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Document 62020CJ0177

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 10 de março de 2022.
«Grossmania» Mezőgazdasági Termelő és Szolgáltató Kft. contra Vas Megyei Kormányhivatal.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Győri Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság.
Reenvio prejudicial — Princípios do direito da União — Primado — Efeito direto — Cooperação leal — Artigo 4.o, n.o 3, TUE — Artigo 63.o TFUE — Obrigações de um Estado‑Membro decorrentes de um acórdão prejudicial — Interpretação pelo Tribunal de Justiça num acórdão prejudicial de uma norma de direito da União — Obrigação de conferir pleno efeito ao direito da União — Obrigação que incumbe a um órgão jurisdicional nacional de não aplicar uma regulamentação nacional contrária ao direito da União como interpretado pelo Tribunal de Justiça — Decisão administrativa que se tornou definitiva por falta de recurso judicial — Princípios da equivalência e da efetividade — Responsabilidade do Estado‑Membro.
Processo C-177/20.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:175

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

10 de março de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Princípios do direito da União — Primado — Efeito direto — Cooperação leal — Artigo 4.o, n.o 3, TUE — Artigo 63.o TFUE — Obrigações de um Estado‑Membro decorrentes de um acórdão prejudicial — Interpretação pelo Tribunal de Justiça num acórdão prejudicial de uma norma de direito da União — Obrigação de conferir pleno efeito ao direito da União — Obrigação que incumbe a um órgão jurisdicional nacional de não aplicar uma regulamentação nacional contrária ao direito da União como interpretado pelo Tribunal de Justiça — Decisão administrativa que se tornou definitiva por falta de recurso judicial — Princípios da equivalência e da efetividade — Responsabilidade do Estado‑Membro»

No processo C‑177/20,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Győri Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Győr, Hungria), por Decisão de 6 de março de 2020, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 7 de abril de 2020, no processo

«Grossmania» Mezőgazdasági Termelő és Szolgáltató Kft.

contra

Vas Megyei Kormányhivatal,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: A. Prechal (relatora), presidente da Segunda Secção, exercendo funções de presidente da Terceira Secção, J. Passer, F. Biltgen, L. S. Rossi e N. Wahl, juízes,

advogado‑geral: E. Tanchev,

secretário: M. Krausenböck, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 2 de junho de 2021,

considerando as observações apresentadas:

em representação da «Grossmania» Mezőgazdasági Termelő és Szolgáltató Kft., por T. Szendrő‑Németh, ügyvéd,

em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér, na qualidade de agente,

em representação do Governo alemão, por J. Möller e R. Kanitz, na qualidade de agentes,

em representação do Governo espanhol, por J. Rodríguez de la Rúa Puig, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por F. Erlbacher, L. Malferrari e L. Havas, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 16 de setembro de 2021,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 267.o TFUE.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a «Grossmania» Mezőgazdasági Termelő és Szolgáltató Kft. (a seguir «Grossmania») ao Vas Megyei Kormányhivatal (Serviços Administrativos do Departamento de Vas, Hungria) a respeito da legalidade de uma decisão de indeferimento de um pedido de reinscrição no registo predial dos direitos de usufruto extintos de pleno direito e cancelados desse registo.

Quadro jurídico

Direito da União

3

O anexo X do Ato relativo às condições de adesão da República Checa, da República da Estónia, da República de Chipre, da República da Letónia, da República da Lituânia, da República da Hungria, da República de Malta, da República da Polónia, da República da Eslovénia e da República Eslovaca e às adaptações dos Tratados em que se funda a União Europeia (JO 2003, L 236, p. 33) é intitulado «Lista a que se refere o artigo 24.o do Ato de Adesão: Hungria». O capítulo 3 deste anexo, por sua vez intitulado «Livre circulação de capitais», dispõe, no seu n.o 2:

«Sem prejuízo das obrigações resultantes dos Tratados em que se funda a União Europeia, a Hungria pode manter em vigor, durante sete anos a contar da data da adesão, as proibições previstas na legislação em vigor à data da assinatura do presente Ato, em matéria de aquisição de prédios rústicos por pessoas singulares não residentes na Hungria ou que não sejam nacionais húngaros e por pessoas coletivas. No que se refere à aquisição de prédios rústicos, os nacionais dos Estados‑Membros ou as pessoas coletivas constituídas nos termos da legislação de outro Estado‑Membro não podem, em caso algum, receber um tratamento menos favorável do que à data da assinatura do Tratado de Adesão[.] [...]

Os nacionais de outro Estado‑Membro que desejem estabelecer‑se como agricultores por conta própria e que tenham residido legalmente e exercido uma atividade agrícola na Hungria durante pelo menos três anos consecutivos não ficam sujeitos ao disposto no parágrafo anterior nem a quaisquer outras regras e procedimentos diferentes dos que se aplicam aos nacionais húngaros.

[...]

Se existirem provas suficientes de que, no termo do período transitório, se verificarão perturbações ou ameaça de perturbações graves no mercado fundiário da Hungria, a Comissão [Europeia], a pedido daquele país, decidirá da prorrogação do período transitório por um máximo de três anos.»

4

Por Decisão 2010/792/UE da Comissão, de 20 de dezembro de 2010, que prorroga o período transitório respeitante à aquisição de prédios rústicos na Hungria (JO 2010, L 336, p. 60), o período transitório previsto no anexo X, capítulo 3, n.o 2, do Ato de Adesão referido no número anterior do presente acórdão foi prorrogado até 30 de abril de 2014.

Direito húngaro

5

O artigo 38.o, n.o 1, da földről szóló 1987. évi I. törvény (Lei I de 1987, Relativa à Terra) previa que as pessoas singulares que não possuíssem nacionalidade húngara ou que a possuíssem, mas que residissem permanentemente fora da Hungria, bem como as pessoas coletivas com sede fora da Hungria ou que, tendo sede na Hungria, mas cujo capital fosse detido por pessoas singulares ou coletivas residentes fora da Hungria, só podiam adquirir a propriedade de terrenos produtivos por compra, permuta ou doação mediante autorização prévia do ministro das Finanças.

