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Document 62021CJ0215

Acórdão do Tribunal de Justiça (Nona Secção) de 22 de setembro de 2022.
Zulima contra Servicios prescriptor y medios de pagos EFC SAU.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Juzgado de Primera Instancia n.° 2 de Las Palmas de Gran Canaria.
Reenvio prejudicial — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Contrato de crédito renovável — Caráter abusivo da cláusula relativa à taxa de juro remuneratória — Ação intentada por um consumidor para declaração de nulidade desse contrato — Satisfação extrajudicial das pretensões desse consumidor — Despesas efetuadas que devem ser suportadas pelo referido consumidor — Princípio da efetividade — Regulamentação nacional suscetível de dissuadir o mesmo consumidor de exercer os direitos conferidos pela Diretiva 93/13/CEE.
Processo C-215/21.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:723

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

22 de setembro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Contrato de crédito renovável — Caráter abusivo da cláusula relativa à taxa de juro remuneratória — Ação intentada por um consumidor para declaração de nulidade desse contrato — Satisfação extrajudicial das pretensões desse consumidor — Despesas efetuadas que devem ser suportadas pelo referido consumidor — Princípio da efetividade — Regulamentação nacional suscetível de dissuadir o mesmo consumidor de exercer os direitos conferidos pela Diretiva 93/13/CEE»

No processo C‑215/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Juzgado de Primera Instancia n.o 2 de Las Palmas de Gran Canaria (Tribunal de Primeira Instância n.o 2 de Las Palmas da Grande Canária, Espanha), por Decisão de 12 de março de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de abril de 2021, no processo

Zulima

contra

Servicios Prescriptor y Medios de Pagos EFC SAU,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: S. Rodin (relator), presidente de secção, J.‑C. Bonichot e L. S. Rossi, juízes,

advogado‑geral: A. M. Collins,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação de Zulima, por F. M. Montesdeoca Santana, procurador, e Y. Pulido González, abogada,

em representação do Governo espanhol, por J. Rodríguez de la Rúa Puig, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por J. Baquero Cruz e N. Ruiz García, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 6.o, n.o 1, e do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Zulima à Servicios Prescriptor y Medios de Pagos EFC SAU, organismo de crédito anteriormente denominado «Evofinance EFC SAL», a propósito das despesas efetuadas no âmbito de um processo movido pela demandante no processo principal com vista a obter a declaração de nulidade de um contrato de crédito ao consumo renovável devido, nomeadamente, ao caráter abusivo de uma das cláusulas deste.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O artigo 6.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 dispõe:

«Os Estados‑Membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.»

4

O artigo 7.o, n.os 1 e 2, dessa diretiva dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.

2.   Os meios a que se refere o n.o 1 incluirão disposições que habilitem as pessoas ou organizações que, segundo a legislação nacional, têm um interesse legítimo na defesa do consumidor, a recorrer, segundo o direito nacional, aos tribunais ou aos órgãos administrativos competentes para decidir se determinadas cláusulas contratuais, redigidas com vista a uma utilização generalizada, têm ou não um caráter abusivo, e para aplicar os meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização dessas cláusulas.»

Direito espanhol

5

O artigo 1303.o do Código Civil dispõe:

«Quando uma obrigação estipulada num contrato for declarada nula, os contratantes devem restituir reciprocamente as coisas que foram objeto desse contrato, os frutos produzidos por estas e o preço pago em contrapartida dessas coisas, acrescido de juros, salvo nos casos previstos nos artigos seguintes.»

6

O artigo 22.o da Ley 1/2000, de Enjuiciamiento Civil (Lei 1/2000, que aprova o Código de Processo Civil), de 7 de janeiro de 2000 (BOE n.o 7, de 8 de janeiro de 2000, p. 575), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «LEC»), intitulado «Extinção da instância por satisfação extrajudicial ou de desaparecimento do objeto do litígio. Caso especial de impedimento do despejo», dispõe:

«1.   Se, em razão de circunstâncias supervenientes a uma ação ou a um pedido reconvencional, deixar de existir um interesse legítimo em obter a proteção jurisdicional pedida, porque os pedidos do demandante e, se for caso disso, da parte que apresentou o pedido reconvencional foram satisfeitos fora do processo ou por qualquer outra razão, as partes serão informadas desse facto e, com o acordo destas, o Letrado de la Administración de Justicia (secretário) ordena extinção da instância sem condenação de qualquer das partes nas despesas.

