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Document 62021CC0100

Conclusões do advogado-geral A. Rantos apresentadas em 2 de junho de 2022.
QB contra Mercedes-Benz Group AG.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landgericht Ravensburg.
Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Homologação dos veículos a motor — Diretiva 2007/46/CE — Artigo 18.o, n.o 1 — Artigo 26.o, n.o 1 — Artigo 46.o — Regulamento (CE) n.o 715/2007 — Artigo 5.o, n.o 2 — Veículos a motor — Motor a diesel — Emissão de poluentes — Válvula para reciclagem de gases de escape (válvula EGR) — Redução das emissões de óxido de azoto (NOx) limitada por uma “janela térmica” — Dispositivo manipulador — Proteção dos interesses de um comprador individual de um veículo equipado com um dispositivo manipulador ilícito — Direito a indemnização contra o fabricante automóvel a título de responsabilidade extracontratual — Método de cálculo da indemnização — Princípio da efetividade — Artigo 267.o TFUE — Admissibilidade — Possibilidade de um juiz singular submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial.
Processo C-100/21.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:420

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

ATHANASIOS RANTOS

apresentadas em 2 de junho de 2022 ( 1 )

Processo C‑100/21

QB

contra

Mercedes‑Benz Group AG, anteriormente Daimler AG

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Landgericht Ravensburg (Tribunal Regional de Ravensburg, Alemanha)]

«Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Diretiva 2007/46/CE — Homologação dos veículos a motor — Artigo 18.o, n.o 1, artigo 26.o, n.o 1, e artigo 46.o — Regulamento (CE) n.o 715/2007 — Artigo 5.o, n.o 2 — Motor a diesel — Emissão de poluentes — Redução das emissões de óxido de azoto limitada por uma “janela térmica” — Dispositivo manipulador — Proteção dos interesses de um comprador individual de um veículo equipado com um dispositivo manipulador ilícito — Direito a indemnização contra o fabricante automóvel a título de responsabilidade extracontratual — Método de cálculo da indemnização — Princípio da efetividade — Artigo 267.o TFUE — Possibilidade de um juiz singular submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial»

I. Introdução

1.

O presente pedido de decisão prejudicial inscreve‑se no âmbito dos processos submetidos ao Tribunal de Justiça relativos ao incumprimento das disposições do direito da União Europeia relativas às emissões de gases poluentes, nomeadamente de óxido de azoto (NOx), por veículos diesel. O Tribunal de Justiça já se pronunciou a este propósito, designadamente no Acórdão de 17 de dezembro de 2020, CLCV e o. (Dispositivo manipulador em motor diesel) (C‑693/18, a seguir Acórdão CLCV, EU:C:2020:1040), sobre a definição de um «dispositivo manipulador», na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento (CE) n.o 715/2007 ( 2 ), e sobre as condições de autorização desse dispositivo, tendo em atenção o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), deste regulamento. Por outro lado, os processos C‑128/20, GSMB Invest, C‑134/20, Volkswagen, e C‑145/20, Porsche Inter Auto e Volkswagen, para os quais apresentei conclusões comuns em23 de setembro de 2021 ( 3 ), dizem respeito à conformidade com a legislação da União de uma «janela térmica» instalada pelo programa informático integrado no calculador de controlo que equipa os veículos em causa.

2.

No presente processo, o Landgericht Ravensburg (Tribunal Regional de Ravensburg, Alemanha) pergunta ao Tribunal de Justiça se a Diretiva 2007/46/CE ( 4 ), conjugada com o Regulamento n.o 715/2007, confere a um comprador individual de um veículo que não respeite os limites de emissão de NOx fixados por este regulamento um direito a indemnização contra o fabricante automóvel, a título de responsabilidade extracontratual, e, em caso afirmativo, que método de cálculo da indemnização devem os Estados‑Membros estabelecer para se conformarem com o direito da União.

3.

Esse órgão jurisdicional também pretende saber se o artigo 267.o TFUE se opõe a uma regulamentação nacional nos termos da qual o juiz singular competente para decidir o litígio só pode submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça no caso de ter previamente remetido esse litígio para uma secção cível, que decida não renovar o pedido de decisão prejudicial.

II. Quadro jurídico

A.   Direito da União

1. Regulamento n.o 715/2007

4.

Nos termos dos considerandos 1, 5 e 6 do Regulamento n.o 715/2007:

«(1)

O mercado interno compreende um espaço sem fronteiras internas no qual é assegurada a livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais. […] Os requisitos técnicos para a homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões deverão, pois, ser harmonizados a fim de evitar que os Estados‑Membros apliquem requisitos divergentes e de assegurar um nível elevado de proteção do ambiente.

[…]

(5)

Para atingir os objetivos da UE em matéria de qualidade do ar, é necessário um esforço contínuo de redução das emissões dos veículos. […]

(6)

A fim de melhorar a qualidade do ar e de respeitar os valores limite de poluição atmosférica, afigura‑se, sobretudo, necessária uma redução considerável das emissões de óxido de azoto dos veículos equipados com motor diesel. […]»

5.

O artigo 1.o deste regulamento, com a epígrafe «Objeto», enuncia, no seu n.o 1:

«O presente regulamento estabelece requisitos técnicos comuns para a homologação de veículos a motor (a seguir “veículos”) e de peças de substituição, tais como dispositivos de controlo da poluição de substituição, no que respeita às respetivas emissões.»

6.

O artigo 3.o do referido regulamento, com a epígrafe «Definições», prevê:

«Para efeitos do presente regulamento e das suas medidas de execução, são aplicáveis as seguintes definições:

[…]

10)

“Dispositivo manipulador” (defeat device), qualquer elemento sensível à temperatura, à velocidade do veículo, à velocidade do motor (RPM), às mudanças de velocidade, à força de aspiração ou a qualquer outro parâmetro e destinado a ativar, modular, atrasar ou desativar o funcionamento de qualquer parte do sistema de controlo das emissões, de forma a reduzir a eficácia desse sistema em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo.

[…]»

7.

O artigo 5.o do mesmo regulamento, com a epígrafe «Requisitos e ensaios», dispõe, nos seus n.os 1 e 2:

«1.   O fabricante deve equipar os veículos de forma a que os componentes suscetíveis de afetar as emissões sejam concebidos, construídos e montados de modo a permitir que o veículo cumpra, em utilização normal, o disposto no presente regulamento e nas respetivas medidas de execução.

2   A utilização de dispositivos manipuladores que reduzam a eficácia dos sistemas de controlo das emissões é proibida. A proibição não se aplica:

a)

Se se justificar a necessidade desse dispositivo para proteger o motor de danos ou acidentes e para garantir um funcionamento seguro do veículo;

[…]»

2. Diretiva 2007/46

8.

O artigo 1.o da Diretiva 2007/46 ( 5 ), com a epígrafe «Objeto», enuncia:

«A presente diretiva estabelece um quadro harmonizado que contém as disposições administrativas e os requisitos técnicos gerais aplicáveis à homologação de todos os veículos novos que sejam abrangidos pelo seu âmbito de aplicação, bem como à homologação de sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a esses veículos, no intuito de facilitar a respetiva matrícula, venda e entrada em circulação na [União].

[…]

Os requisitos técnicos específicos relativos ao fabrico e ao funcionamento dos veículos devem ser estabelecidos em aplicação da presente diretiva em atos regulamentares, cuja lista exaustiva consta do anexo IV.»

9.

O artigo 18.o desta diretiva, com a epígrafe «Certificado de conformidade», prevê, no seu n.o 1:

«O fabricante, na sua qualidade de titular de um certificado de homologação CE de um veículo, deve entregar um certificado de conformidade a acompanhar cada veículo completo, incompleto ou completado, fabricado em conformidade com o modelo do veículo homologado.

[…]»

10.

O artigo 26.o da referida diretiva, com a epígrafe «Matrícula, venda e entrada em circulação de veículos», dispõe, no seu n.o 1:

«Sem prejuízo do disposto nos artigos 29.o e 30.o, os Estados‑Membros só autorizam a matrícula, a venda ou a entrada em circulação de veículos se estes estiverem acompanhados de um certificado de conformidade válido emitido nos termos do artigo 18.o

[…]»

11.

