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Document 62021CC0296

Conclusões do advogado-geral Campos Sánchez-Bordona apresentadas em 7 de julho de 2022.
Processo intentado por A.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Korkein hallinto-oikeus.
Reenvio prejudicial — Controlo da aquisição e da detenção de armas de fogo — Diretiva 91/477/CEE — Anexo I, parte III — Normas e técnicas de desativação — Regulamento de Execução (UE) 2015/2403 — Controlo e certificação da desativação de armas de fogo — Artigo 3.o — Entidade de controlo aprovada por uma autoridade nacional — Emissão de um certificado de desativação — Entidade que não consta da lista publicada pela Comissão Europeia — Transferência na União Europeia das armas de fogo desativadas — Artigo 7.o — Reconhecimento mútuo.
Processo C-296/21.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:538

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 7 de julho de 2022 ( 1 )

Processo C‑296/21

A

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia)]

«Reenvio prejudicial — Aquisição e detenção de armas de fogo — Transferência na União de armas de fogo desativadas — Diretiva 91/477/CEE — Regulamento de Execução 2015/2403 (UE) — Artigo 7.o, n.o 2 — Reconhecimento mútuo — Artigo 3.o, n.o 1 — Entidade de controlo designada pelos Estados‑Membros — Artigo 3.o, n.o 3 — Entidade de controlo que não consta da lista de organismos de controlo dos Estados‑Membros publicada pela Comissão»

1.

A Diretiva 91/477/CEE ( 2 ), conforme alterada pela Diretiva 2008/51/CE ( 3 ), refletiu, entre outras preocupações do legislador da União, a preocupação de regulamentar o regime da desativação das armas de fogo.

2.

O Regulamento de Execução 2015/2403 (UE) ( 4 ) tem por objetivo garantir a inutilização irreversível das armas de fogo desativadas, como preconizava a Diretiva 2008/51. Para o efeito, exige que uma autoridade competente verifique que a desativação foi efetuada em conformidade com determinadas especificações técnicas (estabelecidas no seu anexo I) e emita ao proprietário da arma um certificado que o comprove.

3.

Em substância, o órgão jurisdicional de reenvio tem duas dúvidas quanto à interpretação da Diretiva 91/477 e do Regulamento de Execução 2015/2403:

Por um lado, pretende saber se uma entidade de direito privado, constituída sob a forma de sociedade de responsabilidade limitada, está habilitada a agir como «entidade de controlo» e a emitir o certificado de desativação.

Por outro lado, pergunta se o reconhecimento, por um Estado‑Membro, dos certificados de desativação das armas emitidos noutro Estado‑Membro está subordinado à inscrição pela Comissão da entidade que os emitiu na lista prevista no artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento de Execução 2015/2403.

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União

1. Diretiva 91/477

4.

Nos termos do artigo 1.o:

«1.   Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “arma de fogo” qualquer arma portátil, com cano, apta a disparar ou que seja concebida para disparar ou que possa ser modificada para disparar balas ou projéteis através da ação de uma carga propulsora, com exceção dos casos referidos na parte III do anexo I. A classificação das armas de fogo consta da parte II do anexo I.

Para efeitos da presente diretiva, um objeto é considerado suscetível de ser modificado para disparar balas ou projéteis através da ação de uma carga propulsora se:

tiver a aparência de uma arma de fogo, e

devido à sua construção ou ao material a partir do qual é fabricado, puder ser modificado para esse efeito.

1‑A.   Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “parte” qualquer componente ou elemento de substituição especificamente concebido para uma arma de fogo e essencial ao seu funcionamento, incluindo o cano, a carcaça ou o carregador, a corrediça ou o tambor, a culatra móvel ou a caixa da culatra, e ainda qualquer dispositivo concebido ou adaptado para reduzir o ruído resultante do disparo.

1‑B.   Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por “componente essencial” o mecanismo de travamento, a câmara e o cano das armas de fogo, que, enquanto objetos separados, estão incluídos na categoria em que tiver sido classificada a arma de fogo de que fazem parte ou a que se destinam.

[…].»

5.

O artigo 4.o prevê:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que qualquer arma de fogo ou parte colocadas no mercado estejam marcadas e registadas nos termos da presente diretiva, ou tenham sido desativadas.

[…].»

6.

No capítulo 3 («Formalidades exigidas para a circulação de armas na Comunidade»), o artigo 14.o dispõe:

«Os Estados‑[M]embros adotarão todas as disposições necessárias para proibir a entrada no respetivo território:

de uma arma de fogo, para além das situações previstas nos artigos 11.o e 12.o e desde que as condições neles previstas sejam respeitadas,

[…].»

7.

Nos termos do anexo I:

«[…]

III.

Na aceção do presente anexo, não estão incluídos na definição de armas de fogo os objetos que correspondem à definição mas que:

a)

Tenham sido tornados definitivamente impróprios para utilização através de uma desativação, garantindo que todas as partes essenciais da arma de fogo foram tornadas definitivamente inutilizáveis e impossíveis de retirar, substituir ou alterar tendo em vista qualquer reativação.

[…]

Os Estados‑Membros tomam medidas para que uma autoridade competente verifique as medidas de desativação a que se refere a alínea a), a fim de garantir que as alterações efetuadas numa arma de fogo a tornem irreversivelmente inutilizável. Os Estados‑Membros preveem, no âmbito da referida verificação, a emissão de um certificado ou de um documento que ateste a desativação da arma de fogo ou a aposição, para este efeito, de uma marca claramente visível na arma de fogo. A Comissão, deliberando nos termos do procedimento a que se refere o n.o 2 do artigo 13.o‑A da presente diretiva, publica orientações comuns sobre as normas e técnicas de desativação a fim de garantir que as armas de fogo desativadas fiquem irreversivelmente inutilizáveis.

[…].»

2. Regulamento de Execução 2015/2403

8.

O artigo 2.o («Pessoas e entidades autorizadas a desativar armas de fogo») tem a seguinte redação:

«A desativação de armas de fogo deve ser realizada por entidades públicas ou privadas ou por indivíduos autorizados a fazê‑lo em conformidade com a legislação nacional.»

9.

O artigo 3.o («Controlo e certificação da desativação de armas de fogo») dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros devem designar uma autoridade competente que verifique que a desativação da arma de fogo foi efetuada em conformidade com as especificações técnicas estabelecidas no anexo I (“entidade de controlo”).

