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Document 62021CJ0237

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 22 de dezembro de 2022.
S.M.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberlandesgericht München.
Reenvio prejudicial — Cidadania da União Europeia — Artigos 18.o e 21.o TFUE — Pedido de extradição dirigido a um Estado‑Membro por um Estado terceiro relativamente a um cidadão da União, nacional de outro Estado‑Membro, que exerceu o seu direito à livre circulação no primeiro desses Estados‑Membros — Pedido apresentado para cumprimento de uma pena privativa de liberdade — Proibição de extradição aplicada apenas aos cidadãos nacionais — Restrição à livre circulação — Justificação assente na prevenção da impunidade — Proporcionalidade.
Processo C-237/21.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:1017

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

22 de dezembro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cidadania da União Europeia — Artigos 18.o e 21.o TFUE — Pedido de extradição dirigido a um Estado‑Membro por um Estado terceiro relativamente a um cidadão da União, nacional de outro Estado‑Membro, que exerceu o seu direito à livre circulação no primeiro desses Estados‑Membros — Pedido apresentado para cumprimento de uma pena privativa de liberdade — Proibição de extradição aplicada apenas aos cidadãos nacionais — Restrição à livre circulação — Justificação assente na prevenção da impunidade — Proporcionalidade»

No processo C‑237/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique, Alemanha), por Decisão de 9 de abril de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de abril de 2021, no processo relativo à extradição de

S.M.

sendo intervenientes:

Generalstaatsanwaltschaft München

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen, vice‑presidente, A. Arabadjiev, K. Jürimäe (relatora), E. Regan, P. G. Xuereb, L. S. Rossi, presidentes de secção, M. Ilešič, I. Jarukaitis, A. Kumin, N. Jääskinen, N. Wahl, I. Ziemele, J. Passer e O. Spineanu‑Matei, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: D. Dittert, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 26 de abril de 2022,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Generalstaatsanwaltschaft München, por J. Ettenhofer e F. Halabi, na qualidade de agentes,

em representação do Governo alemão, por J. Möller e M. Hellmann, na qualidade de agentes,

em representação do Governo checo, por A. Edelmannová, M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

em representação do Governo espanhol, por L. Aguilera Ruiz, na qualidade de agente,

em representação do governo croata, por G. Vidović Mesarek, na qualidade de agente,

em representação do Governo lituano, por K. Dieninis e R. Dzikovič, na qualidade de agentes,

em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por L. Baumgart, S. Grünheid e H. Leupold, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de julho de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 18.o e 21.o TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um pedido de extradição dirigido pelas autoridades da Bósnia‑Herzegovina às autoridades da República Federal da Alemanha relativamente a S. M., nacional croata, bósnio e sérvio, para cumprimento de uma pena privativa de liberdade.

Quadro jurídico

Convenção Europeia de Extradição

3

O artigo 1.o da Convenção Europeia de Extradição, assinada em Paris em 13 de dezembro de 1957 (a seguir «Convenção Europeia de Extradição»), estipula:

«As Partes Contratantes comprometem‑se a entregar reciprocamente, segundo as regras e condições determinadas pelos artigos seguintes, as pessoas perseguidas em resultado de uma infração ou procuradas para o cumprimento de uma pena ou medida de segurança pelas autoridades judiciárias da Parte requerente.»

4

O artigo 6.o desta convenção, sob a epígrafe «Extradição de nacionais», prevê:

«1 –   

a)

As Partes Contratantes terão a faculdade de recusar a extradição dos seus nacionais.

b)

Cada Parte Contratante poderá, mediante declaração feita no momento da assinatura ou do depósito do respetivo instrumento da ratificação ou adesão, definir, no que lhe diz respeito, o termo “nacionais” para efeitos da presente [c]onvenção.

c)

A qualidade de nacional será apreciada no momento em que seja tomada a decisão sobre a extradição. […]

2   Se a Parte requerida não extraditar o seu nacional, deverá, a pedido da Parte requerente, submeter o assunto às autoridades competentes, a fim de que, se for caso disso, o procedimento criminal possa ser instaurado. Para esse efeito, os autos, informações e objetos relativos à infração serão enviados gratuitamente pela via prevista no n.o 1 do artigo 12.o A Parte requerente será informada do seguimento que tiver sido dado ao pedido.»