O artigo 46.o da mesma diretiva, com a epígrafe «Sanções», tem a seguinte redação:

«Os Estados‑Membros determinam as sanções aplicáveis em caso de violação das disposições da presente diretiva, em especial as proibições constantes do artigo 31.o ou dele decorrentes, e dos atos regulamentares enumerados na parte I do anexo IV, e tomam as medidas necessárias para a sua aplicação. As sanções previstas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas. Os Estados‑Membros notificam estas disposições à Comissão até 29 de abril de 2009, e quaisquer ulteriores alterações das mesmas no mais breve prazo possível.»

B.   Direito alemão

12.

O § 823 do Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil, a seguir «BGB»), com a epígrafe «Dever de indemnização», enuncia:

«1.   Quem, agindo intencionalmente ou por negligência, atentar ilegalmente contra a vida, corpo, saúde, liberdade, propriedade ou qualquer outro direito de outra pessoa, é responsável perante essa pessoa pelos danos daí resultantes.

2.   Igual obrigação é imposta a quem viole uma lei destinada à proteção de outrem. Se, pelo conteúdo da lei, também for possível violar esta lei sem cometer qualquer falta, a obrigação de indemnização só ocorre em caso de falta.»

13.

O § 826 do BGB, com a epígrafe «Violação intencional e contrária à ordem pública e aos bons costumes», prevê:

«Quem causar intencionalmente um dano a outrem, em violação da ordem pública e dos bons costumes, é obrigado a ressarcir esse dano.»

14.

O § 6, n.o 1, do Verordnung über die EG‑Genehmigung für Kraftfahrzeuge und ihre Anhänger sowie für Systeme, Bauteile und selbstständige technische Einheiten für diese Fahrzeuge (EG‑Fahrzeuggenehmigungsverordnung) [Regulamento relativo à homologação CE dos veículos a motor e seus reboques, bem como dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a serem utilizados nesses veículos (Regulamento relativo à homologação CE dos veículos a motor)] ( 6 ), de 3 de fevereiro de 2011, com a epígrafe «Certificado de conformidade e de marca», dispõe o seguinte no n.o 1:

«Para cada veículo conforme com o modelo homologado, o titular da homologação CE por modelo de veículo deve emitir um certificado de conformidade na aceção do artigo 18.o, conjugado com o anexo IX, da Diretiva [2007/46]. Em conformidade com o artigo 18.o, n.o 3, da Diretiva [2007/46], o certificado de conformidade é concebido por forma a impedir falsificações.»

15.

O artigo 27.o, n.o 1, deste regulamento, com a epígrafe «Matrícula e venda», dispõe, no n.o 1:

«Os veículos, unidades técnicas ou componentes novos que requeiram um certificado de conformidade de acordo com o anexo IX da Diretiva [2007/46], o anexo IV da Diretiva 2002/24/CE ( 7 ), ou com o anexo III da Diretiva 2003/37/CE ( 8 ), só podem ser postos à venda, vendidos ou colocados no mercado na Alemanha para efeitos de circulação rodoviária se acompanhados de um certificado de conformidade válido. Tal não é aplicável aos veículos na aceção do artigo 8.o da Diretiva [2003/37].»

16.

O § 348 do Zivilprozessordnung (Código de Processo Civil, a seguir «ZPO»), com a epígrafe «Juiz singular inicial», tem a seguinte redação:

«(1)   A Secção Cível delibera através de um dos seus membros na qualidade de juiz singular. Tal não se aplica quando:

[…]

(3)   O juiz singular remete o processo à secção cível para que esta dele tome conhecimento, quando

1.

o processo apresenta dificuldades de facto ou de direito específicas,

2.

o processo tenha uma importância de princípio; ou

3.

as partes o requeiram por unanimidade.

A Secção conhece do litígio quando estejam reunidas as condições previstas nos pontos 1 ou 2, primeiro período. A este respeito, profere a sua decisão por despacho, depois de ouvidas as partes.

[…]»

III. Litígio no processo principal, questões prejudiciais e tramitação do processo no Tribunal de Justiça

17.

Em 20 de março de 2014, QB comprou à Auto Y GmbH um veículo automóvel usado, da marca Mercedes‑Benz, modelo C 220 CDI com uma quilometragem de 28591 km, pelo preço de 29999 euros (a seguir «veículo em causa»). Este veículo, comercializado pelo fabricante automóvel Daimler AG e matriculado pela primeira vez em 15 de março de 2013, está equipado com um motor diesel modelo OM 651, de geração Euro 5.

18.

O referido veículo tem instalado um software de programação do motor que prevê uma janela térmica (a seguir «programa informático em causa»), nos termos da qual a taxa de reciclagem dos gases de escape é reduzida quando as temperaturas exteriores são mais frias (a seguir «janela térmica em causa»), o que tem como consequência aumentar as emissões de NOx. A temperatura exterior exata a partir da qual se verifica a redução da taxa de reciclagem dos gases de escape e a amplitude desta redução são debatidas entre as partes no processo principal.

19.

QB intentou uma ação contra a Mercedes‑Benz Group AG no Landgericht Ravensburg (Tribunal Regional de Ravensburg), o órgão jurisdicional de reenvio, alegando que o programa informático em causa contém, além da janela térmica em causa, outros dispositivos manipuladores proibidos, na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, que reduzem a eficácia dos sistemas de controlo das emissões de poluentes em condições reais de condução em estrada. Alegou que a Mercedes‑Benz Group o enganou intencionalmente a este respeito, em violação da ordem pública e dos bons costumes, e que esta sociedade está obrigada a ressarcir o prejuízo causado. QB acrescentou que, tendo em conta o comportamento intencional da Mercedes‑Benz Group, não será devida nenhuma indemnização pela utilização do veículo em causa. No entanto, a título de precaução, está disposto a pagar uma indemnização de utilização, deixada à discricionariedade do órgão jurisdicional de reenvio, pela quilometragem percorrida. QB considerou que essa indemnização se devia basear numa quota de 75 %, quando muito, do preço de compra, devido à presença de um sistema de controlo das emissões de poluentes defeituoso.

20.

Segundo a Mercedes‑Benz Group, resulta do Acórdão CLCV que constitui um dispositivo manipulador, na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, unicamente um sistema que permite detetar as condições características do teste de homologação relativo às emissões de poluentes, que é efetuado em laboratório, e reduzir as emissões de NOx por manipulação apenas para efeitos do procedimento de homologação CE. Ora, tal sistema não está presente no veículo em causa.

21.

A Mercedes‑Benz Group não contestou que a taxa de reciclagem dos gases de escape é já reduzida a partir de uma temperatura exterior superior a 0 graus Celsius. Com efeito, se a reciclagem total fosse efetuada a temperaturas exteriores baixas, verificar‑se‑ia uma condensação dos componentes dos gases de escape, que provocaria diversos depósitos indesejáveis no motor, e o funcionamento repetido deste nesse estado poderia causar danos duradouros. Assim, para proteger o motor, é necessário reduzir a reciclagem dos gases de escape em função da temperatura exteriores. Trata‑se de um processo industrial utilizado desde sempre por todos os fabricantes automóveis e que tem em conta as características físicas e técnicas dos motores de combustão interna. A Mercedes‑Benz Group acrescentou que, mesmo admitindo que esse processo constitua um dispositivo manipulador, na aceção do Regulamento n.o 715/2007, o seu comportamento não é contrário à ordem pública nem aos bons costumes, alegando que se baseou numa compreensão exata, ou pelo menos justificável, das regras previstas pelo direito da União em matéria de emissões.

22.

A título subsidiário, a Mercedes‑Benz Group alegou que QB não sofreu nenhum prejuízo pelo facto de o veículo em causa dispor de uma homologação CE válida, poder ser utilizado sem restrições e não sofrer de nenhuma menos‑valia. Além disso, no âmbito de um serviço oferecido a título gracioso, desenvolveu e pôs à disposição de QB uma atualização do programa informático em questão para o veículo em causa.

23.

O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que, numa sua análise prévia, a janela térmica em causa constitui um dispositivo manipulador ilícito, na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, conjugado com o artigo 5.o, n.o 2, deste, à luz do Acórdão CLCV. Todavia, a Mercedes‑Benz Group não agiu em violação da ordem pública nem dos bons costumes, o que pressupõe um comportamento particularmente censurável, devendo a intenção, o objetivo, os fundamentos e as consequências ser apreciados exaustivamente. A este respeito, não se pode excluir que, no momento em que o veículo em causa foi colocado no mercado, a Mercedes‑Benz Group não tenha deliberadamente procurado prejudicar os potenciais compradores pela sua interpretação do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007. Por conseguinte, QB não pode beneficiar de um direito a indemnização baseado na responsabilidade extracontratual nos termos do § 826 do BGB.

