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Document 62020CJ0420

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 15 de setembro de 2022.
Processo penal contra HN.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski rayonen sad.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 47.o e 48.o — Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais — Artigo 6.o — Diretiva (UE) 2016/343 — Reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal — Artigo 8.o — Direito de comparecer em julgamento — Decisão de regresso acompanhada de uma proibição de entrada por um período de cinco anos — Condições para efeitos de julgamento na ausência da pessoa em causa — Obrigação de comparecer em julgamento prevista pelo direito nacional.
Processo C-420/20.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:679

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

15 de setembro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria penal — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigos 47.o e 48.o — Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais — Artigo 6.o — Diretiva (UE) 2016/343 — Reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal — Artigo 8.o — Direito de comparecer em julgamento — Decisão de regresso acompanhada de uma proibição de entrada por um período de cinco anos — Condições para efeitos de julgamento na ausência da pessoa em causa — Obrigação de comparecer em julgamento prevista pelo direito nacional»

No processo C‑420/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sofiyski Rayonen sad (Tribunal Regional de Sófia, Bulgária), por Decisão de 7 de agosto de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de setembro de 2020, no processo penal contra

HN,

sendo interveniente:

Sofiyska rayonna prokuratura,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, L. Bay Larsen (relator), vice‑presidente do Tribunal de Justiça, I. Ziemele, P. G. Xuereb e A. Kumin, juízes,

advogado‑geral: J. Richard de la Tour,

secretário: M. Longar, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 8 de dezembro de 2021,

vistas as observações apresentadas:

em representação de HN, por N. Nikolova, аdvokat,

em representação do Governo alemão, por F. Halabi, M. Hellmann, R. Kanitz e J. Möller, na qualidade de agentes,

em representação do Governo neerlandês, por M. Fehér e R. Kissné Berta, na qualidade de agentes,

em representação do Governo neerlandês, por K. Bulterman e H. S. Gijzen, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por M. Wasmeier e I. Zaloguin, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 3 de março de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 8.o da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal (JO 2016, L 65, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um processo penal instaurado contra HN, indiciado por falsificação de documentos.

Quadro jurídico

Direito da União

Diretiva 2008/115/CE

3

O artigo 1.o da Diretiva 2008/115/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (JO 2008, L 348, p. 98), prevê:

«A presente diretiva estabelece normas e procedimentos comuns a aplicar nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, no respeito dos direitos fundamentais enquanto princípios gerais do direito [da União] e do direito internacional, nomeadamente os deveres em matéria de proteção dos refugiados e de direitos do Homem».

4

O artigo 11.o, n.os 1 e 3, desta diretiva dispõe:

«1.   As decisões de regresso são acompanhadas de proibições de entrada sempre que:

a)

Não tenha sido concedido qualquer prazo para a partida voluntária; ou

b)

A obrigação de regresso não tenha sido cumprida.

Nos outros casos, as decisões de regresso podem ser acompanhadas da proibição de entrada.

[…]

3.   Os Estados‑Membros devem ponderar a revogação ou a suspensão da proibição de entrada, se o nacional de país terceiro que seja objeto de proibição de entrada emitida nos termos do segundo parágrafo do n.o 1 provar que deixou o território de um Estado‑Membro em plena conformidade com uma decisão de regresso.

[…]

Os Estados‑Membros podem abster‑se de emitir, revogar ou suspender proibições de entrada em determinados casos concretos por razões humanitárias.

Os Estados‑Membros podem revogar ou suspender proibições de entrada em determinados casos concretos ou em determinadas categorias de casos por outras razões».

Diretiva 2016/343

5

Os considerandos 9, 10, 35, 36 e 48 da Diretiva 2016/343 têm a seguinte redação:

«(9)

A presente diretiva tem por objeto reforçar o direito a um processo equitativo em processo penal, estabelecendo normas mínimas comuns relativas a certos aspetos da presunção de inocência e ao direito de comparecer em julgamento.

(10)

Ao estabelecer normas mínimas comuns sobre a proteção dos direitos processuais dos suspeitos e arguidos, a presente diretiva visa reforçar a confiança nos sistemas de justiça penal entre os Estados‑Membros e, deste modo, facilitar o reconhecimento mútuo de decisões em matéria penal. Estas regras mínimas comuns podem também contribuir para a supressão dos obstáculos à livre circulação de cidadãos no território dos Estados‑Membros.

