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Document 62021CJ0511

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 16 de março de 2023.
Comissão Europeia contra Ana Calhau Correia de Paiva.
Recurso de decisão do Tribunal Geral — Regime linguístico — Concurso geral EPSO/AD/293/14 — Anúncio de concurso — Limitação da escolha da segunda língua do concurso às línguas alemã, inglesa e francesa — Não inscrição na lista de reserva — Exceção de ilegalidade do anúncio de concurso — Admissibilidade.
Processo C-511/21 P.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:208

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

16 de março de 2023 ( *1 )

«Recurso de decisão do Tribunal Geral — Regime linguístico — Concurso geral EPSO/AD/293/14 — Anúncio de concurso — Limitação da escolha da segunda língua do concurso às línguas alemã, inglesa e francesa — Não inscrição na lista de reserva — Exceção de ilegalidade do anúncio de concurso — Admissibilidade»

No processo C‑511/21 P,

que tem por objeto um recurso de um acórdão do Tribunal Geral nos termos do artigo 56.o do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, interposto em 19 de agosto de 2021,

Comissão Europeia, representada por I. Melo Sampaio, B. Schima e L. Vernier, na qualidade de agentes,

recorrente,

sendo a outra parte no processo:

Ana Calhau Correia de Paiva, residente em Bruxelas (Bélgica), representada por D. Rovetta e V. Villante, avvocati,

recorrente em primeira instância,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Prechal, presidente de secção, K. Lenaerts, presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Segunda Secção, M. L. Arastey Sahún (relatora), F. Biltgen e J. Passer, juízes,

advogada‑geral: L. Medina,

secretário: M. Longar, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 21 de setembro de 2022,

ouvidas as conclusões da advogada‑geral na audiência de 17 de novembro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

Com o presente recurso, a Comissão Europeia pede a anulação do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 9 de junho de 2021, Calhau Correia de Paiva/Comissão (T‑202/17, a seguir acórdão recorrido, EU:T:2021:323), pelo qual o Tribunal Geral anulou a decisão do júri do concurso geral EPSO/AD/293/14, de 23 de junho de 2016, que indeferiu o pedido de reexame de Ana Calhau Correia de Paiva na sequência da sua exclusão da lista de reserva do referido concurso (a seguir «decisão controvertida»).

Antecedentes do litígio

2

Os antecedentes do litígio figuram nos n.os 1 a 14 do acórdão recorrido e podem ser resumidos do seguinte modo.

3

Em 23 de outubro de 2014, o Serviço Europeu de Seleção do Pessoal (EPSO) publicou no Jornal Oficial da União Europeia o anúncio do concurso geral EPSO/AD/293/14, com vista à constituição de listas de reserva para o recrutamento, no âmbito da Comissão, de administradores de grau AD 7 nos domínios do direito da concorrência, do financiamento das empresas, da economia financeira, da economia industrial e da macroeconomia (JO 2014, C 376 A, p. 1, retificação no JO 2014, C 425 A, p. 1, a seguir «anúncio de concurso controvertido»).

4

O anúncio de concurso controvertido previa, no seu título IV, três testes de acesso em computador baseados em perguntas de escolha múltipla e, no seu título VI, provas que deviam decorrer num centro de avaliação e que consistiam num estudo de caso, num exercício de grupo e numa entrevista estruturada.

5

Além disso, a título das condições específicas de admissão, este anúncio de concurso exigia, no seu ponto III.2.3, intitulado «Conhecimentos linguísticos», por um lado, no que respeita à língua principal (língua 1), um conhecimento aprofundado, correspondente ao nível C1 do Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECR) no mínimo, de uma das línguas oficiais da União Europeia e, por outro, no que respeitava à segunda língua (língua 2), um conhecimento satisfatório, correspondente ao nível B2 do QECR no mínimo, da língua alemã, inglesa ou francesa, devendo esta segunda língua ser obrigatoriamente diferente da língua principal.

6

O ponto 3 do título VI do referido anúncio de concurso indicava que as provas do centro de avaliação seriam realizadas na referida segunda língua.

7

Em 25 de novembro de 2014, Ana Calhau Correia de Paiva, de nacionalidade portuguesa, candidatou‑se ao concurso EPSO/AD/293/14 no domínio do direito da concorrência. Escolheu como língua principal a língua portuguesa, que é a sua língua materna, e como segunda língua a língua francesa.