6

O artigo 1.o, n.o 5, do 171/1991 Korm. rendelet (Decreto do Governo n.o 171/1991), de 27 de dezembro de 1991, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 1992, excluiu a possibilidade de as pessoas que não possuíssem nacionalidade húngara, com exceção das pessoas que possuíssem uma autorização de residência permanente e daquelas a quem tivesse sido reconhecido o estatuto de refugiado, adquirirem terrenos produtivos.

7

A termőföldről szóló 1994. évi LV. törvény (Lei LV de 1994, Relativa aos Terrenos Produtivos; a seguir «Lei de 1994 Relativa aos Terrenos Produtivos») manteve a referida proibição de aquisição, alargando‑a simultaneamente às pessoas coletivas, independentemente de estarem ou não estabelecidas na Hungria.

8

A referida lei foi alterada, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2002, pela termőföldről szóló 1994. évi LV. törvény módosításáról szóló 2001. évi CXVII. törvény (Lei CXVII de 2001, que Altera a Lei LV de 1994 Relativa aos Terrenos Produtivos), a fim de excluir igualmente a possibilidade de se constituir contratualmente um direito de usufruto sobre terrenos produtivos a favor de pessoas singulares que não tivessem nacionalidade húngara ou de pessoas coletivas. No seguimento dessas alterações, o artigo 11.o, n.o 1, da Lei de 1994 Relativa aos Terrenos Produtivos dispunha que, «[p]ara a constituição contratual de um direito de usufruto e de um direito de uso, são aplicáveis as disposições do capítulo II relativas às restrições à aquisição de propriedades. [...]»

9

O artigo 11.o, n.o 1, da Lei de 1994 Relativa aos Terrenos Produtivos foi, posteriormente, alterado pela egyes agrár tárgyú törvények módosításáról szóló 2012. évi CCXIII. törvény (Lei CCXIII de 2012, que Modifica Determinadas Leis Relativas à Agricultura). Na sua nova versão que resulta desta alteração e que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2013, este artigo 11.o, n.o 1, dispunha que «[o] direito de usufruto constituído por contrato é nulo, exceto se constituído em benefício de parente próximo». A Lei CCXIII de 2012 introduziu igualmente nesta Lei de 1994 um novo artigo 91.o, n.o 1, nos termos do qual «[e]m 1 de janeiro de 2033 extinguem‑se de pleno direito os direitos de usufruto vigentes em 1 de janeiro de 2013 que tenham sido constituídos por contrato celebrado entre pessoas que não sejam familiares próximos, tanto por tempo indeterminado como por um período determinado cujo termo ultrapasse a data de 30 de dezembro de 2032».

10

A mező‑ és erdőgazdasági földek forgalmáról szóló 2013. évi CXXII. törvény (Lei CXXII de 2013, Relativa à Venda de Terrenos Agrícolas e Silvícolas; a seguir «Lei de 2013 Relativa aos Terrenos Agrícolas») foi adotada em 21 de junho de 2013 e entrou em vigor em 15 de dezembro de 2013.

11

O artigo 37.o, n.o 1, da Lei de 2013 Relativa aos Terrenos Agrícolas mantém a regra segundo a qual um direito de usufruto ou de uso sobre esses terrenos constituído por contrato é nulo exceto se tiver sido constituído em benefício de um familiar próximo.

12

A mező‑ és erdőgazdasági földek forgalmáról szóló 2013. évi CXXII. törvénnyel összefüggő egyes rendelkezésekről és átmeneti szabályokról szóló 2013. évi CCXII. törvény (Lei CCXII de 2013, que Adota Diversas Disposições e Medidas Transitórias no que Respeita à Lei CXXII de 2013 Relativa à Venda de Terrenos Agrícolas e Silvícolas; a seguir «Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias») foi adotada em 12 de dezembro de 2013 e entrou em vigor em 15 de dezembro de 2013.

13

O artigo 108.o, n.o 1, desta lei, que revogou o artigo 91.o, n.o 1, da Lei de 1994 Relativa aos Terrenos Produtivos, enuncia:

«Qualquer direito de usufruto ou de uso que exista à data de 30 de abril de 2014 e constituído por um período indeterminado ou por um período determinado que termine depois de 30 de abril de 2014, por um contrato celebrado entre pessoas que não sejam familiares próximos, extinguir‑se‑á de pleno direito em 1 de maio de 2014.»

14

Na sequência da prolação do Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157), o artigo 108.o da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias foi alterado através do aditamento, com efeitos a partir de 11 de janeiro de 2019, de dois novos números 4 e 5, redigidos nos termos seguintes:

«4.   Quando é necessário restabelecer, em execução de uma decisão judicial, um direito extinto em aplicação do n.o 1, mas que, por força das disposições em vigor no momento da sua inscrição inicial, esse direito não podia ser inscrito em razão de um erro formal ou material, o serviço administrativo competente em matéria fundiária informa disso o Ministério Público e suspende o processo até ao encerramento do inquérito do Ministério Público e do processo contencioso intentado com esse fundamento.

5.   É constitutivo de erro na aceção do n.o 4 o facto de que:

a)

O titular do direito de uso seja uma pessoa coletiva;

b)

O direito de usufruto ou o direito de uso tenham sido inscritos no registo predial depois de 31 de dezembro de 2001 em benefício de um titular que seja uma pessoa coletiva ou uma pessoa singular que não tenha a nacionalidade húngara;

c)

Quando, no momento da apresentação do pedido de inscrição do direito de usufruto ou do direito de uso, a aquisição do direito exigisse, por força das disposições em vigor nesse momento, um certificado ou uma autorização emitidos por um outro serviço administrativo, esse documento não tenha sido apresentado pela parte.»

