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Document 62021CJ0349

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 16 de fevereiro de 2023.
    HYA e o.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Spetsializiran nakazatelen sad.
    Reenvio prejudicial — Setor das telecomunicações — Tratamento de dados pessoais e proteção da privacidade — Diretiva 2002/58 — Artigo 15.o, n.o 1 — Restrição da confidencialidade das comunicações eletrónicas — Decisão judicial que autoriza a interceção, a gravação e o armazenamento das conversas telefónicas de pessoas suspeitas de terem cometido uma infração penal dolosa grave — Prática segundo a qual a decisão é redigida de acordo com um formulário pré‑elaborado e desprovido de motivos individualizados — Artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Dever de fundamentação.
    Processo C-349/21.

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2023:102

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

    16 de fevereiro de 2023 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Setor das telecomunicações — Tratamento de dados pessoais e proteção da privacidade — Diretiva 2002/58 — Artigo 15.o, n.o 1 — Restrição da confidencialidade das comunicações eletrónicas — Decisão judicial que autoriza a interceção, a gravação e o armazenamento das conversas telefónicas de pessoas suspeitas de terem cometido uma infração penal dolosa grave — Prática segundo a qual a decisão é redigida de acordo com um formulário pré‑elaborado e desprovido de motivos individualizados — Artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Dever de fundamentação»

    No processo C‑349/21,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial, Bulgária), por Decisão de 3 de junho de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 4 de junho de 2021, no processo

    HYA,

    IP,

    DD,

    ZI,

    SS,

    sendo interveniente:

    Spetsializirana prokuratura,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

    composto por: K. Jürimäe, presidente de secção, M. Safjan (relator), N. Piçarra, N. Jääskinen e M. Gavalec, juízes,

    advogado‑geral: A. M. Collins,

    secretário: R. Stefanova‑Kamisheva, administradora,

    vistos os autos e após a audiência de 6 de julho de 2022,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação de IP, por H. Georgiev, аdvokat,

    em representação de DD, por V. Vasilev, advokat,

    em representação do Governo checo, por O. Serdula, M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo irlandês, por M. Browne, D. Fennelly, Barrister‑at‑Law, A. Joyce e M. Lane, na qualidade de agentes,

    em representação da Comissão Europeia, por C. Georgieva, H. Kranenborg, P.‑J. Loewenthal e F. Wilman, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 13 de outubro de 2022,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas (Diretiva relativa à privacidade e às comunicações eletrónicas) (JO 2002, L 201, p. 37).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra HYA, IP, DD, ZI e SS por participação numa organização criminosa de delinquentes.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    Diretiva 2002/58

    3

    O considerando 11 da Diretiva 2002/58 enuncia:

    «Tal como a Diretiva 95/46/CE [do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (JO 1995, L 281, p. 31)], a presente diretiva não trata questões relativas à proteção dos direitos e liberdades fundamentais relacionadas com atividades não reguladas pelo direito comunitário. Portanto, não altera o equilíbrio existente entre o direito dos indivíduos à privacidade e a possibilidade de os Estados‑Membros tomarem medidas como as referidas no n.o 1 do artigo 15.o da presente diretiva, necessários para a proteção da segurança pública, da defesa, da segurança do Estado (incluindo o bem‑estar económico dos Estados quando as atividades digam respeito a questões de segurança do Estado) e a aplicação da legislação penal. Assim sendo, a presente diretiva não afeta a capacidade de os Estados‑Membros intercetarem legalmente comunicações eletrónicas ou tomarem outras medidas, se necessário, para quaisquer desses objetivos e em conformidade com a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais[, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir “CEDH”)] segundo a interpretação da mesma na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Essas medidas devem ser adequadas, rigorosamente proporcionais ao objetivo a alcançar e necessárias numa sociedade democrática e devem estar sujeitas, além disso, a salvaguardas adequadas, em conformidade com a [CEDH].»

    4

    O artigo 2.o, primeiro parágrafo, desta diretiva prevê:

    «Salvo disposição em contrário, são aplicáveis as definições constantes da Diretiva 95/46/CE e da Diretiva 2002/21/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações eletrónicas (diretiva‑quadro) [(JO 2002, L 108, p. 33)].»

    5

    O artigo 5.o, n.o 1, da referida diretiva dispõe:

    «Os Estados‑Membros garantirão, através da sua legislação nacional, a confidencialidade das comunicações e respetivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis. Proibirão, nomeadamente, a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento ou outras formas de interceção ou vigilância de comunicações e dos respetivos dados de tráfego por pessoas que não os utilizadores, sem o consentimento dos utilizadores em causa, exceto quando legalmente autorizados a fazê‑lo, de acordo com o disposto no n.o 1 do artigo 15.o O presente número não impede o armazenamento técnico que é necessário para o envio de uma comunicação, sem prejuízo do princípio da confidencialidade.»