8

Por carta de 19 de março de 2015, Ana Calhau Correia de Paiva foi informada da sua aprovação nos testes de acesso em computador.

9

Foi convidada, por carta de 15 de abril de 2015, a participar nas provas do centro de avaliação.

10

Por carta de 16 de abril de 2015, o EPSO convocou Ana Calhau Correia de Paiva para a prova de estudo de caso e propôs‑lhe que utilizasse, no âmbito dessa prova, um teclado de tipo Azerty FR, concedendo‑lhe a possibilidade de escolher em alternativa um teclado de tipo Qwerty UK, Azerty FR/BE ou Qwertz DE. A interessada fez uso dessa possibilidade pedindo uma troca de teclado a fim de participar na referida prova com um teclado do tipo Qwerty UK.

11

Ana Calhau Correia de Paiva participou nas provas do centro de avaliação em 13 de maio e em 11 de junho de 2015.

12

Por carta de 9 de novembro de 2015, Ana Calhau Correia de Paiva foi informada da decisão do júri do concurso de não inscrever o seu nome na lista de reserva (a seguir «decisão de não inscrição na lista de reserva»), com o fundamento de que «não [fazia] parte dos candidatos que tinham obtido as melhores notas globais no centro de avaliação (pelo menos 68,59 pontos)», sendo a sua pontuação total de 61,13 pontos.

13

Em 19 de novembro de 2015, Ana Calhau Correia de Paiva pediu o reexame da decisão de não inscrição na lista de reserva. Através da decisão controvertida, o júri do concurso indeferiu esse pedido.

14

Em 24 de agosto de 2016, Ana Calhau Correia de Paiva apresentou uma reclamação, na aceção do artigo 90.o, n.o 2, do Estatuto dos Funcionários da União Europeia, contra a decisão de não inscrição na lista de reserva. Nessa reclamação, sustentava que a limitação da escolha do tipo de teclado para a realização do estudo de caso constituía uma desigualdade de tratamento. Além disso, alegava falta de fundamentação quanto às limitações relativas aos tipos de teclados postos à disposição dos candidatos, bem como à escolha da segunda língua do concurso. De resto, contestava a duração do processo de reexame.

15

Por Decisão de 22 de dezembro de 2016, o EPSO indeferiu a referida reclamação por ser simultaneamente inadmissível, devido ao seu caráter extemporâneo, e infundada.

Tramitação do processo no Tribunal Geral e acórdão recorrido

16

Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 31 de março de 2017, Ana Calhau Correia de Paiva interpôs recurso de anulação, nomeadamente, da decisão controvertida, sendo caso disso, mediante o acolhimento de uma exceção de ilegalidade dirigida contra o anúncio de concurso controvertido e o regime linguístico que este estabelece.

17

Em apoio do seu recurso, invocou cinco fundamentos. O primeiro fundamento é relativo, em substância, à violação dos princípios da não discriminação, da proporcionalidade e da igualdade de oportunidades, na medida em que o EPSO impôs a utilização de um teclado Qwerty UK, Azerty FR/BE ou Qwertz DE para o estudo de caso. O segundo a quarto fundamentos são relativos, em substância, à ilegalidade do anúncio de concurso controvertido em razão da limitação da escolha da segunda língua do concurso às línguas alemã, inglesa e francesa. O quinto fundamento é relativo, em substância, à falta de fundamentação da decisão do EPSO de aprovar e promover um regime linguístico determinado, a uma violação desse anúncio de concurso e a uma violação do direito a uma boa administração.

18

No acórdão recorrido, o Tribunal Geral examinou, em primeiro lugar, a exceção de ilegalidade suscitada no âmbito do segundo a quarto fundamentos contra o anúncio de concurso controvertido, cuja admissibilidade e procedência a Comissão contestava.

19

No que respeita a esta exceção de ilegalidade, o Tribunal Geral recordou, no n.o 46 do acórdão recorrido, que, no âmbito de recursos de anulação interpostos de decisões individuais, o Tribunal de Justiça admitiu que podem validamente ser objeto de uma exceção de ilegalidade as disposições de um ato de alcance geral que constituem a base das referidas decisões ou que têm um nexo jurídico direto com essas decisões (Acórdão de 8 de setembro de 2020, Comissão e Conselho/Carreras Sequeros e o., C‑119/19 P e C‑126/19 P, EU:C:2020:676, n.o 69 e jurisprudência referida).