2.   Se a entidade de controlo estiver igualmente autorizada a desativar armas de fogo, os Estados‑Membros devem garantir uma clara separação tanto entre essas tarefas como entre as pessoas que as realizam no âmbito da entidade.

3.   A Comissão deve publicar no seu sítio web uma lista das entidades de controlo designadas pelos Estados‑Membros, que inclua informações detalhadas sobre cada entidade de controlo, o respetivo símbolo e os dados de contacto.

4.   Se a desativação da arma de fogo foi realizada em conformidade com as especificações técnicas estabelecidas no anexo I, a entidade de controlo deve remeter ao proprietário da arma de fogo um certificado de desativação de acordo com o modelo previsto no anexo III. Todas as informações constantes do certificado de desativação devem ser prestadas tanto na língua do Estado‑Membro em que o certificado é emitido como em inglês.

[…].»

10.

O artigo 7.o («Transferência na União das armas de fogo desativadas») prevê:

«1.   As armas de fogo desativadas só podem ser transferidas para outro Estado‑Membro se ostentarem a marcação única comum e forem acompanhadas de um certificado de desativação em conformidade com o presente regulamento.

2.   Os Estados‑Membros devem reconhecer o certificado de desativação emitido por outro Estado‑Membro se o certificado preencher os requisitos do presente regulamento. No entanto, os Estados‑Membros que tiverem introduzido medidas adicionais em conformidade com o artigo 6.o podem exigir uma prova de que a arma de fogo desativada que se destina a ser transferida para o seu território cumpre essas medidas adicionais.»

11.

O artigo 8.o («Requisitos de notificação») dispõe:

«Os Estados‑Membros devem comunicar à Comissão quaisquer medidas que adotem no domínio abrangido pelo presente regulamento […].»

12.

O anexo I («Especificações técnicas para a desativação das armas de fogo») define as operações de desativação que devem ser realizadas a fim de tornar as armas de fogo irreversivelmente inutilizáveis com base em três quadros:

o quadro I enumera os diferentes tipos de armas de fogo;

o quadro II descreve as operações a realizar para tornar cada componente essencial das armas de fogo irreversivelmente inutilizável;

o quadro III estabelece as operações específicas por componente essencial de cada tipo de arma de fogo.

13.

O anexo III contém o «Modelo de certificado de armas de fogo desativadas».

B.   Direito finlandês. Ampuma‑aselaki (1/1998) ( 5 )

14.

Nos termos do § 112a («Transferência e importação de armas de fogo desativadas para a Finlândia»):

«Quem transfere ou importa uma arma de fogo desativada para a Finlândia deve, no prazo de 30 dias a contar da transferência ou da importação, apresentar a arma de fogo a um serviço de polícia ou à Administração central da Polícia para inspeção.»

15.

O § 91 prevê:

«Quando expira ou é revogada uma licença comercial do setor das armas de fogo ou uma licença que autoriza a posse para uso privado, a polícia deve emitir uma decisão sobre a apreensão policial das armas de fogo, de partes das armas, dos cartuchos e das munições particularmente perigosas, desde que estas ainda não tenham sido colocadas à disposição de um titular de autorização regular.

A polícia também deve emitir a ordem de apreensão se um detentor de armas de fogo ou partes de armas de fogo não autorizadas, cartuchos não autorizados ou munições particularmente perigosas apresentar, por sua própria iniciativa, um objeto à polícia e lhe entregar a sua guarda. […].»

16.

O § 112b («Desativação de armas de fogo»), n.o 2, estabelece:

«O Regulamento de Execução 2015/2403 prevê disposições sobre as pessoas e entidades autorizadas a proceder à desativação das armas de fogo, as especificações técnicas para a desativação de armas de fogo, a marcação, controlo e verificação de armas de fogo desativadas, pedidos de assistência na execução de desativações, medidas adicionais de desativação e a transferência de armas de fogo no interior da União Europeia.»

II. Matéria de facto, litígio e questões prejudiciais

17.

A, que dirige um negócio especializado na venda de objetos de coleção histórico‑militares, adquiriu na Áustria três espingardas de assalto que, segundo os certificados emitidos pela sociedade B em 9 de outubro de 2017, tinham sido desativadas.

18.

A sociedade B é reconhecida pelas autoridades austríacas como entidade de controlo, na aceção do artigo 3.o do Regulamento de Execução 2015/2403, embora não conste expressamente da lista referida no n.o 3 desse artigo.

19.

Em 17 de outubro de 2017, A transferiu as espingardas de assalto para a Finlândia e, em 24 de outubro de 2017, em conformidade com o § 112a da Lei Relativa às Armas de Fogo, apresentou‑as à Polícia de Helsínquia, conjuntamente com os certificados de desativação correspondentes ( 6 ).

20.

Em 15 de fevereiro de 2018, a Polícia de Helsínquia emitiu a Decisão 2018/8575, em que considerou que a desativação das espingardas de assalto não satisfazia os requisitos técnicos do anexo I do Regulamento de Execução 2015/2403. Em seu entender, as operações de desativação das armas eram defeituosas ( 7 ).

21.

A Policia de Helsínquia considerou que as espingardas de assalto deviam ser consideradas armas sujeitas a autorização, na aceção da Lei Relativa às Armas de Fogo. Como A não possuía uma licença que autorizasse a detenção dessas armas, foi ordenada a sua apreensão.

22.

A interpôs recurso desta decisão para o Helsingin hallinto‑oikeus (Tribunal Administrativo de Helsínquia, Finlândia), alegando que:

A Polícia finlandesa não tinha competência para examinar a desativação das armas.

Em conformidade com o artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento de Execução 2015/2403, a Polícia devia ter reconhecido o certificado de desativação da sociedade B, entidade de controlo designada pela Áustria.

As provas fornecidas demonstram que a desativação das armas cumpria as especificações técnicas do anexo I do Regulamento de Execução 2015/2403.

23.

Tanto a Polícia de Helsínquia como a Poliisihallitus (Administração central da Polícia) apresentaram observações no âmbito desse recurso, argumentando que as armas não podiam ser consideradas desativadas, na medida em que:

A desativação não tinha sido realizada de modo correto.