2.   Se uma das partes mantiver que esse interesse legítimo subsiste, alegando fundamentadamente que os seus pedidos não foram satisfeitos por via extrajudicial ou invocando outros argumentos, o secretário convida as partes, no prazo de dez dias, a comparecerem perante o juiz, o qual decide apenas sobre esta questão.

No prazo de dez dias contados do termo dessa comparência, o juiz decide por despacho se o processo deve ou não prosseguir, condenando nas despesas da instância aquele cujo pedido tenha sido indeferido.

3.   Não cabe recurso do despacho que ordena o prosseguimento do processo. Só da decisão de encerrar o processo cabe recurso.»

7

O artigo 394.o, n.o 1, da LEC dispõe:

«1.   Nos processos declarativos, as despesas em primeira instância são suportadas pela parte cujos pedidos foram integralmente julgados improcedentes, exceto se o tribunal decidir fundamentadamente que o processo suscitava sérias dúvidas quanto à matéria de facto ou de direito.

Para apreciar, para efeitos de uma condenação nas despesas, se o processo suscitava sérias dúvidas em matéria de direito, há que tomar em consideração a jurisprudência assente em processos semelhantes.»

8

O artigo 395.o, n.os 1 e 2, da LEC dispõe:

«1.   Quando houver confissão do pedido antes de qualquer contestação, não há que condenar nenhuma das partes nas despesas da instância, a menos que o tribunal verifique, de maneira devidamente fundamentada, a má‑fé do demandado.

Entender‑se‑á existir má‑fé do demandado se, antes da propositura da ação, o demandante lhe tiver dirigido uma interpelação para o pagamento probatória e justificada, se tiver sido iniciado um processo de mediação ou ainda se lhe tiver sido dirigido um pedido de conciliação.

2.   Quando ocorrer confissão do pedido depois de este ter sido contestado, aplica‑se o n.o 1 do artigo anterior.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

9

Em 21 de setembro de 2016, as partes no processo principal celebraram um contrato renovável de crédito ao consumo. Em março de 2020, a demandante no processo principal interpelou a demandada a rescindir esse contrato de crédito e a reembolsar‑lhe as quantias que esta última tinha indevidamente recebido, considerando que os juros do referido contrato de crédito eram usurários. A demandada no processo principal recusou‑se a dar seguimento a essa interpelação.

10

A demandante no processo principal propôs igualmente no órgão jurisdicional de reenvio uma ação de declaração de nulidade do mesmo contrato de crédito. A título principal, invocava o caráter usurário, na aceção da legislação nacional, da taxa de juro nele prevista e pedia o reembolso das quantias pagas que excedessem o capital mutuado em aplicação dessa taxa de juro. A título subsidiário, invocava o caráter abusivo, na aceção da Diretiva 93/13, da cláusula relativa à taxa de juro remuneratória, por falta de transparência.

11

O tribunal de reenvio julgou a ação admissível. No prazo fixado à demandada no processo principal para apresentar as suas observações a respeito da referida ação, esta última pediu o cancelamento do processo, alegando que a recorrente no processo principal tinha obtido satisfação das suas pretensões por via extrajudicial e que tinha rescindido o contrato de crédito renovável em causa, indicando que a recorrente no processo principal já não podia efetuar nenhuma operação com o correspondente cartão de crédito e que tinha cancelado o saldo devedor relativo aos juros e outras comissões. A demandada no processo principal pediu também para não ser condenada nas despesas. Com efeito, nos termos do artigo 22.o, n.o 1, da LEC, se os pedidos forem satisfeitos fora do processo, este é, em princípio, extinto sem condenação de nenhuma das partes nas despesas da instância.

12

Através da medida de organização do processo de 11 de setembro de 2020, o órgão jurisdicional de reenvio notificou a recorrente no processo principal do pedido de cancelamento, apresentado pela demandada no processo principal e baseado na perda do interesse legítimo dessa demandante em obter uma proteção jurisdicional efetiva.

