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Document 62020CC0690

Conclusões do advogado-geral G. Pitruzzella apresentadas em 14 de julho de 2022.
Casino, Guichard-Perrachon e Achats Marchandises Casino SAS (AMC) contra Comissão Europeia.
Recurso — Concorrência — Acordos, decisões e práticas concertadas — Decisão da Comissão Europeia que ordena uma inspeção — Vias de recurso contra o desenrolar da inspeção — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito a um recurso efetivo — Regulamento (CE) n.o 1/2003 — Artigo 19.o — Regulamento (CE) n.o 773/2004 — Artigo 3.o — Registo das audições realizadas pela Comissão no âmbito dos seus inquéritos — Ponto de partida do inquérito da Comissão.
Processo C-690/20 P.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:579

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

GIOVANNI PITRUZZELLA

apresentadas em 14 de julho de 2022 ( 1 )

Processo C‑690/20 P

Casino, Guichard‑Perrachon,

Achats Marchandises Casino SAS (AMC)

contra

Comissão Europeia

«Recurso de decisão do Tribunal do Tribunal Geral — Concorrência — Acordos, decisões e práticas concertadas — Procedimento administrativo — Decisão da Comissão que ordena uma inspeção — Exceção de ilegalidade arguida nos termos do artigo 20.o do Regulamento (CE) n.o 1/2003 — Alegada falta de recurso efetivo contra a inspeção — Recurso de anulação»

1.

Com o presente recurso, a Casino, Guichard‑Perrachon (a seguir «Casino») e a Achats Marchandises Casino SAS (a seguir «AMC» e, em conjunto com a Casino, «as recorrentes») pedem a anulação parcial do Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 5 de outubro de 2020, Casino, Guichard‑Perrachon e AMC/Comissão ( 2 ) (a seguir «acórdão recorrido»), no qual o Tribunal negou parcialmente provimento ao recurso com fundamento no artigo 263.o TFUE e destinado à anulação da Decisão C(2017) 1054 final da Comissão, de 9 de fevereiro de 2017 ( 3 ) (a seguir «decisão impugnada»), que ordena uma inspeção à Casino, bem como a todas as sociedades direta ou indiretamente controladas pela mesma, nos termos do artigo 20.o, n.os 1 e 4, do Regulamento (CE) n.o 1/2003 ( 4 ).

Antecedentes do litígio

2.

Os antecedentes do litígio, que constam dos n.os 2 a 8 do acórdão recorrido, podem, para efeitos do presente processo, ser resumidos da seguinte forma.

3.

A Casino é a sociedade‑mãe do grupo Casino, que exerce a sua atividade designadamente em França, principalmente no setor da distribuição alimentar e não alimentar. A sua filial AMC é uma central de compras que negoceia as condições de compra com os fornecedores para as marcas do grupo Casino em França.

4.

Tendo recebido informações relativas ao intercâmbio de informações entre a Casino e outras empresas ou associações de empresas, nomeadamente a Intermarché, sociedade que também exerce a sua atividade no setor da distribuição alimentar e não alimentar, a Comissão Europeia adotou a decisão impugnada.

5.

O dispositivo dessa decisão tem a seguinte redação:

«Artigo 1.o

A Casino […], e todas as sociedades direta ou indiretamente controladas por ela, são obrigadas a sujeitar‑se a uma inspeção relativa à sua eventual participação em práticas concertadas contrárias ao artigo 101.o [TFUE] nos mercados do abastecimento de bens de consumo corrente, no mercado de venda de serviços aos fabricantes de produtos de marca e nos mercados de venda aos consumidores de bens de consumo corrente. Essas práticas concertadas consistem em:

a)

intercâmbios de informações, desde 2015, entre empresas e/ou associações de empresas, nomeadamente a ICDC […], e/ou os seus membros, nomeadamente a Casino e a AgeCore e/ou os seus membros, nomeadamente a Intermarché, relativamente aos descontos que obtiveram nos mercados do abastecimento de bens de consumo corrente nos setores dos produtos alimentares, produtos de higiene e produtos de limpeza e aos preços no mercado de venda de serviços aos fabricantes de produtos de marca nos setores dos produtos alimentares, produtos de higiene e produtos de limpeza, em diversos Estados‑Membros da União Europeia, nomeadamente em França, e

b)

intercâmbios de informações, pelo menos desde 2016, entre a Casino e a Intermarché relativamente às suas estratégias comerciais futuras, nomeadamente em termos de gama de produtos, desenvolvimento de lojas, de comércio eletrónico e de política promocional nos mercados do abastecimento de bens de consumo corrente e nos mercados de venda aos consumidores de bens de consumo corrente, em França.