5

A República Federal da Alemanha fez uma declaração, na aceção do artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da Convenção Europeia de Extradição, no momento do depósito do instrumento de ratificação, em 2 de outubro de 1976, nos seguintes termos:

«A extradição de nacionais alemães, da República Federal da Alemanha para um país estrangeiro, é proibida pelo § 16, n.o 2, 1.o período, [da Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha), de 23 de maio de 1949 (BGBl 1949 I, p. 1)] e deverá, por conseguinte, ser recusada em todos os casos.

O termo “nacionais”, na aceção do artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da Convenção Europeia de Extradição, abrange todos os alemães na aceção do § 116, n.o 1, da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha.»

Convenção relativa à Transferência de Pessoas Condenadas

6

Em aplicação do artigo 2.o da Convenção do Conselho da Europa, de 21 de março de 1983, Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas (a seguir «Convenção relativa à Transferência de Pessoas Condenadas»), as pessoas condenadas no território de um Estado signatário desta convenção (Estado da condenação) podem ser transferidas para o território do seu país de origem (Estado da execução) para aí cumprir a condenação que lhes foi imposta. Desta forma, por força do artigo 9.o, n.o 1, alínea b), da referida convenção, a sanção proferida no Estado da condenação pode ser substituída por uma sanção prevista pela legislação do Estado da execução para a mesma infração.

7

Segundo os considerandos da mesma convenção, o objetivo de uma transferência deste tipo é, designadamente, favorecer a reinserção social das pessoas condenadas, permitindo que os estrangeiros que se encontrem privados da sua liberdade, em virtude de uma infração penal, tenham a possibilidade de cumprir a condenação no seu ambiente social de origem.

8

Desde 1 de novembro de 1995, a Convenção relativa à Transferência de Pessoas Condenadas vincula todos os Estados‑Membros da União Europeia. Esta convenção, que vincula igualmente a Bósnia‑Herzegovina, entrou em vigor na Alemanha em 1 de fevereiro de 1992.

Direito alemão

9

O § 16, n.o 2, da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha dispõe:

«Nenhum Alemão pode ser extraditado. A lei pode adotar uma regra derrogatória em caso de extradição para um Estado‑Membro da União Europeia ou para um tribunal internacional, desde que os princípios do Estado de Direito sejam garantidos.»

10

O § 116, n.o 1, da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha estabelece:

«Entende‑se por “Alemão” na aceção da presente [l]ei fundamental sem prejuízo de disposição legal em contrário, quem possua a nacionalidade alemã ou que, enquanto refugiado ou deslocado pertencente ao povo alemão ou enquanto cônjuge ou descendente deste último, tenha sido admitido no território do Reich alemão de acordo com as suas fronteiras de 31 de dezembro de 1937.»

11

O § 48 da Gesetz über internationale Rechtshilfe in Strafsachen (Lei sobre a Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal), de 23 de dezembro de 1982 (BGBl. 1982 I, p. 2071), na sua versão aplicável aos factos no processo principal (a seguir «IRG»), prevê:

«Pode ser prestado auxílio judiciário mútuo no âmbito de um processo penal sob a forma de execução de uma pena ou de qualquer outra sanção aplicada no estrangeiro por sentença transitada em julgado […]»

12

Em conformidade com os §§ 54 e 55 da IRG, na medida em que é autorizada a execução da decisão estrangeira na Alemanha, a sanção proferida é convertida na sanção mais aproximada em direito alemão e a decisão estrangeira é declarada executória. Nos termos do § 57, n.o 1, da IRG, a execução da sanção é realizada pelo Ministério Público alemão «desde que o Estado estrangeiro dê o seu consentimento à execução».