20

No que respeita, nomeadamente, aos anúncios de concurso, o Tribunal Geral recordou, no n.o 47 do acórdão recorrido, referindo‑se, a este respeito, a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça e, mais especificamente, ao n.o 17 do Acórdão de 11 de agosto de 1995, Comissão/Noonan (C‑448/93 P, EU:C:1995:264), que, no âmbito de um processo de recrutamento, que é uma operação administrativa complexa composta por uma sucessão de decisões, um candidato a um concurso pode, por ocasião de um recurso interposto de um ato posterior, invocar a irregularidade dos atos anteriores que estão estreitamente ligados com aquele. Referindo‑se à sua própria jurisprudência, o Tribunal Geral recordou igualmente, nesse n.o 47 do acórdão recorrido, que esse candidato deve, em especial, poder invocar a ilegalidade do anúncio de concurso em aplicação do qual o ato em causa foi adotado.

21

Referindo‑se aos n.os 28 e 29 do seu Acórdão de 14 de dezembro de 2017, PB/Comissão (T‑609/16, EU:T:2017:910), o Tribunal Geral recordou, nos n.os 49 e 50 do acórdão recorrido, que, quando o fundamento relativo à irregularidade do anúncio de concurso, não impugnado em tempo útil, diz respeito à fundamentação da decisão individual impugnada, é reconhecida a admissibilidade do recurso. Em contrapartida, quando não existe uma ligação estreita entre a própria fundamentação da decisão impugnada e o fundamento relativo à irregularidade do anúncio de concurso não impugnado em tempo útil, este último é inadmissível.

22

À luz da jurisprudência referida nos n.os 19 a 21 do presente acórdão, o Tribunal Geral salientou, em primeiro lugar, no n.o 54 do acórdão recorrido, que resultava do passaporte de competências emitido a Ana Calhau Correia de Paiva que, na competência geral em matéria de comunicação, destinada a avaliar a capacidade do candidato «[p]ara comunicar de forma clara e precisa, tanto oralmente como por escrito», tinha obtido 5,5 pontos em 10, o que figurava entre as apreciações e as notas mais baixas que obteve no que respeita à avaliação das suas competências gerais. O Tribunal Geral considerou que resultava, implícita mas necessariamente, desta apreciação uma constatação do júri relativamente a Ana Calhau Correia de Paiva quanto ao seu conhecimento da língua francesa ou, pelo menos, quanto ao domínio de uma competência fortemente condicionada pelo conhecimento que esta tinha dessa língua.

23

Em segundo lugar, nos n.os 55 a 57 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral afirmou que existia uma ligação estreita entre os conhecimentos de Ana Calhau Correia de Paiva de língua francesa, que escolheu como segunda língua, e as provas que esta teve de fazer na mesma. Considerando que esses conhecimentos da língua francesa se refletem necessariamente nas provas destinadas a testar as competências gerais e específicas, o Tribunal Geral considerou que a possibilidade de obter melhores notas nas provas é mais elevada se essas provas forem apresentadas na língua materna do candidato ou numa língua que este também domina. Ora, embora Ana Calhau Correia de Paiva tenha declarado, no seu formulário de candidatura, dispor de um nível de conhecimentos da língua francesa equivalente a C2 do QECR e ter efetuado uma parte dos seus estudos na Bélgica e em França, o Tribunal Geral salientou que ela afirmava, sem impugnação da Comissão a este respeito, que dominava melhor a língua portuguesa, que é a sua língua materna, do que a língua francesa.

24

Em terceiro lugar, no n.o 58 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral sublinhou que a limitação da escolha da segunda língua do concurso às línguas alemã, inglesa e francesa não afeta unicamente a capacidade dos candidatos de se exprimirem oralmente ou por escrito, mas determina igualmente o tipo de teclado que os candidatos podem utilizar para a realização do estudo de caso. A circunstância de Ana Calhau Correia de Paiva ter sido obrigada a utilizar um tipo de teclado ao qual não estava habituada devido à sua língua materna tinha incidência na realização e, portanto, potencialmente, no resultado de uma prova, na qual é exigido escrever, com um teclado, um texto com uma certa extensão num tempo limitado.

25

Assim, o Tribunal Geral considerou, no n.o 60 do acórdão recorrido, que existia uma ligação estreita entre a fundamentação da decisão controvertida e as disposições do anúncio de concurso controvertido relativas ao regime linguístico cuja legalidade era contestada. Por conseguinte, julgou admissível a exceção de ilegalidade desse anúncio de concurso.