A sociedade B não era uma autoridade, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento de Execução 2015/2403, nem constava da lista do artigo 3.o, n.o 3, desse regulamento

Dessa lista constava apenas que a Áustria tinha designado como entidade de controlo o Ministério do Interior austríaco.

24.

A apresentou réplica a que anexou a correspondência com o Ministério da Defesa e dos Desportos austríaco, na qual este confirmava que a sociedade B era uma entidade de controlo designada pela Áustria na aceção do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento de Execução 2015/2403. Indicou também que a Áustria tinha designado um total de dezasseis entidades de controlo ( 8 ).

25.

Em 26 de junho de 2019, o Helsingin hallinto‑oikeus (Tribunal Administrativo de Helsínquia) negou provimento ao recurso interposto por A por considerar que:

A sociedade B não constava como entidade de controlo austríaca no sítio web da Comissão. Por conseguinte, os certificados de desativação não estavam em conformidade com o Regulamento de Execução 2015/2403.

As armas importadas não cumpriam as especificações técnicas de desativação previstas no Regulamento de Execução 2015/2403.

26.

A recorreu da sentença de primeira instância no Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia), pedindo a sua anulação e a anulação da decisão da Polícia de Helsínquia ( 9 ).

27.

A Polícia de Helsínquia e a Poliisihallitus (Administração central da Polícia) opuseram‑se ao recurso e sublinharam a necessidade da apresentação de um pedido de decisão prejudicial, o que obteve a concordância do Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo), que submete ao Tribunal de Justiça as seguintes questões:

«Em caso de transferência de armas de fogo desativadas na União, tendo em conta as disposições da Diretiva 91/477/CEE […] bem como as disposições do Regulamento de Execução 2015/2403 […] em particular o seu artigo 3.o, n.o 1:

a)

pode uma entidade de controlo, confirmada por uma autoridade nacional e que emitiu um certificado de desativação, ser considerada uma entidade na aceção da Diretiva 91/477 e dos artigos 3.o e 7.o do Regulamento de Execução 2015/2403, embora não figure na lista publicada pela Comissão ao abrigo do artigo 3.o, n.o 3, desde que várias autoridades desse Estado‑Membro tenham informado o importador das armas de que a entidade de controlo, que opera sob a forma jurídica de uma sociedade de responsabilidade limitada e que emitiu o certificado, está autorizada a fazê‑lo nos termos do regulamento, e

b)

pode uma entidade de controlo designada por um Estado‑Membro para a desativação de armas ser reconhecida, não apenas pela inscrição na lista publicada no sítio web da Comissão na aceção do artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento de Execução 2015/2403, mas também mediante outras provas obtidas de uma autoridade nacional, de modo que um certificado de desativação emitido por esta entidade de controlo cumpre as exigências do referido regulamento e um Estado‑Membro tem de reconhecer o certificado de desativação emitido noutro Estado‑Membro ao abrigo do artigo 7.o, n.o 2, do regulamento?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

28.

O pedido de decisão prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 7 de maio de 2021.

29.

Apresentaram observações escritas A, a Poliisihallitus (Administração central da Polícia), o Governo finlandês e a Comissão Europeia, que participaram na audiência realizada em 18 de maio de 2022.

30.

O Governo austríaco respondeu por escrito às questões que lhe foram colocadas pelo Tribunal de Justiça.

IV. Apreciação

A.   Observações preliminares

31.

O conceito de «arma desativada» sofreu uma evolução legislativa significativa:

Ao tratar da desativação das armas de fogo, a redação inicial da Diretiva 91/477, no seu anexo I, parte III, limitava‑se à simples remissão para o direito interno.

A Diretiva 2008/51 alterou o artigo 4.o da Diretiva 91/477, impondo aos Estados‑Membros o dever de assegurar «que qualquer arma de fogo ou parte colocadas no mercado estejam marcadas e registadas nos termos da presente diretiva, ou tenham sido desativadas».

A Diretiva 2008/51 encarregou a Comissão de publicar «orientações comuns sobre as normas e técnicas de desativação a fim de garantir que as armas de fogo desativadas fiquem irreversivelmente inutilizáveis». O resultado foi a adoção do Regulamento de Execução 2015/2403 ( 10 ).

Todavia, as armas desativadas continuaram a não ser abrangidas pela definição de arma de fogo até à adoção da Diretiva (UE) 2017/853 ( 11 ), que as incluiu no seu âmbito de aplicação.

32.

Embora a Diretiva 2017/853 não seja aplicável ratione temporis ao presente processo, confirma a tendência legislativa de reforço das garantias exigidas para tornar irreversível a desativação das armas de fogo, de modo que estas não possam ser reativadas ( 12 ).

B.   Primeira questão prejudicial

33.

O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, no âmbito transfronteiriço deste processo, a entidade de controlo que emitiu um certificado de desativação está habilitada a fazê‑lo, apesar de não constar da lista publicada pela Comissão ( 13 ) em conformidade com o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento de Execução 2015/2403 e revestir a forma de sociedade de responsabilidade limitada.

34.

Por conseguinte, a questão prejudicial, que respeita aos aspetos formais de circulação de armas desativadas, abrange dois aspetos da regulamentação aplicável:

Em primeiro lugar, a questão de saber se o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento de Execução 2015/2403 se opõe a que um sujeito de direito privado possa ser uma entidade de controlo.

Em segundo lugar, a questão de saber se as entidades de controlo que cada Estado‑Membro designa devem constar da lista que a Comissão está obrigada a publicar em conformidade com o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento de Execução 2015/2403.

1. Sujeitos de direito privado enquanto entidades de controlo

35.

Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento de Execução 2015/2403, em conjugação com o anexo I, parte III, segundo parágrafo, da Diretiva 91/477, os Estados‑Membros devem designar uma «autoridade competente» que verifique que a desativação da arma de fogo foi efetuada em conformidade com as especificações técnicas estabelecidas no anexo I.

36.

A parte final dessa disposição acrescenta que a «autoridade competente» é igualmente denominada «entidade de controlo». A sinonímia (convencional) dessas duas expressões suscita alguns problemas de interpretação a que me referirei em seguida.

37.

As observações das partes revelam opiniões antagónicas sobre a natureza das entidades de controlo:

O Governo finlandês e os seus serviços de polícia defendem uma abordagem rígida, segundo a qual só os organismos públicos podem exercer funções de verificação.

