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Document 62021CC0022

    Conclusões do advogado-geral G.Pitruzzella apresentadas em 10 de março de 2022.
    SRS e AA contra Minister for Justice and Equality.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pela Supreme Court.
    Reenvio prejudicial — Diretiva 2004/38/CE — Direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros — Artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a) — Conceito de “outro membro da família do cidadão da União que tem direito de residência a título principal ou que com este viva em comunhão de habitação” — Critérios de apreciação.
    Processo C-22/21.

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:183

     CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    GIOVANNI PITRUZZELLA

    apresentadas em 10 de março de 2022 ( 1 )

    Processo C‑22/21

    SRS,

    AA

    contra

    Minister for Justice and Equality

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pela Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda)]

    «Reenvio prejudicial — Direito de livre circulação e de livre residência no território dos Estados‑Membros — Beneficiários — Outros membros da família — Membro da família pertencente ao agregado familiar de um cidadão da União Europeia — Primo direito, nacional de um Estado terceiro, que vive com um cidadão da União — Dependência — Requisitos — Exame pelas autoridades nacionais — Critérios — Margem de apreciação — Limites»

    I. Introdução

    1.

    SRS nasceu em 1978 e é originário do Paquistão. Reside com a família no Reino Unido desde 1997. Em 2013, obteve a nacionalidade britânica. AA, um paquistanês nascido em 1986, é seu primo direito. Depois de frequentar a Universidade no Paquistão, AA continuou os estudos no Reino Unido em 2010. Na altura, era titular de um visto de estudante que expirou a 28 de dezembro de 2014. Durante a sua estada no Reino Unido, AA viveu em Londres com SRS, bem como com os pais deste e outros membros da família, num alojamento propriedade do irmão de SRS. SRS pagava renda a este irmão. Em 11 de fevereiro de 2014, SRS e AA celebraram em conjunto um contrato de arrendamento de um ano com esse irmão.

    2.

    Em janeiro de 2015, SRS mudou‑se para a Irlanda, por motivos profissionais. Em março de 2015, AA juntou‑se a ele na Irlanda e vive com ele desde então. Em 24 de junho de 2015, enquanto residia na Irlanda sem visto, AA solicitou às autoridades irlandesas a emissão de um cartão de residência enquanto membro da família de um cidadão da União Europeia nos termos das European Communities (Free Movement of Persons) (No. 2) Regulations 2006 (Regulamento Irlandês de 2006, Relativo à Livre Circulação de Pessoas nas Comunidades Europeias) (a seguir «Regulamento Irlandês de 2006») ( 2 ), que transpuseram para o direito irlandês a Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE ( 3 ). Com efeito, o artigo 7.o do Regulamento Irlandês de 2006 previa que um «membro da família autorizado» de um cidadão da União que resida na Irlanda há mais de três meses poderia requerer um cartão de residência.

    3.

    O artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento Irlandês de 2006 definiu «membros da família autorizados» de um cidadão da União como «qualquer membro da família, independentemente da sua nacionalidade, que não seja um membro reconhecido da família do cidadão da União e que, no seu país de origem, no país onde reside habitualmente ou no país onde residia anteriormente, a) esteja a cargo do cidadão da União, b) com este viva em comunhão de habitação, c) por motivos graves de saúde, necessite imperativamente que o cidadão da União cuide dele pessoalmente».

    4.

    Assim, AA não alegou pertencer à categoria dos membros da família do cidadão da União referidos no artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2004/38 ( 4 ). Em contrapartida, AA alegou estar a cargo de SRS e, em qualquer caso, fazer parte do agregado familiar de SRS.

    5.

    Ora, nos termos do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38, «sem prejuízo de um direito pessoal à livre circulação e residência da pessoa em causa, o Estado‑Membro de acolhimento facilita, nos termos da sua legislação nacional, a entrada e a residência das seguintes pessoas: [q]ualquer outro membro da família, independentemente da sua nacionalidade, não abrangido pelo ponto 2 do artigo 2.o, que, no país do qual provenha, esteja a cargo do cidadão da União que tem direito de residência a título principal ou que com este viva em comunhão de habitação, ou quando o cidadão da União tiver imperativamente de cuidar pessoalmente do membro da sua família por motivos de saúde graves».

    6.

    Em 21 de dezembro de 2015, o Minister for Justice and Equality (Ministro da Justiça e da Igualdade, Irlanda) indeferiu o pedido de AA, considerando, em substância, que AA não tinha fornecido provas suficientes de que estava a cargo de SRS ou de que fazia parte do seu agregado familiar. Em particular, o Ministro considerou, nomeadamente, que o período de coabitação efetiva no Reino Unido entre SRS e AA desde que SRS se tornou cidadão da União era inferior a dois anos, que os pais de SRS, o seu irmão e irmã partilhavam a mesma morada em Londres e que, mesmo que se verificasse que a AA vivia nessa morada, isto não era suficiente para considerar que fazia parte do agregado familiar de SRS. Quanto à dependência financeira de AA em relação a SRS, na sua opinião, não estava suficientemente documentada.

    7.

    Depois de fornecerem provas suplementares, SRS e AA pediram a reapreciação da decisão do Ministro da Justiça e da Igualdade. Em 21 de dezembro de 2016, este último confirmou a sua Decisão de 21 de dezembro de 2015 pelos mesmos motivos e considerou que, mesmo que residissem na mesma morada no Reino Unido, não tinha sido provado que SRS era de facto o «chefe de família» quando AA vivia com ele em Londres, como exige o artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38.

    8.

    AA e SRS interpuseram recurso de anulação desta decisão na High Court (Tribunal Superior, Irlanda). SRS voltou a pormenorizar neste tribunal o apoio financeiro dado ao seu primo direito durante a sua coabitação em Londres e alegou ser a única pessoa ativa no agregado familiar, dada a idade avançada dos seus pais e a estada prolongada do seu irmão no Paquistão. Na sua Sentença de 25 de julho de 2018, a High Court negou provimento ao recurso interposto por SRS e AA pelo facto de AA não poder ser considerado a cargo de SRS ou parte de um agregado familiar de que SRS seria o chefe, embora reconhecendo que se tratava de um conceito pouco claro e que não estava definido.