[…]

(35)

O direito do suspeito e do arguido de comparecerem no próprio julgamento não tem caráter absoluto. Em determinadas condições, o suspeito e o arguido deverão poder renunciar a esse direito, expressa ou tacitamente, mas de forma inequívoca.

(36)

Em determinadas circunstâncias, a decisão sobre a culpa ou a inocência do suspeito ou do arguido é passível de ser proferida mesmo se estes não comparecerem em julgamento. Este pode ser o caso quando o suspeito ou o arguido foi atempadamente informado do julgamento e das consequências da não comparência, mas mesmo assim não compareceu. Informar o suspeito ou o arguido do julgamento deve ser entendido no sentido de o notificar pessoalmente ou lhe fornecer, por outros meios, informação oficial sobre a data e o local do julgamento, de modo a permitir‑lhe tomar conhecimento do julgamento. Informar o suspeito ou o arguido das consequências da não comparência deverá ser entendido, nomeadamente, no sentido de os informar de que pode ser proferida uma decisão mesmo se não comparecerem ao julgamento.

[…]

(48)

Uma vez que a presente diretiva estabelece normas mínimas, os Estados‑Membros deverão poder alargar os direitos nela previstos a fim de proporcionar um nível de proteção mais elevado. O nível de proteção concedido pelos Estados‑Membros não deverá nunca ser inferior às normas previstas pela Carta [dos Direitos Fundamentais da União Europeia] e pela [Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950], tal como interpretadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.»

6

O artigo 1.o desta diretiva enuncia:

«A presente diretiva estabelece normas mínimas comuns respeitantes:

a)

a certos aspetos do direito à presunção de inocência em processo penal;

b)

ao direito de comparecer em julgamento em processo penal.»

7

O artigo 8.o, n.os 1 a 4, da referida diretiva tem a seguinte redação:

«1.   Os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido tem o direito de comparecer no próprio julgamento.

2.   Os Estados‑Membros podem prever que um julgamento passível de resultar numa decisão sobre a culpa ou inocência de um suspeito ou de um arguido pode realizar‑se na sua ausência, desde que:

a)

o suspeito ou o arguido tenha atempadamente sido informado do julgamento e das consequências da não comparência; ou

b)

o suspeito ou o arguido, tendo sido informado do julgamento, se faça representar por um advogado mandatado, nomeado por si ou pelo Estado.

3.   Uma decisão tomada em conformidade com o n.o 2 pode ser executada contra o suspeito ou o arguido em causa.

4.   Sempre que os Estados‑Membros disponham de um sistema que preveja a possibilidade de realização do julgamento na ausência de suspeitos ou arguidos mas não seja possível cumprir as condições definidas no n.o 2 do presente artigo, por o suspeito ou o arguido não poder ser localizado apesar de terem sido efetuados esforços razoáveis, os Estados‑Membros podem prever que uma decisão pode, mesmo assim, ser tomada e executada. Nesse caso, os Estados‑Membros asseguram que quando o suspeito ou o arguido forem informados da decisão, em especial aquando da detenção, também sejam informados da possibilidade de impugnar a decisão e do direito a um novo julgamento ou de usar outras vias de recurso, em conformidade com o artigo 9.o»

Direito búlgaro

8

O artigo 93.o do Nakazatelen kodeks (Código Penal), na sua versão aplicável aos factos no processo principal (a seguir «NK»), tem a seguinte redação:

«Para efeitos do presente código, entende‑se por:

[…]

7)

“ilícito penal grave”: um crime para o qual a lei preveja uma pena de prisão superior a cinco anos, uma pena de prisão perpétua ou uma pena de prisão perpétua sem possibilidade de conversão [numa pena privativa de liberdade temporária].

[…]»

9

Nos termos do artigo 308.o do NK:

«1.   Quem elaborar um documento oficial não autêntico ou falsificar um documento oficial para o utilizar é punido, por falsificação de documentos, com pena de prisão até três anos.

2.   Quando o objeto da infração referida no n.o 1 consistir em […] documentos de identificação búlgaros ou estrangeiros […], a pena de prisão pode ir até oito anos.»

10

O artigo 316.o do NK enuncia:

«A pena prevista nos artigos anteriores do presente capítulo aplica‑se igualmente à pessoa que utilize deliberadamente um documento não autêntico ou falsificado, um documento incorreto ou um documento na aceção do artigo anterior, se não puder ser responsabilizada penalmente pela elaboração efetiva do documento.»