A Comissão e A defendem a tese contrária: nada obsta a que seja confiada a uma empresa privada a missão de verificar e de certificar a desativação de armas de fogo.

38.

A utilização do termo «autoridade» no artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento de Execução 2015/2403 evocaria, em princípio, a natureza «pública» de quem assume a função de verificação. Por definição, o elemento característico de uma «autoridade» consiste em participar nas funções de imperium inerentes ao poder público ( 14 ).

39.

Essa abordagem é corroborada pelo considerando 3 do Regulamento de Execução 2015/2403: os Estados‑Membros devem «tomar medidas para que uma autoridade competente verifique as medidas de desativação».

40.

Na mesma linha, e agora no plano sistemático, os artigos 2.o e 3.o do Regulamento de Execução 2015/2403 distinguem entre:

A desativação das armas de fogo, que, enquanto operação material, pode ser efetuada indistintamente por entidades públicas e privadas.

A verificação de que as armas foram corretamente desativadas, função atribuída exclusivamente a uma «autoridade competente». As entidades privadas não são referidas no que respeita à verificação, o que, em contraste com as operações materiais de desativação, parece indicar que a verificação pode apenas ser efetuada por entidades públicas.

41.

A evolução normativa posterior às normas aplicáveis no presente processo aponta neste mesmo sentido. O Regulamento de Execução (UE) 2018/337 ( 15 ) reformula o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento 2015/2403, estabelecendo que «[o]s Estados‑Membros designam uma autoridade pública competente para verificar que a desativação da arma de fogo foi efetuada em conformidade com as especificações técnicas estabelecidas no anexo I […]».

42.

Por conseguinte, pretendeu‑se estabelecer um regime público de controlo para verificar a desativação das armas de fogo, tendo essa missão sido atribuída às autoridades estatais.

43.

Ora, a legislação da União não vai ao ponto de impor que os Estados‑Membros criem necessariamente, nas suas estruturas administrativas, serviços técnicos suscetíveis de desempenhar a função de verificação. Procurarei explicar a razão pela qual, em meu entender, podem confiar essa missão a entidades (quer sejam designadas por esse nome ou por outros sinónimos) ( 16 ) que adotem formas jurídicas privadas, desde que respeitem determinadas garantias.

44.

Nenhuma das normas de referência da União nesta matéria determina o modo como, em concreto, as autoridades públicas devem assegurar o respeito dos critérios do anexo I do Regulamento de Execução 2015/2403. Compete aos Estados‑Membros definir quais as autoridades que executam a tarefa de verificação e o modo de o fazer.

45.

Na falta de disposição em sentido contrário no direito da União, os Estados‑Membros conservam a sua capacidade de auto‑organização. De um modo geral, nada os impede de atribuir a entidades privadas o desempenho de funções públicas, mesmo quando estas tenham a sua origem em normas da União que não se oponham a essa atribuição ( 17 ).

46.

Segundo a mesma ordem de ideias, os Estados‑Membros podem autorizar as suas autoridades a delegar certos poderes a entidades privadas ( 18 ), ou a estabelecer mecanismos de colaboração com empresas do setor privado, a fim de lhes confiar, com os controlos adequados, o exercício desses poderes ( 19 ).

47.

Em meu entender, o Regulamento de Execução 2015/2403 permite a utilização dessas mesmas técnicas. O único limite à autonomia organizativa é que os Estados‑Membros não cheguem ao ponto de esvaziar o modelo de autoridade pública enquanto responsável última pelo processo de verificação da desativação das armas de fogo.

48.

Por outras palavras, no que respeita às entidades de controlo, a atribuição dessa missão de interesse público a uma empresa privada pode ser efetuada se as condições a que a atribuição está sujeita não desvirtuarem o quadro jurídico público da Diretiva 91/477 e do Regulamento de Execução 2015/2403.

49.

Por conseguinte, considero que entidades privadas podem verificar a desativação das armas, desde que estejam sujeitas ao mandato e ao controlo efetivo de uma verdadeira autoridade pública. Esta última tem o poder de supervisionar a forma como a desativação foi efetuada, mas pode delegar o seu exercício em entidades privadas.

50.

Na sua resposta de 22 de abril de 2022 às questões do Tribunal de Justiça, o Governo austríaco afirmou que a legislação nacional permite aos Ministérios do Interior e da Defesa autorizar determinados profissionais a verificar que as armas foram desativadas. Essa verificação implica que o particular autorizado exerce por delegação, sob a direção desses ministérios, uma missão que é da competência da autoridade pública ( 20 ).

51.

Na audiência, tanto as autoridades finlandesas como a Comissão adotaram uma posição crítica do modelo austríaco, salientando o número de entidades de controlo privadas reconhecidas (16) ( 21 ) e a falta dos seus dados na lista enviada à Comissão, que apenas refere o Ministério do Interior.

52.

Independentemente da posição relativa a esse modelo (na audiência, a Comissão afirmou que está a avaliá‑lo ( 22 ) para decidir se adota alguma medida a este respeito), a primeira questão prejudicial é formulada em termos abstratos e, por conseguinte, não exige uma apreciação do Tribunal de Justiça sobre o sistema instituído num determinado Estado‑Membro.

2. A lista do artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento de Execução 2015/2403

53.

Nos termos do artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento de Execução 2015/2403, «[a] Comissão deve publicar no seu sítio web uma lista das entidades de controlo designadas pelos Estados‑Membros […]».

54.

O órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a inscrição nessa lista constitui um requisito necessário para que as entidades de controlo sejam consideradas como tais ou se, longe de ter esse efeito constitutivo, a sua função é apenas informativa.

55.

Em meu entender, os n.os 1 e 3 do artigo 3.o do Regulamento de Execução 2015/2403 militam a favor da segunda dessas posições: a competência para designar as entidades de controlo pertence aos Estados‑Membros, enquanto a lista reflete (ou deveria refletir) as entidades de controlo já designadas por estes, a título puramente declarativo e não constitutivo ( 23 ).

56.

Como sublinha a Comissão nas suas observações escritas, nem o anexo I, parte III, da Diretiva 91/477, nem o artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento de Execução 2015/2403 lhe atribuem competência para decidir quais são as «entidades de controlo». Também não exigem que sejam apenas aquelas que, após a sua designação por cada Estado‑Membro, constem da lista publicada no sítio web da Comissão ( 24 ).