26

Quanto ao mérito, o Tribunal Geral considerou que nem as justificações que figuram no anúncio de concurso controvertido nem os elementos de prova apresentados pela Comissão em apoio dessas justificações eram suscetíveis de apoiar a limitação da escolha da segunda língua do concurso às línguas alemã, inglesa e francesa. Assim, o Tribunal Geral julgou procedente a referida exceção de ilegalidade, declarou este anúncio de concurso inaplicável ao caso em apreço e julgou procedentes o segundo a quarto fundamentos do recurso. Por conseguinte, anulou a decisão controvertida.

Pedidos apresentados pelas partes ao Tribunal de Justiça

27

A Comissão pede que Tribunal de Justiça se digne:

anular o acórdão recorrido;

julgar improcedentes o segundo a quarto fundamentos do recurso de primeira instância interposto por Ana Calhau Correia de Paiva;

remeter o processo ao Tribunal Geral para que este se pronuncie sobre o primeiro e quinto fundamentos do referido recurso; e

reservar para final a decisão quanto às despesas.

28

Ana Calhau Correia de Paiva pede que o Tribunal de Justiça se digne:

a título principal, declarar o presente recurso inadmissível;

a título subsidiário, no caso de o presente recurso ser julgado admissível, negar‑lhe provimento; e

condenar a Comissão nas despesas em ambas as instâncias.

Quanto ao recurso

Argumentos das partes

29

Em apoio do presente recurso, a Comissão invoca um fundamento único, relativo a erros de direito e à desvirtuação dos elementos de prova, que se subdivide em três partes.

30

Com a primeira parte deste fundamento, a Comissão alega que o Tribunal Geral, no n.o 54 do acórdão recorrido, qualificou erradamente os factos, quando deduziu de uma constatação do júri quanto ao conhecimento que Ana Calhau Correia de Paiva possuía da língua francesa que existia uma ligação estreita entre a fundamentação da decisão controvertida e as disposições do anúncio de concurso controvertido relativas ao regime linguístico.

31

Segundo esta instituição, a nota obtida por Ana Calhau Correia de Paiva na competência geral em matéria de comunicação não é determinante no caso em apreço. Mesmo que tivesse obtido uma nota de 10/10 nessa competência, a saber 4,5 pontos suplementares, os seus pontos continuavam a ser insuficientes, uma vez que necessitava de 7,46 pontos suplementares para ser inscrita na lista de reserva. Por conseguinte, a constatação do júri relativa ao conhecimento da língua francesa pela candidata é insuficiente para estabelecer a ligação estreita exigida pela jurisprudência.

32

Na opinião da Comissão, a premissa de que uma ligação estreita é demonstrada pela nota obtida por Ana Calhau Correia de Paiva na competência geral em matéria de comunicação é, assim, errada. Por conseguinte, esta instituição sustenta que as apreciações sobre a admissibilidade da exceção de ilegalidade, nos n.os 55 a 58 do acórdão recorrido, na medida em que assentam nessa premissa, são todas afetadas por esse erro de direito.

33

Com a segunda parte do fundamento único, a Comissão alega que o Tribunal Geral qualificou os factos de forma errada e desvirtuou os elementos de prova quando concluiu, nos n.os 55 a 57 do acórdão recorrido, pela existência de uma ligação estreita entre a fundamentação da decisão controvertida e as disposições do anúncio de concurso controvertido com base num critério baseado na ideia de que é mais difícil para um candidato realizar testes na sua segunda língua do que na sua língua materna. Com efeito, o Tribunal Geral comparou o nível de Ana Calhau Correia de Paiva em língua portuguesa ao seu nível em língua francesa. Esta instituição observa que Ana Calhau Correia de Paiva não contestava o facto de não poder realizar as provas do centro de avaliação em língua portuguesa, mas sim o facto de a escolha da segunda língua ser limitada às línguas alemã, inglesa e francesa. Por conseguinte, os factos evidenciados pelo Tribunal Geral não permitem estabelecer essa ligação estreita.