24.

Em contrapartida, pode ser reconhecido a QB um direito de indemnização nos termos do § 823, n.o 2, do BGB, que visa uma simples negligência. No entanto, esta disposição pressupõe a violação de uma lei destinada a proteger outrem, o que, segundo a jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal, Alemanha), significa que visa pelo menos proteger o particular ou um grupo de pessoas contra a violação de um interesse jurídico específico. Basta que esta lei se destine igualmente a proteger o interesse do particular, ao fazer parte dos objetivos da referida lei, mesmo que esta diga principalmente respeito ao interesse geral. Além disso, a referida disposição implica que o perigo contra o qual esta mesma lei supostamente protege se materializou num prejuízo concreto e que a pessoa concretamente lesada deve estar abrangida pelo âmbito de aplicação pessoal da lei violada. Por conseguinte, põe‑se a questão de saber se o artigo 18.o, n.o 1, o artigo 26.o, n.o 1, e o artigo 46.o da Diretiva 2007/46, lidos em conjugação com o artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, visam, além da proteção de interesses gerais, também os interesses de um comprador individual de um veículo não conforme com o direito da União, nomeadamente quando está equipado com um dispositivo manipulador ilícito com fundamento nesse regulamento.

25.

Há na jurisprudência e na doutrina alemãs pontos de vista diferentes sobre estas questões. A este respeito, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) considera que, embora as informações constantes do certificado de conformidade, conforme previsto pela Diretiva 2007/46, visem igualmente, no plano pessoal, o comprador individual de um veículo, não protegem o direito à autodeterminação económica desse comprador. Segundo outros órgãos jurisdicionais nacionais, o artigo 18.o, n.o 1, o artigo 26.o, n.o 1, e o artigo 46.o da Diretiva 2007/46, bem como o artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, têm caráter de proteção individual.

26.

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, mesmo admitindo que estas disposições protegem apenas interesses jurídicos gerais e não os interesses dos compradores individuais, o princípio da efetividade pode exigir que qualquer culpa, por negligência ou intencional, cometida por um fabricante automóvel ao colocar no mercado veículos equipados com um dispositivo manipulador ilícito seja sancionada pela possibilidade de o comprador invocar contra esse fabricante um direito de indemnização baseado na responsabilidade extracontratual.

27.

No caso de QB poder beneficiar desse direito a indemnização com base no § 823, n.o 2, do BGB, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se é necessário, para dar um efeito prático às disposições do direito da União aplicáveis, que o benefício resultante da utilização do veículo em causa não seja imputado no direito à indemnização ou apenas o seja numa medida limitada. Mais uma vez, esta questão foi objeto de interpretações divergentes na jurisprudência e na doutrina nacionais. A este respeito, o Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) considera que, tendo em conta a proibição do enriquecimento sem causa prevista pelo direito nacional em matéria de indemnização, a pessoa lesada não pode ser posta numa posição mais favorável do que aquela em que se encontraria sem o evento causador de prejuízo e que devem ser imputados ao direito à indemnização unicamente os benefícios ligados a esse evento, sem desonerar de forma desproporcionada o autor do dano.

28.

Por último, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, por força do § 348, n.o 3, pontos 1 e 2, do ZPO, o juiz singular competente é obrigado a remeter o processo a uma secção cível, para que esta verifique se existem dificuldades particulares de natureza factual ou se o processo reveste uma importância fundamental ( 9 ). O juiz singular não dispõe, a este respeito, de nenhum poder de apreciação. Decorre da jurisprudência do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal) que só se a Secção se recusar a renovar o pedido de decisão é que esse juiz pode apresentar um pedido de decisão prejudicial, em aplicação do princípio constitucional do juiz legal previsto no § 101, n.o 1, segundo período, da Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha), de 23 de maio de 1949 ( 10 ).

29.

O órgão jurisdicional de reenvio observa que, segundo a doutrina, o direito processual nacional não deve prejudicar a possibilidade de apresentar um pedido prejudicial nos termos do artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE, especialmente quando o órgão jurisdicional em questão considera que a apreciação jurídica do órgão jurisdicional superior pode conduzir a uma decisão contrária ao direito da União. Por conseguinte, parece decorrer do artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE que o § 348, n.o 3, pontos 1 e 2, do ZPO não é aplicável a decisões de reenvio proferidas pelo juiz singular inicial. No caso em apreço, se o primado do direito da União sobre o direito processual nacional não for expressamente declarado, a competência do juiz singular pode ser contestada no âmbito de vias de recurso.

30.

Foi nestas condições que o Landgericht Ravensburg (Tribunal Regional de Ravensburg) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O artigo 18.o, n.o 1, o artigo 26.o, n.o 1, e o artigo 46.o da [Diretiva 2007/46], em conjugação com o artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, têm também como objetivo salvaguardar os interesses dos [compradores] individuais de veículos a motor?

Em caso de resposta afirmativa:

2)

Esses interesses incluem o interesse do [comprador] individual de um veículo em não adquirir um veículo que não esteja em conformidade com as disposições de direito da União, mais concretamente o interesse em não adquirir um veículo equipado com um dispositivo manipulador proibido pelo artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007?

Em caso de resposta negativa à primeira questão prejudicial:

3)

No caso de uma pessoa adquirir involuntariamente um veículo que o fabricante introduziu no consumo equipado com um dispositivo manipulador proibido pelo artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, é incompatível com o direito da União que esse [comprador] só possa deduzir contra o fabricante pretensões indemnizatórias, com fundamento em responsabilidade [extracontratual], com vista ao ressarcimento do seu dano e, mais concretamente, com vista ao reembolso do preço pago pelo veículo contra a devolução e retoma do mesmo, a título excecional, se o fabricante tiver atuado dolosamente e em termos contrários aos bons costumes?

Em caso de resposta afirmativa:

4)

O direito da União exige que se reconheça ao [comprador] do veículo a titularidade de um direito [de indemnização], com fundamento em responsabilidade [extracontratual], contra o fabricante desse veículo, sempre que se verifique uma atuação culposa (negligente ou dolosa) relacionada com a introdução no consumo de um veículo equipado com um dispositivo manipulador proibido pelo artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 715/2007?

Independentemente das respostas às primeiras quatro questões prejudiciais:

5)

É incompatível com o direito da União o direito nacional obrigar o [comprador] de um veículo a sujeitar‑se à dedução da vantagem decorrente da efetiva utilização do veículo, sempre que exija, a título de ressarcimento de danos com fundamento em responsabilidade [extracontratual], o reembolso do preço pago por esse mesmo veículo, que foi introduzido no consumo equipado com um dispositivo manipulador proibido pelo artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 715/2007, contra a devolução e a retoma do mesmo?

[Em caso de resposta negativa]:

6)

É incompatível com o direito da União que o cálculo dessa vantagem decorrente da utilização tome como referência o preço total de compra, sem nenhuma redução pelo facto de o veículo dispor de menor valor comercial por estar equipado com um dispositivo manipulador proibido e/ou de o [comprador] ter utilizado involuntariamente um veículo que não é conforme ao direito da União?

Independentemente das respostas às primeiras seis questões prejudiciais:

7)

O § 348, n.o 3, do ZPO (código de processo civil), na medida em que se considere que o seu âmbito de aplicação abstrato também é extensivo à prolação de decisões de reenvio prejudicial nos termos do artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE, é incompatível com a faculdade, reconhecida aos órgãos jurisdicionais nacionais por esse artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE, de efetuarem reenvios prejudiciais, não devendo, como tal, ser aplicado a estes últimos?»

31.

Foram apresentadas observações escritas por QB, pela Mercedes‑Benz Group pela Comissão Europeia. Estas partes, bem como o Governo alemão, também apresentaram observações orais na audiência de alegações realizada em 8 de março de 2022.

IV. Análise

A.   Observações preliminares

32.