    6

    O artigo 15.o, n.o 1, da mesma diretiva tem a seguinte redação:

    «Os Estados‑Membros podem adotar medidas legislativas para restringir o âmbito dos direitos e obrigações previstos nos artigos 5.o e 6.o, nos n.os 1 a 4 do artigo 8.o e no artigo 9.o da presente diretiva sempre que essas restrições constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a segurança nacional (ou seja, a segurança do Estado), a defesa, a segurança pública, e a prevenção, a investigação, a deteção e a repressão de infrações penais ou a utilização não autorizada do sistema de comunicações eletrónicas, tal como referido no n.o 1 do artigo 13.o da Diretiva 95/46/CE. Para o efeito, os Estados‑Membros podem designadamente adotar medidas legislativas prevendo que os dados sejam conservados durante um período limitado, pelas razões enunciadas no presente número. Todas as medidas referidas no presente número deverão ser conformes com os princípios gerais do direito comunitário, incluindo os mencionados nos n.os 1 e 2 do artigo 6.o [TUE].»

    Regulamento (UE) 2016/679

    7

    Nos termos do artigo 4.o, ponto 2, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (JO 2016, L 119, p. 1):

    «Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

    […]

    2)

    “Tratamento”, uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição;

    […]»

    8

    O artigo 94.o, n.o 2, deste regulamento prevê:

    «As remissões para a [D]iretiva [95/46/CE] revogada são consideradas remissões para presente regulamento. As referências ao Grupo de proteção das pessoas no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais, criado pelo artigo 29.o da Diretiva 95/46/CE, são consideradas referências ao Comité Europeu para a Proteção de Dados criado pelo presente regulamento.»

    Direito búlgaro

    9

    O artigo 121.o, n.o 4, da Constituição búlgara dispõe que «os atos judiciais devem ser fundamentados».

    10

    O artigo 34.o do Nakazatelno protsesualen kodeks (Código de Processo Penal), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «NPK»), dispõe que «qualquer ato do tribunal deve conter […] uma fundamentação […]».

    11

    O artigo 172.o do NPK tem a seguinte redação:

    «(1)   As autoridades responsáveis pela fase pré‑contenciosa do processo podem utilizar métodos especiais de investigação […] destinados a documentar as atividades das pessoas vigiadas […]

    (2)   São utilizados métodos especiais de investigação quando tal seja necessário para a investigação de infrações penais dolosas graves previstas no capítulo 1, no capítulo 2, secções I, II, IV, V, VIII e IX, no capítulo 3, secção III, no capítulo 5, secções I a VII, no capítulo 6, secções II a IV, no capítulo 8, no capítulo 8 “a” a 9 “a”, no capítulo 11, secções I a IV, no capítulo 12, no capítulo 13 e no capítulo 14, bem como das infrações previstas no artigo 219.o, n.o 4, segunda hipótese, no artigo 220.o, n.o 2, no artigo 253.o, no artigo 308.o, n.os 2, 3 e 5, segundo período, no artigo 321.o, no artigo 321.o‑A, no artigo 356.o‑K e no artigo 393.o, da parte especial do Nakazatelen kodeks [Código Penal], quando o apuramento das circunstâncias em causa seja impossível de qualquer outro modo ou envolva dificuldades excecionais.»

    12

    Nos termos do artigo 173.o do NPK:

    «(1)   A utilização de métodos especiais de investigação durante a fase pré‑contenciosa está sujeita à apresentação ao tribunal de um pedido escrito fundamentado pelo procurador encarregado da direção do inquérito. Antes da apresentação do pedido, este avisará o responsável administrativo do Ministério Público em causa.

    (2)   O pedido deve conter:

    1.

    informações relativas à infração penal cujo inquérito exige a utilização de métodos especiais de investigação;

    2.

    uma descrição das ações empreendidas e o seu resultado;

    3.

    informações relativas às pessoas ou aos locais a que se aplicarão os métodos especiais de investigação;

    4.

    as modalidades operacionais que se devem aplicar;

    5.

    o prazo de utilização solicitado e os motivos pelos quais esse prazo é solicitado;

    6.

    as razões pelas quais os dados necessários não podem ser recolhidos de outro modo ou só podem ser recolhidos com uma dificuldade extrema.»

    13

    O artigo 174.o, n.os 3 e 4, do NPK prevê:

    «(3)   A autorização da utilização de métodos especiais de investigação em processos da competência do Spetsializiran nakazatelen sad [(Tribunal Criminal Especial)] é concedida previamente pelo seu presidente […]

    (4)   A autoridade referida nos n.os 1 a 3 decide por despacho fundamentado […]»

    14

    O artigo 175.o do NPK tem a seguinte redação:

    «[…]

    (3)   O prazo de aplicação de métodos especiais de investigação não pode ultrapassar:

    1.

    vinte dias, nos casos previstos no artigo 12.o, n.o 1, ponto 4, da zakon za spetsialnite razuznavatelni sredstva (Lei sobre os Métodos Especiais de Investigação);

    2.

    dois meses, nos outros casos.