34

Além disso, a Comissão alega que o Tribunal Geral, nos n.os 55 a 57 do acórdão recorrido, desvirtuou os elementos de prova ao negligenciar o facto de, no caso em apreço, além da sua língua materna, as duas outras línguas que Ana Calhau Correia de Paiva dominava melhor serem as línguas inglesa e francesa. Assim, a limitação da escolha da segunda língua não era suscetível de a desfavorecer, uma vez que as duas línguas disponíveis eram aquelas que ela tinha afirmado dominar melhor, de nível C2. Logo, não se podia considerar que esta limitação tivesse tido incidência negativa no desempenho de Ana Calhau Correia de Paiva nem que apresentasse uma ligação estreita com a fundamentação da decisão controvertida.

35

Com a terceira parte do fundamento único, a Comissão sustenta que o Tribunal Geral, no n.o 58 do acórdão recorrido, qualificou os factos de maneira errada ao basear a ligação estreita exigida pela jurisprudência no facto de Ana Calhau Correia de Paiva ter realizado a prova escrita com um tipo de teclado diferente do tipo Qwerty PT ao qual está habituada.

36

A Comissão alega, por um lado, que a escolha do tipo de teclado é alheia à fundamentação da decisão controvertida. Por outro lado, mesmo que seja verdade que uma escolha limitada de tipos de teclado tenha sido proposta pelo EPSO para o estudo de caso, trata‑se de uma questão distinta da do regime linguístico do concurso, uma vez que, de resto, o anúncio de concurso controvertido não mencionava os tipos de teclado postos à disposição dos candidatos nessa prova. Além disso, o facto de Ana Calhau Correia de Paiva ter optado por um teclado de tipo Qwerty EN apesar de ter escolhido realizar o estudo de caso em língua francesa, prova que estas duas questões são distintas.

37

Ana Calhau Correia de Paiva considera que o fundamento único visa, na realidade, impugnar os factos apurados pelo Tribunal Geral. Por conseguinte, pede ao Tribunal de Justiça, a título principal, que julgue inadmissível o fundamento no seu todo, ou cada uma das suas três partes.

38

A título subsidiário, Ana Calhau Correia de Paiva contesta a procedência dos argumentos da Comissão.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Quanto à admissibilidade

39

No que respeita à exceção de inadmissibilidade suscitada por Ana Calhau Correia de Paiva, com base no facto de o fundamento único visar impugnar os factos apurados pelo Tribunal Geral, importa recordar que resulta do artigo 256.o TFUE e do artigo 58.o, primeiro parágrafo, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia que o Tribunal Geral tem competência exclusiva, por um lado, para apurar os factos, salvo no caso de a inexatidão material das suas conclusões resultar dos elementos dos autos que lhe foram submetidos, e, por outro, para apreciar esses factos. Essa apreciação não constitui, exceto em caso de desvirtuação dos elementos de prova apresentados ao Tribunal Geral, uma questão de direito sujeita, enquanto tal, à fiscalização do Tribunal de Justiça. Quando o Tribunal Geral tiver apurado ou apreciado os factos, o Tribunal de Justiça é competente, por força do artigo 256.o TFUE, para fiscalizar a qualificação jurídica desses factos e as consequências jurídicas daí retiradas pelo Tribunal Geral (Acórdão de 4 de fevereiro de 2020, Uniwersytet Wrocławski e Polónia/REA, C‑515/17 P e C‑561/17 P, EU:C:2020:73, n.o 47).

40

Ora, contrariamente ao que sustenta Ana Calhau Correia de Paiva, o fundamento único do recurso não visa impugnar as constatações factuais efetuadas pelo Tribunal Geral, mas sim a qualificação jurídica dos factos, bem como as consequências que este daí retirou quanto à existência de uma ligação estreita entre a fundamentação da decisão controvertida e as disposições do anúncio de concurso controvertido relativas ao regime linguístico.

41

Daqui resulta que a exceção de inadmissibilidade suscitada por Ana Calhau Correia de Paiva deve ser julgada improcedente.

Quanto ao mérito

42

Com as três partes do seu fundamento único, que devem ser examinadas conjuntamente, a Comissão contesta os fundamentos pelos quais o Tribunal Geral declarou admissível a exceção de ilegalidade do anúncio de concurso controvertido. Mais precisamente, esta instituição alega, em substância, que nenhum dos elementos expostos pelo Tribunal Geral nos n.os 54 a 58 do acórdão recorrido permite demonstrar a existência de uma ligação estreita entre a fundamentação da decisão controvertida e as disposições do anúncio de concurso controvertido relativas ao regime linguístico a este aplicável e que, por conseguinte, o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao concluir que esta exceção de ilegalidade era admissível.