O órgão jurisdicional de reenvio refere que, segundo a sua apreciação provisória, a janela térmica em causa constitui um dispositivo manipulador ilícito, na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, conjugado com o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), deste regulamento. Com efeito, embora a eficácia do sistema de controlo de emissões de poluentes seja já reduzida a partir de uma temperatura exterior superior a 0 graus Celsius, esta situação colocar‑se‑ia em circunstâncias que seja razoável esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais do veículo no sentido do referido artigo 3.o, ponto 10. Este órgão jurisdicional acrescenta que importa pouco o facto de a janela térmica em causa não permitir detetar os parâmetros do teste de homologação para verificar o nível de emissões de poluentes, na medida em que esse elemento não é exigido pelo artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento 715/2007, nem pelo Acórdão CLCV. Acresce que esta janela não é autorizada a título derrogatório com fundamento no artigo 5.o, n.o 2, alínea a), deste regulamento uma vez que este acórdão enunciou que só os riscos imediatos de danos que criem um perigo concreto na condução do veículo são suscetíveis de justificar a existência de um dispositivo manipulador ( 11 ). Ora, no caso em apreço, a Mercedes‑Benz Group alegou que a janela térmica em causa tem por objetivo impedir depósitos indesejáveis no motor, ou seja, para o proteger do desgaste, o que, segundo o referido órgão jurisdicional, não parece responder aos requisitos estritos fixados pelo Tribunal de Justiça para que um dispositivo manipulador seja lícito.

33.

A este respeito, saliento que, no Acórdão CLCV, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007 deve ser interpretado no sentido de que constitui um «dispositivo manipulador» na aceção desta disposição, um dispositivo que deteta qualquer parâmetro relacionado com o desenrolar dos procedimentos de homologação previstos nesse regulamento, a fim de melhorar o desempenho do sistema de controlo das emissões durante esses procedimentos e obter, assim, a homologação do veículo, ainda que essa melhoria se possa igualmente verificar, de forma pontual, em condições normais de utilização do veículo ( 12 ). Por outro lado, o Tribunal de Justiça precisou que o artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do referido regulamento deve ser interpretado no sentido de que um dispositivo manipulador que melhora sistematicamente, durante os procedimentos de homologação, o desempenho do sistema de controlo das emissões dos veículos a fim de respeitar os limites de emissões fixados por esse mesmo regulamento e obter, assim, a homologação desses veículos, não pode ser abrangido pela exceção à proibição de tais dispositivos prevista nessa disposição, relativa à proteção do motor contra danos ou acidentes e ao funcionamento seguro do veículo, ainda que esse dispositivo contribua para prevenir o envelhecimento do motor ou a acumulação de sujidade no mesmo ( 13 ).

34.

O processo que deu origem ao Acórdão CLCV dizia respeito a veículos equipados com um programa informático que podia alterar o sistema de controlo das emissões de gases poluentes em função das condições de condução ( 14 ). Com efeito, esse programa informático permitia detetar os parâmetros que correspondem aos do teste de homologação relativo às emissões de poluentes que se efetua em laboratório.

35.

Ao contrário deste processo, relativo a um «sistema de comutação», os processos C‑128/20, GSMB Invest; C‑134/20, Volkswagen, bem como C‑145/20, Porsche Inter Auto e Volkswagen dizem respeito a uma janela térmica, como no processo principal. Nas minhas conclusões comuns nesses três processos ( 15 ), propus ao Tribunal de Justiça que considerasse que o artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007, conjugado com o artigo 5.o, n.o 1, deste regulamento, deve ser interpretado no sentido de que constitui um «dispositivo manipulador» um dispositivo que, em condições reais de condução de um veículo a motor, só assegura plenamente a reciclagem dos gases de escape quando a temperatura exterior se situa entre 15 e 33 graus Celsius e a altitude de circulação é inferior a 1000 metros, ao passo que fora dessa janela, numa margem de 10 graus Celsius e acima de 1000 metros de altitude, num intervalo de 250 metros, a taxa de reciclagem dos gases de escape é reduzida linearmente a 0, com a consequência de as emissões de NOx aumentarem além dos valores limites fixados no referido regulamento ( 16 ).

36.

No presente processo, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a temperatura exterior exata a partir da qual se verifica a redução da taxa de reciclagem dos gases de escape e a amplitude dessa redução foram debatidas entre as partes no processo principal. O órgão jurisdicional de reenvio tem competência exclusiva para verificar e apreciar os factos do litígio no processo principal, examinar as condições em que funciona a janela térmica em causa. Como indiquei nas minhas conclusões ( 17 ), segundo dados oficiais, a temperatura média anual na Alemanha foi de 9,6 graus Celsius em 2017, de 10,4 graus Celsius em 2018 e de 10,2 graus Celsius em 2019. Tendo em conta estes dados e a temperatura média anual noutros Estados‑Membros da União ( 18 ), cabe a este órgão jurisdicional verificar se, como considera, o programa informático em questão reduz a eficácia do sistema de controlo das emissões de poluentes nas «condições que se pode razoavelmente esperar que se verifiquem durante o funcionamento e a utilização normais dos veículos». Em caso afirmativo, este programa informático constitui um «dispositivo manipulador», na aceção do artigo 3.o, ponto 10, do Regulamento n.o 715/2007.

37.

Se for este o caso, partilho da posição do órgão jurisdicional de reenvio de que esse dispositivo não pode ser justificado ao abrigo do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), deste regulamento, se o seu único objetivo for contribuir para a prevenção do envelhecimento do motor ou a acumulação de sujidade no mesmo ( 19 ). A meu ver, só pode enquadrar um dispositivo manipulador nos termos do referido artigo 5.o, n.o 2, alínea a), no caso em que os depósitos se formam durante a reciclagem dos gases de escape que provocam o mau funcionamento suscetível criar riscos súbitos e imediatos de danos no próprio motor, gerando um perigo concreto durante a condução do veículo, mesmo quando esse veículo tenha sido objeto de uma manutenção regular e adequada ( 20 ). Ainda aqui, compete ao órgão jurisdicional de envio verificar se esse mau funcionamento pode ocorrer.

38.

Na situação em que esse órgão jurisdicional, no termo dessas verificações, confirma a sua apreciação de que a janela térmica em causa constitui um dispositivo manipulador ilícito na aceção do artigo 5.o, n.o 2, alínea a), do Regulamento n.o 715/2007, põe‑se a questão do direito à indemnização de que o comprador de um veículo equipado com esse dispositivo pode beneficiar, que é o objeto das seis primeiras questões prejudiciais.

B.   Quanto às primeira e segunda questões prejudiciais

39.

Com as suas primeira e segunda questões, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 18.o, n.o 1, o artigo 26.o, n.o 1, e o artigo 46.o da Diretiva 2007/46 devem ser interpretados no sentido de que protegem os interesses de um comprador individual de um veículo a motor, nomeadamente o interesse de não adquirir um veículo que esteja equipado com um dispositivo manipulador ilícito, na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007.

40.

A este respeito, há que salientar que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, resulta dos considerandos 1, 5 e 6 do Regulamento n.o 715/2007 que objetivo prosseguido por este último consiste em assegurar um nível elevado de proteção do ambiente e melhorar a qualidade do ar na União ( 21 ). Este regulamento menciona apenas uma vez os termos «cliente» e «utilizador», a saber no considerando 17, nos termos do qual «[é] igualmente necessário assegurar que os clientes e utilizadores recebam informação objetiva e rigorosa» ( 22 ) quanto ao consumo de combustível e às emissões de dióxido de carbono dos veículos. Por outro lado, o artigo 4.o, n.o 3, do referido regulamento enuncia que «[o]s fabricantes devem indicar os valores das emissões de dióxido de carbono e do consumo de combustível num documento a entregar ao comprador do veículo no momento da compra» ( 23 ). Também aí se trata da única referência ao «comprador» em todo o regulamento. Por conseguinte, o Regulamento n.o 715/2007 prevê obrigações concretas de informação do cliente e do comprador relativas ao consumo do veículo em causa, a fim de lhes permitir decidir, com todo o conhecimento de causa, da adquisição ou não desse veículo. No entanto, afigura‑se que estas obrigações de informação se inscrevem no âmbito do objetivo prosseguido por este regulamento de um nível elevado de proteção do ambiente através da redução das emissões de poluentes. Além das referidas obrigações, o citado regulamento não estabelece uma ligação explícita entre o fabricante automóvel e o comprador individual de um veículo com vista a proteger os interesses deste.

41.

Neste sentido, o artigo 5.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 715/2007 dispõe que o fabricante deve equipar os veículos de forma que os componentes suscetíveis de afetar as emissões sejam concebidos, construídos e montados de modo a permitir que o veículo cumpra, em utilização normal, o disposto no presente regulamento e nas respetivas medidas de execução e que, salvo exceções, a utilização de dispositivos manipuladores que reduzam a eficácia dos sistemas de controlo das emissões é proibida. Assim, estas disposições dizem apenas respeito aos fabricantes. Por conseguinte, partilho da posição da Comissão segundo a qual este regulamento, enquanto tal, e nomeadamente o seu artigo 5.o, n.os 1 e 2, não visa proteger diretamente os interesses de um comprador individual de um veículo a motor equipado com um dispositivo manipulador ilícito.