11

O artigo 269.o do Nakazatelno protsesualen kodeks (Código de Processo Penal), na sua versão aplicável aos factos no processo principal (a seguir «NPK»), tem a seguinte redação:

«1.   Nos processos em que o arguido tenha sido acusado de um ilícito penal grave, a sua presença em julgamento é obrigatória.

2.   O tribunal pode ordenar a comparência do arguido igualmente nos processos em que a sua presença não é obrigatória, quando isso seja necessário para a descoberta da verdade material.

3.   Quando tal não impeça a descoberta da verdade material, o processo pode ser examinado na ausência do arguido se:

1)

este não se encontrar na morada por ele indicada ou tiver alterado a sua morada sem disso informar as autoridades;

2)

o seu local de residência no país não for conhecido e não tiver sido possível fixá‑lo no termo de uma investigação aprofundada;

3)

devidamente citado, o arguido não tiver apresentado motivos válidos que justifiquem a sua não comparência e o procedimento previsto no artigo 247.o‑B, n.o 1, tiver sido respeitado;

4)

se encontrar fora do território da República da Bulgária e:

a)

o seu lugar de residência for desconhecido;

b)

não puder ser citado por outros motivos;

c)

tiver sido devidamente citado e não tiver apresentado motivos válidos para a sua não comparência.»

12

O artigo 10.o, n.o 1, da Zakon za chuzhdentsite v Republika Bulgaria (Lei sobre os Estrangeiros na República da Bulgária) (DV n.o 153, de 23 de dezembro de 1998), na sua versão aplicável aos factos no processo principal, enuncia:

«A emissão de um visto ou a entrada de um estrangeiro no país deve ser recusada se:

[…]

7)

este tiver tentado entrar ou transitar no território utilizando documentos, um visto ou uma autorização de residência falsos ou falsificados;

[…]»

13

O artigo 41.o desta lei dispõe:

«Deve ser ordenado o regresso sempre que:

[…]

5)

se prove que o estrangeiro atravessou legalmente a fronteira do país, mas tentou sair do país passando por locais não previstos para o efeito ou com um passaporte, ou documento de viagem que o substitua, falso ou falsificado.»

14

O artigo 42.o‑H, n.o 1, da referida lei tem a seguinte redação:

«É decretada uma proibição de entrada e de residência no território dos Estados‑Membros da União Europeia quando:

1.

Estiverem preenchidos os requisitos previstos no artigo 10.o, n.o 1;

[…]»

Tramitação do processo principal e questões prejudiciais

15

HN, nacional albanês, é suspeito de, em 11 de março de 2020, ter apresentado um passaporte e um documento de identidade falsos, com a aparência de documentos emitidos pelas autoridades gregas competentes, no posto de controlo fronteiriço do aeroporto de Sófia (Bulgária), para apanhar um voo com destino a Bristol (Reino Unido).

16

Na sequência da sua detenção pelas forças policiais, o Sofiyska rayonna prokuratura (Ministério Público da Região de Sófia, Bulgária) abriu, no mesmo dia, um inquérito por falsificação de documentos.

17

No dia seguinte, o Diretor do Granichno politseysko upravlenie — Sófia (Serviço de Polícia de Fronteiras de Sófia, Bulgária) adotou a respeito de HN uma decisão de regresso acompanhada de uma proibição de entrada por um período de cinco anos, com início em 12 de março de 2020 e termo em 11 de março de 2025.

18

Em 23 de abril de 2020, mediante decisão da autoridade responsável pelo inquérito, HN foi constituído arguido, indiciado por falsificação de documentos. Esta decisão foi apresentada a HN e à sua advogada em 27 de abril de 2020. Nessa ocasião, HN foi informado dos seus direitos, em particular dos que decorrem do artigo 269.o do NPK, que trata da tramitação dos processos à revelia e das respetivas consequências.

19

Na audiência que teve lugar no mesmo dia, HN declarou que compreendia os direitos que lhe tinham sido explicados, que não pretendia comparecer no processo, alegando que essa comparência implicaria despesas desproporcionadas, e que tinha plena confiança na sua advogada para o representar num processo à revelia.