57.

É certo que, num âmbito transfronteiriço, a segurança jurídica aconselha que a identificação das entidades de controlo se baseie num sistema cuja publicidade permita conhecer com segurança as entidades de controlo reconhecidas por cada Estado‑Membro.

58.

O objetivo de se obter uma «certa liberdade de circulação», a que se refere o considerando 1 da Diretiva 2008/51, é mais bem cumprido através de um mecanismo que reduza os obstáculos ao comércio entre os Estados‑Membros. A avaliação, pelas autoridades do país de destino às quais é apresentada uma arma desativada, é mais fácil se a desativação tiver sido verificada e certificada, no país de origem, por uma entidade cuja natureza, precisamente pelo facto de estar inscrita na lista, não é contestada.

59.

Todavia, estas considerações não podem alterar o que se infere da redação da norma e do contexto em que se insere: a inscrição na lista do artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento de Execução 2015/2403 não constitui um requisito de validade para a obtenção do status de entidade de controlo.

60.

Esse status é adquirido não por efeito da inscrição na lista, mas sim pela autorização do Estado‑Membro correspondente. A capacidade de designar as entidades competentes para verificar e certificar a desativação de armas de fogo é exclusiva do Estado‑Membro e o papel da Comissão ao publicar a lista é meramente auxiliar.

61.

Uma vez concedida essa autorização por um Estado‑Membro, a lista constituirá, repito, o meio de comprovação preferencial, mas não exclusivo, de que o certificado de desativação foi emitido por uma entidade de controlo autorizada.

62.

Partindo desta premissa, nada impede que, na falta da sua inscrição na lista, um importador de armas apresente um certificado de desativação e prove, por outros meios juridicamente válidos, que a entidade de controlo que o emitiu é legitimamente titular dessa qualidade (isto é, que foi designada como tal por um Estado‑Membro).

63.

O que precede não deve ser entendido como uma banalização do valor da lista referida no artigo 3.o, n.o 3, do Regulamento de Execução 2015/2403. Esta disposição, como as outras disposições que figuram nesse regulamento, não deve permanecer «letra morta». O facto de se saber antecipadamente, com certeza, quais são as entidades de controlo de cada Estado‑Membro melhora a fiabilidade do sistema no seu conjunto.

64.

Além disso, o artigo 8.o do Regulamento de Execução 2015/2403 obriga os Estados‑Membros a cooperar lealmente com a Comissão e a comunicar‑lhe «quaisquer medidas que adotem no domínio abrangido pelo presente regulamento». Nomeadamente, cabe‑lhes comunicar «informações detalhadas sobre cada entidade de controlo, o respetivo símbolo e os dados de contacto», que o artigo 3.o, n.o 3, prevê.

65.

A falta de notificação comporta não apenas uma dificuldade suplementar para demonstrar que o certificado de desativação foi emitido por uma entidade de controlo, mas também a violação de um dever jurídico por parte do Estado‑Membro. Compete à Comissão tomar as medidas necessárias para combater o incumprimento desse dever.

C.   Segunda questão prejudicial

66.

Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber:

Se «pode uma entidade de controlo designada por um Estado‑Membro […] ser reconhecida […] mediante outras provas obtidas de uma autoridade nacional».

Se, nessa hipótese, um certificado de desativação emitido pela entidade de controlo «tem» de ser reconhecido noutro Estado‑Membro ao abrigo do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento de Execução 2015/2403.

1. Reconhecimento da entidade de controlo

67.

Formulada nos termos em que o faz o órgão jurisdicional de reenvio, a primeira parte da sua segunda questão prejudicial sobrepõe‑se, em grande medida, à primeira.

68.

Se, como proponho, a inscrição de uma entidade de controlo na lista da Comissão não constitui um requisito essencial para a aquisição desse status, parece‑me lógico admitir outros meios de prova que demonstrem que essa entidade foi designada por um Estado‑Membro.

69.

Nada impede, em meu entender, que esse facto seja verificado através de documentos oficiais emitidos no Estado de origem pelas suas próprias autoridades, mesmo que, por qualquer razão, a designação não tenha sido refletida na lista publicada pela Comissão.

2. Reconhecimento do certificado de desativação

70.

A segunda parte dessa mesma questão é relativa ao facto de um Estado‑Membro ter de reconhecer o certificado de desativação emitido pela entidade de controlo de outro Estado‑Membro.

71.

A regra geral é que as armas de fogo desativadas só podem ser transferidas para outro Estado se ostentarem a marcação única comum e forem acompanhadas de um certificado de desativação.

72.

Nos termos do artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento de Execução 2015/2403, «[o]s Estados‑Membros devem reconhecer o certificado de desativação emitido por outro Estado‑Membro se o certificado preencher os requisitos do presente regulamento» ( 25 ).

73.

É certo que este artigo tem uma formulação prescritiva: «[o]s Estados‑Membros devem […]» (o sublinhado é meu). Todavia, esse mandato é imediatamente matizado pela sua sujeição à condição de os certificados preencherem «os requisitos do presente regulamento».

74.

Por conseguinte, o reconhecimento do certificado por um Estado‑Membro distinto do emitente não é automático nem incondicional. Pelo contrário, só se verificará se o certificado preencher os requisitos previstos no Regulamento de Execução 2015/2403, que podem ser de natureza tanto formal como material:

Os requisitos formais dizem respeito ao modelo de formulário utilizado (certificado de desativação do anexo III do regulamento) e à competência da entidade de controlo que o tenha emitido. O certificado é apresentado à autoridade competente do Estado de receção, a fim de que esta possa assegurar‑se de que foi emitido por uma entidade de controlo designada pelo Estado de origem.

Os requisitos materiais referem‑se às operações de desativação, que devem respeitar as especificações técnicas enunciadas no anexo I do regulamento. A comprovação, pelas autoridades do Estado de destino, de que essas especificações foram respeitadas no Estado de origem suscita, no entanto, alguns problemas. Embora as questões do órgão jurisdicional de reenvio não mencionem os requisitos materiais ( 26 ), entendo que importa fazer‑lhes referência para delimitar de modo adequado os princípios e os interesses em causa neste processo.

75.