42.

No entanto, para responder às duas primeiras questões submetidas, o Regulamento n.o 715/2007 deve ser recolocado no seu contexto. Com efeito, a Diretiva 2007/46, que é uma diretiva que estabelece um quadro para a homologação dos veículos a motor, é o ato de base em relação a este regulamento. Como enuncia o considerando 3 desta diretiva, os atos regulamentares que definem os requisitos técnicos aplicáveis deverão ter como principal objetivo assegurar um elevado nível de segurança rodoviária, de proteção da saúde e do ambiente, de eficiência energética e de proteção contra a utilização não autorizada. No entanto, na minha opinião, contrariamente ao que sustentam a Mercedes‑Benz Group e o Governo alemão, resulta das disposições da referida diretiva que a mesma também visa proteger os interesses de um comprador individual de um veículo equipado com um dispositivo manipulador ilícito.

43.

Com efeito, o artigo 3.o, ponto 5, da Diretiva 2007/46 define a «Homologação CE», o «procedimento através do qual um Estado‑Membro certifica que um modelo de veículo ou tipo de sistema, de componente ou de unidade técnica cumpre as disposições administrativas e os requisitos técnicos aplicáveis constantes da presente diretiva e dos atos regulamentares enumerados nos seus anexos IV ou XI» desta diretiva. Este anexo IV, com o título «Requisitos para efeitos de homologação CE de veículos», refere, na sua parte I, intitulada «Atos regulamentares para efeitos de homologação CE de veículos produzidos em séries não‑limitadas», o Regulamento n.o 715/2007 no que respeita às «[e]missões (Euro 5 e 6) de veículos ligeiros/acesso à informação».

44.

Por outro lado, como enuncia o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2007/46, «[o] fabricante é responsável perante a entidade homologadora por todos os aspetos do processo de homologação e por assegurar a conformidade da produção, independentemente de estar ou não envolvido diretamente em todas as fases do fabrico de um veículo, sistema, componente ou unidade técnica». Portanto, quando o fabricante pede a homologação CE para veículos, está obrigado a cumprir o artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007.

45.

Embora o cumprimento destes requisitos seja necessário para efeitos dessa homologação CE, há que sublinhar que este cumprimento também diz diretamente respeito ao comprador individual de um veículo mediante o certificado de conformidade. Este último é definido no artigo 3.o, n.o 36, da Diretiva 2007/46 como «o documento constante do anexo IX, emitido pelo fabricante, que certifica que um determinado veículo de uma série de um modelo homologado nos termos da presente diretiva está conforme com todos os atos regulamentares aquando da sua produção». Esse anexo IX, com a epígrafe «Certificado CE de conformidade», inclui um ponto 0, intitulado «Objetivos», nos termos do qual o certificado de conformidade é uma declaração emitida pelo fabricante do veículo ao comprador, a fim de lhe garantir que o veículo adquirido cumpre a legislação em vigor na União à data em que foi produzido ( 24 ). Por conseguinte, a Diretiva 2007/46, ao contrário do Regulamento n.o 715/2007, estabelece uma conexão explícita entre o fabricante automóvel e o comprador individual de um veículo com vista a garantir a este último que o veículo comprado está conforme com a legislação da União aplicável.

46.

Neste quadro, o artigo 18.o, n.o 1, da Diretiva 2007/46 enuncia que o fabricante, na sua qualidade de titular de um certificado de homologação CE de um veículo, deve entregar um certificado de conformidade a acompanhar cada veículo que é fabricado conforme com o modelo do veículo homologado. Este documento é obrigatório para a matrícula ou a venda, em aplicação do artigo 26.o, n.o 1, desta diretiva. Por outro lado, o artigo 46.o da referida diretiva dispõe que os Estados‑Membros determinam as sanções aplicáveis em caso de violação das disposições desta mesma diretiva, especialmente as proibições constantes do artigo 31.o ou dele decorrentes, e dos atos regulamentares enumerados na parte I do anexo IV, da Diretiva 2007/46 e tomam as medidas necessárias para a sua aplicação. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, este artigo 46.o serve principalmente o objetivo da instituição e do funcionamento de um mercado interno caracterizado por uma concorrência leal entre fabricantes e que além desse objetivo, as sanções previstas no artigo 46.o devem igualmente garantir que o comprador de um veículo esteja na posse de um certificado de conformidade que lhe permita, de acordo com o anexo IX desta diretiva, matriculá‑lo em qualquer Estado‑Membro, sem ter de apresentar documentação técnica complementar ( 25 ).

47.

Resulta destas diferentes disposições da Diretiva 2007/46 que, no âmbito de uma homologação CE, o fabricante deve respeitar, nomeadamente, os requisitos relativos aos dispositivos manipuladores referidos no artigo 5.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 715/2007. Só neste caso esse fabricante pode entregar ao comprador de um veículo um certificado de conformidade, que permite a esse comprador matricular ou vender esse veículo. Este certificado, que constitui uma garantia, visa assim proteger o comprador contra o incumprimento pelo fabricante da sua obrigação de colocar no mercado veículos conformes com as disposições regulamentares da União aplicáveis.

48.

No entanto, a homologação CE pode, nomeadamente, ter sido obtida antes de o organismo de homologação ter tido conhecimento da presença de um dispositivo manipulador ilícito, na aceção do artigo 5.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 715/2007 ( 26 ). Por outro lado, o veículo em questão pode também não corresponder ao modelo homologado. No âmbito da venda individual de um veículo equipado com esse dispositivo ilícito, esse veículo não dispõe de um certificado de conformidade exato e não pode, pois, ser matriculado ou ser objeto de revenda, em aplicação do artigo 26.o, n.o 1, da Diretiva 2007/46. Nessa situação, os interesses do comprador de um tal veículo não foram protegidos, o que implica um prejuízo para este.

49.

Acresce que, como o Tribunal de Justiça enunciou, o comprador sofre um dano material resultante de uma perda de valor do veículo em questão e decorrente do facto de, com a revelação da instalação do programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, o pagamento efetuado para a aquisição desse veículo ter como contrapartida um veículo afetado por um vício e, portanto, com um valor inferior ( 27 ). A posse de um veículo que não cumpre as disposições do direito da União em matéria de proteção do ambiente, devido a emissões de gazes poluentes que ultrapassam os valores limites fixados causa também, a meu ver, um dano moral a esse comprador.

50.

Nessas condições, proponho responder à primeira e segunda questões prejudiciais que o artigo 18.o, n.o 1, o artigo 26.o, n.o 1, e o artigo 46.o da Diretiva 2007/46 devem ser interpretados no sentido de que protegem os interesses de um comprador individual de um veículo a motor, nomeadamente o interesse em não adquirir um veículo que esteja equipado com um dispositivo manipulador ilícito, na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007.

C.   Quanto à terceira a sexta questões prejudiciais

51.

Com a terceira a sexta questões, que importa examinar em conjunto ( 28 ), o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva 2007/46 deve ser interpretada no sentido de que impõe aos Estados‑Membros que prevejam que o comprador de um veículo tenha direito a uma indemnização do fabricante automóvel na situação em que esse veículo esteja equipado com um dispositivo manipulador ilícito, na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007, e, em caso afirmativo, em que medida estes Estados devem prever imputar o benefício obtido com a utilização efetiva do referido veículo sobre o valor da indemnização.

52.

A título preliminar, saliento que QB intentou a sua ação contra a Mercedes‑Benz Group, a saber, o fabricante e não contra a pessoa que lhe vendeu esse veículo usado. Por conseguinte, a Diretiva 1999/44/CE ( 29 ), que respeita às relações entre o consumidor e o vendedor, não é aplicável num caso como o do processo principal. Por outro lado, QB não invocou a Diretiva 2005/29/CE ( 30 ), relativa às práticas comerciais desleais, mas baseou‑se na responsabilidade extracontratual conforme prevista pelas disposições do BGB. Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber em que medida a regulamentação nacional é conforme com o direito da União no que respeita ao direito à indemnização e ao método de cálculo da indemnização.

53.