Esta inspeção pode ter lugar em quaisquer instalações da empresa […]

A Casino autoriza os funcionários e outras pessoas mandatadas pela Comissão para proceder a uma inspeção e os funcionários e outras pessoas mandatadas pela autoridade da concorrência do Estado‑Membro em causa para os ajudar ou nomeadas por esta última para este efeito a aceder a todas as suas instalações e meios de transporte durante as horas normais de funcionamento. Sujeita à inspeção os livros e todos os demais documentos profissionais, qualquer que seja o seu suporte, se os funcionários e outras pessoas mandatadas o solicitarem e permite‑lhes examiná‑los nas instalações e fazer ou obter sob qualquer forma cópia ou extrato desses livros ou documentos. Autoriza a aposição de selos em todas as instalações comerciais e livros ou documentos durante a inspeção e na medida em que tal seja necessário para o efeito. Dá imediatamente no local explicações verbais a respeito do objeto e da finalidade da inspeção se esses funcionários ou pessoas o solicitarem e autoriza qualquer representante ou membro do pessoal a dar explicações. Autoriza o registo dessas explicações sob qualquer forma.

Artigo 2.o

A inspeção pode ter início em 20 de fevereiro de 2017 ou pouco tempo depois.

Artigo 3.o

A Casino e todas as sociedades direta ou indiretamente controladas por ela são destinatárias da presente decisão.

Esta decisão é notificada, imediatamente antes da inspeção, à empresa destinatária, nos termos do artigo 297.o, n.o 2, [TFUE].»

6.

Tendo sido informada desta inspeção pela Comissão, a Autorité de la concurrence (Autoridade da Concorrência) francesa submeteu à apreciação dos juízes competentes em matéria de liberdades e de detenção dos tribunaux de grande instance de Créteil e de Paris (Tribunais de Primeira Instância de Créteil e de Paris, França) um pedido de autorização para realizar operações de visita e de apreensão nas instalações das recorrentes. Por Despachos de 17 de fevereiro de 2017, esses juízes competentes em matéria de liberdades e de detenção autorizaram as visitas e as apreensões requeridas, como medida cautelar (a seguir «Despachos de 17 de fevereiro de 2017»). Uma vez que nenhuma das medidas tomadas durante a inspeção necessitou do uso de «poderes coercivos» na aceção do artigo 20.o, n.os 6 a 8, do Regulamento n.o 1/2003, estes despachos não foram notificados às recorrentes.

7.

A inspeção teve início em 20 de fevereiro de 2017, data em que os inspetores da Comissão, acompanhados de representantes da Autoridade da Concorrência francesa, se apresentaram na sede parisiense do grupo Casino e nas instalações da ACM e notificaram a decisão [impugnada] às recorrentes.

8.

No âmbito da inspeção, a Comissão procedeu, nomeadamente, a uma visita dos escritórios, a uma recolha de material, em especial informático (computadores portáteis, telemóveis, tablet, dispositivos de armazenamento), à audição de diversas pessoas e à cópia do conteúdo do material recolhido.

9.

Cada uma das recorrentes enviou à Comissão uma mensagem de correio eletrónico datada de 24 de fevereiro de 2017, na qual formularam reservas quanto à decisão [impugnada] e ao desenrolar da inspeção realizada com base nela.

Tramitação do processo no Tribunal Geral e acórdão recorrido

10.

Por petição apresentada na Secretaria do Tribunal Geral em 28 de abril de 2017, as recorrentes interpuseram, nos termos do artigo 263.o TFUE, recurso de anulação da decisão impugnada. O Conselho da União Europeia foi autorizado a intervir em apoio dos pedidos da Comissão.

11.

Em apoio do seu recurso, as recorrentes invocaram, em substância, três fundamentos. O primeiro baseia‑se na exceção de ilegalidade do artigo 20.o do Regulamento n.o 1/2003, o segundo é baseado na violação do dever de fundamentação e o terceiro na violação do direito à inviolabilidade do domicílio. No âmbito deste último fundamento, as recorrentes alegaram uma ingerência desproporcionada nas suas esferas de atividade privada, tendo em conta, nomeadamente, as sociedades e as instalações abrangidas pela decisão impugnada.