13

A demandante no processo principal alegou que esse pedido de cancelamento era improcedente, uma vez que, em seu entender, a demandada no processo principal não tinha satisfeito todos os seus pedidos, nomeadamente a declaração de nulidade do contrato renovável de crédito ao consumo em causa, por usura e para pagamento das despesas. A demandante no processo principal sublinhou ainda que, antes de propor uma ação no órgão jurisdicional de reenvio, tinha, sem sucesso, interpelado a demandada no processo principal para rescindir esse contrato de crédito e para lhe reembolsar os montantes pagos a título de juros.

14

Tendo em conta esse desacordo entre as partes no processo principal, estas foram convidadas a comparecer perante o órgão jurisdicional de reenvio, em aplicação do artigo 22.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da LEC. Ouvidas as observações dessas partes e examinadas as provas por elas apresentadas, esse órgão jurisdicional considerou que os pedidos da demandante no processo principal tinham sido satisfeitos fora do processo, na medida em que a recorrida no processo principal tinha rescindido o contrato de crédito ao consumo renovável em causa e reembolsado os montantes indevidamente pagos. Considerou ainda, por um lado, que, antes de propor a ação que lhe foi submetida, a demandante no processo principal interpelou várias vezes a demandada no processo principal por telecópia enviada de um posto de correios e cuja data e, inclusivamente, conteúdo fazem fé (Burofax) a fim de obter a rescisão desse contrato de crédito e o reembolso das quantias que lhe tinha indevidamente pago, bem como, por outro lado, que a demandada no processo principal se tinha recusado a dar‑lhe seguimento.

15

Uma vez que os pedidos da demandante no processo principal foram satisfeitos extrajudicialmente, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, por força da regulamentação nacional em causa, não pode condenar nenhuma das partes nas despesas. Indica ainda que também não pode ter em conta a existência de interpelações anteriores à propositura da ação que deu origem ao litígio no processo principal a fim de apreciar a eventual má‑fé da demandada no processo principal e de a condenar nas despesas efetuadas pela demandante no processo principal. Neste contexto, na medida em que a recorrente no processo principal tem a qualidade de «consumidor», na aceção da Diretiva 93/13, e, no processo principal, tenta fazer valer direitos decorrentes dessa diretiva, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à conformidade dessa legislação nacional com a referida diretiva.

16

Nestas condições o Juzgado de Primera Instancia n.o 2 de Las Palmas de Gran Canaria (Tribunal de Primeira Instância n.o 2 de Las Palmas da Grande Canária, Espanha) suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial seguinte:

«Nas reclamações dos consumidores contra cláusulas abusivas com base na [Diretiva 93/13] e no caso de ocorrer uma satisfação extrajudicial [da pretensão desses consumidores], o artigo 22.o da [LEC] (Código de Processo Civil) pressupõe que os consumidores devem assumir as custas processuais sem ter em conta a atuação prévia do profissional que não atendeu às anteriores interpelações. Esta legislação processual espanhola constitui um obstáculo significativo que pode dissuadir o consumidor de exercer o seu direito a uma fiscalização judicial efetiva sobre o caráter potencialmente abusivo da cláusula contratual, sendo contrária ao princípio da efetividade e aos artigos 6.o, n.o 1, e 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13?»

Quanto à competência do Tribunal de Justiça

17

A título preliminar, a demandante no processo principal e o Governo espanhol invocam incompetência do Tribunal de Justiça para conhecer da questão submetida, na medida em que a situação jurídica na origem do litígio no processo principal não pertence ao âmbito de aplicação do direito da União.

18

Segundo jurisprudência constante, cabe ao Tribunal de Justiça examinar as condições em que é chamado a pronunciar‑se pelo juiz nacional a fim de verificar a sua própria competência (Acórdão de 15 de julho de 2021, The Department for Communities in Northern Ireland, C‑709/20, EU:C:2021:602, n.o 45 e jurisprudência referida).