Litígio no processo principal e questão prejudicial

13

Em 5 de novembro de 2020, as autoridades da Bósnia‑Herzegovina pediram à República Federal da Alemanha que extraditasse S.M., nacional croata, bósnio e sérvio, para cumprimento de uma pena privativa de liberdade de seis meses aplicada pelo crime de corrupção por Sentença do Tribunal Municipal de Bosanska Krupa (Bósnia‑Herzegovina), de 24 de março de 2017. S.M. vive na Alemanha com a sua mulher desde meados de 2017. Trabalha nesse Estado desde 22 de maio de 2020 e foi libertado após ter sido detido para extradição.

14

As autoridades alemãs informaram as autoridades croatas do pedido de extradição relativo a S.M., sem qualquer reação por parte destas.

15

A Generalstaatsanwaltschaft München (Procuradoria‑Geral de Munique, Alemanha) pediu, invocando o Acórdão de 13 de novembro de 2018, Raugevicius (C‑247/17, a seguir «Acórdão Raugevicius, EU:C:2018:898), que a extradição de S.M. fosse declarada inadmissível.

16

Segundo o Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique, Alemanha), órgão jurisdicional de reenvio no presente processo, a procedência do pedido da Procuradoria‑Geral de Munique depende da questão de saber se os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem à extradição de um cidadão da União, mesmo que, à luz dos tratados internacionais, o Estado‑Membro requerido esteja obrigado a proceder à sua extradição.

17

Considera que esta questão não obteve resposta no Acórdão Raugevicius, na medida em que, no processo que deu origem a esse acórdão, a República da Finlândia estava autorizada, à luz dos tratados internacionais aplicáveis, a não extraditar o nacional lituano em causa para a Federação da Rússia.

18

Do mesmo modo, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, os acordos de extradição específicos ou a Convenção Europeia de Extradição em causa nos processos que deram origem aos Acórdãos de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630), de 10 de abril de 2018, Pisciotti (C‑191/16, EU:C:2018:222), e de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Berlin (Extradição para a Ucrânia) (C‑398/19, EU:C:2020:1032), deixavam ao Estado‑Membro requerido a escolha de decidir para qual dos Estados requerentes a pessoa procurada devia ser extraditada. A entrega ao Estado‑Membro de origem do cidadão da União objeto de ação penal teria sido possível nos referidos processos sem que os Estados‑Membros em questão violassem as suas obrigações decorrentes dos tratados internacionais relativamente aos países terceiros em questão.

19

Em contrapartida, no presente processo, a República Federal da Alemanha está obrigada, perante a Bósnia‑Herzegovina, a extraditar S.M., em aplicação do artigo 1.o da Convenção Europeia de Extradição.

20

Em conformidade com esta disposição, a República Federal da Alemanha e a Bósnia‑Herzegovina estão reciprocamente obrigadas a entregar as pessoas procuradas pelas autoridades judiciárias do Estado requerente para o cumprimento de uma pena, desde que as condições previstas nessa convenção estejam preenchidas e que nenhuma outra disposição da referida convenção preveja exceções.

21

No caso em apreço, verificam‑se as condições previstas na convenção para efeitos da extradição de S.M. e não existe nenhum obstáculo a essa extradição ao abrigo das disposições pertinentes da Convenção Europeia de Extradição. Em especial, a referida extradição e os atos em que esta se baseia respeitam o padrão mínimo do direito internacional aplicável na República Federal da Alemanha e não violam os princípios constitucionais imperativos ou o grau imperativo de proteção dos direitos fundamentais.

22

Na opinião do órgão jurisdicional de reenvio, existem, portanto, dúvidas quanto à questão de saber se a jurisprudência decorrente do Acórdão Raugevicius se aplica a um caso como o do litígio no processo principal.