Relativamente à responsabilidade extracontratual, resulta da resposta que proponho dar às duas primeiras questões prejudiciais que a Diretiva 2007/46 cria direitos a favor do comprador nas suas relações com o fabricante quando adquire um veículo equipado com um dispositivo manipulador ilícito, na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007. Por outro lado, o artigo 46.o desta diretiva prevê que os Estados‑Membros determinam as sanções aplicáveis em caso de violação dos atos regulamentares enumerados na parte I do anexo IV, da referida diretiva e tomam as medidas necessárias para a sua aplicação, através de sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas ( 31 ). Assim, este artigo é aplicável à situação em que, para efeitos de uma homologação CE, os veículos em questão são equipados com um dispositivo manipulador ilícito, em violação do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007 ( 32 ).

54.

Por conseguinte, essas sanções devem ser em benefício não só do Estado‑Membro em questão, no âmbito da homologação CE, mas também de um comprador individual de um veículo equipado com um dispositivo manipulador ilícito. Por outras palavras, a Diretiva 2007/46 impõe aos Estados‑Membros que prevejam que o comprador de um veículo beneficia de um direito à indemnização quando o fabricante cometeu o erro de colocar esse veículo no mercado. No entanto, esta diretiva enuncia unicamente que esses Estados devem aplicar sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas ( 33 ).

55.

Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, na falta de regulamentação do direito da União, cabe aos Estados‑Membros designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das ações judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos particulares pelo direito da União ( 34 ). Assim, sem prejuízo do direito a indemnização baseado diretamente no direito da União quando estão preenchidos os requisitos necessários para o efeito, é no âmbito do direito nacional da responsabilidade que importa determinar de que modo o prejuízo causado deve ser ressarcido, entendendo‑se que os requisitos estabelecidos pelas legislações nacionais em matéria de ressarcimento dos prejuízos devem permitir a aplicação de sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas.

56.

No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em primeiro lugar, se é conforme com o direito da União que o comprador de um veículo equipado com um dispositivo manipulador tenha apenas o direito de deduzir contra o fabricante pretensões indemnizatórias, com fundamento em responsabilidade extracontratual em circunstâncias em que o fabricante tenha dolosamente causado um prejuízo a outrem, contrários à ordem pública e aos bons costumes, na aceção do § 826 do BGB.

57.

A este respeito, em conformidade com o princípio da efetividade ( 35 ), cabe a esse órgão jurisdicional verificar se as condições previstas no § 826 do BGB são suscetíveis de tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício do direito à indemnização conferido ao comprador de um veículo pela Diretiva 2007/46. Em caso afirmativo, essas regras processuais nacionais não são conformes com o direito da União.

58.

Nesta fase, saliento que, na sua decisão, o órgão jurisdicional de reenvio referiu que é pouco provável que as condições previstas no § 826 do BGB, conforme interpretadas pelos órgãos jurisdicionais nacionais, cumpram o artigo 46.o da Diretiva 2007/46, uma vez que apenas casos excecionais preenchem estes requisitos e que, assim, no estado atual do direito, o fabricante não tem de recear uma ação de indemnização, com a consequência de que não tem nenhum incentivo para se conformar escrupulosamente com as disposições do direito da União para evitar que a sua responsabilidade extracontratual seja posta em causa ( 36 ).

59.

Na hipótese de o órgão jurisdicional de reenvio confirmar esta apreciação, deverá então fazer referência ao § 823, n.o 2, do BGB, cuja aplicação, segundo esse órgão jurisdicional, exige mera negligência. Observo que, segundo o referido órgão jurisdicional, mesmo admitindo que as disposições pertinentes do direito da União apenas visam proteger o interesse geral, só seriam provavelmente respeitadas se a violação por negligência também fosse sancionada por um direito de indemnização dos compradores baseado na responsabilidade extracontratual dos fabricantes e se, à partida, estes últimos tivessem de a ter em conta.

60.

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, no âmbito do direito à indemnização do comprador de um veículo equipado com um dispositivo manipulador ilícito, o direito da União se opõe a que o benefício resultante da utilização efetiva desse veículo seja imputado no reembolso do preço de compra do referido veículo.

61.

Assim, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, no que respeita à forma e ao método de cálculo do ressarcimento do dano, o ressarcimento dos danos causados aos particulares em virtude de violações do direito da União deve ser adequada ao prejuízo sofrido, por forma a garantir uma proteção efetiva dos seus direitos ( 37 ). Como já foi referido, é ao direito nacional dos Estados‑Membros que cabe definir as regras do método de cálculo do ressarcimento do dano causado a um particular pela violação das disposições da Diretiva 2007/46 ( 38 ). A este respeito, os órgãos jurisdicionais nacionais têm legitimidade para zelar por que a proteção dos direitos garantidos pela ordem jurídica da União não implique um enriquecimento sem causa dos titulares desses direitos ( 39 ).

62.

Por conseguinte, compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar em que medida a imputação do benefício obtido com a utilização efetiva do veículo — em condições normais de utilização — no reembolso do preço de compra do mesmo assegura uma indemnização adequada ao comprador. Esse órgão jurisdicional refere que, até à data da audiência realizada perante si, QB tinha percorrido mais de 60000 km com o veículo em causa e que, se o benefício obtido com a utilização devesse ser imputado, havia que considerar a menos‑valia sofrida por esse veículo para calcular o montante da imputação. A este respeito, como resulta da jurisprudência referida no número anterior das presentes conclusões, o referido órgão jurisdicional tem fundamento para ter em conta que a proteção dos direitos garantidos pela Diretiva 2007/46 não implica um enriquecimento sem causa de QB. Por conseguinte, o benefício obtido com a utilização efetiva do veículo em causa pode ser imputado no reembolso do preço de compra deste veículo. No entanto, afigura‑se‑me claro que, se essa imputação levar a que QB não obtenha, no fim de contas, nenhuma indemnização pelo dano sofrido, esse método de cálculo não assegura a sua proteção efetiva e não é conforme com o direito da União.

63.

Em terceiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o benefício resultante da utilização do veículo em causa deve ser calculado com base no preço de compra total deste, sem proceder à dedução a título da menos‑valia resultante da montagem de um dispositivo manipulador ilícito e/ou da utilização de um veículo não conforme com o direito da União. Ainda aqui, na falta de regulamentação do direito da União, não cabe ao Tribunal de Justiça embrenhar‑se no direito dos Estados‑Membros para indicar como deve ser calculada a indemnização pelo prejuízo sofrido ( 40 ). O único requisito previsto pelo direito da União é que a indemnização seja adequada, ou seja, que possa assegurar uma proteção efetiva dos direitos do comprador.

64.

Por último, saliento que, embora os requisitos referidos no anexo IV da Diretiva 2007/46, nomeadamente a aplicação do artigo 5.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 715/2007, devam ser observados pelos fabricantes automóveis para os veículos novos ( 41 ), dizem igualmente respeito aos veículos usados, no âmbito da responsabilidade extracontratual, quando um fabricante cometeu o erro de instalar um dispositivo manipulador ilícito.

65.

Tendo em conta o que precede, proponho responder à terceira a sexta questões prejudiciais que a Diretiva 2007/46 deve ser interpretada no sentido de que impõe aos Estados‑Membros a previsão de que o comprador de um veículo tem direito a uma indemnização do fabricante automóvel na situação em que esse veículo esteja equipado com um dispositivo manipulador ilícito na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007. Compete aos Estados‑Membros definir as regras relativas ao método de cálculo do ressarcimento do dano causado ao comprador desde que, em aplicação do princípio da efetividade, essa indemnização seja adequada ao prejuízo sofrido.

D.   Quanto à sétima questão prejudicial

66.

Com a sua sétima questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 267.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, nos termos da qual o juiz singular competente para decidir um litígio, só pode submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça se tiver previamente remetido o referido litígio a uma secção cível, que decidiu não renovar o pedido de decisão prejudicial.

1. Quanto à admissibilidade

67.

A Mercedes‑Benz Group alega que a sétima questão prejudicial é inadmissível pelo facto de, no âmbito de um processo apresentado nos termos do artigo 267.o TFUE, o Tribunal de Justiça não ser competente para se pronunciar sobre a compatibilidade do direito nacional com o direito da União ( 42 ).

68.

O Governo alemão sublinhou, na audiência, que esta questão não é útil para efeitos do litígio no processo principal.

69.