19

A este respeito, resulta do artigo 19.o, n.o 3, alínea b), TUE e do artigo 267.o, primeiro parágrafo, TFUE que o Tribunal de Justiça tem competência para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação do direito da União ou sobre a validade dos atos adotados pelas instituições da União. O segundo parágrafo desse artigo 267.o TFUE precisa, em substância, que sempre que uma questão suscetível de ser objeto de um reenvio prejudicial seja suscitada num processo pendente num órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, esse órgão jurisdicional pode, se considerar que é necessária uma decisão sobre essa questão para proferir a sua decisão, pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre essa questão (Acórdão de 15 de julho de 2021, The Department for Communities in Northern Ireland, C‑709/20, EU:C:2021:602, n.o 46).

20

No caso, é certo que o regime de repartição das despesas em causa é aplicável aos processos instaurados nos tribunais espanhóis e, em princípio, pertence, portanto, ao direito processual espanhol.

21

Contudo, resulta do pedido de decisão prejudicial que o objeto do litígio no processo principal faz parte de um domínio regido pelo direito da União. Com efeito, este litígio tem por objeto o caráter abusivo, na aceção da Diretiva 93/13, de várias cláusulas de um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor e, com a questão submetida, o órgão jurisdicional de reenvio submete ao Tribunal de Justiça, em substância, a questão de saber se o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, dessa diretiva devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma disposição do direito processual nacional que regula a repartição das despesas, a saber, o artigo 22.o da LEC. Em especial, o órgão jurisdicional de reenvio convida o Tribunal de Justiça a examinar se essa disposição do direito nacional pode constituir um obstáculo substancial suscetível de desencorajar os consumidores de exercerem os seus direitos, violando disposições do direito da União, à luz do princípio da efetividade. O exercício dos direitos dos consumidores decorrentes da Diretiva 93/13 depende do direito processual dos Estados‑Membros. Assim, o direito processual nacional em causa é suscetível de ter uma influência crucial na efetividade do direito da União.

22

Com efeito, chamado a examinar o conteúdo de procedimentos de injunção de pagamento, o Tribunal de Justiça declarou por diversas vezes que os custos que uma ação judicial implica podem dissuadir os consumidores de deduzirem a oposição exigida por este tipo de processos (v., neste sentido, Acórdãos de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito, C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 54, de 18 de fevereiro de 2016, Finanmadrid EFC, C‑49/14, EU:C:2016:98, n.o 52, e de 13 de setembro de 2018, Profi Credit Polska, C‑176/17, EU:C:2018:711, n.o 69).

23

Ora, embora a aplicação dos regimes de repartição das despesas pertença à ordem jurídica interna dos Estados‑Membros por força do princípio da autonomia processual destes últimos, as modalidades dessa aplicação devem, no entanto, preencher uma dupla condição. Assim, não devem ser menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes submetidas ao direito interno (princípio da equivalência) e não devem impossibilitar, na prática, ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos aos consumidores pelo direito da União (princípio da efetividade) (v., neste sentido, Acórdão de 17 de julho de 2014, Sánchez Morcillo e Abril García, C‑169/14, EU:C:2014:2099, n.o 31).

24

Nestas condições, o Tribunal de Justiça é competente para se pronunciar sobre o presente pedido de decisão prejudicial.

Admissibilidade da questão prejudicial

25

A demandante no processo principal e o Governo espanhol propõem ao Tribunal de Justiça que declare inadmissível a questão submetida, uma vez que esta questão já foi decidida na jurisprudência nacional. Esta jurisprudência permite aplicar um «critério de correção» que permite tomar em consideração a eventual má‑fé do profissional e demandado na instância e, nesse caso, condená‑lo nas despesas, mesmo em caso de satisfação extrajudicial das pretensões do demandante.

26

A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, no âmbito de um processo nos termos do artigo 267.o TFUE, que se baseia numa nítida separação de funções entre os tribunais nacionais e o Tribunal de Justiça, o juiz nacional tem competência exclusiva para apurar e apreciar os factos do litígio no processo principal assim como para interpretar e aplicar o direito nacional. De igual modo, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito, C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 76 e jurisprudência referida).

27

Assim, a rejeição pelo Tribunal de Justiça de um pedido de decisão prejudicial submetido por um órgão jurisdicional nacional só é possível se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 14 de junho de 2012, Banco Español de Crédito, C‑618/10, EU:C:2012:349, n.o 77 e jurisprudência referida).

