29

    No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que, quando interpôs recurso da sentença de primeira instância no órgão jurisdicional de reenvio, o Secretário de Estado, tendo em conta a proximidade do termo do prazo de transferência, pediu a concessão de medidas provisórias e que este pedido foi deferido.

    30

    Nestas condições, afigura‑se que ao recurso interposto pelo Secretário de Estado foi reconhecido efeito suspensivo na aceção do artigo 29.o, n.o 1, primeiro parágrafo, do Regulamento Dublim III, pelo que o prazo de seis meses previsto nesta disposição só começará a correr depois de o órgão jurisdicional de reenvio ter proferido a sua decisão definitiva sobre esse recurso.

    31

    Consequentemente, não é manifesto que a interpretação do direito da União solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio não é necessária para que este último decida o litígio que lhe foi submetido. Por conseguinte, o presente pedido de decisão prejudicial é admissível.

    Quanto à questão prejudicial

    32

    Para responder à questão submetida, importa recordar, a título preliminar, que a interpretação de uma disposição do direito da União exige que se tenha em conta não só os seus termos mas também o contexto em que se insere e os objetivos e a finalidade prosseguidos pelo ato de que faz parte (Acórdão de 22 de junho de 2023, Pankki S, C‑579/21, EU:C:2023:501, n.o 38 e jurisprudência referida).

    33

    No que respeita à redação do artigo 2.o, alínea l), do Regulamento Dublim III, o conceito de «título de residência» é definido como «uma autorização emitida pelas autoridades de um Estado‑Membro que permite a estad[a] de um nacional de um país terceiro ou de um apátrida no seu território». Além disso, segundo esta disposição, embora o referido conceito inclua «os documentos que comprovam a autorização de se manter no território, no âmbito de um regime de proteção temporária ou até que deixem de se verificar as circunstâncias que obstavam à execução de uma medida de afastamento», exclui, em contrapartida, os «vistos e [as] autorizações de residência emitidos durante o período necessário para determinar o Estado‑Membro responsável, em conformidade com [este] regulamento, ou durante a análise de um pedido de proteção internacional ou de uma autorização de residência».

    34

    Os recorridos no processo principal e o Governo Austríaco deduzem, em substância, dos termos utilizados pelo legislador da União que o conceito de «título de residência» abrange apenas os atos adotados formalmente por uma Administração nacional e que permitem, de forma constitutiva, a um nacional de um país terceiro ou a um apátrida manter‑se no território do Estado‑Membro em causa. Em contrapartida, embora constituam documentos formalmente emitidos por uma Administração nacional, os cartões de identidade diplomáticos, como os que estão em causa no processo principal, apenas refletem, em princípio, os direitos e os privilégios de que beneficiam os seus titulares ao abrigo da Convenção de Viena. Revestem, assim, um caráter puramente declaratório e não podem estar abrangidos pelo conceito de «título de residência» na aceção do artigo 2.o, alínea l), do Regulamento Dublim III.

    35

    A este respeito, importa sublinhar que, como decorre da utilização dos termos «uma autorização» no artigo 2.o, alínea l), do Regulamento Dublim III, o conceito de «título de residência» na aceção desta disposição reveste uma conceção ampla. Em particular, como o advogado‑geral salientou, em substância, no n.o 46 das suas conclusões, a definição que esta disposição dá deste conceito não faz referência ao caráter constitutivo ou declaratório da autorização, nem exclui expressamente os cartões de identidade diplomáticos emitidos ao abrigo da Convenção de Viena.

    36

    No que respeita ao contexto em que se insere a referida disposição, há que salientar que o conceito de «título de residência» é determinante para a aplicação do artigo 12.o do Regulamento Dublim III, que prevê, no seu n.o 1, que, se o requerente for titular de um título de residência válido, o Estado‑Membro que o tiver emitido é responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

    37

    Este artigo 12.o faz parte do capítulo III do Regulamento Dublim III, relativo aos critérios de determinação do Estado‑Membro responsável. A este respeito, resulta da jurisprudência que a aplicação dos diferentes critérios enunciados nos artigos 12.o a 14.o deste regulamento deve, regra geral, permitir atribuir ao Estado‑Membro que está na origem da entrada ou da estada de um nacional de um país terceiro no território dos Estados‑Membros a responsabilidade por analisar o pedido de proteção internacional apresentado por esse nacional, tendo em conta o papel desempenhado por esse Estado‑Membro na presença desse nacional no território dos Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdão de 26 de julho de 2017, Jafari, C‑646/16, EU:C:2017:586, n.os 87 e 91).

    38

    No caso em apreço, os recorridos no processo principal alegam que o papel desempenhado pelo Estado‑Membro X na sua presença no território dos Estados‑Membros é negligenciável, uma vez que, em conformidade com a Convenção de Viena, um Estado acreditador não é livre, abstraindo de certos casos particulares, de recusar a entrada e a permanência no seu território aos membros de uma missão diplomática designados pelo Estado acreditante.

    39

    A este respeito, embora seja verdade que, por força do artigo 2.o da Convenção de Viena, o envio de missões diplomáticas permanentes é feito por mútuo consentimento, ao Estado acreditador são, não obstante, reconhecidas determinadas prerrogativas quanto à admissão no seu território de pessoas na qualidade membros do pessoal diplomático de uma missão.