    9.

    AA e SRS interpuseram recurso na Court of Appeal (Tribunal de Recurso, Irlanda), alegando que o órgão jurisdicional de primeira instância adotou uma interpretação demasiado restritiva do conceito de «membro da família que vive em comunhão de habitação» com um cidadão da União. Num Acórdão de 19 de dezembro de 2019, embora salientando uma vez mais as dificuldades de interpretação deste conceito, a Court of Appeal considerou, no entanto, que a simples coabitação no mesmo endereço não podia ser considerada suficiente para considerar que AA e SRS faziam parte do mesmo agregado familiar do qual SRS era o chefe. Indicou que, para que um membro da família seja considerado parte do agregado familiar de um cidadão da União, deve ser parte integrante da unidade familiar e continuar a sê‑lo num futuro previsível ou razoavelmente previsível. Além disso, não deve coabitar com o cidadão da União por simples razões de conveniência, mas também por motivos de ligação afetiva e social.

    10.

    Não tendo obtido ganho de causa, AA e SRS decidiram então interpor um recurso final no órgão jurisdicional de reenvio, que foi admitido em 20 de julho de 2020, precisamente sobre a questão da definição do conceito de «membro da família que vive em comunhão de habitação» com um cidadão da União e sobre a questão de saber se deve ser exigido a esse cidadão da União que seja efetivamente o chefe desse agregado familiar ( 5 ).

    11.

    Quanto ao requisito de viver em comunhão de habitação em que o cidadão da União é chefe, o Ministro da Justiça e da Igualdade continua a defender que a simples coabitação do membro da família, eventualmente acompanhada de apoio financeiro prestado pelo cidadão da União, não é suficiente para considerar que este membro assim alojado e ajudado viva em comunhão de habitação com o cidadão da União. O Ministro recorda que a estada de AA no território da União estava limitada aos estudos e que o contrato de arrendamento celebrado com o irmão de SRS para a ocupação da sua casa era também limitado. Por conseguinte, não havia nenhum indício que sugerisse que a comunhão de vida perdurasse após os estudos de AA. Além disso, o artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 deve ser interpretado tendo presente o efeito de uma eventual decisão de recusa de autorização de residência sobre o exercício efetivo da liberdade de circulação de que goza o cidadão da União. Ora, está provado que SRS se deslocou para a Irlanda sem AA. Importa também assegurar uma certa coerência interpretativa para que a interpretação do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2004/38 não conduza a uma situação que, em última análise, seja mais favorável aos membros da família referidos nessa disposição — apesar de, em princípio, estarem menos protegidos por essa diretiva — do que aos membros da família nuclear referidos no artigo 2.o, ponto 2, desta diretiva.

    12.

    Por seu lado, AA e SRS alegam que as versões linguísticas do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2004/38 divergem e que a versão em língua inglesa contém um requisito adicional relacionado com a qualidade de «chefe» do agregado familiar, que não está presente na maioria das outras versões linguísticas. Além disso, continuam a alegar uma proximidade desenvolvida desde tenra idade, quando ambos ainda viviam no Paquistão, e evocam vínculos familiares estreitos que deveriam ser suficientes para que AA seja reconhecido «membro da família» de SRS no sentido dessa disposição, sem que seja necessário, além disso, demonstrar que SRS é o chefe de família.

    13.

    Por seu lado, o órgão jurisdicional de reenvio duvida que seja possível adotar uma definição universal do conceito de «membro da família que vive em comunhão de habitação» com um cidadão da União. Reconhece que a utilização do conceito de «chefe de família» permite distinguir situações de simples coabitação, por exemplo, daquelas mais parecidas com a vida familiar, mas ao mesmo tempo admite que este é um conceito difícil de definir. Além disso, nem todas as versões linguísticas do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 parecem conter tal referência. Por conseguinte, interroga‑se sobre o significado a dar a este conceito num contexto em que a situação dos membros da família referidos no artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2004/38 deve também estar presente. Por fim, menciona o objetivo prosseguido pela Diretiva 2004/38 e interroga‑se como é que este objetivo poderia esclarecer de forma útil a interpretação do artigo 3.o, n.o 2, desta diretiva. Além disso, caso não seja possível uma definição universal, o órgão jurisdicional de reenvio propõe uma série de critérios nos quais os órgãos jurisdicionais nacionais se poderiam basear para chegar a uma interpretação uniforme do referido conceito. Estes critérios incluem a duração do agregado familiar e a sua finalidade. Em qualquer caso, considera que é necessária uma clarificação ao nível da União.

    14.

    Foi nestas condições que a Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda) decidiu suspender a instância e, por decisão de reenvio entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 14 de janeiro de 2021, submeteu ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    Pode o conceito de membro da família que vive em comunhão de habitação com um cidadão da União, na aceção do artigo 3.o da Diretiva [2004/38], ser definido de forma a ter aplicação universal em toda a União Europeia, e, na afirmativa, qual é essa definição?

    2)

    Se esse conceito não puder ser definido, com base em que critérios devem os juízes examinar as provas para que os órgãos jurisdicionais nacionais possam decidir, em conformidade com uma lista exaustiva de fatores, quem é ou quem não é um membro da família que vive em comunhão de habitação com um cidadão da União para efeitos de livre circulação?»

    15.

    SRS e AA, o Ministro da Justiça e da Igualdade, os Governos checo, dinamarquês, neerlandês e norueguês, bem como a Comissão Europeia, apresentaram observações escritas ao Tribunal de Justiça.

    II. Análise

    A.   Observações preliminares

    16.

    Antes de examinar as duas questões prejudiciais submetidas ao Tribunal de Justiça, devo fazer duas observações relativas ao litígio no processo principal.

    17.