12.

Pelo acórdão recorrido, o Tribunal Geral, tendo considerado que a Comissão não dispunha de indícios suficientemente sérios para suspeitar da existência de uma infração que consistia em intercâmbios de informações entre a Casino e a Intermarché sobre as suas futuras estratégias comerciais, anulou o artigo 1.o, alínea b), da decisão impugnada ( 5 ). Negou provimento ao recurso quanto ao restante ( 6 ).

Recurso da decisão do Tribunal Geral e pedidos das partes

13.

Em apoio do seu recurso, as recorrentes invocam quatro fundamentos. O primeiro fundamento baseia‑se no facto de o Tribunal Geral ter cometido um erro de direito ao considerar que as declarações orais recolhidas pela Comissão não precisavam de ser registadas para servirem de indícios que justificassem a decisão impugnada. O segundo fundamento baseia‑se no facto de o Tribunal Geral ter cometido um erro de direito ao considerar que o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio não exigia que a decisão limitasse no tempo o exercício dos poderes de inspeção da Comissão. O terceiro fundamento baseia‑se no facto de o Tribunal Geral ter cometido um erro de direito ao considerar que o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio não exigia que a decisão impugnada limitasse as pessoas e as instalações suscetíveis de serem inspecionadas. O quarto fundamento baseia‑se no facto de o Tribunal Geral ter cometido um erro de direito ao considerar que o direito fundamental a um recurso efetivo não impunha um recurso autónomo e imediato contra as inspeções.

14.

As recorrentes pedem ao Tribunal de Justiça a anulação do n.o 2 do dispositivo do acórdão recorrido, a procedência dos seus pedidos apresentados em primeira instância e, por conseguinte, a anulação da decisão impugnada e a condenação da Comissão nas despesas relativas ao presente recurso, bem como nas despesas efetuadas em primeira instância perante o Tribunal Geral.

15.

A Comissão pede ao Tribunal de Justiça que negue provimento ao recurso e condene as recorrentes nas despesas.

16.

O Conselho pede ao Tribunal de Justiça que negue provimento ao recurso na parte em que as recorrentes acusam o Tribunal Geral de ter cometido um erro de direito ao considerar que o direito fundamental a um recurso efetivo não impunha um recurso autónomo e imediato contra as inspeções e que condene as recorrentes nas despesas do presente recurso.

Quanto ao terceiro fundamento de recurso

17.

Em conformidade com o pedido do Tribunal de Justiça, irei concentrar a minha análise no terceiro fundamento de recurso.

18.

Com o seu terceiro fundamento, baseado no facto de o Tribunal Geral ter cometido um erro de direito ao considerar que o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio não exigia que a decisão impugnada limitasse as pessoas e as instalações suscetíveis de serem inspecionadas, as recorrentes contestam designadamente os n.os 144 a 147 do acórdão recorrido.

19.

Começarei por resumir o raciocínio do Tribunal Geral que foi objeto de contestação pelas recorrentes e, em seguida, irei analisar sucessivamente as quatro alegações em que se divide o fundamento em análise.

Acórdão recorrido

20.

No n.o 133 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral constatou, em primeiro lugar, que resultava da decisão impugnada que nem as sociedades nem os locais inspecionados são nominalmente designados, na medida em que, por um lado, o artigo 1.o, segundo parágrafo, da decisão impugnada continha a indicação de que a «inspeção [podia] ter lugar em qualquer instalação da empresa», seguida da expressão «e em especial», esta mesma seguida de dois endereços e, por outro lado, o artigo 1.o, primeiro parágrafo, e o artigo 3.o, primeiro parágrafo, dessa decisão mencionavam que «a Casino […], bem como todas as sociedades direta ou indiretamente controladas por ela», era visada na decisão de inspeção.

21.

Em seguida, constatou no n.o 135 do acórdão recorrido que o alcance muito amplo da inspeção à qual conduzem essas menções não tinha sido considerado pela jurisprudência como constituindo, enquanto tal, uma ingerência excessiva na esfera de atividade privada das empresas.

22.