    (4)   Em caso de necessidade, o prazo referido no n.o 1 pode ser prorrogado nos termos do artigo 174.o:

    1.

    por mais vinte dias, sem poder exceder sessenta dias no total, nos casos previstos no n.o 3, ponto 1;

    2.

    sem, no entanto, exceder seis meses no total, nos casos previstos no n.o 3, ponto 2.»

    15

    O artigo 3.o, n.o 1, da zakon za spetsialnite razuznavatelni sredstva (Lei sobre os Métodos Especiais de Investigação), de 8 de outubro de 1997 (DV n.o 95, de 21 de outubro de 1997, p. 2), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «ZSRS»), dispõe:

    «São utilizados métodos especiais de investigação quando tal seja necessário para prevenir e detetar infrações penais dolosas graves previstas no capítulo 1, no capítulo 2, secções I, II, IV, V, VIII e IX, no capítulo 3, secção III, no capítulo 5, secções I a VII, no capítulo 6, secções II a IV, no capítulo 8, no capítulo 8 “a”, no capítulo 9 “a”, no capítulo 11, secções I a IV, no capítulo 12, no capítulo 13 e no capítulo 14, bem como as infrações previstas no artigo 219.o, n.o 4, segunda hipótese, no artigo 220.o, n.o 2, no artigo 253.o, no artigo 308.o, n.os 2, 3 e 5, segundo período, no artigo 321.o, no artigo 321.o‑A, no artigo 356.o‑K e no artigo 393.o, da parte especial do [Código Penal], quando a recolha das informações necessárias seja impossível de qualquer outro modo ou envolva dificuldades excecionais.»

    16

    O artigo 6.o da ZSRS prevê:

    «Em caso de escuta, através da utilização de meios técnicos, de maneira auditiva ou outra, as comunicações […] telefónicas […] das pessoas controladas são intercetadas.»

    17

    O artigo 11.o da ZSRS tem a seguinte redação:

    «Na aplicação dos modos operacionais, é feita prova por intermédio […] de um registo sonoro […] num suporte físico.»

    18

    O artigo 12.o, n.o 1, ponto 1), da ZSRS enuncia:

    «São utilizados métodos especiais de investigação relativamente a pessoas a respeito das quais tenham sido obtidas informações e quanto às quais seja legítimo presumir que estão a preparar, a cometer ou que cometeram uma das infrações penais dolosas graves referidas no artigo 3.o, n.o 1.»

    19

    O artigo 13.o, n.o 1, da ZSRS tem a seguinte redação:

    «O direito de pedir a utilização dos métodos especiais de investigação e de utilizar as informações obtidas através destes, bem como os meios de prova materiais, cabe, no respeito da sua competência:

    1.

    à Direção‑Geral “Polícia Nacional”, à Direção‑Geral “Luta contra a Criminalidade Organizada”, à Direção‑Geral “Polícia das Fronteiras”, à Direção “Segurança Interna”, às Direções Regionais do Ministério da Administração Interna, às Direções Especializadas (com exclusão da Direção “Operações Técnicas”), às Direções Territoriais e às Unidades Territoriais Independentes da Agência Estatal “Segurança Nacional”;

    2.

    aos Serviços de “Informação Militar” e à “Polícia Militar” (junto do Ministro da Defesa);

    3.

    à Agência Estatal “Informações”.»

    20

    Nos termos do artigo 14.o, n.o 1, ponto 7, da ZSRS:

    «A utilização de métodos especiais de investigação exige a apresentação de um pedido escrito fundamentado da parte do responsável administrativo em causa das autoridades referidas no artigo 13.o, n.o 1, ou do procurador encarregado da direção do inquérito, ou, consoante o caso, da autoridade referida no artigo 13.o, n.o 3, e no que respeita à direção referida no artigo 13.o, n.o 1, ponto 7, do seu diretor. O pedido deve conter […] as razões pelas quais os dados necessários não podem ser recolhidos de outro modo ou só podem ser recolhidos com extrema dificuldade.»

    21

    O artigo 15.o, n.o 1, da ZSRS dispõe:

    «Os responsáveis das autoridades referidas no artigo 13.o, n.o 1, ou o procurador encarregado da direção do inquérito e, no que respeita à direção referida no artigo 13.o, n.o 1, ponto 7), o presidente da Comissão para o Combate à Corrupção e para o Confisco de Bens obtidos Ilegalmente, apresentam o pedido aos presidentes do Sofiyski gradski sad [Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária], dos tribunais regionais ou militares pertinentes, do Spetsializiran nakazatelen sad [Tribunal Criminal Especial], ou a um vice‑presidente por eles autorizado, que deverão, no prazo de 48 horas, autorizar por escrito a utilização de métodos especiais de investigação ou recusar a sua utilização, fundamentando a sua decisão.»