    Em primeiro lugar, sublinho que o cidadão da União que deseja prosseguir uma determinada comunhão de vida com o seu primo direito é cidadão britânico. Contudo, como os factos ocorreram antes da saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União, o órgão jurisdicional de reenvio deverá, assim que o Tribunal de Justiça proferir o seu acórdão prejudicial, apreciar a legalidade da decisão do Ministro da Justiça e da Igualdade e verificar a compatibilidade com o direito da União das apreciações efetuadas nessa decisão para concluir que, no momento da sua entrada na Irlanda em 2015, AA não vivia em comunhão de habitação com SRS na aceção do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38. Assim, AA terá de ser considerado uma das «pessoas abrangidas pelo artigo 3.o, n.o 2, alíneas a) e b) da Diretiva [2004/38] que tenham solicitado a facilitação de entrada e residência antes do termo do período de transição» ( 6 ). Neste caso, e se as autoridades irlandesas decidirem facilitar retroativamente a residência de AA no período de 2015 a 2020, recordo que o mesmo conservaria o direito de residência, mesmo após o termo do período de transição previsto no artigo 10.o, n.o 3, do Acordo de Saída ( 7 ).

    18.

    Em segundo lugar, foi sustentado pelos recorrentes no processo principal que as autoridades nacionais, ao apreciarem a situação individual de AA nos termos do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38, deliberadamente, não tiveram em consideração o período de coabitação de SRS e AA que ocorreu antes de SRS ter adquirido a cidadania da União. As partes inferem que, assim, no tratamento dos pedidos de residência dos seus familiares, entendidos em sentido lato, nos termos da Diretiva 2004/38, os cidadãos da União naturalizados estão numa posição menos favorável do que a das pessoas que nascem cidadãos da União. Por seu lado, o recorrido sustenta que não foi suscitado nenhum fundamento relacionado com a questão da coabitação prévia e da determinação do início dessa coabitação nos tribunais nacionais que intervieram na impugnação da Decisão de 21 de dezembro de 2015. Como a Comissão observou, esta divergência entre as partes no processo principal levanta a questão de saber se a vida familiar que teve lugar antes da aquisição da cidadania da União pode ou deve ser tida em conta. Todavia, não se pode deixar de observar que o Tribunal de Justiça não é chamado a pronunciar‑se sobre esta questão, por muito interessante que esta possa ser ( 8 ). Por conseguinte, as considerações que se seguem referir‑se‑ão exclusivamente às duas questões prejudiciais submetidas ao Tribunal de Justiça, sem que possam ser interpretadas como confirmando ou infirmando esta prática decisória nacional segundo a qual a vida familiar do cidadão da União e do membro da sua família, em sentido lato, que solicita uma autorização de residência, só é tida em consideração a partir da aquisição do estatuto de cidadão da União.

    B.   Quanto às questões prejudiciais

    19.

    Através das suas duas questões prejudiciais submetidas ao Tribunal de Justiça, que, em meu entender, devem ser apreciadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pede, em substância, ao Tribunal de Justiça que esclareça se o conceito de «qualquer outro membro da família […] do cidadão da União que tem direito de residência a título principal ou que com este viva em comunhão de habitação», na aceção do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38, pode ser definido de modo a ter «aplicação universal» e, em caso de resposta negativa, indique os critérios para determinar quando se deve considerar que um membro da família «vive em comunhão de habitação» com o cidadão da União, na aceção dessa disposição.

    1. Impossível universalidade da definição de membro da família que vive em comunhão de habitação com o cidadão da União

    20.

    No que respeita a uma eventual definição de aplicação universal do conceito de «membro da família […] do cidadão da União que tem direito de residência a título principal ou que com este viva em comunhão de habitação», além do facto de que o que é considerado universal pode rapidamente revelar‑se bastante relativo, tal definição não me parece viável nem desejável. A redação do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2004/38 é muito mais aberta — para não dizer imprecisa — do que a do artigo 2.o desta diretiva, que, no seu n.o 2, define os membros da família «nuclear» do cidadão da União. Esta falta de precisão explica‑se pelo facto de os membros da família referidos no artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2004/38 constituírem uma categoria residual de membros da família para os quais a entrada e a residência devem apenas ser facilitadas pelos Estados‑Membros. Uma vez que as obrigações que incumbem aos Estados‑Membros em relação a estes membros da família são de menor intensidade do que em relação aos membros da família nuclear ( 9 ), a definição desta primeira categoria de membros da família não precisa de ser tão precisa como a prevista para a segunda. Em meu entender, semelhante constatação é igualmente válida para todas as hipóteses previstas no artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38. Esta imprecisão deixada no conceito de «membro da família que vive em comunhão de habitação com um cidadão da União» pode ser virtuosa, pois permite alguma flexibilidade na sua definição. Tentar definir de maneira universal um conceito tão fluido, tanto sociológica como culturalmente, como o de «membro da família […] que vive em comunhão de habitação com o cidadão da União» poderia não só revelar‑se perigoso, mas também, como salientou o recorrido no processo principal, contrariar o objetivo prosseguido pela Diretiva 2004/38, face à incapacidade de apreender toda a realidade multidimensional e multifacetada das diferentes declinações do que pode ser a vida familiar em sentido lato.

    21.

    O conceito de membro da família que vive em comunhão de habitação com um cidadão da União não pode, por isso, em meu entender, ter uma definição universal.

    22.

    Algumas partes que participaram na fase escrita do processo no Tribunal de Justiça interpretaram a primeira questão prejudicial no sentido de que o órgão jurisdicional de reenvio procurava determinar se o conceito de «membro da família que viva em comunhão de habitação com o cidadão da União» é um conceito autónomo no direito da União. Esta não é a minha interpretação da primeira questão prejudicial, que, aliás, está redigida de forma bastante clara. Além disso, se fosse entendida como sugerem as partes, esta primeira questão revelar‑se‑ia mais delicada do que parece à primeira vista, embora a sua resolução não me pareça necessária para ajudar o órgão jurisdicional de reenvio a resolver o litígio que lhe foi submetido.

    23.

    Limitar‑me‑ei, portanto, a recordar que resulta da jurisprudência reiterada do Tribunal de Justiça que «decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance devem normalmente ser interpretados em toda a União modo de autónomo e uniforme» ( 10 ).

    24.

    O Reino da Dinamarca alega nas suas observações escritas que o artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2004/38 contém uma remissão expressa para os direitos nacionais e que, além disso, o Tribunal de Justiça já reconheceu uma ampla margem de apreciação aos Estados‑Membros quando estes têm de apreciar se uma situação individual que lhes é submetida para exame se enquadra numa das situações referidas nessa disposição ( 11 ). A Comissão defende a posição contrária, afirmando que a remissão para os direitos nacionais no artigo 3.o, n.o 2, diz apenas respeito às condições em que um Estado‑Membro deve facilitar a entrada e residência de pessoas abrangidas pelo âmbito de aplicação desta disposição, e não à própria definição dessas pessoas.