23

A este respeito, sublinha que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a inexistência de igualdade de tratamento resultante do facto de um cidadão da União, que tem a nacionalidade de um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro requerido, poder ser extraditado, contrariamente a um nacional do Estado‑Membro requerido, constitui uma restrição ao direito de circular e de permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, previsto no artigo 21.o TFUE.

24

Tal restrição só se justifica se se basear em considerações objetivas e se for proporcionada ao objetivo legítimo prosseguido pelo Estado‑Membro requerido. A este respeito, o Tribunal de Justiça reconheceu que o objetivo de evitar o risco de impunidade das pessoas que cometeram uma infração deve ser considerado um objetivo legítimo que pode, em princípio, justificar uma medida restritiva como a extradição.

25

Ora, a questão de saber se a necessidade de ponderar medidas menos restritivas que a extradição pode implicar que o Estado‑Membro requerido viole as suas obrigações decorrentes do direito internacional não foi abordada na jurisprudência do Tribunal de Justiça.

26

Por último, o órgão jurisdicional de reenvio esclarece que é possível cumprir na Alemanha a pena privativa de liberdade aplicada pelo Tribunal Municipal de Bosanska Krupa (Bósnia‑Herzegovina). Na medida em que S.M. já se encontra em território alemão, a Convenção relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, que foi ratificada tanto pela República Federal da Alemanha como pela Bósnia‑Herzegovina, não é pertinente. A execução da pena é, assim, regida pelo direito alemão, que não exige que a pessoa procurada tenha a nacionalidade alemã nem que dê o seu consentimento. Todavia, esta execução só é possível se e na medida em que o Estado da condenação o consentir. No caso em apreço, tal não se verifica, uma vez que as autoridades bósnias pediram a extradição de S.M. e não a execução da referida pena pelas autoridades alemãs.

27

Foi nestas condições que o Oberlandesgericht München (Tribunal Regional Superior de Munique) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Os princípios enunciados no [Acórdão Raugevicius] a respeito da aplicação dos artigos 18.o e 21.o TFUE impõem que se recuse um pedido de extradição de um cidadão da União para execução de uma pena, formulado por um Estado terceiro ao abrigo da [Convenção Europeia de Extradição] mesmo quando o Estado‑Membro requerido é obrigado, por força do direito internacional convencional, a extraditar o cidadão da União nos termos dessa convenção, uma vez que definiu o conceito de “nacionais” constante do artigo 6.o, n.o 1, alínea b), da [referida] convenção no sentido de que apenas abrange os seus próprios nacionais e não outros cidadãos da União?»

Quanto à questão prejudicial

28

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que um Estado‑Membro, perante um pedido de extradição apresentado por um Estado terceiro para cumprimento de uma pena privativa de liberdade de um nacional de outro Estado‑Membro que resida de modo permanente no primeiro Estado‑Membro, cujo direito nacional proíbe apenas a extradição dos seus próprios nacionais para fora da União e prevê a possibilidade de essa pena ser executada no seu território na condição de o Estado terceiro o permitir, proceda à extradição deste cidadão da União, em conformidade com as obrigações que lhe incumbem em aplicação de uma convenção internacional, quando não possa efetivamente levar a cabo a execução dessa pena na falta de tal consentimento.

29

Em primeiro lugar, importa recordar que o Acórdão Raugevicius dizia respeito, como o litígio no processo principal, a um pedido de extradição emitido por um Estado terceiro com o qual a União não celebrou um acordo de extradição. O Tribunal de Justiça declarou, no n.o 45 desse acórdão que, embora na falta de regras de direito da União que regem a extradição de nacionais dos Estados‑Membros para Estados terceiros, os Estados‑Membros continuem a ser competentes para adotar tais regras, esses mesmos Estados‑Membros são obrigados a exercer essa competência no respeito pelo direito da União, designadamente a proibição de discriminação prevista no artigo 18.o TFUE bem como a liberdade de circular e de residir no território dos Estados‑Membros garantida pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE.