Numa primeira aproximação, poder‑se‑ia pensar que o tráfego intracomunitário de armas de fogo desativadas se insere no esquema clássico de reconhecimento mútuo aplicável a documentos análogos no âmbito da circulação de bens e da prestação de serviços.

76.

Todavia, considero que essa equiparação deve ser matizada.

77.

Em primeiro lugar, a Diretiva 2008/51 salienta que nela se estabelece um equilíbrio entre «o compromisso de assegurar uma certa liberdade de circulação para determinadas armas de fogo no espaço comunitário e […] a necessidade de enquadrar essa liberdade por certas garantias de segurança […]» ( 27 ).

78.

O artigo 12.o, n.o 3, da Diretiva 91/477, na sua redação original, já refletia que as restrições à liberdade de circulação de armas de fogo eram intencionais e que, «[a]través de acordos de reconhecimento mútuo de documentos nacionais, dois ou mais Estados‑[M]embros podem prever um regime mais flexível que o previsto no presente artigo para a circulação com uma arma de fogo nos respetivos territórios».

79.

Em segundo lugar, a regulamentação da circulação intracomunitária das armas de fogo, relativamente às quais se «estabelece um quadro mínimo harmonizado» ( 28 ), contrasta com outras normas de harmonização completa que regulam o tráfego transfronteiriço de mercadorias cuja circulação pode comportar algum risco.

80.

Nestes últimos casos, o princípio predominante é o da livre circulação, que impede os Estados‑Membros de proibir, restringir ou entravar a comercialização ou a entrada em serviço no seu território de objetos conformes com a regulamentação correspondente.

81.

Mesmo num quadro plenamente harmonizado, são conferidos às autoridades nacionais determinados poderes de controlo a posteriori para a deteção de deficiências ou anomalias do sistema. Para este efeito, é estabelecida uma série de cláusulas de salvaguarda que evitem ou corrijam disfunções ao nível da União, mediante a ativação de um processo em que intervêm a Comissão e todos os Estados‑Membros ( 29 ).

82.

Ora, se a Diretiva 91/477, conforme alterada pela Diretiva 2008/51, e o Regulamento de Execução 2015/2403 não conferem, especificamente, tais poderes de controlo aos Estados‑Membros, no que respeita às armas desativadas, é porque estes poderes não são indispensáveis, precisamente à luz das limitações a que está sujeita a circulação ordinária dessas armas.

83.

O processo de transferência de armas entre Estados‑Membros leva a que a autoridade do Estado de receção exerça uma intervenção completa sobre as armas antes de as admitir definitivamente no seu território. A autorização para o fazer decorre da Diretiva 91/477.

84.

Com efeito, nos termos do artigo 14.o, primeiro travessão, da Diretiva 91/477, «[o]s Estados‑[M]embros adotarão todas as disposições necessárias para proibir a entrada no respetivo território de uma arma de fogo, para além das situações previstas nos artigos 11.o e 12.o e desde que as condições neles previstas sejam respeitadas» ( 30 ).

85.

Esses dois artigos regulam o processo relativo à circulação dos diversos tipos de armas de fogo na União, sujeita a um processo complexo (artigo 11.o) ( 31 ) ou, no que respeita à sua detenção durante uma viagem através de dois ou mais Estados‑Membros, à autorização desses Estados‑Membros (artigo 12.o).

86.

Como foi sublinhado na audiência, as diligências com vista à transferência de armas de fogo desativadas na União implicam a apresentação das mesmas e dos seus certificados de desativação às autoridades do Estado de receção, que devem, em todo o caso, examinar as armas e os certificados para avaliar a correspondência entre estes, bem como o cumprimento dos requisitos exigidos ( 32 ).

87.

Ora, no âmbito desse processo de declaração e de apresentação (que não é incompatível com a relativa liberdade de circulação das armas de fogo, restringida devido à sua evidente perigosidade), as autoridades do Estado de receção não poderão fechar os olhos na presença de certificados cuja inadequação aos requisitos previstos no Regulamento de Execução 2015/2403 se revele de modo claro.

88.

Em tais casos, quando essas autoridades tenham razões sérias para suspeitar que os certificados emitidos por uma entidade de controlo do Estado de origem não preenchem esses requisitos, podem proceder às verificações adequadas (incluindo o pedido de assistência nos termos do artigo 4.o do Regulamento de Execução 2015/2403) e, se for caso disso, não os tomar em consideração se as irregularidades constatadas forem graves ( 33 ).

89.

Poder‑se‑ia pensar que as armas desativadas, não abrangidas pelo conceito de arma de fogo, não estavam sujeitas a esses procedimentos para a sua transferência de um Estado‑Membro para outro. Todavia, não considero que seja esse o caso, por diversos motivos:

Todas as armas incluem determinados «componentes essenciais». A desativação visa assegurar, precisamente, «que todas as partes essenciais da arma de fogo se tornaram definitivamente inutilizáveis, bem como impossíveis de retirar, substituir ou alterar» ( 34 ).

Alguns desses componentes essenciais constituem, eles próprios, armas de fogo, na aceção do artigo 1.o, n.o 1‑B, da Diretiva 91/477, que retoma as disposições inicialmente previstas no anexo I, parte II, alínea b).

Neste contexto, é dificilmente contestável que a autoridade competente do Estado de receção não tenha poderes para inspecionar e classificar as armas desativadas, enquanto portadoras de «componentes essenciais das armas de fogo», cuja neutralização deve igualmente verificar.

90.

Em resumo, no Estado de receção, a comprovação pelas suas autoridades de que o certificado de verificação das armas desativadas preenche os requisitos exigidos, formais e materiais anula o risco e permite proteger a segurança pública: as armas não serão introduzidas no território deste Estado como armas desativadas até que se comprove que o são efetivamente.

V. Conclusão

91.

Atendendo ao exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda o seguinte ao Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia):

1)

O artigo 3.o da Diretiva 91/477/CEE do Conselho, de 18 de junho de 1991, relativa ao controlo da aquisição e da detenção de armas, e o artigo 3.o do Regulamento de Execução 2015/2403 (UE) da Comissão, de 15 de dezembro de 2015, que estabelece orientações comuns em matéria de normas e técnicas de desativação a fim de garantir a inutilização irreversível das armas de fogo desativadas, devem ser interpretados no sentido de que:

não se opõem a que um Estado‑Membro designe uma sociedade de direito privado, sujeita à supervisão e à direção de uma autoridade pública, que verifique que a desativação de uma arma de fogo foi efetuada em conformidade com as especificações técnicas estabelecidas no anexo I do referido regulamento;

a inscrição na lista das entidades de controlo designadas pelos Estados‑Membros, que é publicada no sítio web da Comissão, não constitui um requisito substancial para o reconhecimento dessa designação, que pode ser comprovada por qualquer meio juridicamente admitido.