    25.

    A situação face à jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre esta disposição aparece diversificada, nomeadamente, tendo em conta a considerável margem de apreciação deixada aos Estados‑Membros por esta disposição, à qual voltarei mais tarde ( 12 ). Com efeito, surge claramente uma dificuldade na leitura do Acórdão Rahman e o., no qual o Tribunal de Justiça decidiu que, «no âmbito da análise das circunstâncias pessoais do requerente, [de uma autorização de residência baseada no artigo 3.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/38], incumbe à autoridade competente ter em conta os diferentes fatores que podem ser pertinentes em função do caso concreto, como o grau de dependência económica ou física e o grau de parentesco entre o membro da família e o cidadão da União que aquele pretende acompanhar ou a quem se pretende reunir» ( 13 ). O Tribunal de Justiça prossegue acrescentando que, «[a]tendendo quer à inexistência de regras mais precisas na Diretiva 2004/38 quer à utilização da expressão “nos termos da sua legislação nacional” no artigo 3.o, n.o 2, da mesma diretiva, não se pode deixar de constatar que cada Estado‑Membro dispõe de uma ampla margem de apreciação na escolha dos fatores a tomar em consideração. Assim sendo, o Estado‑Membro de acolhimento deve garantir que a sua legislação prevê critérios conformes com o sentido habitual do termo “facilita” e com os termos relativos à dependência como os que são empregados no referido artigo 3.o, n.o 2, e que não privem esta disposição do seu efeito útil» ( 14 ).

    26.

    Isto contrasta de forma notória, por exemplo, com as afirmações contidas no Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) a propósito do artigo 2.o, ponto 2, alínea c), da Diretiva 2004/38, segundo as quais esta disposição «não contém uma remissão expressa para os direitos dos Estados‑Membros» ( 15 ), abrindo assim o caminho para uma interpretação uniforme do conceito autónomo do direito da União nela contido ( 16 ). Não obstante, é também verdade que este acórdão apenas repetiu parcialmente o n.o 24 do Acórdão Rahman e o., omitindo a referência aos termos relativos à dependência ( 17 ).

    27.

    Em qualquer caso, como indiquei acima, a questão de saber se o conceito de «membro da família […] que vive em comunhão de habitação com um cidadão da União», na aceção do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 é um conceito autónomo do direito da União não me parece ser a questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio nem parece ser determinante tendo em conta a resposta que o Tribunal de Justiça terá de dar à segunda questão que lhe é colocada ( 18 ). Com efeito, em particular nos Acórdãos Rahman e o. e SM (Menor em regime de kafala argelina), o Tribunal de Justiça, sem tomar posição sobre se os conceitos contidos no artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 são conceitos autónomos do direito da União, pôde utilmente assistir os órgãos jurisdicionais de reenvio que o chamaram a conhecer da causa, clarificando o significado habitual das disposições cuja interpretação foi solicitada.

    2. O membro que vive em comunhão de habitação com o cidadão da União como terceira hipótese de dependência referida no artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38

    28.

    Seguidamente à constatação de que a definição não pode ser universal, e mesmo partindo do princípio que seja um conceito autónomo de direito da União, não é menos verdade que o Tribunal de Justiça não se vê exonerado do seu dever de assistir o órgão jurisdicional de reenvio e de clarificar o que se deve entender por «membro da família […] que vive em comunhão de habitação com um cidadão da União», na aceção do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38. Para o fazer, é preciso voltar um instante em termos mais gerais ao regime instituído por esta diretiva.

    a) Alcance da obrigação que impende sobre os Estados‑Membros nos termos do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38

    29.

    A Diretiva 2004/38 «tem por objetivo facilitar o exercício do direito fundamental e individual de circular e residir livremente no território dos Estados‑Membros, diretamente conferido aos cidadãos da União pelo artigo 21.o, n.o 1, TFUE, e que a referida diretiva tem por objeto, nomeadamente, reforçar esse direito […]. Atendendo a estes objetivos, as disposições da Diretiva 2004/38 […] devem ser objeto de interpretação lata» ( 19 ). Este regime, que também se destina a facilitar o reagrupamento familiar entre os cidadãos da União e os membros das suas famílias, baseia‑se, como referi acima, numa dicotomia fundamental.

    30.

    Aos membros da família do primeiro círculo, definidos no artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2004/38, é concedido, de forma automática, um direito de entrada e residência no Estado‑Membro de acolhimento do cidadão da União. A entrada e residência de «outros» membros da família — os referidos no artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, da Diretiva 2004/38 — apenas devem ser facilitadas por esse Estado‑Membro ( 20 ).

    31.

    Resulta desta simples obrigação de «facilitar» a entrada e residência desses «outros» membros da família que a Diretiva 2004/38 não obriga, portanto, os Estados‑Membros a deferir todos os pedidos de entrada ou de residência apresentados por pessoas que demonstrem ser membros da família na aceção do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), desta diretiva ( 21 ). Tal interpretação é ainda corroborada pelo considerando 6 da Diretiva 2004/38 ( 22 ), do qual decorre que o objetivo desta disposição é manter a unidade da família numa aceção mais lata ( 23 ). O Tribunal de Justiça especifica as obrigações dos Estados‑Membros de acolhimento na apreciação de um pedido de entrada ou de residência nos termos do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38. Embora não existindo uma obrigação de reconhecer o direito de entrada ou residência para estes membros da família alargada «não deixa de ser verdade […] que [o artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38] impõe aos Estados‑Membros uma obrigação de atribuir uma certa vantagem, relativamente aos pedidos de entrada e de residência de outros nacionais de Estados terceiros, aos pedidos apresentados por pessoas que tenham um nexo de particular dependência relativamente a um cidadão da União» ( 24 ). Esta vantagem reside essencialmente na obrigação dos Estados‑Membros de «tornar possível […] obter uma decisão sobre o seu pedido, fundada numa extensa análise das suas circunstâncias pessoais, e que, em caso de recusa, seja fundamentada» ( 25 ). O Tribunal de Justiça indica que os Estados‑Membros devem assegurar «ter em conta os diferentes fatores que podem ser pertinentes em função do caso concreto, como o grau de dependência económica ou física e o grau de parentesco entre o membro da família e o cidadão da União» ( 26 ). Quanto ao resto, a imprecisão da Diretiva 2004/38 combinada com a remissão para a legislação nacional leva a constatar que existe uma «ampla margem de apreciação» ( 27 ) na escolha dos fatores a tomar em consideração. Esta ampla margem de apreciação deve, no entanto, ser exercida dentro de um duplo limite: o respeito pelo sentido habitual do termo «facilita» e dos termos relativos à dependência contidos no artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38, por um lado, e a preservação do efeito útil desta disposição, por outro ( 28 ). No exercício desta margem de apreciação, os Estados‑Membros podem, nomeadamente, prever «exigências particulares nas suas legislações a respeito da natureza e duração da dependência, e isso, nomeadamente, para garantir que essa situação de dependência é real e estável e não foi criada unicamente com o objetivo de obter a entrada e a residência no Estado‑Membro de acolhimento» ( 29 ). Finalmente, esta margem de apreciação deve ser exercida «à luz e no respeito das disposições da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia» ( 30 ).