30

Ora, em razão da sua qualidade de cidadão da União, um nacional de um Estado‑Membro que resida legalmente no território de outro Estado‑Membro tem o direito de invocar o artigo 21.o, n.o 1, TFUE e está abrangido pelo âmbito de aplicação dos Tratados, na aceção do artigo 18.o TFUE, que contém o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade [Acórdão de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Berlin (Extradição para a Ucrânia), C‑398/19, EU:C:2020:1032, n.o 30 e jurisprudência referida].

31

A circunstância de esse nacional de um Estado‑Membro, diferente do Estado‑Membro ao qual foi submetido um pedido de extradição, possuir igualmente a nacionalidade do país terceiro autor desse pedido não impede esse nacional de invocar os direitos e liberdades conferidos pelo estatuto de cidadão da União, nomeadamente os garantidos pelos artigos 18.o e 21.o TFUE. Com efeito, o Tribunal tem afirmado repetidamente que a dupla nacionalidade de um Estado‑Membro e de um país terceiro não pode privar o interessado destes direitos e liberdades [v., neste sentido, Acórdãos Raugevicius, n.o 29, e de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Berlin (Extradição para a Ucrânia), C‑398/19, EU:C:2020:1032, n.o 32].

32

No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que S.M., que é titular, nomeadamente da nacionalidade croata, exerceu, na sua qualidade de cidadão da União, o seu direito, previsto no artigo 21.o, n.o 1, TFUE, de circular e de permanecer livremente noutro Estado‑Membro, no caso em apreço a República Federal da Alemanha, pelo que a sua situação se insere no âmbito de aplicação dos Tratados, na aceção do artigo 18.o TFUE, apesar de ser igualmente nacional do país terceiro autor do pedido de extradição que lhe diz respeito.

33

Em segundo lugar, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, as regras nacionais de extradição de um Estado‑Membro que introduzem, como no litígio no processo principal, uma diferença de tratamento consoante a pessoa procurada seja um nacional desse Estado‑Membro ou um nacional de outro Estado‑Membro, na medida em que levam a não conceder aos nacionais de outros Estados‑Membros que residem legalmente no território do Estado requerido a proteção contra a extradição de que gozam os nacionais deste último Estado‑Membro, são suscetíveis de afetar a liberdade de circular e de residir dos primeiros no território dos Estados‑Membros [v., neste sentido, Acórdãos Raugevicius, n.o 28, e de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Berlin (Extradição para a Ucrânia), C‑398/19, EU:C:2020:1032, n.o 39 e jurisprudência referida].

34

Daqui resulta que, numa situação como a do processo principal, a desigualdade de tratamento que consiste em permitir a extradição de um cidadão da União, nacional de um Estado‑Membro diferente do Estado‑Membro requerido, se traduz numa restrição à liberdade de circular e de residir no território dos Estados‑Membros, na aceção do artigo 21.o TFUE [Acórdãos Raugevicius, n.o 30, e de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Berlin (Extradição para a Ucrânia), C‑398/19, EU:C:2020:1032, n.o 40 e jurisprudência referida].

35

Tal restrição só pode ser justificada se se basear em considerações objetivas e se for proporcionada ao objetivo legitimamente prosseguido pelo direito nacional [Acórdãos Raugevicius, n.o 31, e de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Berlin (Extradição para a Ucrânia), C‑398/19, EU:C:2020:1032, n.o 41 e jurisprudência referida].

36

Neste contexto, o Tribunal de Justiça reconheceu que o objetivo de evitar o risco de impunidade das pessoas que cometeram uma infração deve ser considerado legítimo e permite justificar uma medida restritiva de uma liberdade fundamental, como a prevista no artigo 21.o TFUE, desde que esta medida seja necessária à proteção dos interesses que visa garantir e apenas se esses objetivos não puderem ser alcançados através de medidas menos restritivas [Acórdãos Raugevicius, n.o 32, e de 17 de dezembro de 2020, Generalstaatsanwaltschaft Berlin (Extradição para a Ucrânia), C‑398/19, EU:C:2020:1032, n.o 42 e jurisprudência referida].