20

Em 27 de maio de 2020, o despacho de acusação contra HN a título da infração penal prevista no artigo 316.o do NK, lido em conjugação com o artigo 308.o do NK, foi submetido para apreciação ao órgão jurisdicional de reenvio, o Sofiyski Rayonen sad (Tribunal Regional de Sófia, Bulgária).

21

Por Despacho de 24 de junho de 2020, este órgão jurisdicional fixou a data da audiência pública preliminar para 23 de julho de 2020 e o juiz relator ordenou a entrega a HN, por intermédio do Ministério do Interior búlgaro, de uma tradução em língua albanesa deste despacho e do despacho de acusação. O referido despacho indicava igualmente que a presença do arguido na audiência era obrigatória, em aplicação do artigo 269.o, n.o 1, do NPK e que o processo só podia decorrer à revelia verificadas as condições previstas no n.o 3 deste artigo.

22

Em 16 de julho de 2020, o referido órgão jurisdicional foi informado por esse ministério de que HN tinha sido reconduzido à fronteira búlgara em 16 de junho de 2020, em execução da decisão de regresso adotada a seu respeito pelo Serviço de Polícia de Fronteiras, facto que impediu que HN fosse devidamente notificado do processo judicial instaurado contra si.

23

Nestas circunstâncias, o Sofiyski rayonen sad (Tribunal Regional de Sófia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

É admissível que o direito dos arguidos de comparecerem pessoalmente no próprio julgamento, previsto no artigo 8.o, n.o 1, da [Diretiva 2016/343], seja limitado por disposições nacionais segundo as quais pode ser imposta aos estrangeiros formalmente acusados uma proibição administrativa de entrada e residência no país em que o processo penal é conduzido?

2)

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão, devem considerar‑se preenchidos os requisitos previstos no artigo 8.o, n.o 2, alínea a) e/ou b), da Diretiva 2016/343 para a realização do julgamento na ausência do arguido estrangeiro, quando este tenha sido devidamente informado sobre a matéria penal e sobre as consequências da sua não comparência e se faça representar por um advogado mandatado, nomeado por ele ou pelo Estado, mas está impossibilitado de comparecer pessoalmente devido a uma proibição de entrada e residência no país em que o processo penal é conduzido, decretada durante o procedimento administrativo?

3)

É admissível que o direito do arguido de comparecer pessoalmente no próprio julgamento, previsto no artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343, seja convertido, por força de disposições nacionais, numa obrigação processual dessa pessoa? Mais concretamente: os Estados‑Membros asseguram desse modo um nível de proteção mais elevado na aceção do considerando 48, ou é essa abordagem, pelo contrário, incompatível com o considerando 35 desta diretiva, que enuncia que o direito do arguido não tem caráter absoluto e que se pode renunciar a ele?

4)

É admissível uma renúncia antecipada do arguido ao direito de comparecer pessoalmente no próprio julgamento, nos termos do artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343, claramente declarada no decurso do inquérito, desde que o arguido tenha sido informado das consequências da não comparência?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à terceira questão

24

Com a sua terceira questão, que deve ser examinada em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê a obrigação do suspeito ou do arguido de comparecerem no próprio julgamento em processo penal.

Quanto à admissibilidade

25

A Comissão Europeia tem dúvidas sobre a admissibilidade da terceira questão, que apresenta um interesse sobretudo teórico no presente processo, visto que o arguido está impossibilitado de se deslocar ao Estado‑Membro onde decorre o seu julgamento.

26

A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 267.o TFUE, o juiz nacional, que conhece do litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal. Consequentemente, desde que as questões submetidas sejam relativas à interpretação do direito da União, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar‑se (Acórdão de 15 de julho de 2021, The Department for Communities in Northern Ireland, C‑709/20, EU:C:2021:602, n.o 54 e jurisprudência referida).

27

Daqui se conclui que as questões relativas ao direito da União gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 28 de abril de 2022, Caruter, C‑642/20, EU:C:2022:308, n.o 29 e jurisprudência referida).

28

Ora, resulta da decisão de reenvio que o direito búlgaro prevê uma obrigação de presença no julgamento para os arguidos indiciados da prática de infrações graves, como a imputada a HN no presente caso, e que este último está, por conseguinte, sujeito, ao abrigo do direito búlgaro, a tal obrigação.

29

Neste contexto, o facto de HN se encontrar fora do território búlgaro e de lhe estar vedada a entrada neste território não é suficiente para demonstrar que a terceira questão, relativa à compatibilidade dessa obrigação com o direito da União, está manifestamente desprovida de relação com a realidade ou com o objeto do processo principal e, nessa medida, para ilidir a presunção de pertinência de que beneficia esta questão.

