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Document 62021CJ0405

Acórdão do Tribunal de Justiça (Décima Secção) de 13 de outubro de 2022.
FV contra NOVA KREDITNA BANKA MARIBOR d.d.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Višje sodišče v Mariboru.
Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 93/13/CEE — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Artigo 3.o, n.o 1, e artigo 8.o — Critérios de apreciação do caráter abusivo de uma cláusula contratual — Desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato — Exigência de boa‑fé por parte do profissional — Possibilidade de garantir um nível de proteção mais elevado do que o previsto na Diretiva.
Processo C-405/21.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:793

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção)

13 de outubro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 93/13/CEE — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Artigo 3.o, n.o 1, e artigo 8.o — Critérios de apreciação do caráter abusivo de uma cláusula contratual — Desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato — Exigência de boa‑fé por parte do profissional — Possibilidade de garantir um nível de proteção mais elevado do que o previsto na Diretiva»

No processo C‑405/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Višje sodišče v Mariboru (Tribunal de Recurso de Maribor, Eslovénia), por Decisão de 8 de junho de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 30 de junho de 2021, no processo

FV

contra

NOVA KREDITNA BANKA MARIBOR d.d.,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Décima Secção),

composto por: M. Ilešič, exercendo funções de presidente de secção, I. Jarukaitis e Z. Csehi (relator), juízes,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de FV, por R. Preininger, odvetnik,

em representação do Governo esloveno, por B. Jovin Hrastnik, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por B. Rous Demiri e N. Ruiz García, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o, n.o 1, bem como dos artigos 8.o e 8.o‑A da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29), conforme alterada pela Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011 (JO 2011, L 304, p. 64) (a seguir «Diretiva 93/13»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe FV, consumidora, à NOVA KREDITNA BANKA MARIBOR d.d., instituição bancária de direito esloveno, a respeito de um contrato de crédito e dos atos jurídicos relativos a esse contrato.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O décimo segundo e décimo sexto considerandos da Diretiva 93/13 têm a seguinte redação:

«[c]onsiderando […] que, na atual situação das legislações nacionais, apenas se poderá prever uma harmonização parcial; que, nomeadamente, apenas as cláusulas contratuais que não tenham sido sujeitas a negociações individuais são visadas pela presente diretiva; que há que deixar aos Estados‑Membros a possibilidade de, no respeito pelo Tratado CEE, assegurarem um nível de proteção mais elevado do consumidor através de disposições nacionais mais rigorosas do que as da presente diretiva;

[…]

Considerando que a apreciação, segundo os critérios gerais estabelecidos, do caráter abusivo das cláusulas, nomeadamente nas atividades profissionais de caráter público que forneçam serviços coletivos que tenham em conta a solidariedade entre os utentes, necessita de ser completada por um instrumento de avaliação global dos diversos interesses implicados; que tal consiste na exigência de boa‑fé; que, na apreciação da boa‑fé, é necessário dar especial atenção à força das posições de negociação das partes, à questão de saber se o consumidor foi de alguma forma incentivado a manifestar o seu acordo com a cláusula e se os bens ou serviços foram vendidos ou fornecidos por especial encomenda do consumidor; que a exigência de boa‑fé pode ser satisfeita pelo profissional, tratando de forma leal e equitativa com a outra parte, cujos legítimos interesses deve ter em conta.»

4

O artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva prevê:

«Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.»

5

O artigo 5.o da referida diretiva dispõe:

«No caso dos contratos em que as cláusulas propostas ao consumidor estejam, na totalidade ou em parte, consignadas por escrito, essas cláusulas deverão ser sempre redigidas de forma clara e compreensível. Em caso de dúvida sobre o significado de uma cláusula, prevalecerá a interpretação mais favorável ao consumidor. […]»

6

O artigo 8.o da mesma diretiva enuncia:

«Os Estados‑Membros podem adotar ou manter, no domínio regido pela presente diretiva, disposições mais rigorosas, compatíveis com o Tratado, para garantir um nível de proteção mais elevado para o consumidor.»

7

O artigo 8.o‑A da Diretiva 93/13 dispõe, nos seus n.os 1 e 2:

«1.   Se um Estado‑Membro adotar disposições nos termos do artigo 8.o, [i]nforma a Comissão desse facto, bem como de modificações posteriores, em particular caso essas disposições:

alarguem a avaliação do caráter abusivo a cláusulas contratuais negociadas individualmente ou à adequação do preço ou da remuneração, ou

incluam listas de cláusulas contratuais consideradas abusivas.