15

Nos termos do artigo 94.o da ingatlan‑nyilvántartásról szóló 1997. évi CXLI. törvény (Lei CXLI de 1997, Relativa ao Registo Predial; a seguir «Lei do Registo Predial»):

«1.   A fim de proceder ao cancelamento no registo predial dos direitos de usufruto e de uso que se extingam por força do artigo 108.o, n.o 1, da [Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias] (a seguir, para efeitos deste artigo, conjuntamente, “direitos de usufruto”), a pessoa singular titular de direitos de usufruto, mediante notificação para cumprir enviada, o mais tardar, em 31 de outubro de 2014 pela autoridade encarregada da gestão do registo, deve, no prazo de quinze dias que se segue à entrega da notificação, declarar, em formulário estabelecido para o efeito pelo ministro, a relação de familiar próximo da mesma família que o une, se for o caso, à pessoa mencionada como proprietário do imóvel identificado no documento que serviu de base ao registo. Na falta de declaração dentro do prazo não será dado seguimento aos pedidos de certificação depois de 31 de dezembro de 2014.

[...]

3.   Se da declaração não resultar nenhuma relação de familiar próximo ou se nenhuma declaração tiver sido apresentada dentro do prazo, a autoridade responsável pela gestão do registo predial cancela oficiosamente os direitos de usufruto no referido registo, no prazo de seis meses seguintes ao termo do prazo para apresentar a declaração e até 31 de julho de 2015, o mais tardar.

[...]

5.   A administração dos processos fundiários procede oficiosamente, o mais tardar, até 31 de dezembro de 2014, ao cancelamento no registo predial dos direitos de usufruto que tinham sido inscritos em proveito de pessoas coletivas ou de entidades que não tenham personalidade jurídica, mas com capacidade para adquirir direitos suscetíveis de ser inscritos no registo, e que foram suprimidos em aplicação do artigo 108.o, n.o 1, da [Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias].»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

16

A Grossmania, sociedade comercial com sede na Hungria, mas cujos sócios são pessoas singulares nacionais de outros Estados‑Membros, era titular de direitos de usufruto que tinha adquirido sobre parcelas agrícolas situadas em Jánosháza e em Duka (Hungria).

17

Na sequência da extinção de pleno direito, em 1 de maio de 2014, desses direitos de usufruto, em conformidade com o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias, estes foram cancelados no registo predial pela autoridade competente por força do artigo 94.o, n.o 5, da Lei do Registo Predial. A Grossmania não interpôs recurso desse cancelamento.

18

Tendo o Tribunal de Justiça declarado, no Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157), que o artigo 63.o TFUE se opõe a uma regulamentação nacional por força da qual os direitos de usufruto anteriormente constituídos sobre terrenos agrícolas e cujos titulares não têm a qualidade de familiar próximo do proprietário dessas terras se extinguem de pleno direito e são, em consequência, cancelados no registo predial, a Grossmania, em 10 de maio de 2019, apresentou aos Vas Megyei Kormányhivatal Celldömölki Járási Hivatala (Serviços Administrativos do Departamento de Vas — Gabinete do Distrito de Celldömölk, Hungria) um pedido de reinscrição dos seus direitos de usufruto.

19

Por Decisão de 17 de maio de 2019, esta autoridade declarou inadmissível esse pedido, baseando‑se no artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias e no artigo 37.o, n.o 1, da Lei de 2013 Relativa aos Terrenos Agrícolas.

20

Chamados a conhecer de um recurso administrativo desta decisão interposto pela Grossmania, os Serviços Administrativos do Departamento de Vas, confirmaram‑na por Decisão de 5 de agosto de 2019, com o fundamento de que o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias e o artigo 37.o, n.o 1, da Lei de 2013 Relativa aos Terrenos Agrícolas ainda estavam em vigor e obstavam à reinscrição pedida. Quanto ao argumento relativo ao Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157), esses serviços indicaram que este apenas era aplicável aos processos específicos para os quais tinha sido proferido. Quanto ao Acórdão de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas) (C‑235/17, EU:C:2019:432), proferido numa ação por incumprimento relativa à mesma regulamentação nacional, os referidos serviços sublinharam que esse acórdão constitui um precedente em matéria de indemnização, mas não em matéria de reinscrição de direitos de usufruto anteriormente cancelados.

21

A Grossmania interpôs recurso da Decisão de 5 de agosto de 2019 no Győri Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Győr, Hungria), o órgão jurisdicional de reenvio.

22

Este órgão jurisdicional começa por salientar que, no momento do litígio no processo principal, não existia ainda, em direito interno, nenhuma disposição com base na qual a Grossmania pudesse ser indemnizada pelo prejuízo resultante da extinção de pleno direito e do cancelamento dos seus direitos de usufruto.

23

É certo que, num Acórdão de 21 de julho de 2015, o Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional, Hungria) declarou, por um lado, que a Magyarország alaptörvénye (Lei Fundamental húngara) tinha sido violada na medida em que o legislador nacional não tinha adotado, no que respeita aos direitos de usufruto e aos direitos de uso que se extinguiram por força do artigo 108.o da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias, disposições que permitissem a indemnização dos danos patrimoniais excecionais ocasionados pela supressão desses direitos e que não podiam ser reparados através de uma liquidação entre as partes no contrato e, por outro lado, convidou o legislador nacional a sanar essa lacuna até 1 de dezembro de 2015, o mais tardar. Todavia, até ao momento do litígio no processo principal, nenhuma medida tinha ainda sido adotada para esse efeito.

24

O órgão jurisdicional de reenvio precisa, em seguida, que, uma vez que se encontrava na impossibilidade de pedir uma indemnização, a Grossmania não tinha outra possibilidade senão pedir a reinscrição dos seus direitos de usufruto. Neste contexto, esse órgão jurisdicional interroga‑se sobre o alcance dos efeitos vinculativos dos acórdãos do Tribunal de Justiça proferidos a título de reenvio prejudicial.