28

Manifestamente, não é o caso no presente processo.

29

Com efeito, há que observar a este respeito que o pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 6.o, n.o 1, e do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 e visa permitir ao órgão jurisdicional de reenvio pronunciar‑se sobre a compatibilidade do artigo 22.o da LEC, conforme interpretado pelos tribunais nacionais, com estas disposições dessa diretiva.

30

Além disso, resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que, em aplicação do artigo 22.o da LEC, a demandante no processo principal, que é um consumidor abrangido pela Diretiva 93/13, corre o risco de ter de suportar as despesas relativas à ação que intentou contra cláusulas abusivas do contrato de crédito renovável em causa, apesar de ter obtido satisfação quanto ao mérito pela via extrajudicial junto da instituição de crédito em causa.

31

Em face destas considerações, há que considerar admissível a questão.

Quanto ao mérito

32

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, lidos à luz do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional, como o artigo 22.o da LEC, nos termos da qual, no âmbito de um processo judicial relativo à declaração do caráter abusivo de uma cláusula de um contrato entre um profissional e um consumidor, em caso de satisfação extrajudicial das suas pretensões, esse consumidor deve suportar as suas despesas relativas ao processo judicial que foi obrigado a mover para fazer valer os direitos que lhe são conferidos pela Diretiva 93/13, sem se ter em conta o comportamento anterior do profissional em causa, que não deu seguimento às interpelações que lhe foram previamente dirigidas por esse consumidor.

33

De acordo com jurisprudência constante, na falta de regulamentação específica da União na matéria, as modalidades de execução da proteção dos consumidores prevista na Diretiva 93/13 integram o ordenamento jurídico interno dos Estados‑Membros, por força do princípio da autonomia processual destes últimos. Contudo, essas modalidades não devem ser menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) nem ser concebidas de modo a, na prática, tornarem impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade) (v., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2020, Caixabank e Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, C‑224/19 e C‑259/19, EU:C:2020:578, n.o 83, e de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance, C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.o 27 e jurisprudência referida).

34

A este respeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a repartição das despesas de um processo judicial nos órgãos jurisdicionais nacionais é abrangida pela autonomia processual dos Estados‑Membros, sob reserva do respeito pelos princípios da equivalência e da efetividade (Acórdão de 16 de julho de 2020, Caixabank e Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, C‑224/19 e C‑259/19, EU:C:2020:578, n.o 95).

35

No que respeita ao princípio da efetividade, o único visado no presente processo, refira‑se que cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, visto como um todo, a tramitação deste e as suas particularidades perante as várias instâncias nacionais. Nesta perspetiva, há que tomar em consideração, sendo caso disso, os princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, como a proteção dos direitos de defesa, o princípio da segurança jurídica e a boa marcha do processo (v., nomeadamente, Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance, C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.o 28 e jurisprudência referida).

36

Além disso, o Tribunal de Justiça precisou que a obrigação de os Estados‑Membros garantirem a efetividade dos direitos que as partes retiram do direito da União implica, nomeadamente no que respeita aos direitos decorrentes da Diretiva 93/13, uma exigência de tutela jurisdicional efetiva, também consagrada no artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que é válida, nomeadamente, no que respeita à definição das regras processuais relativas às ações judiciais baseadas nesses direitos (v., neste sentido, Acórdão de 10 de junho de 2021, BNP Paribas Personal Finance, C‑776/19 a C‑782/19, EU:C:2021:470, n.o 29 e jurisprudência referida).

37

A Diretiva 93/13 confere ao consumidor o direito de pedir em juízo a declaração do caráter abusivo de uma cláusula contratual e de afastar a aplicação desta. A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que fazer depender o destino da repartição das despesas de tal processo apenas dos montantes indevidamente pagos e cuja restituição é ordenada é suscetível de dissuadir o consumidor de exercer esse direito, tendo em conta as despesas que uma ação judicial implica (v. Acórdão de 16 de julho de 2020, Caixabank e Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, C‑224/19 e C‑259/19, EU:C:2020:578, n.o 98, e jurisprudência referida).