2)

O artigo 7.o, n.o 2, do Regulamento de Execução 2015/2403 deve ser interpretado no sentido de que as autoridades de um Estado‑Membro para o qual se pretendam transferir as armas desativadas podem comprovar, quando tenham razões sérias para o fazer, se os certificados de desativação emitidos pelas entidades de controlo de outro Estado‑Membro preenchem os requisitos, formais e materiais, previstos nesse regulamento.


( 1 ) Língua original: espanhol.

( 2 ) Diretiva do Conselho, de 18 de junho de 1991, relativa ao controlo da aquisição e da detenção de armas (JO 1991, L 256, p. 51). Foi revogada pela Diretiva (UE) 2021/555 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de março de 2021, relativa ao controlo da aquisição e da detenção de armas (JO 2021, L 115, p. 1).

( 3 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2008, que altera a Diretiva 91/477/CEE do Conselho relativa ao controlo da aquisição e da detenção de armas (JO 2008, L 179, p. 5). Nas presentes conclusões, as referências à Diretiva 91/477 dizem respeito, salvo indicação em contrário, à versão alterada pela Diretiva 2008/51.

( 4 ) Regulamento de Execução da Comissão, de 15 de dezembro de 2015, que estabelece orientações comuns em matéria de normas e técnicas de desativação a fim de garantir a inutilização irreversível das armas de fogo desativadas (JO 2015, L 333, p. 62).

( 5 ) Lei Relativa às Armas de Fogo n.o 1/1998.

( 6 ) A pedido da referida autoridade, apresentou‑as novamente em 23 de novembro de 2017.

( 7 ) Constatou‑se que as operações de desativação apresentavam as seguintes deficiências: 1) não evitavam a desmontagem e o travamento das armas; 2) o mecanismo de gatilho das armas não estava soldado com a caixa da culatra e, embora o cão estivesse soldado com a trava, permitia o seu movimento, sendo possível desmontar as partes do mecanismo do gatilho das armas; 3) no cano das armas só foram feitos cinco furos do tamanho do calibre em vez dos seis furos previstos no Regulamento de Execução 2015/2403; 4) foram feitas soldaduras MIG com aço normal, e não soldaduras TIG com aço inoxidável do tipo ER 316L, como exigido no referido Regulamento de Execução.

( 8 ) Documentos 3 e 4 do anexo apresentado juntamente com as observações escritas de A.

( 9 ) Em apoio dos seus pedidos, apresentou um correio eletrónico do Ministério do Interior austríaco, de 11 de março de 2020, segundo o qual, nos termos da legislação nacional, o Ministério da Defesa (no que respeita às armas consideradas militares) e o Ministério do Interior (no que respeita às armas destinadas a utilizações civis) autorizavam determinados comerciantes a verificar a desativação das armas de fogo.

( 10 ) A necessidade de cumprimento desses deveres resultava de um compromisso internacional assumido pela União, enquanto parte no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo ao Fabrico e ao Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, suas Partes, Componentes e Munições, celebrado pela Decisão 2014/164/UE do Conselho (JO 2014, L 89, p. 7).

( 11 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de maio de 2017, que altera a Diretiva 91/477/CEE do Conselho, relativa ao controlo da aquisição e da detenção de armas (JO 2017, L 137, p. 22).

( 12 ) «Segundo as partes interessadas consultadas pela Comissão, a reativação de armas desativadas constitui uma fonte importante de armas utilizadas para fins criminosos, considerando prioritárias a harmonização das regras de desativação para combater esta prática» [n.o 2.7 do Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre a «Proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera a Diretiva 91/477/CEE do Conselho relativa ao controlo da aquisição e da detenção de armas» COM(2015) 750 final — 2015/0269 (COD)].

( 13 ) O órgão jurisdicional de reenvio afirma (n.o 23 do seu despacho) que, no momento da redação do pedido de decisão prejudicial, a lista não estava disponível no sítio web da Comissão. A Direção‑Geral de Migração e Assuntos Internos (DG Home) tinha‑o informado, através do centro de contacto Europe Direct, de que a lista estava a ser revista e de que uma versão atualizada estaria acessível até ao final de 2021.

( 14 ) Quanto à distinção clássica entre atos praticados iure gestionis e iure imperii, v. Acórdão de 7 de maio de 2020, Rina (C‑641/18, EU:C:2020:349), a propósito do artigo 1.o, n.o 1, do Regulamento de Bruxelas I [Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1)].

( 15 ) Regulamento de Execução da Comissão, de 5 de março de 2018, que altera o Regulamento de Execução (UE) 2015/2403 que estabelece orientações comuns em matéria de normas e técnicas de desativação a fim de garantir a inutilização irreversível das armas de fogo desativadas (JO 2018, L 65, p. 1). Com este pretende‑se que «[a]s regras em matéria de desativação das armas de fogo previstas no Regulamento de Execução (UE) 2015/2403 [reflitam] as novas regras em matéria de desativação introduzidas pela Diretiva (UE) 2017/853 e [sejam] coerentes com estas» (considerando 5). Na audiência, foi salientado o facto de algumas versões linguísticas do Regulamento de Execução 2018/337 não terem acrescentado o adjetivo «pública» ao substantivo «autoridade», no âmbito da alteração do artigo 3.o, n.o 1.

( 16 ) As diferentes versões linguísticas utilizam tanto o termo «organismo» («organisme» em francês, «organismo» em italiano) como o termo «entidad» («entidad» em espanhol, «entity» em inglês, «entidade» em português, «entitatea» em romeno, «entiteit» em neerlandês). A versão alemã utiliza o termo «Behörde».