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    22

    Entre 10 de abril e 15 de maio de 2017, a Spetsializirana prokuratura (Procuradoria Especializada, Bulgária) apresentou ao presidente do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) sete pedidos de autorização para recorrer a métodos especiais de investigação, com vista a escutar e registar, ou mesmo vigiar e localizar, as conversas telefónicas de IP, DD, ZI e SS, quatro pessoas suspeitas de terem cometido infrações penais graves (a seguir «pedidos de escutas telefónicas»).

    23

    Resulta da decisão de reenvio que cada um desses pedidos de escutas telefónicas descrevia de maneira circunstanciada, detalhada e fundamentada o objeto do pedido, o nome e o número de telefone da pessoa em causa, a ligação existente entre esse número e essa pessoa, os elementos de prova recolhidos até então e o papel supostamente desempenhado pela pessoa em causa nos factos delituosos. A necessidade de proceder às escutas telefónicas solicitadas para recolher elementos de prova a propósito da atividade criminosa que era objeto do inquérito, bem como as razões e as condições que justificavam a impossibilidade de recolher essas informações por outros meios, foram igualmente fundamentadas de modo específico.

    24

    O presidente do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) deferiu cada um desses pedidos no próprio dia da sua apresentação e emitiu, consequentemente, sete decisões de autorização de escutas telefónicas (a seguir «autorizações das escutas telefónicas»).

    25

    Segundo o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial), o órgão jurisdicional de reenvio, as autorizações das escutas telefónicas correspondem a um formulário pré‑elaborado destinado a abranger todos os casos possíveis de autorização, sem nenhuma referência às circunstâncias factuais e jurídicas, com exceção do prazo durante o qual a utilização dos métodos especiais de investigação era autorizada.

    26

    Em particular, essas autorizações limitam‑se a referir que as disposições legais que mencionam foram respeitadas, sem identificar a autoridade que está na origem dos pedidos de escutas telefónicas e sem indicar o nome e o número de telefone de cada pessoa em causa, a ou as infrações penais previstas no artigo 172.o, n.o 2, do NPK e no artigo 3.o, n.o 1, da ZSRS, os indícios que permitem suspeitar da prática de uma ou de várias dessas infrações ou ainda as categorias de pessoas e de locais, previstas no artigo 12.o da ZSRS, para as quais foi autorizado o recurso a métodos especiais de investigação. Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio indica que essas autorizações não expõem os argumentos da Procuradoria Especializada que demonstram, com fundamento no artigo 172.o do NPK e no artigo 14.o da ZSRS, a impossibilidade de recolher as informações pretendidas por um meio diferente das escutas telefónicas, nem precisam, à luz do artigo 175.o do NPK, se o prazo indicado para a utilização desses métodos foi fixado pela primeira vez ou se se trata de uma prorrogação do prazo e com base em que hipótese e que argumentos se decidiu esse prazo.

    27

    Com fundamento nas referidas autorizações, certas conversas mantidas por IP, DD, ZI e SS foram registadas e armazenadas em conformidade com o artigo 11.o da ZSRS.

    28

    Em 19 de junho de 2020, a Procuradoria Especializada acusou estas quatro pessoas, bem como uma quinta, HYA, de participação numa organização criminosa de delinquentes destinada, com o objetivo de enriquecimento, a fazer passar clandestinamente nacionais de países terceiros através das fronteiras búlgaras, a ajudá‑los a entrar ilegalmente no território búlgaro, bem como a receber ou pagar subornos em relação a essas atividades. Entre os acusados, figuram três agentes da Polícia das Fronteiras do aeroporto de Sófia.

    29

    Chamado a pronunciar‑se sobre o mérito do processo, o órgão jurisdicional de reenvio refere que o conteúdo das conversas registadas tem uma importância direta para determinar a procedência das acusações contra IP, DD, ZI e SS.

    30

    Explica que lhe cabe, previamente, controlar a validade do procedimento que conduziu às autorizações das escutas telefónicas. Neste contexto, poderia considerar‑se que o facto de essas autorizações terem sido redigidas em conformidade com um formulário pré‑elaborado e desprovido de motivos individualizados não lhe permite verificar os fundamentos tidos concretamente em conta pelo juiz que concedeu as referidas autorizações. Inversamente, também seria possível considerar que, ao deferir o pedido da Procuradoria Especializada, o juiz que emitiu as autorizações das escutas telefónicas aceitou integralmente os motivos desses pedidos e aderiu aos mesmos.