30

Daqui se conclui que a terceira questão é admissível.

Quanto ao mérito

31

O artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 prevê que os Estados‑Membros asseguram que o suspeito ou o arguido têm o direito de comparecer no próprio julgamento.

32

Resulta claramente da redação desta disposição que os Estados‑Membros devem permitir a presença do suspeito ou do arguido no próprio julgamento.

33

Em contrapartida, a referida disposição não fornece esclarecimentos quanto à possibilidade de os Estados‑Membros preverem a obrigatoriedade dessa presença.

34

Além disso, outras disposições desta diretiva indicam que os Estados‑Membros dispõem da faculdade de realizar um julgamento na ausência da pessoa em causa.

35

Assim, o artigo 8.o, n.o 2, da referida diretiva enuncia que os Estados‑Membros podem prever que um julgamento passível de resultar numa decisão sobre a culpa ou a inocência do suspeito ou de um arguido pode realizar‑se na sua ausência, desde que estejam preenchidas determinadas condições.

36

O contexto em que se inscrevem estas condições é explicitado no considerando 35 da Diretiva 2016/343, que permite apreender a lógica implementada no artigo 8.o, n.o 2, desta diretiva, segundo a qual certos comportamentos inequívocos, que traduzem a vontade do suspeito ou do arguido de renunciar ao seu direito de comparecer em julgamento, devem permitir a realização de um julgamento na sua ausência [v., neste sentido, Acórdão de 19 de maio de 2022, Spetsializirana prokuratura (Julgamento de um arguido em fuga), C‑569/20, EU:C:2022:401, n.o 35].

37

Consequentemente, ainda que esta disposição permita, em determinadas condições, que os Estados‑Membros prevejam a possibilidade de um julgamento em processo penal decorrer na ausência do suspeito ou do arguido, não impõe de todo aos Estados‑Membros que prevejam essa possibilidade no seu direito nacional.

38

Do mesmo modo, o artigo 8.o, n.o 4, da referida diretiva dispõe que, sempre que os Estados‑Membros disponham de um sistema que preveja a possibilidade de realização do julgamento na ausência de suspeitos ou arguidos mas não seja possível cumprir as condições definidas no n.o 2 deste artigo, pelo facto de o suspeito ou o arguido não poder ser localizado apesar de terem sido efetuados esforços razoáveis, os Estados‑Membros podem prever que uma decisão pode, mesmo assim, ser tomada e executada.

39

Assim, decorre da redação do artigo 8.o, n.o 4, dessa diretiva, em particular da utilização do termo «sempre que», que o legislador da União pretendeu apenas conceder aos Estados‑Membros a faculdade de preverem a realização de um julgamento na ausência da pessoa em causa.

40

Resulta das considerações precedentes que o artigo 8.o da Diretiva 2016/343 se limita a prever e a enquadrar o direito de o suspeito ou o arguido comparecerem no próprio julgamento, bem como as exceções a este direito, sem impor ou proibir que os Estados‑Membros estabeleçam a obrigação de os suspeitos ou os arguidos comparecerem em julgamento.

41

Neste contexto, importa recordar que decorre do artigo 1.o desta diretiva que o seu objeto é estabelecer normas mínimas comuns respeitantes a certos aspetos do direito à presunção de inocência em processo penal e ao direito de comparecer em julgamento em processo penal, e não proceder a uma harmonização exaustiva do processo penal [v., neste sentido, Acórdão de 19 de maio de 2022, Spetsializirana prokuratura (Julgamento de um arguido em fuga), C‑569/20, EU:C:2022:401, n.o 43 e jurisprudência referida].

42

Consequentemente, atendendo ao alcance limitado da harmonização operada pela referida diretiva e ao facto de esta não regular a questão de saber se os Estados‑Membros podem exigir a comparência do suspeito ou do arguido em julgamento, esta questão é da competência exclusiva do direito nacional.

43

À luz das considerações precedentes, há que responder à terceira questão que o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que prevê a obrigação do suspeito ou do arguido de comparecerem no próprio julgamento em processo penal.

Quanto à quarta questão

44

Resulta da decisão de reenvio que a quarta questão é formulada caso a resposta à terceira questão seja no sentido de que o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 2016/343 se opõe a uma legislação nacional que prevê uma obrigação de comparência no julgamento em processo penal.