    32.

    Embora o âmbito das obrigações que incumbem aos Estados‑Membros nos termos do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 tenha assim sido clarificado pelo Tribunal de Justiça, deve notar‑se que o conceito de «membro da família que vive em comunhão de habitação com um cidadão da União» na aceção dessa disposição ainda não foi interpretado.

    b) Interpretação literal necessariamente complementada por uma análise contextual e teleológica

    33.

    O órgão jurisdicional de reenvio salientou que uma das dificuldades levantadas pelo artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 tem a ver com as divergências entre as diferentes versões linguísticas disponíveis. Em particular, a versão em língua inglesa («members of the household of the Union citizen») sugere, tal como a versão em língua francesa, que o cidadão da União e o outro membro da família fazem parte, pelo menos, do mesmo agregado familiar. Este elemento terá levado as autoridades irlandesas a interpretar esta condição no sentido de que o cidadão da União deve ser o chefe do agregado familiar ao qual o outro membro também pertence. Em sentido contrário, por exemplo, a versão em língua italiana («convive») parece contentar‑se com uma simples comunhão de vida ( 31 ). Resulta, pois, de uma comparação rápida e não exaustiva de algumas versões linguísticas que nem todas elas contêm esta exigência reforçada de partilha do «agregado familiar» do cidadão da União, uma vez que algumas delas parecem limitar‑se a exigir uma simples coabitação.

    34.

    Embora existam claramente disparidades entre as versões linguísticas, sou de opinião que o requisito estabelecido no artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 não pode ser interpretado, como fazem as autoridades irlandesas, no sentido de que o cidadão da União em causa deve necessariamente ser o chefe de família. Para além de esta função de «chefe de família» me parecer representar uma hierarquia familiar particularmente datada e totalmente ultrapassada, uma vez que é geralmente o atributo do homem, concebido como o epicentro inamovível de um modelo conjugal e familiar patriarcal ( 32 ), exigir que o outro membro da família viva em comunhão de habitação com o cidadão da União da qual este último é, além disso, o chefe, equivale a acrescentar um requisito adicional não previsto na diretiva, nem sequer, em meu entender, na sua versão em língua inglesa ( 33 ).

    35.

    Por outro lado, recordo que resulta de jurisprudência sobejamente conhecida do Tribunal de Justiça que a formulação utilizada numa das versões linguísticas de uma disposição de direito da União não pode servir de base única à interpretação dessa disposição ou ter caráter prioritário em relação às outras versões linguísticas. As disposições de direito da União devem, com efeito, ser interpretadas e aplicadas de maneira uniforme, à luz das versões redigidas em todas as línguas da União. Em caso de disparidade entre as diferentes versões linguísticas de um diploma do direito da União, a disposição em causa deve ser interpretada em função do seu contexto e dos objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte ( 34 ).

    36.

    Nesta fase da análise, decorre, de qualquer modo, da letra do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 que o membro da família que vive em comunhão de habitação com o cidadão da União pode ser definido, pelo menos, de forma negativa: não é claramente um membro da família do primeiro círculo, na aceção do artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2004/38; além disso, não está a cargo de um ponto de vista puramente material (condição ligada à dependência material e financeira), também não é afetado por graves condições de saúde (condição ligada à dependência física), nem é o parceiro estável não registado desse cidadão. Esta análise literal ensina‑nos, além disso, que a característica comum das três hipóteses referidas no artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 é a existência de uma forma de dependência ( 35 ), seja ela material («a cargo») ou física («por motivos de saúde graves»). O membro que «vive em comunhão de habitação» com o cidadão da União encontra‑se assim numa situação de «particular dependência» ( 36 ) em relação a este, o que é confirmado pela análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça ( 37 ), mas uma dependência que não é, portanto, puramente material nem meramente humanitária e que tem ainda de ser definida.

    37.

    Na linguagem corrente, que é a exigida pela jurisprudência ( 38 ), um agregado familiar («ménage») significa, normalmente, um casal que vive junto e que constitui uma comunhão doméstica. Do ponto de vista etimológico, o termo «ménage» (agregado familiar) tem origem na palavra latina mansio, que significa casa ( 39 ). Tendo em conta esta definição, a referência a este conceito de «agregado familiar», em particular nas versões em língua inglesa e francesa do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38, não estaria tão distante das versões linguísticas que apenas exigem uma simples comunhão de vida, no sentido puramente geográfico do termo, introduzindo, no entanto, uma nuance adicional relativa à comunhão doméstica, que pode não existir necessariamente no caso de simples coabitação na mesma casa. Com efeito, a análise do texto do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38, enriquecida pela análise contextual e sistemática da Diretiva 2004/38, permite excluir definitivamente a tese do recorrente no processo principal segundo a qual a simples partilha da mesma residência seria suficiente para que seja considerado que o membro da família em causa «vive em comunhão de habitação» com o cidadão da União ( 40 ). É certo que a partilha da mesma habitação é um requisito necessário, mas não é suficiente para poder integrar o âmbito do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), segunda hipótese, da Diretiva 2004/38.