Depois de recordar, nos n.os 137 a 141 do acórdão recorrido, a jurisprudência que sujeita o exercício dos amplos poderes de inspeção conferidos à Comissão pelo Regulamento n.o 1/2003 a condições que visam garantir o respeito dos direitos das empresas em causa, o Tribunal Geral respondeu da seguinte forma à alegação, invocada pelas recorrentes, segundo a qual a Comissão devia, no caso em apreço, ao abrigo das garantias destinadas a protegê‑las de ingerências desproporcionadas, especificar mais precisamente as sociedades e as instalações objeto da inspeção.

23.

Primeiro, no n.o 144 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral indicou que as indicações que constam da decisão impugnada permitiam, consideradas em conjunto, determinar as sociedades e as instalações afetadas pela inspeção. A este respeito, precisou que «[…] graças à especificação do objeto e da finalidade da inspeção, e, em especial, dos mercados dos produtos e dos serviços em causa, e do esclarecimento segundo o qual estão em causa a Casino e as suas filiais, bem como as suas instalações, pode facilmente deduzir‑se da decisão impugnada que são visados na inspeção a Casino e as suas filiais que operam nos setores abrangidos pela infração objeto da suspeita — a saber, os mercados do abastecimento em bens de consumo corrente (produtos alimentares, produtos de higiene e produtos de limpeza), os da venda desses bens aos consumidores e o da venda de serviços aos fabricantes de produtos de marca no setor dos bens de consumo corrente — e que a inspeção poderá ser efetuada no conjunto das suas instalações». Nestas circunstâncias, o Tribunal Geral considerou que «[p]or conseguinte, não eram indispensáveis à proteção dos direitos das recorrentes especificações mais precisas sobre o âmbito da inspeção».

24.

Segundo, no n.o 145 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral rejeitou as críticas das recorrentes de que o âmbito da inspeção era demasiado amplo devido à falta de especificação das sociedades e das instalações visadas. A este respeito, também salientou que a Comissão visou, na decisão impugnada, «o sujeito de base do direito da concorrência que é a empresa, que inclui a maior parte das vezes uma sociedade‑mãe e a sua ou as suas filiais, à qual podem ser imputadas as infrações e, em especial, as infrações objeto de suspeita no caso em apreço, que justificam, portanto, que sejam mencionadas na decisão [impugnada] tanto a sociedade‑mãe Casino como as suas filiais».

25.

Terceiro, no n.o 146 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral sublinhou que «a falta de esclarecimento na designação das sociedades e das instalações em causa contribui para o bom desenrolar das inspeções da Comissão, na medida em que lhe dá a margem de manobra necessária à recolha do máximo de provas possíveis e permite preservar um efeito surpresa indispensável para prevenir um risco de destruição ou de dissimulação dessas provas».

26.

Por último, no n.o 147 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral observou que os Despachos de 17 de fevereiro de 2017, mencionados no n.o 6 das presentes conclusões, que tinham autorizado as visitas e as apreensões em causa a título preventivo, em caso de oposição à inspeção, tinham especificado expressa e limitativamente as instalações em que essas visitas e essas apreensões poderiam ser feitas. Segundo o Tribunal Geral, quando a ingerência implicada na inspeção é mais significativa, no caso em apreço, porque é levada a cabo, apesar da oposição das sociedades inspecionadas, com recurso à força pública, com fundamento no artigo 20.o, n.os 6 a 8, do Regulamento n.o 1/2003, é reconhecida uma garantia suplementar que consiste na designação das instalações visitadas. Uma vez que as recorrentes não se opuseram à inspeção, esta garantia suplementar não tinha razão de ser no caso em apreço.

Análise

27.

As recorrentes acusam o Tribunal Geral de ter violado o artigo 7.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») e a exigência de proteção contra intervenções arbitrárias do poder público na esfera da atividade privada do indivíduo. Em substância, alegam que no acórdão recorrido o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao não considerar que a decisão impugnada, que não identificava individualmente nem as pessoas coletivas visadas pela inspeção, nem as instalações em que esta foi autorizada, era manifestamente ilegal na medida em que violava o direito à inviolabilidade do domicílio.

28.

Como já indiquei, as recorrentes apresentam quatro alegações em apoio do terceiro fundamento.

29.