38

Assim, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, bem como o princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a um regime que permite que uma parte das despesas processuais recaia sobre o consumidor, segundo o nível dos montantes indevidamente pagos que lhe são restituídos na sequência da declaração da nulidade de uma cláusula contratual fundada no seu caráter abusivo, tendo em conta que tal regime cria um obstáculo substancial suscetível de desencorajar os consumidores de exercerem o seu direito a uma fiscalização jurisdicional efetiva do caráter potencialmente abusivo de cláusulas contratuais conforme conferido pela Diretiva 93/13 (Acórdão de 16 de julho de 2020, Caixabank e Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, C‑224/19 e C‑259/19, EU:C:2020:578, n.o 99).

39

No caso, o órgão jurisdicional de reenvio refere que, em aplicação do artigo 22.o da LEC, não pode condenar nas despesas o demandado no processo principal, uma vez que os pedidos da recorrente no processo principal tinham sido satisfeitos fora do processo jurisdicional nele pendente. Segundo esse órgão jurisdicional, o mesmo se aplica quando se verifique que o demandado no processo principal agiu de má‑fé e que, por esse facto, o demandante no processo principal foi obrigado a fazer valer os seus direitos através de uma ação judicial, uma vez que o artigo 22.o da LEC não permite ao juiz da causa ter em conta essas circunstâncias para derrogar a regra de repartição das despesas nele prevista.

40

A este respeito, refira‑se que, no âmbito dos processos típicos movidos nos termos do artigo 6.o, n.o 1, e do artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, o consumidor é o demandante e o demandado é o profissional, o que implica que se este último decidir satisfazer os pedidos do consumidor fora do processo jurisdicional, esse consumidor deve, em aplicação da regulamentação espanhola descrita no número anterior do presente acórdão, suportar sempre os custos desse processo e mesmo no caso de esse profissional estar de má‑fé.

41

Não se pode deixar de observar que tal legislação, que impõe esse risco ao referido consumidor, cria um obstáculo substancial suscetível de o desencorajar de exercer o seu direito a uma fiscalização jurisdicional efetiva do caráter potencialmente abusivo de cláusulas contratuais que figuram no contrato em causa e, em última análise, equivale a violar o princípio da efetividade.

42

Nas suas observações no Tribunal de Justiça, o Governo espanhol sustenta, porém, que o artigo 22.o da LEC pode ter interpretação conforme com as exigências que decorrem desse princípio. Com efeito, esse artigo pode ser interpretado no sentido de que cabe ao julgador nacional ter em conta a eventual má‑fé do profissional em causa e, sendo caso disso, condená‑lo no pagamento das despesas do processo judicial.

43

Há que considerar que tal interpretação do direito nacional é compatível com o princípio da efetividade, na medida em que permite não desencorajar os consumidores de exercerem os direitos que a Diretiva 93/13 lhes confere. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se tal interpretação conforme com o direito da União é possível.

44

Em face de todas estas considerações, o artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, lidos à luz do princípio da efetividade, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual, no âmbito de um processo judicial relativo à declaração do caráter abusivo de uma cláusula de um contrato entre um profissional e um consumidor, em caso de satisfação extrajudicial das suas pretensões, o consumidor em causa deve suportar as suas despesas, sob reserva de o juiz da causa ter imperativamente em conta a eventual má‑fé do profissional e, sendo caso disso, condenar este no pagamento das despesas relativas ao processo judicial que esse consumidor se viu obrigado a mover para fazer valer os direitos que lhe são conferidos pela Diretiva 93/13.

Quanto às despesas

45

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

 

O artigo 6.o, n.o 1, e o artigo 7.o, n.o 1, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, lidos à luz do princípio da efetividade,

 

devem ser interpretados no sentido de que:

 

não se opõem a uma regulamentação nacional nos termos da qual, no âmbito de um processo judicial relativo à declaração do caráter abusivo de uma cláusula de um contrato entre um profissional e um consumidor, em caso de satisfação extrajudicial das suas pretensões, o consumidor em causa deve suportar as suas despesas, sob reserva de o juiz da causa ter imperativamente em conta a eventual má‑fé do profissional e, sendo caso disso, condenar este no pagamento das despesas relativas ao processo judicial que esse consumidor se viu obrigado a mover para fazer valer os direitos que lhe são conferidos pela Diretiva 93/13.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.

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