    38.

    Embora o significado habitual do termo «agregado familiar» remeta para o conceito de «casal» e para o de «comunhão doméstica», parece‑me que, entendida no contexto da Diretiva 2004/38, essa definição deve necessariamente ser alargada, uma vez que os elementos do casal já estão, em princípio, abrangidos pelo artigo 2.o, ponto 2, da Diretiva 2004/38. Por conseguinte, «agregado familiar» deve ser aqui entendido de forma mais ampla, mais no sentido de «lar» ( 41 ). Os membros deste lar contribuem para a sua vida doméstica de várias maneiras.

    39.

    O agregado familiar ou o lar são conceitos que, além de um desejo puramente pragmático de organizar uma vida comum e nela participar, implicam um sentimento de pertença, um afeto particular que une as pessoas que o compõem. É, por exemplo, este sentimento e afeto que permitirá distinguir uma situação de simples coabitação da verdadeira pertença ao agregado familiar ou ao lar.

    40.

    Daqui resulta que, para fazer parte do agregado familiar do cidadão da União, o outro membro da família deve, por definição, ter uma relação de parentesco com o cidadão com quem vive. Além disso, deve haver entre os dois uma ligação afetiva consolidada ( 42 ) durante um período significativo de coabitação organizado por outros motivos que não a pura conveniência. Em meu entender, para que se possa falar de uma situação de dependência recíproca de natureza afetiva, esta ligação afetiva deve ser de tal intensidade que, se o membro da família em causa deixasse de fazer parte do agregado familiar do cidadão da União, este seria pessoalmente afetado ( 43 ).

    41.

    Caberá assim às autoridades nacionais avaliar a estabilidade da relação, apreciando, em particular, mas não exclusivamente, a duração da vida em comum, bem como a intensidade do sentimento familiar expresso no âmbito de uma vida em comum com as características de uma vida familiar ( 44 ). Todo o modo de vida da suposta estrutura familiar alargada deve ser apreciado global e casuisticamente, de acordo com as circunstâncias concretas de cada configuração, com base em todos os elementos factuais relevantes.

    42.

    Em contrapartida, em meu entender, as intenções do membro da família em causa não são um dos elementos relevantes. Por um lado, é sempre difícil provar o que irá acontecer no futuro. Por outro lado, estas intenções podem ser mutáveis e nada o pode realmente evitar. Por fim, não é este o sentido apontado pela jurisprudência ( 45 ).

    43.

    Por conseguinte, em meu entender, resulta das considerações precedentes que o artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 deve ser interpretado no sentido de que se refere a uma situação em que os membros da família alargada mantêm vínculos familiares estreitos e estáveis com o cidadão da União em causa, devido a circunstâncias factuais específicas relacionadas com a pertença ao mesmo agregado familiar que aquele. Esta pertença é manifestada por uma vida em comum estável, vivendo na mesma habitação, ditada por uma vontade real de viver juntos e tendo as características de uma vida familiar. Cabe às autoridades nacionais realizarem uma análise aprofundada, casuística, de cada situação individual, tendo em conta os vários fatores que podem ser relevantes, tais como o grau de parentesco, a duração da vida em comum, a proximidade da relação e a intensidade do vínculo afetivo. Os Estados‑Membros podem, no exercício da sua margem de apreciação, impor exigências particulares relativas à demonstração da qualidade de membro do agregado familiar do cidadão da União, a fim de assegurar a realidade e a estabilidade da situação de facto objeto de apreciação pelas autoridades, na dupla condição, no entanto, que essas exigências permaneçam em conformidade com o significado habitual do verbo «facilita» e da expressão «vive em comunhão de habitação com o cidadão da União» e não privem o artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 do seu efeito útil.

    III. Conclusão

    44.

    Atendendo a todas as considerações precedentes, proponho que se responda do seguinte modo às questões prejudiciais submetidas pela Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda):

    O artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE, deve ser interpretado no sentido de que se refere a uma situação em que os membros da família alargada mantêm vínculos familiares estreitos e estáveis com o cidadão da União Europeia em causa, devido a circunstâncias factuais específicas relacionadas com a pertença ao mesmo agregado familiar que aquele. Esta pertença é manifestada por uma vida em comum estável, vivendo na mesma habitação, ditada por uma vontade real de viver juntos e tendo as características de uma vida familiar.

    Cabe às autoridades nacionais realizarem uma análise aprofundada, casuística, de cada situação individual, tendo em conta os vários fatores que podem ser relevantes, tais como o grau de parentesco, a duração da vida em comum, a proximidade da relação e a intensidade do vínculo afetivo.

    Os Estados‑Membros podem, no exercício da sua margem de apreciação, impor exigências particulares relativas à demonstração da comunhão de habitação com o cidadão da União, a fim de assegurar a realidade e a estabilidade da situação de facto objeto de apreciação pelas autoridades, na dupla condição, no entanto, que essas exigências permaneçam em conformidade com o significado habitual do verbo «facilita» e da expressão «vive em comunhão de habitação com o cidadão da União» e não privem o artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 do seu efeito útil.


    ( 1 ) Língua original: francês.

    ( 2 ) S.I. n.o 656 de 2006.

    ( 3 ) JO 2004, L 158, p. 77.

    ( 4 ) Na aceção desta disposição, devem ser considerados «membros da família» de um cidadão da União o cônjuge ou o parceiro registado do cidadão da União, os descendentes diretos com idade inferior a 21 anos ou a cargo do cidadão da União, bem como os do seu cônjuge ou parceiro registado, e, por fim, os ascendentes diretos do cidadão da União a seu cargo, bem como os do seu cônjuge ou parceiro registado. São estes membros da família que se diz serem «reconhecidos» nos termos da regulamentação irlandesa.

    ( 5 ) A questão de saber se AA deve ser considerado «a cargo» na aceção da primeira hipótese do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 não faz parte do debate no órgão jurisdicional de reenvio (v. n.o 21 do pedido de decisão prejudicial).

    ( 6 ) Artigo 10.o, n.o 3, do Acordo sobre a Saída do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (JO 2019, C 384I, p. 1; a seguir «Acordo de Saída»).