25

A este respeito, recorda que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, em razão do caráter vinculativo da interpretação dada anteriormente pelo Tribunal de justiça ao abrigo do artigo 267.o TFUE, um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância não tem a obrigação de submeter um pedido de decisão prejudicial quando a questão suscitada seja materialmente idêntica a uma questão que foi já objeto de uma decisão a título prejudicial num processo análogo ou de jurisprudência assente do Tribunal de Justiça que resolva a questão de direito em causa, independentemente da natureza dos processos que deram origem a essa jurisprudência, mesmo na falta de uma identidade estrita das questões em litígio. Salienta igualmente que a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça tem um efeito ex tunc no sentido de que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz nacional mesmo às relações jurídicas nascidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão que decida o pedido de interpretação.

26

Ora, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, resulta claramente do Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157), que o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias, com base no qual a decisão em causa no processo principal foi adotada, é contrário ao direito da União e que essa conclusão é igualmente válida para efeitos do litígio no processo principal.

27

Todavia, esse órgão jurisdicional salienta que, contrariamente às situações que deram origem ao Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157), a Grossmania não impugnou judicialmente o cancelamento dos seus direitos de usufruto. Por conseguinte, interroga‑se sobre a questão de saber se os ensinamentos decorrentes do referido acórdão podem ser aplicados ao litígio no processo principal e, designadamente, se pode afastar o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias pelo facto de este ser contrário ao direito da União e ordenar ao recorrido no processo principal que proceda à reinscrição dos direitos de usufruto da Grossmania, tendo em conta, além disso, a entrada em vigor, entretanto, dos n.os 4 e 5 do referido artigo 108.o

28

Foi nestas condições que o Győri Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Győr) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Deve o artigo 267.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia ser interpretado no sentido de que, se o [Tribunal de Justiça] tiver declarado, por decisão proferida em processo prejudicial, a incompatibilidade de uma disposição legislativa de um Estado‑Membro com o direito da União, essa disposição também não pode ser aplicada no âmbito de processos administrativos ou judiciais posteriores, independentemente de a matéria de facto do processo posterior não ser totalmente idêntica à do processo prejudicial anterior?»

Quanto à questão prejudicial

29

A título preliminar, há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal, sendo caso disso, reformular as questões que lhe são submetidas (Acórdão de 26 de outubro de 2021, PL Holdings, C‑109/20, EU:C:2021:875, n.o 34 e jurisprudência referida).

30

A este respeito, resulta do pedido de decisão prejudicial, em primeiro lugar, que a pergunta do órgão jurisdicional de reenvio, que tem por objeto a questão de saber se é obrigado a não aplicar a regulamentação nacional que considera incompatível com o direito da União como interpretado pelo Tribunal de Justiça num acórdão proferido a título prejudicial, no caso em apreço, o Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157), relativo ao artigo 63.o TFUE, se inscreve no contexto de um litígio que, embora tendo por objeto um pedido de anulação da decisão que indeferiu a reinscrição dos direitos de usufruto extintos de pleno direito e cancelados no registo predial por força da mesma regulamentação nacional que a que está em causa nos processos que deram origem a esse acórdão, difere desses processos na medida em que, ao contrário das pessoas em causa nestes, o recorrente no processo principal não impugnou judicialmente, nos prazos legais, o cancelamento dos seus direitos de usufruto.

31

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se, na falta, no direito húngaro, de uma base legal que permita a indemnização da Grossmania pelo prejuízo resultante da extinção de pleno direito e do cancelamento dos seus direitos de usufruto, pode ordenar ao recorrido no processo principal que proceda à reinscrição dos referidos direitos, em conformidade com um pedido desta sociedade nesse sentido.

32

Nestas condições, há que entender a questão submetida pelo órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que pretende determinar se o direito da União, nomeadamente o artigo 267.o TFUE, deve ser interpretado no sentido de que um juiz nacional chamado a pronunciar‑se sobre um recurso de uma decisão que indefere um pedido de reinscrição de direitos de usufruto extintos de pleno direito e cancelados no registo predial por força de uma regulamentação nacional incompatível com o artigo 63.o TFUE, como interpretado pelo Tribunal de Justiça num acórdão prejudicial, é obrigado, por um lado, a não aplicar essa regulamentação e, por outro, a ordenar à autoridade administrativa competente que proceda à reinscrição dos direitos de usufruto, embora o cancelamento dos direitos não tenha sido impugnado judicialmente nos prazos legais.

33

A este respeito, há que salientar que, enquanto, no seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio apenas se referiu ao Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157), a regulamentação nacional em causa no processo que deu origem a esse acórdão e no processo principal deu igualmente origem ao Acórdão de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas) (C‑235/17, EU:C:2019:432), proferido numa ação por incumprimento intentada pela Comissão ao abrigo do artigo 258.o TFUE.

34

Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que, ao adotar o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias e ao suprimir, desse modo, ex lege, os direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas e silvícolas sitos na Hungria detidos, diretamente ou indiretamente, por nacionais de outros Estados‑Membros, a Hungria não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força das disposições conjugadas do artigo 63.o TFUE e do artigo 17.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

35

Ora, por força do artigo 260.o, n.o 1, TFUE, se o Tribunal de Justiça declarar que um Estado‑Membro não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados, esse Estado‑Membro deve tomar as medidas necessárias à execução do acórdão do Tribunal de Justiça, que está revestido da autoridade do caso julgado quanto às questões de facto e de direito que foram efetivamente ou necessariamente objeto da decisão judicial em causa (v., neste sentido, Acórdão de 24 de janeiro de 2013, Comissão/Espanha, C‑529/09, EU:C:2013:31, n.os 65 e 66).