45

Atendendo à resposta dada à terceira questão, não há que responder à quarta questão.

Quanto à primeira e segunda questões

46

Com a primeira e segunda questões, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2016/343 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que permite a realização de um julgamento na ausência do suspeito ou do arguido, quando essa pessoa se encontra fora desse Estado‑Membro e está impossibilitada de entrar no território deste, devido a uma proibição de entrada adotada a seu respeito pelas autoridades competentes do referido Estado‑Membro.

47

Como foi salientado nos n.os 32 e 40 do presente acórdão, o artigo 8.o da Diretiva 2016/343 prevê e enquadra as obrigações que incumbem aos Estados‑Membros no sentido de permitir que o suspeito ou o arguido esteja presente no próprio julgamento.

48

Nos termos do artigo 8.o, n.o 2, dessa diretiva, os Estados‑Membros podem prever que um julgamento passível de resultar numa decisão sobre a culpa ou inocência de um suspeito ou de um arguido pode realizar‑se na sua ausência, desde que essa pessoa tenha sido atempadamente informada do julgamento e das consequências da não comparência no julgamento ou que, tendo sido informada do julgamento, se faça representar por um advogado mandatado, nomeado por si ou pelo Estado.

49

É certo que nenhuma das condições previstas nesta disposição diz expressamente respeito à faculdade de a referida pessoa se deslocar fisicamente ao território do Estado‑Membro onde decorre o seu julgamento em processo penal para nele comparecer.

50

Dito isto, como foi sublinhado nos n.os 35 e 36 do presente acórdão, as condições enunciadas na referida disposição visam limitar o exercício dessa faculdade concedida aos Estados‑Membros às situações em que se deve considerar que a pessoa em causa renunciou voluntária e inequivocamente a estar presente no seu julgamento.

51

Neste contexto, importa salientar que o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343 confere especial importância à informação da pessoa em causa, na medida em que subordina expressamente a possibilidade de realizar um julgamento à revelia à condição de essa pessoa ter sido informada do julgamento.

52

Assim, o considerando 36 da Diretiva 2016/343 precisa que informar o suspeito ou o arguido do julgamento deve ser entendido no sentido de o notificar pessoalmente ou lhe fornecer, por outros meios, informação oficial sobre a data e o local do julgamento, de modo a permitir‑lhe tomar conhecimento do julgamento.

53

Importa igualmente salientar que a finalidade da referida diretiva consiste, como enunciam os seus considerandos 9 e 10, em reforçar o direito a um processo equitativo no âmbito dos processos penais, de modo a aumentar a confiança dos Estados‑Membros no sistema de justiça penal dos outros Estados‑Membros e, por conseguinte, a facilitar o reconhecimento mútuo das decisões em matéria penal [Acórdão de 19 de maio de 2022, Spetsializirana prokuratura (Julgamento de um arguido em fuga), C‑569/20, EU:C:2022:401, n.o 36].

54

A este respeito, cabe recordar que o direito de comparecer em julgamento em processo penal constitui um elemento essencial do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 47.o, segundo e terceiro parágrafos, e no artigo 48.o da Carta dos Direitos Fundamentais, que, como precisam as Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais (JO 2007, C 303, p. 17), correspondem ao artigo 6.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH») [v., neste sentido, Acórdãos de 24 de maio de 2016, Dworzecki, C‑108/16 PPU, EU:C:2016:346, n.o 42, e de 19 de maio de 2022, Spetsializirana prokuratura (Julgamento de um arguido em fuga), C‑569/20, EU:C:2022:401, n.o 51].

55

Por conseguinte, o Tribunal de Justiça deve assegurar que a sua interpretação do artigo 48.o da Carta garante um nível de proteção que não viola o garantido pelo artigo 6.o da CEDH, conforme interpretado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [v., neste sentido, Acórdão de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do despacho de reenvio), C‑564/19, EU:C:2021:949, n.o 101].

56

Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que a comparência do arguido tem uma importância crucial para efeitos de um processo penal equitativo e justo e que a obrigação de assegurar o direito do arguido a estar presente na sala de audiências é um dos elementos essenciais do artigo 6.o da CEDH (TEDH, 18 de outubro de 2006, Hermi/Itália, CE:ECHR:2006:1018JUD001811402, § 58).