    31

    Sem duvidar da conformidade da legislação nacional relativa às escutas telefónicas, como resulta nomeadamente das disposições do NPK e da ZSRS, com o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se uma prática nacional como a que está em causa no processo principal, segundo a qual o dever de fundamentar a decisão judicial que autoriza o recurso a métodos especiais de investigação na sequência de um pedido fundamentado das autoridades penais é cumprido quando essa decisão, redigida de acordo com um formulário pré‑elaborado e desprovido de motivos individualizados, se limite a indicar que os requisitos previstos nessa legislação, que menciona, foram respeitados, é conforme com o artigo 15.o, n.o 1, último período, desta diretiva, lido à luz do considerando 11 da mesma.

    32

    Em particular, este órgão jurisdicional sublinha que decisões judiciais como as autorizações das escutas telefónicas restringem, relativamente às pessoas singulares visadas, os direitos e as liberdades garantidos nos artigos 7.o, 8.o e 11.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»). Tem igualmente dúvidas quanto à conformidade dessa prática com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 47.o da Carta, e com o princípio da proporcionalidade enquanto princípio geral do direito da União.

    33

    Em caso de resposta negativa, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o direito da União se opõe a uma legislação nacional interpretada no sentido de que as gravações de conversas telefónicas autorizadas por uma decisão judicial não fundamentada podem, não obstante, ser utilizadas como meio de prova no âmbito do processo penal.

    34

    Nestas circunstâncias, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    É compatível com o artigo 15.o, n.o 1, em conjugação com o artigo 5.o, n.o 1, e com o considerando 11 da Diretiva 2002/58, uma prática dos órgãos jurisdicionais nacionais no âmbito dos processos penais, nos termos da qual o órgão jurisdicional autoriza a [interceção], a gravação e o armazenamento das conversas telefónicas de suspeitos através de um formulário genérico pré‑elaborado, que se limita a afirmar, sem individualização, que as disposições legais foram respeitadas?

    2)

    Em caso de resposta negativa: o direito da União opõe‑se a que a lei nacional seja interpretada no sentido de que as informações obtidas na sequência dessa autorização sejam utilizadas como elemento de prova da acusação?»

    35

    Por ofício de 5 de agosto de 2022, o Sofiyski gradski sad (Tribunal da cidade de Sófia, Bulgária) informou o Tribunal de Justiça de que, na sequência de uma alteração legislativa que entrou em vigor em 27 de julho de 2022, o Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial) foi dissolvido e que certos processos penais pendentes neste último órgão jurisdicional, incluindo o processo principal, lhe tinham sido transferidos a partir dessa data.

    Quanto às questões prejudiciais

    Quanto à primeira questão

    36

    A título preliminar, importa recordar que, quando os Estados‑Membros aplicam, com base no artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, medidas legislativas que derrogam o princípio da confidencialidade das comunicações eletrónicas consagrado no artigo 5.o, n.o 1, desta diretiva, a proteção dos dados das pessoas em causa só é abrangida pela referida diretiva na medida em que as medidas em causa imponham obrigações de tratamento aos prestadores de serviços dessas comunicações, na aceção do artigo 4.o, ponto 2, do Regulamento 2016/679, tornado aplicável pelo artigo 2.o da Diretiva 2002/58, lido em conjugação com o artigo 94.o, n.o 2, deste regulamento (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o., C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.os 96 e 104 e jurisprudência referida).

    37

    Por força destas últimas disposições, o conceito de tratamento inclui nomeadamente o facto de esses prestadores concederem o acesso às comunicações e aos dados ou de os transmitirem às autoridades competentes (v., neste sentido e por analogia, Acórdão de 6 de outubro de 2020, Privacy International, C‑623/17, EU:C:2020:790, n.os 39 a 41 e jurisprudência referida).

    38

    No caso em apreço, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se os métodos especiais de investigação utilizados no processo principal e, nomeadamente a interceção prevista no artigo 6.o da ZSRS, têm por efeito impor tais obrigações de tratamento aos prestadores em causa e se, por conseguinte, o processo principal é abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2002/58. Importa, assim, precisar que o Tribunal de Justiça só responderá à primeira questão na medida em que o processo principal estiver abrangido pelo âmbito de aplicação desta diretiva, nomeadamente do seu artigo 15.o, n.o 1.

    39

    Tendo em conta estas precisões preliminares, há que considerar que, com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lido à luz do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma prática nacional nos termos da qual as decisões judiciais que autorizam o recurso a métodos especiais de investigação, na sequência de um pedido fundamentado das autoridades penais, são redigidas por meio de um formulário pré‑elaborado e desprovido de motivos individualizados, que se limita a indicar, além do prazo de validade dessas autorizações, que os requisitos previstos nessa legislação, mencionados nas referidas decisões, foram respeitados.

    40

    O artigo 5.o, n.o 1, desta diretiva consagra o princípio da confidencialidade das comunicações e respetivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis. Este princípio traduz‑se na proibição da escuta, da instalação de dispositivos de escuta, do armazenamento ou outras formas de interceção ou vigilância de comunicações e dos respetivos dados de tráfego por pessoas que não os utilizadores, sem o consentimento dos utilizadores em causa, exceto nos casos previstos no artigo 15.o n.o 1, da referida diretiva.