36

Assim, se as autoridades do Estado‑Membro em causa que participam no exercício do poder legislativo são obrigadas a alterar as disposições nacionais que tenham sido objeto de um acórdão de incumprimento de modo a torná‑las conformes às exigências do direito da União, os órgãos jurisdicionais desse Estado‑Membro têm, por sua vez, a obrigação de assegurar o respeito do acórdão no exercício da sua missão, o que implica, nomeadamente, que incumbe ao juiz nacional, por força da autoridade associada ao referido acórdão, ter em conta, se necessário, os elementos jurídicos nele fixados a fim de determinar o alcance das disposições do direito da União que este tem por missão aplicar (v., neste sentido, Acórdão de 14 de dezembro de 1982, Waterkeyn e o., 314/81 a 316/81 e 83/82, EU:C:1982:430, n.os 14 e 15).

37

No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias ainda estava em vigor quando a decisão de recusa da reinscrição dos direitos de usufruto em causa no processo principal foi adotada, uma vez que esta disposição nacional foi invocada pelas autoridades nacionais competentes para justificar a referida decisão. Assim, nessa data, as autoridades húngaras que participam no exercício do poder legislativo não tinham adotado as medidas que implica a execução do acórdão de incumprimento referido no n.o 33 do presente acórdão.

38

Não deixa de ser verdade que, não obstante a não adoção de tais medidas, o órgão jurisdicional de reenvio deve adotar todas as medidas para facilitar a realização do pleno efeito do direito da União em conformidade com os ensinamentos contidos no acórdão de incumprimento (v., neste sentido, Acórdãos de 19 de janeiro de 1993, Comissão/Itália, C‑101/91, EU:C:1993:16, n.o 24, e de 18 de janeiro de 2022, Thelen Technopark Berlin (C‑261/20, EU:C:2022:33, n.o 39).

39

No caso em apreço, há que recordar, em primeiro lugar, que, no Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157), referido pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 63.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional por força da qual os direitos de usufruto anteriormente constituídos sobre terrenos agrícolas e cujos titulares não têm a qualidade de familiar próximo do proprietário dessas terras se extinguem de pleno direito e, por conseguinte, são cancelados no registo predial.

40

Com efeito, o Tribunal de Justiça começou por considerar, nos n.os 62 a 64 desse acórdão, que, ao prever a extinção de pleno direito dos direitos de usufruto detidos sobre terrenos agrícolas por nacionais de Estados‑Membros diferentes da Hungria, a regulamentação nacional em causa restringia, pelo seu próprio objeto e por esse simples facto, o direito dos interessados à livre circulação de capitais garantido no artigo 63.o TFUE, uma vez que essa regulamentação os priva tanto da possibilidade de continuarem a gozar do seu direito de usufruto, impedindo‑os, nomeadamente, de utilizar e de explorar os terrenos em causa ou de os arrendar e de, assim, deles retirar rendimentos, como da possibilidade eventual de alienar esse direito. Em seguida, no n.o 65 do referido acórdão, o Tribunal de Justiça acrescentou que a referida regulamentação era suscetível de dissuadir os não residentes de realizarem, no futuro, investimentos na Hungria. Por último, nos n.os 24, 94 e 107 do mesmo acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que essa restrição à livre circulação de capitais não podia ser justificada com base nos elementos adiantados pela Hungria.

41

No que respeita, em segundo lugar, à questão de saber se essa interpretação do artigo 63.o TFUE, feita num acórdão prejudicial proferido ao abrigo do artigo 267.o TFUE, implica, para o órgão jurisdicional de reenvio, a obrigação de não aplicar a regulamentação nacional em causa, há que recordar que, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a interpretação que, no exercício da competência que lhe é conferida pelo artigo 267.o TFUE, este faz de uma norma de direito da União esclarece e precisa, quando necessário, o significado e o alcance dessa norma, tal como a mesma deve ser ou devia ter sido entendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor (Acórdão de 7 de agosto de 2018, Hochtief, C‑300/17,EU:C:2018:635, n.o 55). Por outras palavras, um acórdão prejudicial não tem valor constitutivo, mas puramente declarativo (Acórdão de 28 de janeiro de 2015, Starjakob, C‑417/13, EU:C:2015:38, n.o 63).

42

Assim, quando a jurisprudência do Tribunal de Justiça já tenha dado uma resposta clara a uma questão relativa à interpretação do direito da União, o juiz nacional deve fazer tudo o que seja necessário para que seja dada execução a essa interpretação (v., neste sentido, Acórdão de 5 de abril de 2016, PFE, C‑689/13, EU:C:2016:199, n.o 42).

43

Além disso, por força do princípio do primado, na impossibilidade de proceder a uma interpretação da regulamentação nacional conforme às exigências do direito da União, o juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito da União tem a obrigação de garantir o pleno efeito das mesmas, não aplicando, se necessário, por autoridade própria, qualquer regulamentação nacional, mesmo que posterior, contrária a uma disposição do direito da União que tenha efeito direto, sem ter de pedir ou de esperar pela sua revogação prévia por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, Acórdão de 24 de junho de 2019, Popławski, C‑573/17, EU:C:2019:530, n.os 58 e 61).

44

No que respeita ao artigo 63.o TFUE, visado pelo presente pedido de decisão prejudicial, decorre de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que este artigo é dotado de efeito direto, de modo que pode ser invocado perante o juiz nacional e conduzir à inaplicabilidade das normas nacionais que lhe são contrárias (v., neste sentido, Acórdão de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, EU:C:2017:687, n.o 49).

45

No caso em apreço, uma vez que a regulamentação nacional em causa no processo principal é incompatível com o artigo 63.o TFUE, como resulta do Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157), o órgão jurisdicional de reenvio, chamado a pronunciar‑se sobre um recurso de anulação de uma decisão baseada, nomeadamente, nessa regulamentação, deve garantir o pleno efeito do artigo 63.o TFUE, não aplicando a referida regulamentação nacional para efeitos da resolução do litígio nele pendente.