57

Segundo esta jurisprudência, nem a redação nem o espírito do artigo 6.o da CEDH impedem que uma pessoa renuncie de livre vontade, expressa ou tacitamente, às garantias de um processo equitativo. No entanto, a renúncia ao direito de participar na audiência deve ser demonstrada inequivocamente e estar alicerçada num mínimo de garantias correspondentes à sua gravidade (TEDH, 1 de março de 2006, Sejdovic/Itália, CE:ECHR:2006:0301JUD005658100, § 86, e TEDH, 13 de março de 2018, Vilches Coronado e o./Espanha, CE:ECHR:2018:0313JUD005551714, § 36).

58

Resulta destas considerações que as condições previstas no artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343 das quais depende o exercício da faculdade concedida aos Estados‑Membros por esta disposição de preverem a realização de um julgamento na ausência da pessoa em causa, em particular a condição de informar essa pessoa, visam limitar o exercício dessa faculdade às situações em que a referida pessoa dispôs de uma possibilidade real de comparecer e à qual renunciou de maneira voluntária e inequívoca.

59

Ora, um Estado‑Membro que se limite a informar a pessoa em causa, proibida de entrar no território deste, da realização do seu julgamento, sem prever, nessas circunstâncias, medidas que permitam autorizar a sua entrada nesse território apesar dessa proibição, priva essa pessoa da possibilidade real de exercer efetivamente o seu direito de comparecer em julgamento, retirando assim o efeito útil às condições previstas nessa disposição.

60

Com efeito, tal situação distingue‑se daquela em que a pessoa em causa renuncia de maneira voluntária e inequívoca ao seu direito de comparecer em julgamento.

61

Atendendo a todos estes elementos, há que considerar que o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343 se opõe implicitamente a que um Estado‑Membro realize um julgamento na ausência da pessoa em causa proibida de entrar no seu território, sem prever medidas que permitam autorizar a sua entrada nesse território não obstante essa proibição.

62

Na medida em que resulta da decisão de reenvio que, no caso em apreço, a pessoa em causa está impedida de entrar no território do Estado‑Membro onde decorre o seu julgamento devido a uma proibição de entrada adotada a seu respeito pelas autoridades competentes desse Estado‑Membro, importa ainda verificar se a Diretiva 2008/115 se opõe a que, nessa situação, o Estado‑Membro em causa revogue ou suspenda a proibição de entrada imposta a essa pessoa.

63

A este respeito, importa recordar que esta diretiva, que fixa normas e procedimentos comuns nos Estados‑Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular, permite que os Estados‑Membros, conforme previsto no seu artigo 11.o, n.o 3, nos casos em que uma decisão de regresso seja acompanhada de uma proibição de entrada, revoguem ou suspendam essa proibição.

64

Assim, o quarto parágrafo deste número precisa que, em determinados casos concretos ou em determinadas categorias de casos por outras razões, essa faculdade é reconhecida aos Estados‑Membros.

65

Como salientou o advogado‑geral no n.o 87 das suas conclusões, o artigo 11.o, n.o 3, quarto parágrafo, da Diretiva 2008/115 confere aos Estados‑Membros uma grande margem de apreciação para definirem os casos em que consideram necessário suspender ou revogar uma proibição de entrada acompanhada de uma decisão de regresso e permite‑lhes revogar ou suspender essa proibição de entrada com vista a permitir que um suspeito ou um arguido se desloque para o seu território para comparecer no seu julgamento.

66

À luz das considerações precedentes, há que responder à primeira e segunda questões que o artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que permite a realização de um julgamento na ausência do suspeito ou do arguido, quando essa pessoa se encontra fora desse Estado‑Membro e está impossibilitada de entrar no território deste, devido a uma proibição de entrada adotada a seu respeito pelas autoridades competentes do referido Estado‑Membro.

Quanto às despesas

67

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

1)

O artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal,

deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe a uma legislação nacional que prevê a obrigação do suspeito ou do arguido de comparecerem no próprio julgamento em processo penal.

 

2)

O artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2016/343

deve ser interpretado no sentido de que:

se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que permite a realização de um julgamento na ausência do suspeito ou do arguido, quando essa pessoa se encontra fora desse Estado‑Membro e está impossibilitada de entrar no território deste, devido a uma proibição de entrada adotada a seu respeito pelas autoridades competentes do referido Estado‑Membro.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: búlgaro.

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