37

A este respeito, embora o princípio ne bis in idem, tal como é garantido pelo direito nacional, possa constituir um obstáculo ao procedimento criminal instaurado por um Estado‑Membro contra pessoas visadas por um pedido de extradição para fins de execução de uma pena, também é verdade que, para evitar o risco de deixar essas pessoas impunes, existem mecanismos no direito nacional e/ou no direito internacional que permitem que essas pessoas cumpram as suas penas, nomeadamente, no Estado do qual são nacionais, aumentando, assim, as probabilidades de reintegração social após o cumprimento das suas penas (v., neste sentido, Acórdão Raugevicius, n.o 36).

38

É esse o caso, designadamente, da Convenção relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, de que todos os Estados‑Membros, tal como a Bósnia‑Herzegovina, são partes. Com efeito, esta convenção permite a uma pessoa que foi condenada no território de um Estado signatário da referida convenção, em conformidade com o artigo 2.o desta última, pedir para ser transferida para o território do seu país de origem para aí cumprir a condenação que lhe foi infligida, indicando os considerandos da mesma convenção que o objetivo dessa transferência é, designadamente, favorecer a reinserção social das pessoas condenadas, ao permitir aos estrangeiros que são privados da sua liberdade em consequência de uma infração penal que cumpram a sua condenação no seu meio social de origem (v., neste sentido, Acórdão Raugevicius, n.o 37 e jurisprudência referida).

39

Além disso, certos Estados‑Membros, como a República Federal da Alemanha, preveem a possibilidade de o auxílio judiciário mútuo no âmbito de um processo penal ser prestado sob a forma de execução de uma pena decretada no estrangeiro.

40

Ora, como sublinhou o advogado‑geral no n.o 50 das suas conclusões, no caso de um pedido de extradição para execução de uma pena privativa de liberdade, a medida alternativa à extradição, menos atentatória do exercício do direito à livre circulação e permanência de um cidadão da União que reside de modo permanente no Estado‑Membro requerido, consiste precisamente na possibilidade, quando esta exista no direito do Estado‑Membro requerido, de essa pena ser executada no território deste Estado‑Membro.

41

Acrescente‑se que, quando essa possibilidade existe, o Tribunal de Justiça declarou que, tendo em conta o objetivo de evitar o risco de impunidade, os nacionais do Estado‑Membro requerido, por um lado, e os nacionais de outros Estados‑Membros que residem de modo permanente nesse Estado‑Membro requerido e que demonstrem assim um grau de integração certo na sociedade deste último, por outro, se encontram numa situação comparável (v., neste sentido, Acórdão Raugevicius, n.o 46 e jurisprudência referida).

42

Nestas condições, os artigos 18.o e 21.o TFUE exigem que os nacionais de outros Estados‑Membros que residam de modo permanente no Estado‑Membro requerido e que sejam objeto de um pedido de extradição de um Estado terceiro, para execução de uma pena privativa de liberdade, possam cumprir a sua pena no território desse Estado‑Membro nas mesmas condições que os nacionais deste último.

43

No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio parte da premissa que S.M., que vive no território da República Federal da Alemanha, com a sua mulher, desde 2017 e aí trabalha desde 2020, deve ser considerado um cidadão da União que reside de modo permanente nesse Estado‑Membro.

44

Além disso, segundo as informações prestadas ao Tribunal de Justiça pelo órgão jurisdicional de reenvio, é possível a execução, no território alemão, da pena aplicada a S.M. na Bósnia‑Herzegovina. Com efeito, em conformidade com o § 48 e o § 57, n.o 1, da IRG, é permitida a execução no território alemão de uma pena decretada num Estado terceiro desde que esse Estado terceiro dê o seu consentimento.