    41

    Este último artigo prevê, assim, que os Estados‑Membros podem adotar medidas legislativas destinadas a restringir o alcance dos direitos e das obrigações previstos no artigo 5.o da mesma diretiva, nomeadamente, sempre que essas restrições constituam uma medida necessária, adequada e proporcionada numa sociedade democrática para salvaguardar a prevenção, a investigação, a deteção e a repressão de infrações penais. Precisa ainda que todas estas medidas legislativas deverão ser conformes com os princípios gerais do direito da União, incluindo os direitos, liberdades e princípios enunciados na Carta.

    42

    A este respeito, as medidas legislativas que regulam o acesso das autoridades competentes aos dados previstos no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, não se podem limitar a exigir que esse acesso responda à finalidade prosseguida por essas mesmas medidas legislativas, mas devem igualmente prever as condições materiais e processuais que regem esse tratamento [v., neste sentido, Acórdão de 2 de março de 2021, Prokuratuur (Condições de acesso aos dados relativos às comunicações eletrónicas), C‑746/18, EU:C:2021:152, n.o 49 e jurisprudência referida].

    43

    Essas medidas e condições devem respeitar os princípios gerais do direito da União, entre os quais figura o princípio da proporcionalidade, e os direitos fundamentais garantidos pela Carta, como resulta do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, que faz referência ao artigo 6.o, n.os 1 e 2, TUE (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, La Quadrature du Net e o., C‑511/18, C‑512/18 e C‑520/18, EU:C:2020:791, n.o 113 e jurisprudência referida).

    44

    Em particular, as condições processuais referidas no n.o 42 do presente acórdão devem ser adotadas no respeito do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, que corresponde, como resulta das anotações relativas a este artigo, ao artigo 6.o, n.o 1, da CEDH. Este direito exige que qualquer decisão judicial seja fundamentada (v., neste sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2012, Trade Agency, C‑619/10, EU:C:2012:531, n.os 52 e 53 e jurisprudência referida).

    45

    Por conseguinte, quando uma medida legislativa adotada ao abrigo do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58 prevê que possam ser adotadas restrições ao princípio da confidencialidade das comunicações eletrónicas consagrado no artigo 5.o, n.o 1, desta diretiva por via de decisões judiciais, este artigo 15.o, n.o 1, lido em conjugação com o artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, impõe aos Estados‑Membros que prevejam que essas decisões devam ser fundamentadas.

    46

    Com efeito, como observou o advogado‑geral no n.o 38 das suas conclusões, o direito a uma fiscalização jurisdicional efetiva, garantido pelo artigo 47.o da Carta exige que o interessado possa conhecer os motivos da decisão tomada a seu respeito, quer através da leitura da decisão, quer através de uma comunicação destes motivos feita a seu pedido, para lhe permitir defender os seus direitos nas melhores condições possíveis e decidir, com pleno conhecimento de causa, se deve requerer a fiscalização jurisdicional a um órgão jurisdicional competente para fiscalizar a legalidade dessa decisão (v., por analogia, Acórdão de 24 de novembro de 2020, Minister van Buitenlandse Zaken, C‑225/19 e C‑226/19, EU:C:2020:951, n.o 43 e jurisprudência referida).

    47

    No caso em apreço, resulta das explicações do órgão jurisdicional de reenvio que, por força das medidas legislativas nacionais adotadas ao abrigo do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, particularmente do artigo 34.o e do artigo 174.o, n.o 4, do NPK, bem como do artigo 15.o, n.o 1, da ZSRS, lidos em conjugação com o artigo 121.o, n.o 4, da Constituição, qualquer decisão judicial destinada a autorizar o recurso a métodos especiais de investigação deve ser fundamentada.

    48

    Dito isto, a primeira questão não é submetida à luz das disposições legislativas do NPK e da ZSRS adotadas ao abrigo do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, mas de uma prática judicial nacional que aplica essas disposições legislativas, nos termos da qual as decisões que autorizam o recurso aos métodos especiais de investigação são fundamentadas através de um formulário pré‑elaborado, destinado a abranger todos os casos possíveis de autorização, e desprovido de motivos individualizados. Tais decisões são adotadas num contexto processual específico.

    49

    Com efeito, importa salientar que, no direito búlgaro, a decisão que autoriza o recurso a métodos especiais de investigação é adotada no termo de um procedimento que visa permitir, a respeito de uma pessoa em relação à qual é legítimo presumir que prepara, comete ou cometeu uma infração penal dolosa grave, uma recolha eficaz e rápida de dados que não poderiam ser recolhidos por meios diferentes dos métodos especiais de investigação pedidos ou que só o poderiam ser com uma dificuldade extrema.