43

Em aplicação do artigo 277.o TFUE, qualquer parte pode, em caso de litígio que ponha em causa um ato de alcance geral adotado por uma instituição, um órgão ou um organismo da União Europeia, recorrer aos meios previstos no segundo parágrafo do artigo 263.o TFUE, para arguir, no Tribunal de Justiça da União Europeia, a inaplicabilidade desse ato.

44

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, esta disposição constitui a expressão de um princípio geral que garante a qualquer parte o direito de impugnar, por meio de incidente processual, com o objetivo de obter a anulação de uma decisão que lhe é dirigida, a validade dos atos de alcance geral que constituem a base jurídica dessa decisão (Acórdão de 8 de setembro de 2020, Comissão e Conselho/Carreras Sequeros e o., C‑119/19 P e C‑126/19 P, EU:C:2020:676, n.o 67 e jurisprudência referida).

45

Uma vez que o artigo 277.o TFUE não se destina a permitir a uma parte contestar a aplicabilidade de qualquer ato de alcance geral em apoio de qualquer tipo de recurso, o ato cuja ilegalidade é suscitada deve ser aplicável, direta ou indiretamente, ao caso concreto objeto do recurso (Acórdão de 8 de setembro de 2020, Comissão e Conselho/Carreras Sequeros e o., C‑119/19 P e C‑126/19 P, EU:C:2020:676, n.o 68 e jurisprudência referida).

46

Foi assim que, no âmbito de recursos de anulação interpostos de decisões individuais, o Tribunal de Justiça admitiu, como resulta da jurisprudência referida no n.o 19 do presente acórdão, que podem validamente ser objeto de uma exceção de ilegalidade as disposições de um ato de alcance geral que constituam a base das referidas decisões ou que mantenham um nexo jurídico direto com essas decisões.

47

Em contrapartida, o Tribunal de Justiça julgou inadmissível uma exceção de ilegalidade dirigida contra um ato de alcance geral cuja decisão individual impugnada não constitui uma medida de aplicação (Acórdão de 8 de setembro de 2020, Comissão e Conselho/Carreras Sequeros e o., C‑119/19 P e C‑126/19 P, EU:C:2020:676, n.o 70 e jurisprudência referida).

48

No que respeita, mais especificamente, à admissibilidade de uma exceção de ilegalidade suscitada contra um anúncio de concurso, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, em primeiro lugar, que o facto de não ter impugnado o anúncio de concurso dentro do prazo não impede que um recorrente invoque irregularidades ocorridas aquando da realização do concurso, ainda que a origem dessas irregularidades se possa encontrar na redação do anúncio de concurso (Acórdão de 8 de março de 1988, Sergio e o./Comissão, 64/86, 71/86 a 73/86 e 78/86, EU:C:1988:119, n.o 15).

49

Em segundo lugar, no âmbito de um processo de recrutamento, um recorrente pode, aquando de um recurso de atos posteriores, invocar a irregularidade dos atos anteriores que lhe estejam estreitamente ligados. Com efeito, não se pode exigir, num processo desse tipo, que os interessados interponham tantos recursos quantos os atos suscetíveis de lhes serem lesivos (Acórdãos de 31 de março de 1965, Ley/Comissão, 12/64 e 29/64, EU:C:1965:28, pp. 143, 158; de 7 de abril de 1965, Alfieri/Parlamento, 35/64, EU:C:1965:40, pp. 337, 344; e de 11 de agosto de 1995, Comissão/Noonan, C‑448/93 P, EU:C:1995:264, n.o 17). Esta jurisprudência baseia‑se na consideração da natureza especial do processo de recrutamento, que é uma operação administrativa complexa composta por uma sucessão de decisões muito estreitamente ligadas (Acórdão de 11 de agosto de 1995, Comissão/Noonan, C‑448/93 P, EU:C:1995:264, n.o 19).

50

Assim, um fundamento relativo à irregularidade do aviso de concurso é admissível na medida em que diga respeito à fundamentação da decisão impugnada (Acórdão de 6 de julho de 1988, Simonella/Comissão, 164/87, EU:C:1988:371, n.o 19). O critério da ligação estreita resultante da jurisprudência referida no n.o 49 do presente acórdão pressupõe, portanto, que as disposições do anúncio de concurso cuja ilegalidade é invocada tenham sido aplicadas em apoio da decisão individual objeto do recurso de anulação.