    ( 7 ) Lido em conjugação com o artigo 10.o, n.o 2, do referido acordo.

    ( 8 ) O recorrido no processo principal contesta mesmo que este seja um motivo de recusa do pedido pelo Ministro (v. n.o 44 das observações do recorrido no processo principal). Para ser exaustivo, cumpre, no entanto, assinalar que o resumo dos fundamentos da decisão de indeferimento do pedido de AA, contido no n.o 6 do pedido de decisão prejudicial, contém efetivamente, no n.o 2, uma referência à regra nacional segundo a qual «o modo de vida do cidadão da União deve ser apreciado desde que se tornou cidadão da União, independentemente do local onde isso aconteceu».

    ( 9 ) V., por exemplo, Acórdão de 5 de setembro de 2012, Rahman e o. (C‑83/11, a seguir Acórdão Rahman e o., EU:C:2012:519, n.os 18, 19 e 21).

    ( 10 ) V. Acórdão de 21 de dezembro de 2011, Ziolkowski e Szeja (C‑424/10 e C‑425/10, EU:C:2011:866, n.o 32 e jurisprudência referida). V., no mesmo sentido, Acórdão de 26 de março de 2019, SM (Menor em regime de kafala argelina) [C‑129/18, a seguir «Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina)», EU:C:2019:248, n.o 50].

    ( 11 ) O Reino da Dinamarca baseia a sua apreciação, nomeadamente, na jurisprudência resultante do Acórdão Rahman e o. e do Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina).

    ( 12 ) Já tive ocasião de salientar esta ampla margem deixada aos Estados‑Membros: v. as minhas Conclusões no processo Bevándorlási és Menekültügyi Hivatal (Reagrupamento familiar — Irmã de refugiado) (C‑519/18, EU:C:2019:681, n.os 57 a 62). V., além disso, n.o 31 das presentes conclusões.

    ( 13 ) Acórdão Rahman e o. (n.o 23). É útil recordar que o Tribunal de Justiça foi aqui chamado a precisar a interpretação do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), primeira hipótese, da Diretiva 2004/38, e que não é feita referência de que se trate de um conceito autónomo do direito da União. A contrario, noutro contexto, mas ainda relativo ao conceito de estar «a cargo», v. Acórdão de 12 de dezembro de 2019, Bevándorlási és Menekültügyi Hivatal (Reagrupamento familiar — Irmã de refugiado) (C‑519/18, EU:C:2019:1070, n.os 44 e 45).

    ( 14 ) Acórdão Rahman e o. (n.o 24). O sublinhado é meu.

    ( 15 ) Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) (n.o 50).

    ( 16 ) V. Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) (n.os 50 e segs.).

    ( 17 ) É igualmente interessante notar que, nos desenvolvimentos consagrados no Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) ao artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38, o Tribunal de Justiça se absteve de especificar a que hipótese referida nessa disposição a situação no processo principal poderia estar associada (v., em particular, n.os 58 e 59 deste acórdão).

    ( 18 ) Com efeito, poder‑se‑ia também defender uma via intermédia, que consiste em reconhecer a natureza autónoma do conceito em causa, continuando a reconhecer — o que parece inevitável tendo em conta a natureza do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38 — uma ampla margem de apreciação aos Estados‑Membros ao fixarem os requisitos específicos para que o critério de elegibilidade enunciado de forma genérica pela disposição em causa esteja preenchido.

    ( 19 ) Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) (n.o 53 e jurisprudência referida). O Acórdão de 12 de dezembro de 2019, Bevándorlási és Menekültügyi Hivatal (Reagrupamento familiar — Irmã de refugiado) (C‑519/18, EU:C:2019:1070, n.o 49), por seu lado, parece centrar‑se no objetivo de «assegurar ou favorecer, no Estado‑Membro de acolhimento, o reagrupamento familiar dos nacionais de outros Estados‑Membros ou de países terceiros que aí residem legalmente». Sobre os limites à interpretação ampla da Diretiva 2004/38, v. Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) (n.o 55).

    ( 20 ) V. Acórdão Rahman e o. (n.o 19).

    ( 21 ) V. Acórdão Rahman e o. (n.o 18).

    ( 22 ) Nos termos do qual, «[a] fim de manter a unidade da família numa aceção mais lata e sem prejuízo da proibição da discriminação por motivos de nacionalidade, a situação das pessoas que não são abrangidas pela definição de “membros da família” constante da presente diretiva e que não gozam, por conseguinte, do direito automático de entrada e residência no Estado‑Membro de acolhimento, deverá ser analisada pelo Estado‑Membro de acolhimento à luz da sua legislação nacional, a fim de decidir se a entrada e residência dessas pessoas podem ser autorizadas, tendo em conta a sua relação com o cidadão da União ou com quaisquer outras circunstâncias, como a sua dependência física ou financeira em relação ao cidadão da União».

    ( 23 ) V. Acórdão Rahman e o. (n.o 32). V., também, Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) (n.o 60).

    ( 24 ) Acórdão Rahman e o. (n.o 21). O sublinhado é meu. V., também, Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) (n.o 61).

    ( 25 ) Acórdão Rahman e o. (n.o 22). V., também, Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) (n.o 62). Resultava já do artigo 3.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/38.

    ( 26 ) Acórdão Rahman e o. (n.o 23). O Tribunal de Justiça esclareceu pouco depois que a situação de dependência, constituída pela existência de vínculos familiares estreitos e estáveis devido a circunstâncias factuais específicas, como a dependência económica, a comunhão de habitação ou razões de saúde graves, deve existir, no país de proveniência do membro da família em causa, no momento em que este pede para se reunir ao cidadão da União de quem está a cargo [v. Acórdão Rahman e o. (n.os 32 e 33)].

    ( 27 ) Acórdão Rahman e o. (n.o 24). V., também, Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) (n.o 63).

    ( 28 ) Acórdão Rahman e o. (n.o 24). V., também, Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) (n.o 63).

    ( 29 ) Acórdão Rahman e o. (n.o 38).