45

Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio alega que, no caso em apreço, a execução desta pena no território alemão levaria a República Federal da Alemanha a violar a obrigação de extradição que incumbe ao Estado‑Membro requerido por força da Convenção Europeia de Extradição.

46

A este respeito, indica que o termo «nacionais», na aceção da Convenção Europeia de Extradição, abrange, no que se refere à República Federal da Alemanha, apenas as pessoas que possuam a nacionalidade desse Estado‑Membro, em conformidade com a declaração feita por este último, nos termos do artigo 6.o, n.o 1, alínea b), desta convenção. Nestas condições, diferentemente do processo que deu origem ao Acórdão Raugevicius, uma eventual recusa da República Federal da Alemanha de extraditar S.M. para a Bósnia‑Herzegovina está em contradição com as obrigações que a mesma convenção impõe a esse Estado‑Membro.

47

À luz destas considerações, importa precisar, em terceiro lugar, que, como salientou o advogado‑geral no n.o 32 das suas conclusões, a jurisprudência do Tribunal de Justiça decorrente do Acórdão Raugevicius não consagrou um direito automático e absoluto, para os cidadãos da União, a não serem extraditados para fora do território da União.

48

Com efeito, como resulta dos n.os 35 a 42 do presente acórdão, perante uma regra nacional que, como no litígio no processo principal, introduz uma diferença de tratamento entre os nacionais do Estado‑Membro requerido e os cidadãos da União que aí residem de modo permanente ao proibir apenas a extradição dos primeiros, esse Estado‑Membro está sujeito a uma obrigação de procurar ativamente a existência de uma medida alternativa à extradição, menos atentatória do exercício dos direitos e liberdades que os artigos 18.o e 21.o TFUE conferem a esses cidadãos da União, quando estes são objeto de um pedido de extradição emitido por um Estado terceiro.

49

Assim, quando a aplicação dessa medida alternativa à extradição consiste, como no caso em apreço, na possibilidade de os cidadãos da União que residem de modo permanente no Estado‑Membro requerido cumprirem a sua pena nesse Estado‑Membro nas mesmas condições que os nacionais do referido Estado‑Membro, mas essa aplicação está condicionada à obtenção do consentimento do Estado terceiro autor do pedido de extradição, os artigos 18.o e 21.o TFUE impõem ao Estado‑Membro requerido que procure ativamente o consentimento desse Estado terceiro. Para o efeito, o Estado‑Membro requerido deve utilizar todos os mecanismos de cooperação e de assistência existentes em matéria penal de que dispõe no quadro das suas relações com o referido Estado terceiro.

50

Caso o Estado terceiro autor do pedido de extradição consinta que a pena privativa de liberdade seja executada no território do Estado‑Membro requerido, este Estado‑Membro pode permitir aos cidadãos da União que são objeto desse pedido e que residam de modo permanente nesse território que aí cumpram a sua pena e, assim, assegurar um tratamento idêntico ao que reserva aos seus próprios nacionais em matéria de extradição.

51

Nesse caso, decorre dos elementos fornecidos ao Tribunal de Justiça que a aplicação desta medida alternativa à extradição pode igualmente permitir ao Estado‑Membro requerido exercer as suas competências em conformidade com as obrigações decorrentes da convenção que o vinculam ao Estado terceiro autor do pedido de extradição. Com efeito, sem prejuízo das verificações a efetuar pelo órgão jurisdicional de reenvio, o consentimento desse Estado terceiro para a execução da totalidade da pena visada pelo pedido de extradição no território do Estado‑Membro requerido é, em princípio, suscetível de tornar supérflua a execução desse pedido.