51

Este critério assemelha‑se, assim, em substância, ao critério do «nexo jurídico direto», na aceção da jurisprudência referida no n.o 46 do presente acórdão, que pressupõe igualmente que essa decisão constitua uma medida de aplicação do ato de alcance geral cuja ilegalidade é invocada (v., neste sentido, Acórdãos de 28 de junho de 2005, Dansk Rørindustri e o./Comissão, C‑189/02 P, C‑202/02 P, C‑205/02 P a C‑208/02 P e C‑213/02 P, EU:C:2005:408, n.o 237, e de 8 de setembro de 2020, Comissão e Conselho/Carreras Sequeros e o., C‑119/19 P e C‑126/19 P, EU:C:2020:676, n.o 75).

52

Para este efeito, há que ter em conta a fundamentação substantiva, e não meramente formal, da decisão individual impugnada.

53

Por outro lado, a existência dessa ligação estreita deve ser afastada quando as disposições do anúncio de concurso contestadas não tenham nenhuma relação com as razões subjacentes à decisão individual impugnada.

54

No caso em apreço, o concurso EPSO/AD/293/14 é, à semelhança do concurso em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 11 de agosto de 1995, Comissão/Noonan (C‑448/93 P, EU:C:1995:264), um concurso geral com vista à constituição de uma lista de reserva para o recrutamento de funcionários no âmbito da Comissão. Por conseguinte, este concurso é uma operação administrativa complexa, na aceção da jurisprudência referida no n.o 49 do presente acórdão, pelo que há que examinar, como fez o Tribunal Geral, a existência de uma ligação estreita, na aceção da mesma jurisprudência, entre a fundamentação da decisão controvertida e as disposições do anúncio de concurso controvertido relativas ao regime linguístico.

55

Quanto à fundamentação da decisão controvertida, resulta do n.o 53 do acórdão recorrido, não impugnado pela Comissão, que o nome de Ana Calhau Correia de Paiva não foi inscrito na lista de reserva porque esta não fazia parte dos candidatos que obtiveram o maior número de pontos nas provas do centro de avaliação.

56

Como resulta do n.o 4 do presente acórdão, essas provas consistiam num estudo de caso, num exercício de grupo e numa entrevista estruturada. Decorre igualmente dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, através dessas provas, era nomeadamente testada a competência geral em matéria de comunicação referida pelo Tribunal Geral no n.o 54 do acórdão recorrido, e isto tanto oralmente, na entrevista estruturada, como por escrito, no estudo de caso.

57

Segundo a Comissão, o Tribunal Geral qualificou erradamente os factos, no referido n.o 54, quando declarou que existia uma ligação estreita entre a fundamentação da decisão controvertida e as disposições do anúncio de concurso controvertido relativas ao regime linguístico, uma vez que os pontos obtidos por Ana Calhau Correia de Paiva na competência geral em matéria de comunicação não são determinantes no caso em apreço.

58

Todavia, como observou a advogada‑geral, em substância, nos n.os 71 e 72 das suas conclusões, esta argumentação da Comissão assenta na premissa de que o nome de Ana Calhau Correia de Paiva não foi inscrito na lista de reserva em razão dos pontos obtidos em competências diferentes da competência geral em matéria de comunicação. Ora, uma vez que o Tribunal Geral não identificou tais competências determinantes para essa não inscrição na lista de reserva, não cabe ao Tribunal de Justiça, em sede de recurso, proceder a essa apreciação dos factos, salvo em caso de desvirtuação, que não é invocada pela Comissão em apoio deste argumento (v., neste sentido, Acórdão de 11 de junho de 2020, Comissão/Di Bernardo, C‑114/19 P, EU:C:2020:457, n.o 43).

59

Quanto à qualificação jurídica dos factos apurados pelo Tribunal Geral e às consequências jurídicas que daí retirou, cuja fiscalização é, em conformidade com a jurisprudência referida no n.o 39 do presente acórdão, da competência do Tribunal de Justiça, há que observar que, no n.o 54 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral deduziu dos pontos obtidos por Ana Calhau Correia de Paiva na competência geral em matéria de comunicação que o júri tinha procedido, ainda que implicitamente, a uma constatação quanto ao conhecimento da língua francesa pela candidata ou, pelo menos, quanto ao domínio de uma competência muito condicionada pelo conhecimento desta língua. Estando a apreciação desta competência geral em matéria de comunicação no âmbito das provas do centro de avaliação prevista nas disposições do anúncio de concurso controvertido relativas ao regime linguístico, há que considerar que estas últimas tiveram incidência na fundamentação da decisão controvertida.