46

Há que acrescentar que a mesma obrigação incumbia às autoridades administrativas nacionais às quais o recorrente no processo principal apresentou um pedido de reinscrição dos seus direitos de usufruto no registo predial (v., neste sentido, Acórdão de 4 de dezembro de 2018, Minister for Justice and Equality e Commissioner of An Garda Síochána, C‑378/17, EU:C:2018:979, n.o 38 e jurisprudência referida), essas autoridades, tendo, porém, em violação dessa obrigação, continuado a aplicar a regulamentação nacional em causa no processo principal e, por conseguinte, indeferido esse pedido.

47

No que respeita, em terceiro lugar, à circunstância segundo a qual a Grossmania não impugnou judicialmente, nos prazos previstos para esse efeito, o cancelamento dos seus direitos de usufruto, há que salientar que o órgão jurisdicional de reenvio não explicitou em que medida tal circunstância é suscetível de suscitar uma dificuldade para a resolução do litígio no processo principal. Com efeito, nesse contexto, este órgão jurisdicional limitou‑se a indicar que a recusa da Administração nacional competente de proceder à reinscrição dos direitos de usufruto da recorrente no processo principal era baseada no facto de o artigo 108.o, n.o 1, da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias e o artigo 37.o, n.o 1, da Lei de 2013 Relativa aos Terrenos Agrícolas ainda estarem em vigor. No entanto, o Governo húngaro sublinhou, nas suas observações apresentadas ao Tribunal de Justiça, que, em conformidade com o direito nacional, na falta de impugnação, o cancelamento se tinha tornado definitivo e obstava à reinscrição dos direitos de usufruto no registo predial.

48

Assim, embora não caiba ao Tribunal de Justiça, ao abrigo da cooperação nos termos do artigo 267.o TFUE, verificar a exatidão do quadro regulamentar e factual que o juiz nacional define sob a sua própria responsabilidade, não está excluído, no caso em apreço, que as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio possam resultar do facto de que o caráter definitivo do cancelamento dos direitos de usufruto o impede de retirar, para efeitos do litígio no processo principal, todas as consequências resultantes da ilegalidade verificada na regulamentação nacional em causa no processo principal.

49

Se esta hipótese se revelar fundada e para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, há que recordar que compete, por força do princípio da autonomia processual, à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro regular as modalidades processuais das ações judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos dos litigantes, na condição, porém, de que essas modalidades não sejam, nas situações abrangidas pelo direito da União, menos favoráveis do que em situações semelhantes sujeitas ao direito interno (princípio da equivalência) e de que não tornem, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade) (v., neste sentido, Acórdão de 10 de março de 2021, Konsul Rzeczypospolitej Polskiej w N., C‑949/19, EU:C:2021:186, n.o 43 e jurisprudência referida).

50

Quanto ao respeito do princípio da equivalência, compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, em direito húngaro, a possibilidade de impugnar uma medida de cancelamento de direitos de usufruto que se tornou definitiva, no âmbito de um recurso interposto de uma decisão que indefere um pedido de reinscrição desses direitos, não difere consoante essa medida viole o direito nacional ou o direito da União.

51

No que concerne ao respeito do princípio da efetividade, importa sublinhar que, em conformidade com a jurisprudência, cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do direito da União deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo, considerado no seu todo, a tramitação deste e as suas particularidades perante as várias instâncias nacionais. Nesta perspetiva, há que tomar em consideração, se for caso disso, os princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, como a proteção dos direitos de defesa, o princípio da segurança jurídica e a boa marcha do processo [Acórdão de 20 de maio de 2021, X (Veículos‑cisterna GPL), C‑120/19, EU:C:2021:398, n.o 72].

52

Ora, o Tribunal de Justiça já reconheceu que o caráter definitivo de uma decisão administrativa, adquirido no termo de prazos de recurso razoáveis, contribui para a segurança jurídica, com a consequência de que o direito da União não exige que um órgão administrativo seja, em princípio, obrigado a revogar uma decisão administrativa que já adquiriu esse caráter definitivo (Acórdão de 12 de fevereiro de 2008, Kempter, C‑2/06, EU:C:2008:78, n.o 37). O respeito do princípio da segurança jurídica permite assim evitar que sejam indefinidamente postos em causa atos administrativos que produzem efeitos jurídicos (Acórdão de 19 de setembro de 2006, i‑21 Germany e Arcor, C‑392/04 e C‑422/04, EU:C:2006:586, n.o 51).

53

No caso em apreço, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que o prazo de reclamação contra uma decisão da autoridade nacional competente em matéria de registo predial é de quinze dias a contar da sua notificação e que, em caso de indeferimento dessa reclamação, o prazo para impugnação judicial é de trinta dias a contar da notificação desse indeferimento. Estes prazos afiguram‑se, em princípio, suficientes para permitir às pessoas em causa impugnar essa decisão.

54

No entanto, o Tribunal de Justiça declarou, em substância, que circunstâncias particulares podem ser suscetíveis, por força dos princípios da efetividade e da cooperação leal que decorre do artigo 4.o, n.o 3, TUE, determinadas de impor a um órgão administrativo nacional que reexamine uma decisão administrativa que se tornou definitiva. Neste contexto, há que ter em conta as particularidades das situações e dos interesses em causa, a fim de encontrar um equilíbrio entre as exigências de segurança jurídica e de legalidade relativamente ao direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Incyte, C‑492/16, EU:C:2017:995, n.o 48 e jurisprudência referida).

55

No caso em apreço, os direitos de usufruto da Grossmania foram cancelados no registo predial com base numa regulamentação nacional que, como foi salientado no n.o 40 do presente acórdão, ao prever a extinção ex lege dos direitos de usufruto detidos sobre terrenos agrícolas por nacionais de Estados‑Membros diferentes da Hungria, restringe, pelo seu próprio objeto e por esse simples facto, o direito dos interessados à livre circulação de capitais garantido no artigo 63.o TFUE, sem que nenhum elemento seja suscetível de justificar tal restrição.