52

Por conseguinte, na hipótese de, no caso em apreço, a República Federal da Alemanha conseguir obter o consentimento da Bósnia‑Herzegovina para que S.M. cumpra a pena aplicada nesse Estado terceiro no território do referido Estado‑Membro, a aplicação dessa medida alternativa à extradição exigida pelos artigos 18.o e 21.o TFUE não conduziria necessariamente a que este último violasse as obrigações que a Convenção Europeia de Extradição lhe impõe em relação ao referido Estado terceiro, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

53

Se, em contrapartida, não obstante a aplicação dos mecanismos referidos no n.o 49 do presente acórdão, esse Estado terceiro não consentir que a pena privativa de liberdade em causa seja cumprida no território do Estado‑Membro requerido, a medida alternativa à extradição exigida pelos artigos 18.o e 21.o TFUE não pode ser aplicada. Nesta hipótese, esse Estado‑Membro pode extraditar a pessoa em questão, em conformidade com as obrigações que lhe incumbem em aplicação dessa convenção, desde que a recusa dessa extradição não permita, neste caso, evitar o risco de impunidade dessa pessoa.

54

Nesta mesma hipótese, a extradição da pessoa em questão constitui, à luz desse objetivo, uma medida necessária e proporcionada para alcançar o referido objetivo, pelo que a restrição do direito de circular e de permanecer livremente no território dos Estados‑Membros, na aceção do artigo 21.o TFUE, que está em causa no processo principal, afigura‑se justificada, tendo em conta a jurisprudência citada nos n.os 35 e 36 do presente acórdão.

55

Em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o Estado‑Membro requerido deve, contudo, verificar se essa extradição não viola os direitos consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nomeadamente no seu artigo 19.o (Acórdão Raugevicius, n.o 49; v., igualmente, neste sentido, Acórdão de 2 de abril de 2020, Ruska Federacija, C‑897/19 PPU, EU:C:2020:262, n.o 64 e jurisprudência referida).

56

Tendo em conta todas as considerações anteriores, há que responder à questão submetida que os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que:

impõem que um Estado‑Membro, ao qual é apresentado um pedido de extradição formulado por um Estado terceiro para execução de uma pena privativa de liberdade de um nacional de outro Estado‑Membro que reside de modo permanente no primeiro Estado‑Membro, cujo direito nacional proíbe apenas a extradição dos seus próprios nacionais para fora da União Europeia e prevê a possibilidade de essa pena ser executada no seu território desde que o Estado terceiro o consinta, procure ativamente esse consentimento do Estado terceiro autor do pedido de extradição utilizando todos os mecanismos de cooperação e de assistência em matéria penal de que dispõe no quadro das suas relações com esse Estado terceiro;

se esse consentimento não for obtido, não se opõem a que, nessas circunstâncias, o referido primeiro Estado‑Membro proceda à extradição desse cidadão da União, em conformidade com as obrigações que lhe incumbem em aplicação de uma convenção internacional, desde que essa extradição não viole os direitos garantidos pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Quanto às despesas

57

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

Os artigos 18.o e 21.o TFUE devem ser interpretados no sentido de que:

 

impõem que um Estado‑Membro, ao qual é apresentado um pedido de extradição formulado por um Estado terceiro para execução de uma pena privativa de liberdade de um nacional de outro Estado‑Membro que reside de modo permanente no primeiro Estado‑Membro, cujo direito nacional proíbe apenas a extradição dos seus próprios nacionais para fora da União Europeia e prevê a possibilidade de essa pena ser executada no seu território desde que o Estado terceiro o consinta, procure ativamente esse consentimento do Estado terceiro autor do pedido de extradição utilizando todos os mecanismos de cooperação e de assistência em matéria penal de que dispõe no quadro das suas relações com esse Estado terceiro;

se esse consentimento não for obtido, não se opõem a que, nessas circunstâncias, o referido primeiro Estado‑Membro proceda à extradição desse cidadão da União, em conformidade com as obrigações que lhe incumbem em aplicação de uma convenção internacional, desde que essa extradição não viole os direitos garantidos pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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