    40

    Em especial, o artigo 9.o da Convenção de Viena prevê, no seu n.o 1, que o Estado acreditador poderá, a qualquer momento e sem ser obrigado a justificar a sua decisão, notificar ao Estado acreditante que o chefe de missão ou qualquer outro membro do pessoal diplomático da missão é persona non grata ou que outro membro do pessoal da missão não é aceitável, podendo uma pessoa ser declarada non grata ou não aceitável mesmo antes de chegar ao território do Estado acreditador. Este artigo 9.o acrescenta, no seu n.o 2, que, se o Estado acreditante se recusar a cumprir, ou não cumprir dentro de um prazo razoável, as obrigações que lhe incumbem nos termos do n.o 1, o Estado acreditador poderá se recusar a reconhecer tal pessoa como membro da missão.

    41

    Além disso, resulta do artigo 4.o, n.os 1 e 2, da Convenção de Viena que o Estado acreditante deverá assegurar‑se de que a pessoa que pretende nomear como chefe de missão perante o Estado acreditador obteve o acordo deste Estado, não estando o Estado acreditador obrigado a dar ao Estado acreditante as razões da recusa de acordo.

    42

    Por outro lado, ao abrigo do artigo 5.o, n.o 1, da Convenção de Viena, embora o Estado acreditante, depois de ter feito a devida notificação aos Estados acreditários interessados, possa nomear um chefe de missão ou designar um membro do pessoal diplomático, consoante o caso, perante vários Estados, um dos Estados acreditadores pode opor‑se a isso expressamente.

    43

    Por último, o artigo 10.o, n.o 1, da Convenção de Viena prevê, designadamente, que a nomeação dos membros da missão, a sua chegada e partida definitiva ou o termo das suas funções na missão, bem como a chegada e a partida definitiva de uma pessoa pertencente à família de um membro da missão serão notificadas ao Ministério competente do Estado acreditador.

    44

    Nestas condições, quando um Estado‑Membro emite um cartão de identidade diplomático a favor de uma pessoa, isso significa que este último aceita que essa pessoa resida no seu território na qualidade de membro do pessoal diplomático de uma missão e essa emissão demonstra, por conseguinte, o papel que esse Estado‑Membro desempenha na presença da referida pessoa no território dos Estados‑Membros.

    45

    A interpretação do conceito de «título de residência» no sentido de que abrange um cartão de identidade diplomático emitido ao abrigo da Convenção de Viena também corresponde à economia geral dos critérios enunciados nos artigos 12.o a 14.o do Regulamento Dublim III, uma vez que, por força do artigo 7.o, n.o 1, deste regulamento, este artigo 12.o tem aplicação prioritária.

    46

    No que respeita à finalidade prosseguida pelo Regulamento Dublim III, os seus considerandos 4 e 5 sublinham a importância de um método claro e operacional para determinar o Estado‑Membro responsável, baseado em critérios objetivos e equitativos tanto para os Estados‑Membros como para as pessoas em causa e que permitam uma determinação rápida desse Estado‑Membro.

    47

    Ora, o facto de se tomar em consideração, para efeitos da determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional, a emissão de um cartão de identidade diplomático contribui para o objetivo de celeridade no tratamento desse pedido.

    48

    Além disso, como o advogado‑geral salientou, em substância, no n.o 50 das suas conclusões, a finalidade do Regulamento Dublim III recordada no n.o 46 do presente acórdão seria posta em causa se os nacionais de países terceiros que beneficiam dos privilégios e das imunidades previstos pela Convenção de Viena pudessem escolher o Estado‑Membro no qual apresentam um pedido de proteção internacional.

    49

    Em todo o caso, o facto de um cartão de identidade diplomático ser qualificado de «título de residência» na aceção do artigo 2.o, alínea l), do Regulamento Dublim III só diz respeito à determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional e não afeta o direito de residência diplomática. Além disso, tal qualificação não prejudica a decisão posterior sobre a concessão ou não da proteção internacional por esse Estado‑Membro.

    50

    Por último, como o advogado‑geral salientou no n.o 51 das suas conclusões, não é pertinente a referência feita pelos recorridos no processo principal à exclusão das pessoas que têm um estatuto jurídico regido pela Convenção de Viena do âmbito de aplicação da Diretiva 2003/109/CE do Conselho, de 25 de novembro de 2003, relativa ao estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração (JO 2004, L 16, p. 44).

    51

    Com efeito, por um lado, o Regulamento Dublim III não prevê tal exclusão do seu âmbito de aplicação nem contém regras derrogatórias no que se refere aos efeitos a associar à emissão de um cartão de identidade diplomático para a determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional.

    52

    Por outro lado, embora a Diretiva 2003/109 não diga respeito às pessoas que não têm intenção de se instalar de forma duradoura no território dos Estados‑Membros, esta circunstância não os impede de lhes emitirem títulos de residência na aceção do artigo 2.o, alínea l), do Regulamento Dublim III.

    53

    Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à questão prejudicial que o artigo 2.o, alínea l), do Regulamento Dublim III deve ser interpretado no sentido de que um cartão de identidade diplomático emitido por um Estado‑Membro ao abrigo da Convenção de Viena constitui um «título de residência», na aceção desta disposição.

    Quanto às despesas

    54

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

     

    O artigo 2.o, alínea l), do Regulamento (UE) n.o 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado‑Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados‑Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida,

     

    deve ser interpretado no sentido de que:

     

    um cartão de identidade diplomático emitido por um Estado‑Membro ao abrigo da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de abril de 1961 e que entrou em vigor em 24 de abril de 1964, constitui um «título de residência», na aceção desta disposição.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: neerlandês.

    Top