Com a sua primeira alegação, argumentam que, ao contrário da conclusão do Tribunal Geral, nomeadamente no n.o 144 do acórdão recorrido, a definição do objeto e da finalidade da inspeção não pode compensar a falta de limitação dos poderes da Comissão quanto à identificação das pessoas e das instalações suscetíveis de serem inspecionadas. Baseando‑se num acórdão do Tribunal Constitucional alemão ( 7 ), acrescentam que não é aceitável que os titulares do direito ao respeito pelo domicílio — no caso em apreço, cada pessoa coletiva que integra o grupo Casino — tenham de deduzir da definição de objeto do inquérito, e, assim, à chegada dos inspetores, que estavam entre os sujeitos a inspecionar.

30.

A este respeito, saliento, a título preliminar, que, como foi corretamente sublinhado pela Comissão e ao contrário do que afirmam as recorrentes, o Tribunal Geral não considerou que a definição do objeto e da finalidade da inspeção tinha suprido a pretensa falta de limitação dos poderes da Comissão.

31.

Em contrapartida, por um lado, o Tribunal Geral considerou que o respeito do direito à inviolabilidade do domicílio não exige que as sociedades e as instalações inspecionadas sejam designadas nominalmente na decisão de inspeção. A este respeito, recordou que constavam menções semelhantes às contidas na decisão impugnada em decisões de outros processos decididos pelo Tribunal Geral ( 8 ) e que o alcance muito amplo da inspeção à qual conduzem essas menções não foi considerado pela jurisprudência como constituindo, enquanto tal, uma ingerência excessiva na esfera de atividade privada das empresas.

32.

Por outro lado, o Tribunal Geral considerou que, no caso em apreço, as especificações sobre o alcance da inspeção contidas na decisão impugnada eram suficientes para permitir determinar as sociedades e as instalações em causa na inspeção e que especificações mais precisas não eram indispensáveis para a proteção dos direitos das recorrentes. Para chegar a esta conclusão, considerou não apenas a indicação do objeto e da finalidade da inspeção constantes da decisão impugnada, e, em especial, a especificação dos mercados dos produtos e dos serviços em causa, mas também o esclarecimento, contido nessa decisão, segundo o qual «estão em causa a Casino e as suas filiais, bem como as suas instalações». Referiu, aliás, que estas indicações, consideradas no seu conjunto, permitiam facilmente deduzir da decisão impugnada que apenas são visadas na inspeção a Casino e as suas filiais que operam nos mercados abrangidos pela mesma.

33.

Ora, a abordagem seguida pelo Tribunal Geral, acima descrita, não colide, em minha opinião, com a jurisprudência do Tribunal de Justiça e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (a seguir «TEDH») em matéria de visitas domiciliárias a instalações comerciais de sociedades, nomeadamente para efeitos de fiscalização com vista à punição de infrações ao direito da concorrência, nem autoriza a Comissão a adotar medidas desproporcionadas ou arbitrárias que prejudiquem o direito à inviolabilidade do domicílio, consagrado no artigo 7.o da Carta e no artigo 8.o da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»).

34.

A este respeito, importa, antes de mais, recordar que, como esclareceu o Tribunal de Justiça no Acórdão de 18 de junho de 2015, Deutsche Bahn e o./Comissão ( 9 ) (a seguir «Acórdão Deutsche Bahn»), embora decorra da jurisprudência do TEDH que a proteção prevista no artigo 8.o da CEDH pode ser alargada a determinadas instalações comerciais, o mesmo Tribunal declarou que a ingerência pública pode ir mais além no caso de instalações ou de atividades profissionais ou comerciais do que noutros casos.

35.

Em seguida, importa sublinhar que os poderes de inspeção de que a Comissão dispõe ao abrigo do artigo 20.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1/2003 se limitam a autorizar os agentes desta última a, designadamente, entrarem nos locais que designem, exigirem a apresentação e fazerem cópia dos documentos que solicitem, e exigirem que lhe seja mostrado o conteúdo dos móveis que indiquem ( 10 ). Mais concretamente, o artigo 20.o, n.o 2, alínea a), deste regulamento especifica que os funcionários e outros acompanhantes mandatados pela Comissão para efetuar uma inspeção são investidos, nomeadamente, do poder de acesso a todas as instalações, terrenos e meios de transporte das empresas e associações de empresas. Ora, o Tribunal de Justiça teve oportunidade de esclarecer que um tal poder surge como revestido de especial importância na medida em que deve permitir à Comissão recolher as provas das infrações às regras de concorrência nos locais em que normalmente se encontram, ou seja, nas instalações comerciais das empresas, e que tanto a finalidade do Regulamento n.o 1/2003 como a enumeração contida no seu artigo 20.o dos poderes atribuídos aos funcionários da Comissão revelam que as verificações podem ter um alcance bem lato ( 11 ).