2.   A Comissão assegura que a informação a que se refere o n.o 1 seja facilmente acessível aos consumidores e aos profissionais, nomeadamente num sítio Internet criado para o efeito.»

Direito esloveno

8

O artigo 24.o da Zakon o varstv potrošnikov (Lei de Defesa do Consumidor) (Uradni list RS, n.o 98/04, versão consolidada, a seguir «ZVPot») prevê, no seu n.o 1:

«1.   As cláusulas contratuais são consideradas abusivas quando:

dão origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato, ou

tornam a execução do contrato injustificadamente prejudicial para o consumidor, ou

tornam a execução do contrato significativamente diferente do que o consumidor razoavelmente esperava, ou

infringem o princípio da boa‑fé e da equidade.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

9

Em 19 de setembro de 2007, foi celebrado um contrato de crédito entre a NOVA KREDITNA BANKA MARIBOR e a mãe de FV. Na sequência da morte desta última, FV comprometeu‑se, ao abrigo de um contrato de assunção de dívida celebrado em 21 de julho de 2014, a reembolsar à recorrida no processo principal o saldo remanescente do contrato de crédito. Nesse contrato, a mutuária contraiu um empréstimo no montante de 149220 francos suíços (CHF) (cerca de 89568 euros à data da celebração do contrato de crédito) que devia ser reembolsado no prazo de 240 meses.

10

O referido contrato de crédito não continha nenhuma cláusula relativa à taxa de câmbio aplicável. Em contrapartida, nos termos da cláusula 12 desse contrato, o risco cambial era inteiramente assumido pela mutuária.

11

O órgão jurisdicional de reenvio indica que, no caso em apreço, o risco cambial se concretizou, uma vez que em 29 de janeiro de 2018 a mutuária ainda tinha de reembolsar à recorrida no processo principal o montante de 72049,58 euros.

12

Em 9 de abril de 2018, FV intentou uma ação no Okrožno sodišče v Mariboru (Tribunal Regional de Maribor, Eslovénia) que se destinava nomeadamente a obter a declaração de nulidade do contrato de crédito em causa no processo principal e na qual invocava as alterações da taxa de câmbio entre o euro e o franco suíço. Na sequência da improcedência desta ação perante aquele órgão jurisdicional, FV interpôs recurso para o Višje sodišče v Mariboru (Tribunal de Recurso de Maribor, Eslovénia), o órgão jurisdicional de reenvio.

13

Segundo este órgão jurisdicional, a solução do litígio de que é chamado a conhecer depende, em substância, da questão de saber se o artigo 24.o, n.o 1, da ZVPot, é conforme aos termos e objetivos da Diretiva 93/13. Mais concretamente, este órgão jurisdicional pretende saber se o artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva admite uma transposição para o direito nacional nos termos da qual os requisitos da «boa‑fé» e do «desequilíbrio significativo» são distintos e independentes um do outro, o que implicaria que, nas circunstâncias do processo que lhe foi submetido, o órgão jurisdicional não precisaria de verificar se a recorrida no processo principal agiu ou não de boa‑fé.

14

O órgão jurisdicional de reenvio considera que resulta da leitura conjugada dos décimo segundo e décimo sexto considerandos da Diretiva 93/13 e dos seus artigos 8.o e 8.o‑A que os Estados‑Membros podem adotar disposições que assegurem um nível de proteção mais elevado dos consumidores do que o garantido por esta diretiva e que, nesse caso, essas disposições devem ser comunicadas à Comissão. Ora, segundo o órgão jurisdicional, as disposições relativas aos requisitos referidos no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 não foram comunicadas pela República da Eslovénia à Comissão.