A Comissão refere que tem dúvidas quanto à admissibilidade da referida questão. Com efeito, uma resposta a esta questão não é pertinente para a solução do litígio no processo principal, que diz respeito à existência de um direito à indemnização do comprador de um veículo devido à utilização de um dispositivo manipulador ilícito. Além disso, a referida questão parece ser de natureza hipotética. Com efeito, como resulta da decisão de reenvio, esta última não tinha sido objeto de recurso até à data da submissão do pedido ao Tribunal de Justiça. Por conseguinte, uma eventual resposta à sétima questão prejudicial não parece suscetível de fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio uma interpretação do direito da União que lhe permita decidir questões processuais de direito nacional antes de poder decidir quanto ao mérito do litígio que lhe foi submetido ( 43 ).

70.

Em relação à admissibilidade da sétima questão prejudicial, resulta da decisão de reenvio que, em aplicação da regulamentação nacional, o juiz singular a quem foi submetido um litígio é obrigado a remeter o processo a uma secção cível para que esta conheça do pedido, quando o processo apresente dificuldades de facto ou de direito específicas ou se revista duma importância de princípio. Decorre desta decisão que o órgão jurisdicional de reenvio, a saber, um juiz singular, não remeteu o presente processo a uma secção cível e submeteu diretamente ao Tribunal de Justiça o seu pedido de decisão prejudicial.

71.

Segundo jurisprudência constante, o Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas ( 44 ).

72.

A este respeito, o litígio no processo principal tem por objeto o direito à indemnização e o seu método de cálculo no que respeita ao comprador individual de um veículo equipado com um dispositivo manipulador ilícito, na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007. Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, mesmo admitindo que, em conformidade com as regras processuais nacionais pertinentes, o juiz de reenvio, que é um juiz singular, devia ter remetido o processo principal a uma secção cível, as seis primeiras questões prejudiciais, relativas a esse direito a indemnização, são admissíveis. Com efeito, não cabe ao Tribunal de Justiça verificar se a decisão de reenvio foi adotada em conformidade com as regras nacionais de organização judiciária e de processo ( 45 ).

73.

Quanto à sétima questão prejudicial, tem por objeto a interpretação do próprio artigo 267.o TFUE, que não está em causa para efeitos da resolução do litígio no processo principal. Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio refere apenas que a competência do juiz singular pode ser contestada no âmbito das vias de recurso. Ora, por um lado, esse órgão jurisdicional não esclarece que consequência pode ser retirada da decisão de reenvio. Por outro lado, não resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, nesta fase, a decisão de reenvio tenha sido objeto de recurso.

74.

Nestas condições, considero que a interpretação solicitada pela sétima questão prejudicial não responde a uma necessidade objetiva para a decisão que o órgão jurisdicional de reenvio deve proferir ( 46 ). Por conseguinte, na minha opinião, esta questão é hipotética e, portanto, deve ser julgada inadmissível.

2. Quanto ao mérito

75.

Caso o Tribunal de Justiça considere que a sétima questão prejudicial é admissível, gostaria de recordar a jurisprudência segundo a qual os órgãos jurisdicionais nacionais dispõem da mais ampla faculdade de submeter ao Tribunal de Justiça uma questão de interpretação das disposições pertinentes do direito da União, transformando‑se esta faculdade numa obrigação para os órgãos jurisdicionais que decidem em última instância, sem prejuízo das exceções reconhecidas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. Tanto essa faculdade como essa obrigação são, com efeito, inerentes ao sistema de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.o TFUE, e às funções de juiz responsável pela aplicação do direito da União confiadas por esta disposição aos órgãos jurisdicionais nacionais. Por conseguinte, quando um órgão jurisdicional nacional, ao qual foi submetido um processo, considera que, no âmbito deste, se suscita uma questão relativa à interpretação ou à validade do direito da União, esse órgão jurisdicional tem a faculdade ou a obrigação, consoante o caso, de se dirigir ao Tribunal de Justiça a título prejudicial, sem que regras nacionais de natureza legislativa ou jurisprudencial possam constituir um obstáculo ao exercício desta faculdade ou desta obrigação ( 47 ).

76.

No caso de um órgão jurisdicional nacional cujas decisões sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, o artigo 267.o TFUE não se opõe a que as decisões desse órgão jurisdicional quando submete um pedido prejudicial ao Tribunal de Justiça continuem a estar sujeitas às vias normais de recurso previstas no direito nacional. Todavia, o resultado de um recurso nessas condições não pode restringir a competência atribuída pelo artigo 267.o TFUE ao referido órgão jurisdicional para submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça se considerar que um processo nele pendente suscita questões relativas à interpretação de disposições de direito da União que carecem de uma decisão por parte desta ( 48 ). Assim, o funcionamento do sistema de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituído pelo artigo 267.o TFUE e o princípio do primado do direito da União necessitam que o juiz nacional possa livremente, em qualquer momento do processo que considere adequado, submeter ao Tribunal de Justiça qualquer questão prejudicial que entenda ser necessária ( 49 ), mesmo que se trate de um juiz singular ( 50 ).

77.

Por conseguinte, considero que o artigo 267.o TFUE se opõe a uma regulamentação nacional se esta impõe a um juiz singular, quando este considera que, no âmbito de um processo pendente perante si, é suscitada uma questão que tem por objeto a interpretação ou a validade do direito da União que necessita de uma decisão do Tribunal de Justiça, o dever de remeter essa questão a uma secção cível, ficando assim impedido de submeter uma questão a título prejudicial ao Tribunal de Justiça ( 51 ).

V. Conclusão

78.

À luz das considerações anteriores, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Landgericht Ravensburg (Tribunal Regional de Ravensburg, Alemanha) do seguinte modo:

1)

O artigo 18.o, n.o 1, o artigo 26.o, n.o 1, e o artigo 46.o da Diretiva 2007/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, que estabelece um quadro para a homologação dos veículos a motor e seus reboques, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a serem utilizados nesses veículos (Diretiva‑Quadro), conforme alterada, devem ser interpretados no sentido de que protegem os interesses de um comprador individual de um veículo a motor, nomeadamente o interesse em não adquirir um veículo que esteja equipado com um dispositivo manipulador ilícito na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 715/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos, conforme alterada.

2)

A Diretiva 2007/46, conforme alterada, deve ser interpretada no sentido de que impõe aos Estados‑Membros que prevejam que o comprador de um veículo tem direito a uma indemnização do fabricante automóvel na situação em que esse veículo esteja equipado com um dispositivo manipulador ilícito na aceção do artigo 5.o, n.o 2, do Regulamento n.o 715/2007. Cabe aos Estados‑Membros definir as regras relativas ao método de cálculo do ressarcimento do dano causado a este comprador desde que, em aplicação do princípio da efetividade, essa indemnização seja adequada ao prejuízo sofrido.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2007, relativo à homologação dos veículos a motor no que respeita às emissões dos veículos ligeiros de passageiros e comerciais (Euro 5 e Euro 6) e ao acesso à informação relativa à reparação e manutenção de veículos (JO 2007, L 171, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.o 692/2008 da Comissão, de 18 de julho de 2008 (JO 2008, L 199, p. 1, a seguir «Regulamento n.o 715/2007»).

( 3 ) Conclusões nos processos GSMB Invest, Volkswagen e Porsche Inter Auto e Volkswagen (C‑128/20, C‑134/20 e C‑145/20, EU:C:2021:758). No momento da redação destas conclusões, o Tribunal de Justiça ainda não se pronunciou sobre esses processos.

( 4 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de setembro de 2007, que estabelece um quadro para a homologação dos veículos a motor e seus reboques, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destinados a serem utilizados nesses veículos (Diretiva‑Quadro) (JO 2007, L 263, p. 1), conforme alterada pelo Regulamento (UE) 2017/1151 da Comissão, de 1 de junho de 2017 (JO 2017, L 175, p. 1, a seguir «Diretiva 2007/46»).

( 5 ) A Diretiva 2007/46 foi revogada pelo Regulamento (UE) 2018/858 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2018, relativo à homologação e fiscalização do mercado dos veículos a motor e seus reboques, bem como dos sistemas, componentes e unidades técnicas distintas destinados a esses veículos, que altera os Regulamentos (CE) n.o 715/2007 e (CE) n.o 595/2009 e revoga a Diretiva 2007/46/CE (JO 2018, L 151, p. 1), com efeitos a partir de 1 de setembro de 2020, por força do artigo 88.o deste regulamento. No entanto, tendo em conta a data dos factos em causa, a Diretiva 2007/46 continua a ser aplicável ao litígio no processo principal.

( 6 ) BGB1, 2011 I, p. 126.