36.

Por último, importa salientar, por um lado, que o exercício dos poderes de inspeção da Comissão está cercado de garantias suficientes que oferecem uma proteção contra as ingerências arbitrárias do poder público ( 12 ) — entre as quais, conforme precisou o Tribunal de Justiça, o dever de fundamentação específico das decisões de inspeção reveste um papel primordial ( 13 ) — e, por outro, que as inspeções efetuadas, como no presente processo, com base no artigo 20.o, n.o 4, do Regulamento n.o 1/2003, não implicam o exercício de poderes coercivos, que apenas podem ser exercidos pelas autoridades nacionais em caso de recurso ao procedimento previsto no artigo 20.o, n.os 6 a 8, deste regulamento.

37.

Nestas circunstâncias, a meu ver, o Tribunal Geral não pode ser criticado por ter concluído que, quando as empresas e as instalações submetidas à inspeção não são nominalmente designadas na decisão de inspeção, mas a fundamentação dessa decisão permite facilmente e, deste modo, sem um esforço de interpretação excessivo, deduzir quais são as pessoas coletivas e as suas instalações especificamente visadas pelas inspeções, não há uma violação do princípio da proporcionalidade, cujo respeito deve ser observado na adoção de medidas que impliquem uma ingerência relativa ao artigo 7.o da Carta ( 14 ).

38.

O TEDH adotou uma abordagem semelhante no Acórdão de 20 de dezembro de 2010, Société Canal Plus e o./França ( 15 ), no qual considerou que o facto de uma das sociedades inspecionadas no processo que deu origem a esse acórdão não ter sido especificamente referida no despacho que autoriza as visitas domiciliárias em causa «não coloca[va] em causa a legalidade da ingerência, uma vez que o despacho de autorização visava em geral as instalações do “Canal Plus”, sem especificar a forma societária das diferentes entidades envolvidas a este respeito, mas certamente abrangidas por este título».

39.

No que diz respeito ao acórdão do Tribunal Constitucional alemão invocado pelas recorrentes, saliento que, nesse mesmo acórdão, este órgão jurisdicional concluiu que existia uma violação do direito à inviolabilidade do domicílio na medida em que o mandado de busca em causa não permitia identificar a sociedade cujas instalações deviam ser objeto de busca e era, por conseguinte, indeterminado.

40.

O Tribunal Constitucional alemão chegou a esta conclusão depois de ter constatado que nenhuma empresa que tinha apenas a denominação social indicada no mandado de busca utilizava as instalações na morada indicada nesse mandado e que, entre as empresas que ocupavam os escritórios nessa morada e cuja denominação social era composta por palavras utilizadas no referido mandado, seguidas de uma menção complementar, não era possível compreender a qual delas se referia. O referido órgão jurisdicional considerou, além disso, que não era possível dissipar a incerteza sobre a sociedade visada tendo em conta as outras menções contidas no mandado de busca.

41.

Por conseguinte, ao decidir dessa forma, não descartou a possibilidade de que, quando o ato pelo qual são ordenadas as visitas domiciliárias não designa nominalmente a sociedade visada pelas mesmas, esta última possa ser identificada indiretamente com base no conteúdo do ato. A este respeito, importa salientar que o Tribunal Constitucional alemão, em contrapartida, se opôs à possibilidade de que tal identificação possa ser efetuada com base em elementos externos ao mandado de busca em causa, como o processo de instrução.

42.

Ora, no caso em apreço, foi apenas com base nas menções contidas na decisão impugnada que o Tribunal Geral considerou que as sociedades visadas pela mesma eram claramente identificáveis.

43.

Importa também observar que um dos fatores que tornaram incerta a identificação da sociedade visada pelo mandado de busca em causa no processo que deu origem ao referido acórdão do Tribunal Constitucional alemão foi a falta de precisão sobre o setor de atividade dessa sociedade. Contudo, a decisão impugnada indica claramente os mercados em que se presumiu a existência de uma infração ao artigo 101.o TFUE e, por conseguinte, permite identificar claramente o setor de atividade das sociedades visadas pela inspeção.