    50

    No âmbito do referido procedimento, as autoridades habilitadas a solicitar o recurso a esses métodos, na aceção do artigo 173.o, n.os 1 e 2, do NPK e do artigo 13.o, n.o 1, da ZSRS, devem, em conformidade com o artigo 173.o, n.o 2, do NPK e o artigo 14.o, n.o 1, ponto 7, da ZSRS, apresentar por escrito ao órgão jurisdicional competente um pedido fundamentado e circunstanciado a expor a infração objeto do inquérito, as medidas tomadas no âmbito desse inquérito e os seus resultados, os dados que identificam a pessoa ou o local visados pelo pedido, o prazo previsto para a vigilância e os motivos pelos quais esse prazo é solicitado, bem como as razões pelas quais o recurso a esses métodos é indispensável para o inquérito.

    51

    Resulta do regime jurídico deste procedimento que o juiz que emite a autorização para recorrer aos métodos especiais de investigação toma a sua decisão com base num pedido fundamentado e circunstanciado cujo conteúdo, previsto pela lei, lhe deve permitir verificar se as condições de concessão dessa autorização estão preenchidas.

    52

    Assim, esta prática inscreve‑se no âmbito de medidas legislativas, adotadas ao abrigo do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, que preveem a possibilidade de tomar decisões judiciais fundamentadas que tenham por efeito restringir o princípio da confidencialidade das comunicações eletrónicas e dos dados de tráfego, consagrado no artigo 5.o, n.o 1, desta diretiva. Nesta perspetiva, tal prática deve aplicar o dever de fundamentação previsto nessas medidas legislativas em conformidade com os requisitos do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta referido no último período do artigo 15.o, n.o 1, da referida diretiva através da remissão para o artigo 6.o, n.os 1 e 2, TUE.

    53

    A este respeito, uma vez que, no âmbito do referido procedimento, o juiz competente examinou os motivos de um pedido circunstanciado como o referido no n.o 50 do presente acórdão, e que entendeu, no termo da sua análise, que esse pedido era justificado, há que considerar que, ao assinar um texto pré‑elaborado de acordo com um formulário que indica que os requisitos legais foram respeitados, esse juiz validou os motivos do pedido, garantindo ao mesmo tempo o respeito dos requisitos legais.

    54

    Com efeito, como refere a Comissão Europeia nas suas observações escritas, seria artificial exigir que a autorização de recorrer a métodos especiais de investigação contivesse uma fundamentação específica e detalhada, quando o pedido à luz do qual essa autorização é concedida já contém, por força da legislação nacional, essa fundamentação.

    55

    Em contrapartida, uma vez que o interessado foi informado de que lhe foram aplicados métodos especiais de investigação, o dever de fundamentação previsto no artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta impõe que essa pessoa esteja, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 46 do presente acórdão, em condições de compreender os motivos pelos quais o recurso a esses métodos foi autorizado, a fim de poder, se for caso disso, contestar de maneira útil e efetiva essa autorização. Este requisito impõe‑se igualmente a qualquer juiz, caso nomeadamente do juiz penal que aprecia o mérito, que, em função das suas atribuições, deve verificar, oficiosamente ou a pedido da pessoa em causa, a legalidade da referida autorização.

    56

    Incumbirá, portanto, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, no âmbito da prática referida no n.o 39 do presente acórdão, o respeito desta disposição da Carta e da Diretiva 2002/58 está garantido. Para o efeito, caber‑lhe‑á verificar se tanto a pessoa à qual foram aplicados métodos especiais de investigação como o juiz encarregado de verificar a legalidade da autorização de recorrer a esses métodos estão em condições de compreender os motivos dessa autorização.

    57

    Embora essa verificação incumba exclusivamente ao órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça, decidindo a título prejudicial, pode, eventualmente, prestar esclarecimentos destinados a guiar o órgão jurisdicional nacional na sua decisão (Acórdão de 5 de maio de 2022, Victorinox, C‑179/21, EU:C:2022:353, n.o 49 e jurisprudência referida).

    58

    A este respeito, deverá ser verificado, uma vez que a autorização para recorrer aos métodos especiais de investigação é adotada com base num pedido fundamentado e circunstanciado das autoridades nacionais competentes, se as pessoas referidas no n.o 56 do presente acórdão podem ter acesso não só à decisão de autorização, mas também ao pedido da autoridade que solicitou essa autorização.

    59

    Além disso, para que o dever de fundamentação que resulta do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta seja respeitado, importa, como salientou o advogado‑geral, em substância, no n.o 41 das suas conclusões, que essas mesmas pessoas possam compreender com facilidade e inequivocamente, através de uma leitura cruzada da autorização de recorrer a métodos especiais de investigação e do pedido fundamentado que a acompanha, as razões precisas pelas quais essa autorização foi concedida à luz dos elementos factuais e jurídicos que caracterizam o caso individual subjacente ao pedido, do mesmo modo que deve resultar imperativamente dessa leitura cruzada o prazo de validade da referida autorização.