( 7 ) Diretiva 2002/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de março de 2002, relativa à homologação dos veículos a motor de duas ou três rodas e que revoga a Diretiva 92/61/CEE do Conselho (JO 2002, L 124, p. 1).

( 8 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de maio de 2003, relativa à homologação de tratores agrícolas ou florestais, seus reboques e máquinas intermutáveis rebocadas, e dos sistemas, componentes e unidades técnicas destes veículos e que revoga a Diretiva 74/150/CEE (JO 2003, L 171, p. 1).

( 9 ) Nas suas observações escritas, QB sublinhou que a jurisprudência nacional é interpretada no sentido de que uma questão prejudicial submetida ao Tribunal de Justiça está relacionada com uma matéria que apresenta uma «importância fundamental».

( 10 ) BGBI, 1949, p. 1.

( 11 ) V. Acórdão CLCV, n.o 114.

( 12 ) Acórdão CLCV, n.o 102.

( 13 ) Acórdão CLCV, n.o 115.

( 14 ) Acórdão CLCV, n.o 2.

( 15 ) V. n.o 1 das presentes conclusões.

( 16 ) N.o 104 dessas conclusões.

( 17 ) V. n.o 100 das Conclusões nos processos GSMB Invest, Volkswagen e Porsche Inter Auto e Volkswagen (C‑128/20, C‑134/20 e C‑145/20, EU:C:2021:758).

( 18 ) V. também n.o 100 dessas conclusões.

( 19 ) V., neste sentido, Acórdão CLCV, n.o 115.

( 20 ) V., neste sentido, n.os 125 e 126 das minhas Conclusões nos processos GSMB Invest, Volkswagen e Porsche Inter Auto e Volkswagen (C‑128/20, C‑134/20 e C‑145/20, EU:C:2021:758).

( 21 ) V. Acórdão CLCV, n.os 86, 87 e 113.

( 22 ) O sublinhado é meu.

( 23 ) O sublinhado é meu.

( 24 ) Tendo em conta esta redação, não partilho da posição expressa pela Mercedes‑Benz Group na audiência, de que não é o comprador que é o destinatário do certificado de conformidade.

( 25 ) Acórdão de 4 de outubro de 2018, Comissão/Alemanha (C‑668/16, EU:C:2018:802, n.o 87).

( 26 ) V., neste sentido, n.o 149 das minhas Conclusões nos processos GSMB Invest, Volkswagen e Porsche Inter Auto e Volkswagen (C‑128/20, C‑134/20 e C‑145/20, EU:C:2021:758).

( 27 ) V., neste sentido, Acórdão de 9 de julho de 2020, Verein für Konsumenteninformation (C‑343/19, EU:C:2020:534, n.o 34).

( 28 ) O órgão jurisdicional de reenvio refere que põe a terceira questão em caso de resposta negativa à primeira questão. Por outro lado, a quarta questão é uma subquestão da terceira. No entanto, para dar uma resposta útil a esse órgão jurisdicional, tratarei conjuntamente todas as questões relativas ao direito a indemnização e ao alcance deste.

( 29 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio de 1999, relativa a certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas (JO 1999, L 171, p. 12).

( 30 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno e que altera a Diretiva 84/450/CEE do Conselho, as Diretivas 97/7/CE, 98/27/CE e 2002/65/CE e o Regulamento (CE) n.o 2006/2004 («Diretiva relativa às práticas comerciais desleais») (JO 2005, L 149, p. 22).

( 31 ) Em resposta a uma questão escrita do Tribunal de Justiça, o Governo alemão esclareceu a natureza das diferentes sanções aplicadas a nível nacional à luz do artigo 46.o da Diretiva 2007/46 e do artigo 13.o do Regulamento n.o 715/2007.

( 32 ) Como salientou o advogado‑geral P. Mengozzi nas suas Conclusões no processo Comissão/Alemanha (C‑668/16, EU:C:2018:230, n.o 94), a obrigação prevista no artigo 46.o da Diretiva 2007/46 de aplicar sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas em caso de violação das disposições desta diretiva deve ser aplicada independentemente da obrigação de restabelecer a conformidade com o modelo homologado estabelecida nos artigos 12.o e 30.o da referida diretiva.

( 33 ) No mesmo sentido, o artigo 13.o, n.o 1, do Regulamento n.o 715/2007 dispõe que os Estados‑Membros devem estabelecer disposições relativas às sanções aplicáveis em caso de infração pelos fabricantes ao disposto neste regulamento e tomar todas as medidas necessárias para garantir a sua execução, devendo as sanções previstas ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.

( 34 ) Acórdão de 24 de fevereiro de 2022, ORLEN KolTrans (C‑563/20, EU:C:2022:113, n.o 63 e jurisprudência referida). Nas suas observações escritas, a Mercedes‑Benz Group refere‑se, nomeadamente, ao Acórdão de 16 de fevereiro de 2017, Schmitt (C‑219/15, EU:C:2017:128, n.os 49 a 60), por considerar que o comprador do veículo em causa não tem direito a indemnização. No entanto, parece‑me que o raciocínio seguido neste acórdão vai na mesma direção que eu proponho no presente processo.

( 35 ) Sobre este princípio, v. Acórdão de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi (C‑561/19, EU:C:2021:799, n.o 63 e jurisprudência referida).

( 36 ) A Mercedes‑Benz Group contesta esta consideração do órgão jurisdicional de reenvio alegando que as violações do direito da União cometidas pelos fabricantes podem implicar coimas e sanções importantes.

( 37 ) V., neste sentido, Acórdão de 25 de novembro de 2010, Fuß (C‑429/09, EU:C:2010:717, n.o 92 e jurisprudência referida).

( 38 ) V., neste sentido, Acórdão de 25 de novembro de 2010, Fuß (C‑429/09, EU:C:2010:717, n.o 94).

( 39 ) V. Acórdão de 25 de março de 2021, Balgarska Narodna Banka (C‑501/18, EU:C:2021:249, n.o 125 e jurisprudência referida).

( 40 ) Neste sentido, concordo com o Governo alemão de que os Estados‑Membros, ao aplicarem o seu direito extracontratual, devem poder decidir como indemnizar o prejuízo sofrido por um particular. Acrescento, no entanto, que este direito extracontratual deve respeitar os princípios estabelecidos pelo direito da União.

( 41 ) V. Acórdão de 24 de janeiro de 2019, RDW e o. (C‑326/17, EU:C:2019:59, n.o 61).

( 42 ) Esta parte refere‑se nomeadamente ao Acórdão de 29 de novembro de 2001, De Coster (C‑17/00, EU:C:2001:651, n.o 23).

( 43 ) A Comissão refere‑se ao Despacho de 2 de julho de 2020, S.A.D. Maler und Anstreicher (C‑256/19, EU:C:2020:523, n.os 44 e 48).

( 44 ) Acórdão de 15 de julho de 2021, The Department for Communities in Northern Ireland (C‑709/20, EU:C:2021:602, n.o 55).

( 45 ) V., neste sentido, Acórdão de 13 de dezembro de 2018, Rittinger e o. (C‑492/17, EU:C:2018:1019, n.os 29 a 34).

( 46 ) V., neste sentido, Acórdão de 9 de julho de 2020, Land Hessen (C‑272/19, EU:C:2020:535, n.o 62 e jurisprudência referida). Saliento também que o órgão jurisdicional de reenvio pôs uma questão análoga em processos independentes do presente processo, nomeadamente nos processos C‑336/20, Bank 11 für Privatkunden und Handel; C‑47/21, C. Bank e Bank D. K., e C‑232/21, Volkswagen Bank e Audi Bank.

( 47 ) Acórdão de 23 de novembro de 2021, IS (ilegalidade do despacho de reenvio) (C‑564/19, EU:C:2021:949, n.os 68 a 70 e jurisprudência referida).

( 48 ) V., neste sentido, Acórdão de 16 de dezembro de 2008, Cartesio (C‑210/06, EU:C:2008:723, n.o 93).

( 49 ) V., neste sentido, Acórdão de 16 de julho de 2020, Adusbef e o. (C‑686/18, EU:C:2020:567, n.o 30 e jurisprudência referida).

( 50 ) V., neste sentido, Acórdão de 13 de dezembro de 2018, Rittinger e o. (C‑492/17, EU:C:2018:1019, n.os 29 a 34).

( 51 ) V., neste sentido, Acórdão de 5 de abril de 2016, PFE (C‑689/13, EU:C:2016:199, n.o 36).

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