56

Além disso, como decorre do Acórdão de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas) (C‑235/17, EU:C:2019:432), nomeadamente dos seus n.os 81, 86, 124, 125 e 129, esta regulamentação nacional viola igualmente o direito de propriedade garantido pelo artigo 17.o, n.o 1, da Carta, na medida em que priva, por definição, de maneira forçada, integral e definitiva, os interessados dos seus direitos de usufruto existentes, sem que a mesma seja justificada por uma razão de utilidade pública nem, de resto, acompanhada de um regime de pagamento de uma justa indemnização em tempo útil.

57

Resulta destes elementos que a regulamentação nacional em causa no processo principal, tal como as decisões que a aplicam, constitui simultaneamente uma violação manifesta e grave da liberdade fundamental prevista no artigo 63.o TFUE e do direito à propriedade garantido no artigo 17.o, n.o 1, da Carta. Essa violação parece, aliás, ter tido repercussões em grande escala, uma vez que, como salientou o advogado‑geral no n.o 50 das suas conclusões, baseando‑se nas precisões fornecidas pelo Governo húngaro nos processos que deram origem ao Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 71), mais de 5000 nacionais de Estados‑Membros diferentes da Hungria foram afetados pela supressão dos seus direitos de usufruto.

58

Nestas circunstâncias, tendo em conta as consequências nefastas de grande amplitude provocadas pela regulamentação nacional em causa no processo principal e pelo cancelamento dos direitos de usufruto que a aplicam, deve ser atribuída especial importância à exigência da legalidade relativamente ao direito da União.

59

Há que acrescentar, no que respeita à exigência de segurança jurídica, que o artigo 108.o da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias previu, para os direitos de usufruto que visa, a extinção «de pleno direito» desses direitos em 1 de maio de 2014, sendo estes, em seguida, por força do artigo 94.o da Lei do Registo Predial, cancelados no registo predial por uma decisão adotada para esse efeito.

60

Ora, essa extinção «de pleno direito» dos direitos de usufruto destina‑se, tendo em conta a sua própria natureza, a produzir efeitos independentemente das decisões de cancelamento que sejam proferidas posteriormente em aplicação do artigo 94.o da Lei do Registo Predial.

61

Por conseguinte, mesmo que o cancelamento dos direitos de usufruto constitua, como sublinhou na audiência o Governo húngaro, um acontecimento autónomo em relação à extinção de pleno direito desses direitos, a regulamentação nacional em causa no processo principal, ao definir assim as modalidades dessa extinção, é suscetível de gerar confusão quanto à necessidade, para os titulares de direitos de usufruto que se extingam de pleno direito, de impugnarem as decisões de cancelamento subsequentes para salvaguardar os seus direitos de usufruto.

62

Daqui resulta que, se se confirmar que o direito húngaro não permite impugnar junto de um órgão jurisdicional, no âmbito de um recurso interposto contra o indeferimento de um pedido de reinscrição de direitos de usufruto, a medida de cancelamento desses direitos que entretanto se tornou definitiva, essa impossibilidade não pode ser razoavelmente justificada pela exigência de segurança jurídica e deveria, por conseguinte, ser afastada por esse órgão jurisdicional por ser contrária ao princípio da efetividade e ao princípio da cooperação leal que decorrem do artigo 4.o, n.o 3, TUE.

63

Em quarto lugar, quanto à questão de saber se, em circunstâncias como as do processo principal, as autoridades competentes, uma vez afastada a aplicação da regulamentação nacional, devem, em quaisquer circunstâncias, proceder à reinscrição dos direitos de usufruto em causa ou se essa supressão ilegal pode ser sanada por outros meios, deve salientar‑se que, por força do princípio da cooperação leal previsto no artigo 4.o, n.o 3, TUE, os Estados‑Membros são obrigados a eliminar as consequências ilícitas de uma violação do direito da União [Acórdão de 25 de junho de 2020, A e o. (Turbinas eólicas em Aalter e em Nevele), C‑24/19, EU:C:2020:503, n.o 83].

64

Por conseguinte, na sequência de um acórdão proferido sobre um pedido de decisão prejudicial do qual decorre a incompatibilidade da legislação nacional com o direito da União, incumbe às autoridades do Estado‑Membro em causa não só não aplicar tal legislação, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.o 43 do presente acórdão, mas igualmente adotar quaisquer outras medidas gerais ou especiais adequadas para assegurar no seu território o respeito desse direito (v., neste sentido, Acórdão de 21 de junho de 2007, Jonkman e o., C‑231/06 a C‑233/06, EU:C:2007:373, n.o 38).

65

Na falta de normas específicas, em direito da União, relativas às modalidades segundo as quais há que eliminar as consequências ilícitas de uma violação do artigo 63.o TFUE em circunstâncias como as do processo principal, tais medidas podem consistir, designadamente, em proceder à reinscrição no registo predial dos direitos de usufruto ilegalmente suprimidos, na medida em que tal reinscrição é o meio mais adequado para restabelecer, pelo menos com efeitos para o futuro, a situação de direito e de facto em que o interessado se encontraria se os seus direitos não tivessem sido ilegalmente suprimidos.

66

Todavia, como o advogado‑geral, em substância, igualmente salientou no n.o 55 das suas conclusões, em casos específicos, obstáculos objetivos e legítimos, designadamente de ordem jurídica, podem opor‑se a tal medida, por exemplo, quando, depois da supressão dos direitos de usufruto, um novo proprietário adquiriu de boa‑fé os terrenos sobre os quais recaíam os direitos em causa ou esses terrenos foram objeto de reestruturação.