    60

    Quando a decisão de autorização se limita, como no caso em apreço, a indicar o prazo de validade da autorização e a declarar que as disposições legais que menciona foram respeitadas, é primordial que o pedido refira claramente todas as informações necessárias para que tanto a pessoa em causa como o juiz encarregado de verificar a legalidade da autorização concedida possam compreender que, com base apenas nessas informações, o juiz que emitiu a autorização, aderindo à fundamentação contida no pedido, chegou à conclusão de que todos os requisitos foram respeitados.

    61

    Se uma leitura cruzada do pedido e da autorização subsequente não permitir compreender, fácil e inequivocamente, os motivos dessa autorização, impõe‑se concluir que o dever de fundamentação que resulta do artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lido à luz do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, não foi respeitado.

    62

    Importa ainda acrescentar que, em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, da Carta, os direitos contidos na Carta têm o mesmo sentido e âmbito que os direitos correspondentes garantidos pela CEDH, o que não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla.

    63

    A este título, resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que a indicação de motivos, ainda que sucintos, constitui uma garantia essencial contra a vigilância abusiva, na medida em que só essa indicação permite garantir que o juiz examinou corretamente o pedido de autorização e os elementos de prova apresentados e verificou verdadeiramente se a vigilância pedida constitui uma ingerência justificada e proporcionada no exercício do direito ao respeito da vida privada e familiar garantido pelo artigo 8.o da CEDH. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reconheceu, contudo, a respeito de duas sentenças do Spetsializiran nakazatelen sad (Tribunal Criminal Especial), que a falta de motivos individualizados não leva automaticamente à conclusão de que o juiz que emitiu a autorização não examinou corretamente o pedido (v., neste sentido, TEDH, 11 de janeiro de 2022, Ekimdzhiev e o. c. Bulgária, CE:ECHR:2022:0111JUD007007812, §§ 313 e 314 e jurisprudência referida).

    64

    Importa ainda precisar que o Acórdão do TEDH de 15 de janeiro de 2015, Dragojević c. Croácia (CE:ECHR:2015:0115JUD006895511), mencionado pelo órgão jurisdicional de reenvio, não pode pôr em causa as considerações expostas nos n.os 58 a 61 do presente acórdão. Com efeito, nesse acórdão de 15 de janeiro de 2015, para chegar à conclusão de que o artigo 8.o da CEDH tinha sido violado, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não examinou a questão de saber se a pessoa em causa podia, através de uma leitura cruzada das decisões de autorização e do pedido de vigilância, compreender os motivos tomados em consideração pelo juiz de instrução, mas a questão, distinta, da possibilidade de sanar a posteriori a falta ou a insuficiência de fundamentação das decisões de autorização.

    65

    Tendo em conta as razões precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58, lido à luz do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma prática nacional nos termos da qual as decisões judiciais que autorizam o recurso a métodos especiais de investigação, na sequência de um pedido fundamentado e circunstanciado das autoridades penais, são redigidas por meio de um formulário pré‑elaborado e desprovido de motivos individualizados, que se limita a indicar, além do prazo de validade da autorização, que os requisitos previstos na legislação que essas decisões mencionam foram respeitados, desde que as razões precisas pelas quais o juiz competente considerou que os requisitos legais foram respeitados à luz dos elementos factuais e jurídicos que caracterizam o caso em apreço possam ser inferidas com facilidade e inequivocamente de uma leitura cruzada da decisão e do pedido de autorização, devendo este último ser facultado, posteriormente à concessão da autorização, à pessoa contra a qual o recurso aos métodos especiais de investigação foi autorizado.

    Quanto à segunda questão

    66

    Tendo em conta a resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.

    Quanto às despesas

    67

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

     

    O artigo 15.o, n.o 1, da Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas (Diretiva relativa à privacidade e às comunicações eletrónicas), lido à luz do artigo 47.o, segundo parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

     

    deve ser interpretado no sentido de que:

     

    não se opõe a uma prática nacional nos termos da qual as decisões judiciais que autorizam o recurso a métodos especiais de investigação, na sequência de um pedido fundamentado e circunstanciado das autoridades penais, são redigidas por meio de um formulário pré‑elaborado e desprovido de motivos individualizados, que se limita a indicar, além do prazo de validade da autorização, que os requisitos previstos na legislação que essas decisões mencionam foram respeitados, desde que as razões precisas pelas quais o juiz competente considerou que os requisitos legais foram respeitados à luz dos elementos factuais e jurídicos que caracterizam o caso em apreço possam ser inferidas com facilidade e inequivocamente de uma leitura cruzada da decisão e do pedido de autorização, devendo este último ser facultado, posteriormente à concessão da autorização, à pessoa contra a qual o recurso aos métodos especiais de investigação foi autorizado.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: búlgaro.

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