44.

Com a segunda alegação do seu terceiro fundamento, as recorrentes argumentam que o conceito de «empresa» — que é um conceito económico e puramente funcional utilizado exclusivamente para a aplicação das regras materiais do direito da concorrência como a qualificação de um acordo, decisão ou prática concertada — não pode obstar ao respeito dos direitos fundamentais associados ao conceito de «pessoa coletiva». No caso das sociedades, o único titular do direito à inviolabilidade do domicílio seria a pessoa coletiva e não a empresa que é desprovida de personalidade jurídica. Neste contexto, as recorrentes remetem para o Acórdão de 25 de outubro de 2011, Uralita/Comissão ( 16 ), no qual o Tribunal Geral declarou que, quando a Comissão adota uma decisão em aplicação do artigo 101.o TFUE, deve identificar as pessoas singulares ou coletivas que podem ser responsabilizadas pelo comportamento da empresa em causa e que podem ser sancionadas a este título.

45.

A este respeito, saliento, por um lado, que os argumentos apresentados pelas recorrentes no âmbito desta segunda alegação não podem pôr em causa a validade da abordagem seguida pelo Tribunal Geral e da conclusão a que chegou no n.o 144 do acórdão recorrido.

46.

Por outro lado, contrariamente ao que alegam as recorrentes, na minha opinião, resulta claramente do n.o 145 do acórdão recorrido que, quando referiu a empresa como «o sujeito de base do direito da concorrência», o Tribunal Geral não pretendia afirmar que a «empresa», na aceção do direito da concorrência, e não as pessoas coletivas que a compõem, devia ser considerada como titular do direito fundamental à inviolabilidade do domicílio limitado pela adoção de uma medida de inspeção. Esta referência deve ser interpretada como um esclarecimento quanto ao alcance a atribuir à indicação, constante do artigo 1.o, primeiro parágrafo, e do artigo 3.o, primeiro parágrafo, desta decisão, segundo os quais eram obrigados a submeter‑se à inspeção «[a] Casino […], e todas as sociedades direta ou indiretamente controladas por ela», com vista à correta delimitação do âmbito de aplicação ratione personae desta decisão.

47.

Neste contexto, a referência feita pelas recorrentes ao Acórdão de 25 de outubro de 2011, Uralita/Comissão ( 17 ), relativa a uma decisão de constatação de infração e não a uma decisão de inspeção, não pode, como bem salientou a Comissão, ser útil para as recorrentes. As inspeções decorrem numa fase em que a Comissão ainda não dispõe de informações detalhadas, incluindo no que diz respeito aos autores da alegada infração, devendo começar por verificar a justeza das suas suspeitas, bem como o alcance dos factos ocorridos, uma vez que o objetivo da inspeção é precisamente reunir provas relativas a uma alegada infração.

48.

Com a terceira alegação do terceiro fundamento, as recorrentes contestam a afirmação do Tribunal Geral no n.o 146 do acórdão recorrido, segundo a qual a falta de esclarecimento na designação das sociedades e das instalações em causa contribui para o bom desenrolar das inspeções. Alegam que o exemplo das jurisdições em que é exigida a designação das sociedades e/ou das instalações visadas demonstraria que essa clarificação não prejudica o bom desenrolar das visitas domiciliárias.

49.

A este respeito, importa, por um lado, salientar que, mesmo admitindo que o Tribunal Geral tenha apreciado de forma incorreta ou tenha sobrestimado as vantagens, em termos de eficácia das inspeções, associadas à falta de precisão na designação das sociedades e das instalações visadas pela inspeção, tal não seria suficiente para pôr em causa a validade da abordagem seguida e da conclusão a que chegou no n.o 144 do acórdão recorrido.

50.

Por outro lado, há que recordar que as práticas legislativas ou judiciárias nacionais, mesmo partindo do pressuposto de que sejam comuns a todos os Estados‑Membros, não podem ser impostas na aplicação das regras da concorrência do Tratado ( 18 ).

51.