15

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio indica que da jurisprudência do Tribunal de Justiça não resulta nenhuma interpretação clara do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 com base na qual possa decidir se a interpretação e a aplicação da disposição pertinente do direito nacional é conforme com os objetivos daquela diretiva. Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio indica que resulta de várias decisões do Vrhovno sodišče (Supremo Tribunal, Eslovénia) que os dois requisitos previstos no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 devem ser lidos como cumulativos, o que seria contrário aos interesses do consumidor e proporcionaria uma proteção inferior à garantida pelo direito nacional. O órgão jurisdicional de reenvio considera que essa posição não respeita a jurisprudência do Tribunal de Justiça que, apesar de autorizar os supremos tribunais nacionais a definir de modo mais preciso os critérios que o próprio Tribunal de Justiça definiu, não permite que os mesmos impeçam os órgãos jurisdicionais inferiores de garantir que os consumidores obtêm o pleno efeito da Diretiva 93/13 e uma via de recurso efetiva para a defesa dos seus direitos.

16

Nestas condições, o Višje sodišče v Mariboru (Tribunal de Recurso de Maribor) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva [93/13], em conjugação com os artigos 8.o e 8.o‑A, [dessa diretiva] ser interpretado no sentido de que não se opõe a disposições nacionais que qualificam os dois requisitos da “boa‑fé” e do “desequilíbrio significativo” de alternativos (requisitos distintos, autónomos e independentes entre si), de modo que, para efeitos de decidir se uma cláusula contratual é abusiva, basta que existam factos determinantes que preencham um único desses dois requisitos?»

Quanto à questão prejudicial

17

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 1, e o artigo 8.o da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que permite que seja declarado o caráter abusivo de uma cláusula contratual nos casos em que essa cláusula cria um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes decorrentes do contrato em detrimento do consumidor, sem, todavia, nessa hipótese, proceder ao exame da exigência de «boa‑fé», na aceção desse artigo 3.o, n.o 1.

18

Importa antes de mais precisar que a Diretiva 93/13 impõe que os Estados‑Membros prevejam um mecanismo que garanta a possibilidade de fiscalização de qualquer cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual, de modo que o seu caráter eventualmente abusivo possa ser apreciado. Neste contexto, incumbe ao órgão jurisdicional nacional determinar, tomando em consideração os critérios enunciados no artigo 3.o, n.o 1, e no artigo 5.o da Diretiva 93/13, se, atendendo às circunstâncias específicas do caso concreto, essa cláusula respeita as exigências da boa‑fé, do equilíbrio e da transparência impostas por esta diretiva (Acórdão de 7 de novembro de 2019, Profi Credit Polska, C‑419/18 e C‑483/18, EU:C:2019:930, n.o 53 e jurisprudência referida).

19

Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, uma cláusula de um contrato celebrado entre um consumidor e um profissional que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes decorrentes desse contrato em detrimento do consumidor.

20

Ao remeter para os conceitos de «boa‑fé» e de «desequilíbrio significativo» em detrimento do consumidor entre os direitos e as obrigações das partes decorrentes do contrato, o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 apenas define em abstrato os elementos que conferem caráter abusivo a uma cláusula contratual que não foi objeto de negociação individual (Acórdão de 27 de janeiro de 2021, Dexia Nederland, C‑229/19 e C‑289/19, EU:C:2021:68, n.o 47 e jurisprudência referida).

21

Assim, o Tribunal de Justiça declarou que, para determinar se uma cláusula cria, em detrimento do consumidor, um «desequilíbrio significativo» entre os direitos e as obrigações das partes decorrentes do contrato, há que ter em conta, nomeadamente, as regras de direito nacional aplicáveis, na falta de acordo das partes nesse sentido. Através de uma análise comparativa deste tipo, o juiz nacional poderá avaliar se e em que medida o contrato coloca o consumidor numa situação jurídica menos favorável do que a prevista no direito nacional em vigor. De igual modo, é pertinente para este efeito proceder a um exame da situação jurídica em que se encontra o referido consumidor, atendendo aos meios de que dispõe ao abrigo da regulamentação nacional para pôr termo à utilização de cláusulas abusivas (Acórdão de 27 de janeiro de 2021, Dexia Nederland, C‑229/19 e C‑289/19, EU:C:2021:68, n.o 48 e jurisprudência referida).