67

No caso em apreço, caberá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, tendo em conta a situação jurídica e factual existente no momento da decisão, se há que ordenar à autoridade competente que proceda à reinscrição dos direitos de usufruto de que a Grossmania era titular.

68

Apenas na hipótese de essa reinscrição se revelar efetivamente impossível é que seria necessário, para eliminar as consequências ilícitas da violação do direito da União, conceder aos antigos titulares dos direitos de usufruto suprimidos o direito a uma compensação, financeira ou outra, cujo valor seria apto a reparar no plano financeiro a perda económica resultante da supressão desses direitos.

69

Além disso, independentemente das medidas referidas nos n.os 65 e 68 do presente acórdão, que visam eliminar as consequências ilícitas da violação do artigo 63.o TFUE, a plena eficácia do direito da União implica que os particulares lesados por uma violação desse direito tenham, por força do princípio da responsabilidade do Estado pelos danos causados por essa violação, igualmente direito a reparação, desde que estejam preenchidos três requisitos, a saber, que a norma violada do direito da União tenha por objeto conferir‑lhes direitos, que a violação dessa norma seja suficientemente caracterizada e que exista um nexo de causalidade direto entre essa violação e o dano sofrido pelos particulares (Acórdãos de 5 de março de 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame, C‑46/93 e C‑48/93, EU:C:1996:79, n.o 51, e de 24 de março de 2009, Danske Slagterier, C‑445/06, EU:C:2009:178, n.o 20).

70

Ora, no caso em apreço, antes de mais, o artigo 63.o TFUE tem por objeto conferir direitos aos particulares, na medida em que confere, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, o direito que assiste aos titulares de direitos de usufruto de não serem privados desses direitos em violação do referido artigo (v., por analogia, Acórdão de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, EU:C:2017:687, n.o 48). Do mesmo modo, o artigo 17.o da Carta constitui uma norma de direito que tem por objeto conferir direitos aos particulares [Acórdão de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas), C‑235/17, EU:C:2019:432, n.o 68].

71

Em seguida, decorre de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que uma violação do direito da União é manifestamente caracterizada quando essa violação perdurou apesar de ter sido proferido um acórdão que declara o incumprimento censurado, um acórdão prejudicial ou apesar da jurisprudência assente do Tribunal de Justiça na matéria, dos quais resulte o caráter infrator do comportamento em causa (Acórdão de 30 de maio de 2017, Safa Nicu Sepahan/Conselho, C‑45/15 P, EU:C:2017:402, n.o 31). Ora, é o que sucede no caso em apreço, como recordado no n.o 37 do presente acórdão.

72

Por último, à luz dos Acórdãos de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157), e de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Usufruto sobre terrenos agrícolas) (C‑235/17, EU:C:2019:432), afigura‑se existir um nexo de causalidade direto entre a violação do artigo 63.o TFUE e os prejuízos sofridos pela Grossmania em consequência dessa violação, o que compete verificar ao órgão jurisdicional de reenvio ou, se for caso disso, ao juiz competente na matéria segundo o direito húngaro.

73

No que respeita, em quinto e último lugar, à circunstância constituída pela entrada em vigor dos n.os 4 e 5 do artigo 108.o da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias, evocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, há que salientar que esse órgão jurisdicional não explica em que medida essas novas disposições são pertinentes para a resolução do litígio no processo principal nem precisa se estas são aplicáveis na fase atual do processo. Por seu lado, o Governo húngaro impugnou essa aplicabilidade na medida em que esta pressupõe, de qualquer modo, a existência de uma decisão de reinscrição dos direitos de usufruto da Grossmania, a qual, nesta fase, ainda não foi tomada.

74

Nestas circunstâncias, basta precisar que o artigo 108.o, n.os 4 e 5, da Lei de 2013 Relativa às Medidas Transitórias deve igualmente ser compatível, nomeadamente, com o princípio da efetividade, como recordado no n.o 51 do presente acórdão, o que implica que não deve, na prática, tornar impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União, bem como com as liberdades fundamentais, em especial, com a livre circulação de capitais prevista no artigo 63.o TFUE.

75

Tendo em conta todas as considerações que precedem, há que responder à questão prejudicial que o direito da União, designadamente o artigo 4.o, n.o 3, TUE e o artigo 267.o TFUE, deve ser interpretado no sentido de que um juiz nacional chamado a pronunciar‑se sobre um recurso de uma decisão que indefere um pedido de reinscrição de direitos de usufruto extintos de pleno direito e cancelados no registo predial por força de uma regulamentação nacional incompatível com o artigo 63.o TFUE, como interpretado pelo Tribunal de Justiça num acórdão prejudicial, é obrigado:

a não aplicar essa regulamentação e

salvo obstáculos objetivos e legítimos, designadamente de ordem jurídica, a ordenar à autoridade administrativa competente que proceda à reinscrição dos direitos de usufruto, apesar de o cancelamento desses direitos não ter sido impugnado judicialmente nos prazos legais e, por conseguinte, se ter tornado definitivo em conformidade com o direito nacional.

Quanto às despesas

76

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

O direito da União, designadamente o artigo 4.o, n.o 3, TUE e o artigo 267.o TFUE, deve ser interpretado no sentido de que um juiz nacional chamado a pronunciar‑se sobre um recurso de uma decisão que indefere um pedido de reinscrição de direitos de usufruto extintos de pleno direito e cancelados no registo predial por força de uma regulamentação nacional incompatível com o artigo 63.o TFUE, como interpretado pelo Tribunal de Justiça num acórdão prejudicial, é obrigado:

 

a não aplicar essa regulamentação e

salvo obstáculos objetivos e legítimos, designadamente de ordem jurídica, a ordenar à autoridade administrativa competente que proceda à reinscrição dos direitos de usufruto, apesar de o cancelamento desses direitos não ter sido impugnado judicialmente nos prazos legais e, por conseguinte, se ter tornado definitivo em conformidade com o direito nacional.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: húngaro.

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