Por último, com a quarta alegação do terceiro fundamento, as recorrentes argumentam que, contrariamente ao que o Tribunal Geral declarou no n.o 147 do acórdão recorrido, não se pode sustentar que o risco de arbitrariedade ligado à falta de precisão da decisão impugnada quanto às pessoas e às instalações suscetíveis de serem inspecionadas foi compensado pelo grau de proteção subsidiária que a eventual execução dos Despachos de 17 de fevereiro de 2017 teria oferecido. Com efeito, o direito da União deve ser autossuficiente, oferecendo diretamente aos particulares todas as garantias necessárias para a proteção dos seus direitos fundamentais e não dependendo das disposições de direito nacional que possam ser aplicadas noutros locais. Além disso, para que os referidos despachos fossem executórios, as recorrentes não deveriam ter permitido aos funcionários da Comissão o acesso às suas instalações, obrigando‑os assim a pedir a intervenção das autoridades francesas. Tal oposição tê‑los‑ia exposto ao risco de uma multa pesada.

52.

A argumentação das recorrentes parece‑me mais uma vez baseada numa interpretação errada do acórdão recorrido. Com efeito, o Tribunal Geral não considerou que a irregularidade decorrente da falta de indicação precisa das sociedades e das instalações sujeitas a inspeção fosse compensada pela designação expressa, nos Despachos de 17 de fevereiro de 2017, das instalações que podiam ser visitadas. Limitou‑se a referir que, caso a intervenção da Comissão tivesse implicado, devido à oposição das recorrentes, o exercício de poderes coercivos, estes beneficiariam de uma garantia suplementar, que consistia na especificação expressa e limitativa das instalações visadas pela inspeção.

53.

Com base no conjunto das considerações precedentes, considero que o terceiro fundamento de recurso não pode ser acolhido.

Conclusão

54.

Atendendo a todas as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que julgue improcedente o terceiro fundamento de recurso.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) T‑249/17, EU:T:2020:458.

( 3 ) Processo AT.40466 — Tute 1.

( 4 ) Regulamento do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos [101.o] e [102.o TFUE] (JO 2003, L 1, p. 1).

( 5 ) N.o 1 do dispositivo do acórdão recorrido.

( 6 ) N.o 2 do dispositivo do acórdão recorrido.

( 7 ) Bundesverfassungsgericht, 16 de abril de 2015, 2 BvR 440/14, NJW 2015, 2870.

( 8 ) No n.o 134 do acórdão recorrido, o Tribunal Geral menciona os processos que deram origem aos Acórdãos de 14 de novembro de 2012, Nexans France e Nexans/Comissão (T‑135/09, EU:T:2012:596), e de 6 de setembro de 2013, Deutsche Bahn e o./Comissão (T‑289/11, T‑290/11 e T‑521/11, EU:T:2013:404).

( 9 ) C‑583/13 P, EU:C:2015:404, n.o 20.

( 10 ) V. Acórdão Deutsche Bahn do Tribunal de Justiça, n.o 23.

( 11 ) V., neste sentido, a respeito do Regulamento n.o 17 do Conselho, de 6 de fevereiro de 1962, primeiro regulamento de aplicação dos artigos 81.o e 82.o do Tratado (JO 1962, L 13, p. 204/62), Acórdão de 21 de setembro de 1989, Hoechst/Comissão (46/87 e 227/88, EU:C:1989:337, n.o 26).

( 12 ) V. Acórdão Deutsche Bahn, n.o 28, e Acórdão de 6 de setembro de 2013, Deutsche Bahn e o./Comissão (T‑289/11, T‑290/11 e T‑521/11, EU:T:2013:404, n.o 74).

( 13 ) V. Acórdão de 30 de janeiro de 2020, České dráhy/Comissão (C‑538/18 P e C‑539/18 P, não publicado, EU:C:2020:53, n.o 40).

( 14 ) V., sobre as decisões em que são pedidas informações, Conclusões do advogado‑geral N. Wahl no processo HeidelbergCement/Comissão, C‑247/14 P, EU:C:2015:694, n.o 42.

( 15 ) CE:ECHR:2010:1221JUD002940808, n.o 52.

( 16 ) T‑349/08, não publicado, EU:T:2011:622, n.o 36.

( 17 ) T‑349/08, não publicado, EU:T:2011:622, n.o 36

( 18 ) V. Acórdão de 17 de janeiro de 1984, VBVB e VBBB/Comissão (43/82 e 63/82, EU:C:1984:9, n.o 40).

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