22

Por outro lado, a análise da existência de um eventual «desequilíbrio significativo» não se pode limitar a uma apreciação económica de natureza quantitativa, assente numa comparação entre o montante total da operação que foi objeto do contrato, por um lado, e os custos que essa cláusula faz recair sobre o consumidor, por outro. Com efeito, o desequilíbrio significativo pode simplesmente resultar de uma violação suficientemente grave da situação jurídica em que o consumidor é colocado, enquanto parte no contrato em causa, por força das disposições nacionais aplicáveis, seja ela sob a forma de uma restrição do conteúdo dos direitos que, segundo essas disposições, resultam desse contrato para o consumidor, ou de um entrave ao exercício dos mesmos, ou ainda do facto de lhe ser imposta uma obrigação suplementar, não prevista pelas regras nacionais (Acórdão de 27 de janeiro de 2021, Dexia Nederland, C‑229/19 e C‑289/19, EU:C:2021:68, n.o 49).

23

No que respeita à questão de saber se foi respeitada a exigência de «boa‑fé», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, decorre da jurisprudência que, tendo em conta o décimo sexto considerando desta diretiva, o juiz nacional deve, para o efeito, verificar se o profissional, ao tratar de maneira leal e equitativa com o consumidor, podia razoavelmente esperar que o referido consumidor aceitasse essa cláusula na sequência de uma negociação individual (Acórdão de 3 de outubro de 2019, Kiss e CIB Bank, C‑621/17, EU:C:2019:820, n.o 50 e jurisprudência referida).

24

Assim, como decorre do décimo sexto considerando desta diretiva, a exigência de «boa‑fé», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, é um elemento que permite verificar se o profissional tratou com o consumidor, cujos interesses legítimos deve ter em conta, de maneira leal e equitativa. Resulta igualmente deste considerando que, na apreciação da boa‑fé, é necessário prestar especial atenção à respetiva força das posições de negociação das partes, à questão de saber se o consumidor foi de alguma forma incentivado a manifestar o seu acordo com a cláusula e se os bens ou serviços foram vendidos ou fornecidos por especial encomenda do consumidor.

25

Por outro lado, o Tribunal de Justiça já precisou que o conceito de «boa‑fé» é inerente à apreciação da natureza abusiva de uma cláusula contratual (Despacho de 17 de novembro de 2021, Unión de Creditos Inmobiliarios, C‑79/21, não publicado, EU:C:2021:945, n.o 38).

26

Por conseguinte, incumbe ao juiz nacional avaliar, à luz de todas as circunstâncias do processo, num primeiro momento, o possível desrespeito da exigência de boa‑fé e, num segundo momento, a existência de um eventual desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 (Acórdão de 3 de outubro de 2019, Kiss e CIB Bank, C‑621/17, EU:C:2019:820, n.o 49 e jurisprudência referida).

27

Nestas condições, há que considerar que os dois elementos referidos no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 exigem que, atendendo a todas as circunstâncias do processo em causa, o juiz nacional proceda a uma apreciação à luz de critérios que são específicos desses elementos, para que em seguida possa determinar se a cláusula em causa reveste caráter abusivo, sendo de precisar que a apreciação de tais elementos com base nesses critérios não exclui a existência de um nexo entre os mesmos.

28

Além disso, o caráter transparente de uma cláusula contratual, conforme exigido no artigo 5.o da Diretiva 93/13, também constitui um dos elementos a ter em conta na apreciação do caráter abusivo dessa cláusula que cabe ao juiz nacional efetuar nos termos do artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance, C‑609/19, EU:C:2021:469, n.o 62 e jurisprudência referida).

29

No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio pretende em substância saber se, em aplicação da regulamentação eslovena, pode conhecer do litígio no processo principal sem verificar se o profissional agiu de boa‑fé. Por conseguinte, coloca‑se a questão de saber se a existência de um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes decorrentes do contrato em detrimento do consumidor pode, no respeito do direito da União, ser suficiente para determinar o caráter abusivo de uma cláusula contratual.

30

A este respeito, cumpre antes de mais salientar que, nos termos do décimo segundo considerando da Diretiva 93/13, esta última apenas procede a uma harmonização parcial e mínima das legislações nacionais relativas às cláusulas abusivas, deixando aos Estados‑Membros a possibilidade de, no respeito pelo Tratado FUE, assegurarem um nível de proteção mais elevado do consumidor através de disposições nacionais mais rigorosas do que as desta diretiva. Além disso, ao abrigo do artigo 8.o da referida diretiva, os Estados‑Membros podem adotar ou manter, no domínio por ela regido, disposições mais rigorosas, compatíveis com este Tratado, a fim de garantir um nível de proteção mais elevado para o consumidor (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Trapeza Peiraios, C‑243/20, EU:C:2021:1045, n.o 54 e jurisprudência referida).