    ( 30 ) Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) (n.o 64). Por conseguinte, a mão das autoridades nacionais que têm de decidir sobre um pedido de entrada ou de residência apresentado por um «outro membro da família», na aceção do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38, será guiada com um pouco mais de orientação pelo Tribunal de Justiça, que espera que estas, em particular num caso em que o artigo 24.o da Carta dos Direitos Fundamentais entra em linha de conta para «proceder a uma apreciação equilibrada e razoável de todas as circunstâncias atuais e relevantes do caso concreto, tendo em conta todos os interesses em jogo e, em particular, o superior interesse do menor em causa» [Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) (n.o 68)]. O tribunal de Justiça precisará a seguir os critérios, bem como a avaliação de riscos a ser efetuada. A margem de apreciação dos Estados‑Membros será reduzida ao mínimo quando o Tribunal de Justiça concluir que, no termo de uma tal análise, se verificar que os membros da família em questão, incluindo um menor, têm uma vida familiar efetiva e que esse menor depende dos seus tutores, cidadãos da União, então «as exigências relacionadas com o direito fundamental ao respeito pela vida familiar, conjugadas com o dever de tomar em consideração o superior interesse do menor, exigem, em princípio, que seja concedido a esse menor um direito de entrada e de residência na qualidade de outro membro da família de cidadãos da União, na aceção do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 2004/38» [Acórdão SM (Menor em regime de kafala argelina) (n.o 71)]. O sublinhado é meu.

    ( 31 ) Este também parece ser o caso das versões em língua espanhola («viva con el ciudadano»), alemã («oder der mit ihm im Herkunftsland in häuslicher Gemeinschaft gelebt hat»), neerlandesa («inwonen») ou ainda portuguesa («com este viva em comunhão de habitação»).

    ( 32 ) V., por exemplo, sobre a utilização do conceito de «chefe de família» nas estatísticas e as dificuldades levantadas por tal conceito, De Saint Pol, T., Deney, A., e Monso, O., «Ménage et chef de ménage: deux notions bien ancrées», Travail, genre et sociétés, 2004, vol. 1, n.o 11, pp. 63 a 78.

    ( 33 ) Com efeito, em meu entender, a expressão «household of the Union citizen» pode muito bem simplesmente indicar que o cidadão da União vive em comunhão de habitação. Além disso, como a recorrente no processo principal assinalou, o «chefe de família» é frequentemente concebido como a pessoa que presta apoio material aos que lhe são próximos. Ora, a hipótese do «membro da família que vive em comunhão de habitação» com um cidadão da União é uma hipótese bem diferente da do membro da família «a cargo» do referido cidadão.

    ( 34 ) V., entre jurisprudência abundante, Acórdãos de 3 de abril de 2008, Endendijk (C‑187/07, EU:C:2008:197, n.os 22 e segs.); de 18 de setembro de 2019, VIPA (C‑222/18, EU:C:2019:751, n.o 37 e jurisprudência referida); e de 25 de fevereiro de 2021, Bartosch Airport Supply Services (C‑772/19, EU:C:2021:141, n.o 26).

    ( 35 ) O que confirma o n.o 21 do Acórdão Rahman e o.

    ( 36 ) Acórdão Rahman e o. (n.o 21).

    ( 37 ) V. Acórdão Rahman e o. (n.os 36, 38, 39).

    ( 38 ) V., nomeadamente, Acórdão Rahman e o. (n.o 24).

    ( 39 ) Fonte: Dicionário Larousse disponível online (www.larousse.fr/dictionnaires/francais/ménage/50418).

    ( 40 ) É verdade que os atos anteriores que a Diretiva 2004/38 veio codificar não parecem conter esta referência à «comunhão de habitação», referindo‑se antes ao requisito de «vida em comum na mesma casa» [v., por exemplo, artigo 10.o do Regulamento (CEE) n.o 1612/68 do Conselho, de 15 de outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores dentro da Comunidade (JO 1968, L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77), ou o artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 73/148/CEE do Conselho, de 21 de maio de 1973, relativa à supressão das restrições à deslocação e permanência dos nacionais dos Estados‑Membros na Comunidade, em matéria de estabelecimento e de prestação de serviços (JO 1973, L 172, p. 14; EE 06 F1 p. 132)]. O recorrente no processo principal deduz daí que a Diretiva 2004/38, nos termos do seu considerando 3, indica que se destina a «simplificar e reforçar o direito de livre circulação e residência de todos os cidadãos da União», não podia ser interpretada de forma mais restritiva em relação ao estado do direito anterior à sua entrada em vigor.

    ( 41 ) O conceito de lar, na minha opinião, reflete melhor esta ideia de uma família alargada sob o mesmo teto.

    ( 42 ) Não me parece necessariamente possível presumir que a relação de parentesco induza necessariamente afeto entre os dois membros da mesma família, sem mais verificações, a menos que se defenda uma interpretação particularmente generosa do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38.

    ( 43 ) Devido à dicotomia fundamental referida no n.o 29 destas conclusões, não estou convencido de que deva ser demonstrado que, em caso de recusa de entrada e residência do «outro membro da família» do cidadão da União, este renunciaria ao exercício da sua liberdade de circulação. Tal requisito conduziria, também, a uma interpretação particularmente restritiva do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38.

    ( 44 ) Estou a pensar, por exemplo, na situação de um cidadão da União que perdeu os seus pais e foi confiado aos cuidados da tia e do tio. Esta comunhão de vida pode prolongar‑se até à idade adulta, sem que a tia e o tio possam ser considerados a cargo do cidadão da União, se forem economicamente autónomos. No entanto, tendo em conta o seu envolvimento, nomeadamente, afetivo, estes «outros» membros da família devem ser considerados como fazendo parte do agregado familiar na aceção do artigo 3.o, n.o 2, primeiro parágrafo, alínea a), da Diretiva 2004/38. Estou também a pensar na situação do descendente direto de um cidadão da União com mais de 21 anos de idade e economicamente independente, que inicia uma vida profissional, mas continua a residir com os pais.

    ( 45 ) Recordo que, na aceção do n.o 33 do Acórdão Rahman e o., «[a] situação de dependência deve existir, no país de proveniência do membro da família em causa, no momento em que este pede para se juntar ao cidadão da União de quem está a cargo» [v., também, Acórdão de 16 de janeiro de 2014, Reyes (C‑423/12, EU:C:2014:16, n.o 30)].

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