( 17 ) O Tribunal de Justiça, num domínio tão geral como o do regime jurídico das disposições de uma diretiva que produzam efeito direto, admitiu que estas disposições eram invocáveis «contra uma entidade ou um organismo, ainda que de direito privado, a quem um Estado‑Membro tenha confiado o cumprimento de uma missão de interesse público e que, para esse efeito, disponha de poderes exorbitantes face aos que resultam das normas aplicáveis nas relações entre particulares» [Acórdão de 10 de outubro de 2017, Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:745, n.o 35)].

( 18 ) A delegação não implica automaticamente que as atividades em causa sejam realizadas no «exercício do poder público». A jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre esta matéria exclui que funções auxiliares e preparatórias sejam consideradas uma participação direta e específica no exercício da autoridade pública, na aceção do artigo 51.o, primeiro parágrafo, TFUE, devendo o alcance desta disposição ser limitado ao estritamente necessário. Por outro lado, o Acórdão de 7 de maio de 2020, Rina (C‑641/18, EU:C:2020:349, n.o 39), indica que «o simples facto de certos poderes serem delegados por um ato de poder público não implica que sejam exercidos iure imperii».

( 19 ) A legislação da União autoriza expressamente a presença de entidades privadas para a realização de atividades públicas em determinados setores. V., por exemplo, artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2014/45/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativa à inspeção técnica periódica dos veículos a motor e dos seus reboques e que revoga a Diretiva 2009/40/CE (JO 2014, L 127, p. 51): «As inspeções técnicas devem ser efetuadas pelo Estado‑Membro de matrícula do veículo ou por um organismo público por ele incumbido dessa função, ou por organismos ou estabelecimentos designados e supervisionados pelo referido Estado‑Membro, incluindo organismos privados aprovados». O sublinhado é meu.

( 20 ) Segundo o Governo austríaco (n.o 17 da sua resposta), o profissional delegado atua funcionalmente na qualidade de órgão da autoridade pública delegante. Esta é responsável pela execução das missões de interesse público desempenhadas pelo profissional. A jurisprudência constitucional austríaca impõe que a delegação esteja sujeita a condições estritas e que os poderes de instrução e de supervisão ou de fiscalização sejam assegurados por um órgão administrativo (neste caso, os Ministérios da Defesa e do Interior, que exercem o poder de direção e podem dar instruções às entidades de controlo).

( 21 ) Segundo as informações fornecidas pela Comissão, nenhum outro Estado‑Membro adota esse modelo.

( 22 ) A Comissão parece preocupada, nomeadamente, com o número de entidades de controlo privadas e com a possibilidade real de se submeterem ao controlo da autoridade pública.

( 23 ) Na realidade, a inscrição na lista não condiciona, estritamente falando, o ajustamento da atuação de cada Estado‑Membro ao conteúdo do Regulamento de Execução 2015/2403. O raciocínio que segui nas Conclusões que apresentei no processo Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:782, n.os 64 a 66) parece‑me transponível, por analogia, para este litígio. Nesse processo estava em causa a comunicação ao Secretariado‑Geral do Conselho de quais eram as autoridades competentes, em conformidade com o direito interno de um Estado‑Membro, para emitir ou executar mandados de detenção e de entrega europeus.

( 24 ) N.o 26 das observações escritas da Comissão, confirmadas na audiência.

( 25 ) Na audiência, todos os participantes concordaram quanto ao facto de esse artigo instituir um sistema de reconhecimento mútuo dos certificados, inspirado na confiança mútua entre Estados‑Membros.

( 26 ) Como já referi (nota 13), o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a Polícia de Helsínquia constatou que a desativação de armas apresentava deficiências significativas.

( 27 ) Considerando 1 da Diretiva 2008/51. O sublinhado é meu.

( 28 ) Acórdão de 3 de dezembro de 2019, República Checa/Parlamento e Conselho (C‑482/17, EU:C:2019:1035, n.o 47).

( 29 ) Nas Conclusões apresentadas no processo Fédération des entreprises de la beauté (C‑4/21, EU:C:2022:221), analisei a aplicação das cláusulas de salvaguarda no âmbito do Regulamento (CE) n.o 1223/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de novembro de 2009, relativo aos produtos cosméticos (JO 2009, L 342, p. 59), que pretende harmonizar integralmente as normas da União nesse setor. Mesmo quando, em conformidade com este regulamento, os Estados‑Membros não recusem, proíbam ou restrinjam a disponibilização no mercado de produtos cosméticos que cumpram os requisitos do regulamento, podem aplicar as cláusulas de natureza provisória, respeitando simultaneamente a unidade do mercado interno desses produtos e deixando a última palavra nas mãos da Comissão.

( 30 ) O considerando 6 da Diretiva 91/477 enunciava que era indicado «proibir, em princípio, a passagem de um Estado‑Membro para outro com armas».

( 31 ) Se o Estado‑Membro onde se encontram as armas antes da expedição autorizar essa transferência, emitirá uma autorização contendo todas as menções referidas no primeiro parágrafo do artigo 11.o, n.o 2. A autorização deve acompanhar as armas de fogo até ao ponto do destino; deve ser apresentada sempre que solicitado pelas autoridades dos Estados‑Membros.

( 32 ) A fortiori, as autoridades de receção podem verificar se as armas desativadas respeitam as «medidas adicionais» que vão além das especificações técnicas previstas no anexo I do Regulamento 2015/2403, a que se refere o seu artigo 6.o Ficou claro na audiência que nem a República da Áustria nem a Finlândia estabeleceram esse tipo de medidas.

( 33 ) É claro que a mesma solução poderia ser alcançada se os certificados de desativação tivessem sido obtidos ou invocados de forma fraudulenta. Os Acórdãos do Tribunal de Justiça de 6 de fevereiro de 2018, Altun e o. (C‑359/16, EU:C:2018:63), e de 2 de abril de 2020, CRPNPAC e Vueling Airlines (C‑370/17 e C‑3718, EU:C:2020:260), relativos à emissão dos certificados E 101 para a aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores que se deslocam no interior da União, reconhecem esse facto, desde que se tenha seguido previamente o procedimento que culmina na atuação de uma Comissão Administrativa que concilie os pontos de vista das Administrações em conflito. Não tendo o Regulamento de Execução 2015/2403 previsto tais mecanismos de conciliação no caso de certificados de desativação das armas, a apreciação da eventual fraude pode ser realizada pelas autoridades do Estado de receção.

( 34 ) Anexo I, parte III, alínea a), da Diretiva 91/477.

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