31

Importa recordar, em seguida, que a Diretiva 93/13 foi transposta para a ordem jurídica eslovena pela ZVPot. Assim, o artigo 24.o, n.o 1, da ZVPot prevê quatro hipóteses, ligadas pela conjunção «ou», nas quais uma cláusula contratual é considerada abusiva. Entre estas hipóteses, figuram a da criação pela cláusula contratual, em detrimento do consumidor, de um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes decorrentes do contrato (primeiro travessão) e a da violação pela cláusula contratual do princípio da boa‑fé e da lealdade (quarto travessão).

32

Neste contexto, tendo em conta as observações escritas do Governo esloveno relativas ao conceito de «princípio da boa‑fé e da lealdade», importa sublinhar que, em conformidade com jurisprudência constante, incumbe ao Tribunal de Justiça tomar em consideração, no quadro da repartição das competências entre este último e os tribunais nacionais, o contexto factual e regulamentar em que se inserem as questões prejudiciais, como definido na decisão de reenvio, não podendo o exame de um pedido de decisão prejudicial ser realizado à luz da interpretação do direito nacional invocada pelo governo de um Estado‑Membro ou por uma parte no processo principal [v., neste sentido, Acórdão de 15 de abril de 2021, Estado belga (Elementos posteriores à decisão de transferência), C‑194/19, EU:C:2021:270, n.o 26 e jurisprudência referida].

33

De resto, como foi recordado nos n.os 23 e 24 do presente acórdão, a exigência de «boa‑fé», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, deve ser interpretada à luz do décimo sexto considerando desta diretiva.

34

Por último, em conformidade com o artigo 8.o da Diretiva 93/13, os Estados‑Membros são, em princípio, livres de alargar a proteção prevista no artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 19 de setembro de 2019, Lovasné Tóth, C‑34/18, EU:C:2019:764, n.o 47), desde que a regulamentação nacional em causa garanta um nível de proteção mais elevado aos consumidores e não viole as disposições dos tratados (v., neste sentido, Acórdão de 2 de abril de 2020, Condominio di Milano, via Meda, C‑329/19, EU:C:2020:263, n.o 37).

35

Ora, uma regulamentação nacional como a que está em causa no processo principal prossegue o objetivo de proteção dos consumidores garantido pela Diretiva 93/13. Além disso, é suscetível de assegurar aos consumidores, em conformidade com o artigo 8.o desta diretiva, um nível de proteção efetiva mais elevado do que o estabelecido por esta diretiva, o que cabe, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, igualmente tendo em conta a jurisprudência nacional na matéria.

36

Por outro lado, atendendo às interrogações do órgão jurisdicional de reenvio, importa salientar que a Comissão indicou nas suas observações apresentadas ao Tribunal de Justiça que efetivamente as autoridades eslovenas a informaram das regras pertinentes, relativas aos critérios e às modalidades de apreciação do caráter abusivo das cláusulas contratuais, em conformidade com o previsto pelo artigo 8.o‑A da Diretiva 93/13, pelo que, no caso em apreço, esta disposição não tem incidência na interpretação pedida.

37

Tendo em conta o que precede, há que responder à questão submetida que o artigo 3.o, n.o 1, e o artigo 8.o da Diretiva 93/13 devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação nacional que permite que seja declarado o caráter abusivo de uma cláusula contratual nos casos em que essa cláusula cria um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes decorrentes do contrato em detrimento do consumidor, sem, todavia, nessa hipótese, proceder ao exame da exigência de «boa‑fé», na aceção desse artigo 3.o, n.o 1.

Quanto às despesas

38

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Décima Secção) declara:

 

O artigo 3.o, n.o 1, e o artigo 8.o da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores,

 

devem ser interpretados no sentido de que:

 

não se opõem a uma regulamentação nacional que permite que seja declarado o caráter abusivo de uma cláusula contratual nos casos em que essa cláusula cria um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes decorrentes do contrato em detrimento do consumidor, sem, todavia, nessa hipótese, proceder ao exame da exigência de «boa‑fé», na aceção desse artigo 3.o, n.o 1.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: esloveno.

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