60

Foi, portanto, sem cometer um erro de direito que o Tribunal Geral, ao basear‑se na apreciação efetuada no n.o 54 do acórdão recorrido, considerou, nos seus n.os 60 e 61, que existia uma ligação estreita entre a fundamentação da decisão controvertida e as disposições do anúncio de concurso controvertido relativas ao regime linguístico.

61

Foi também sem cometer um erro de direito que o Tribunal Geral pôde concluir pela existência dessa ligação estreita com fundamento nas constatações efetuadas no n.o 58 do acórdão recorrido.

62

Com efeito, embora este anúncio de concurso não faça nenhuma menção aos tipos de teclados propostos, não se pode deixar de observar que a limitação da escolha da segunda língua do concurso determinou a escolha igualmente limitada dos referidos teclados, que constituem uma ferramenta essencial para permitir aos candidatos exprimirem‑se por escrito. Assim, como salientou corretamente o Tribunal Geral, esta escolha limitada, que fez com que Ana Calhau Correia de Paiva não tivesse podido utilizar um teclado do tipo a que estava habituada, podia ter incidência no resultado por ela obtido na prova de estudo de caso, que exige a redação de um texto de uma certa extensão num tempo limitado e, portanto, no conjunto das competências gerais testadas durante a referida prova.

63

Dito isto, como salientou a advogada‑geral, em substância, nos n.os 82 e 83 das suas conclusões, as apreciações do Tribunal Geral que figuram nos n.os 56 e 57 do acórdão recorrido padecem de um erro de direito. Com efeito, uma vez que Ana Calhau Correia de Paiva, com a sua exceção de ilegalidade, contesta a limitação da escolha da segunda língua do concurso às línguas alemã, inglesa e francesa, a comparação entre o seu nível em língua francesa e o seu nível em língua portuguesa, a sua língua materna, que escolheu como língua principal do concurso, é desprovida de pertinência para demonstrar a existência de uma ligação estreita entre a fundamentação da decisão controvertida e as disposições do anúncio de concurso controvertido relativas ao regime linguístico.

64

Todavia, importa recordar que, se os fundamentos de uma decisão do Tribunal Geral revelarem uma violação do direito da União, mas o dispositivo da mesma se afigurar justificado por outros fundamentos de direito, essa violação não é suscetível de acarretar a anulação dessa decisão e há que proceder a uma substituição de fundamentos (Acórdão de 6 de novembro de 2018, Scuola Elementare Maria Montessori/Comissão, Comissão/Scuola Elementare Maria Montessori e Comissão/Ferracci, C‑622/16 P a C‑624/16 P, EU:C:2018:873, n.o 48 e jurisprudência referida).

65

No caso em apreço, uma vez que a conclusão a que o Tribunal Geral chegou nos n.os 60 e 61 do acórdão recorrido se justifica com fundamento na apreciação efetuada nos seus n.os 54 e 58, conforme refletidos nos n.os 22 e 24 do presente acórdão, há que considerar que o erro de direito declarado no n.o 63 deste último é desprovido de pertinência para o dispositivo do acórdão recorrido. Com efeito, esta apreciação bastava para demonstrar que Ana Calhau Correia de Paiva tinha legitimidade para suscitar uma exceção de ilegalidade do aviso de concurso controvertido.

66

Tendo em conta todas estas considerações, o fundamento único e, por conseguinte, o próprio recurso devem ser julgados improcedentes.

Quanto às despesas

67

Por força do artigo 184.o, n.o 2, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, se o recurso da decisão do Tribunal Geral for julgado improcedente, o Tribunal de Justiça decide sobre as despesas. Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, aplicável aos processos de recursos do Tribunal Geral por força do artigo 184.o, n.o 1, do mesmo regulamento, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido.

68

No caso em apreço, tendo Ana Calhau Correia de Paiva pedido a condenação da Comissão e tendo esta sido vencida, há que condená‑la a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas por Ana Calhau Correia de Paiva no presente recurso.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) decide:

 

1)

É negado provimento ao recurso.

 

2)

A Comissão Europeia é condenada a suportar, além das suas próprias despesas, as despesas efetuadas por Ana Calhau Correia de Paiva no presente recurso.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: português.

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