Choose the experimental features you want to try

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62020CC0391

Conclusões do advogado-geral Emiliou apresentadas em 8 de março de 2022.
Processo instaurado por Boriss Cilevičs e o.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Latvijas Republikas Satversmes tiesa.
Reenvio prejudicial — Artigo 49.° TFUE — Liberdade de estabelecimento — Restrição — Justificação — Organização do sistema educativo — Estabelecimentos de ensino superior — Obrigação de ministrar os programas de estudos na língua oficial do Estado‑Membro em causa — Artigo 4.°, n.° 2, TUE — Identidade nacional de um Estado‑Membro — Defesa e promoção da língua oficial de um Estado‑Membro — Princípio da proporcionalidade.
Processo C-391/20.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2022:166

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

NICHOLAS EMILIOU

apresentadas em 8 de março de 2022 ( 1 )

Processo C‑391/20

Boriss Cilevičs,

Valērijs Agešins,

Vjačeslavs Dombrovskis,

Vladimirs Nikonovs,

Artūrs Rubiks,

Ivans Ribakovs,

Nikolajs Kabanovs,

Igors Pimenovs,

Vitālijs Orlovs,

Edgars Kucins,

Ivans Klementjevs,

Inga Goldberga,

Evija Papule,

Jānis Krišāns,

Jānis Urbanovičs,

Ļubova Švecova,

Sergejs Dolgopolovs,

Andrejs Klementjevs,

Regīna Ločmele‑Luņova,

Ivars Zariņš

sendo interveniente:

Latvijas Republikas Saeima

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional, Letónia)]

«Reenvio prejudicial — Artigo 49.o TFUE — Liberdade de estabelecimento — Artigo 56.o TFUE — Livre prestação de serviços — Restrição — Legislação nacional que impõe aos estabelecimentos de ensino superior a promoção e desenvolvimento da língua oficial nacional — Justificação — Proporcionalidade — Artigo 4.o, n.o 2, TUE — Identidade nacional — Artigo 13.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Liberdade académica»

I. Introdução

1.

O ano de 2021 assinalou o 40.o aniversário da Resolução do Parlamento Europeu «sobre uma Carta comunitária das línguas e culturas regionais e sobre uma Carta dos direitos das minorias étnicas» ( 2 ). Tratava‑se de uma resolução relativamente sucinta, mas, tanto quanto é do meu conhecimento, este foi um dos primeiros casos em que o Parlamento interveio nesta matéria, apelando aos Estados‑Membros para porem em prática uma política [específica] neste domínio». Com efeito, tem sido tradicionalmente considerado que as questões linguísticas apresentam uma conexão estreita com a soberania e a identidade nacionais ( 3 ), sendo, por conseguinte, social e politicamente muito sensíveis na maioria dos Estados‑Membros ( 4 ). Consequentemente, tanto o legislador da União como o juiz da União adotaram reiteradamente uma abordagem bastante cautelosa, diplomática e pragmática em relação aos regimes linguísticos, especialmente quando isso implicava impor obrigações a esse respeito aos Estados‑Membros ( 5 ).

2.

No preâmbulo da resolução, o Parlamento sublinhou a sua determinação em «promover uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa e preservar as suas línguas vivas, inspirando‑se na sua diversidade para enriquecer e diversificar o seu património cultural comum» ( 6 ). O Parlamento reuniu assim dois objetivos que, à primeira vista, podem parecer difíceis de conciliar: a vontade de criar uma união mais estreita entre os cidadãos europeus e de preservar e promover a sua diversidade linguística e cultural.

3.

Eis que, quatro décadas mais tarde, estes dois objetivos continuam a ser atuais e da maior importância para o projeto europeu. A preocupação em dar continuidade ao processo de «criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa» figura nos preâmbulos do Tratado UE e do Tratado FUE, bem como no artigo 1.o TUE. Ao mesmo tempo, o preâmbulo do Tratado FUE e o artigo 3.o, n.o 3, TUE expressam igualmente a vontade da União Europeia de «[respeitar] a riqueza da sua diversidade cultural e linguística» e de «[velar] pela salvaguarda e pelo desenvolvimento do património cultural europeu».

4.

Não restam dúvidas, a meu ver, de que estes objetivos não são contraditórios e, portanto, podem e devem ser prosseguidos em simultâneo. No entanto, é igualmente verdade que, em circunstâncias específicas, podem dividir a União Europeia. Por exemplo, as medidas nacionais destinadas a promover e proteger a utilização de uma língua nacional podem, na prática, criar obstáculos ao exercício, por particulares e empresas, da sua liberdade de circulação.

5.

Nestas circunstâncias, parece‑me necessário assegurar um justo equilíbrio entre estes dois objetivos para que ambos possam ser efetivamente prosseguidos. O caso em apreço é exemplo disso: com as suas questões, o Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional, Letónia) pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se uma legislação nacional que, salvo determinadas exceções, exige que os estabelecimentos de ensino superior organizem cursos apenas na língua nacional oficial, é compatível com o direito da União.

II. Quadro jurídico

A. Direito da União

6.

O considerando 11 da Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno (a seguir «Diretiva Serviços») ( 7 ) prevê, inter alia:

«A presente diretiva não interfere com as medidas tomadas pelos Estados‑Membros, em conformidade com o direito comunitário, relativamente à proteção ou promoção da diversidade cultural e linguística e do pluralismo dos meios de comunicação social, incluindo o respetivo financiamento.»

7.

O artigo 1.o, n.os 1 e 4, da Diretiva Serviços prevê:

«1.   A presente diretiva estabelece disposições gerais que facilitam o exercício da liberdade de estabelecimento dos prestadores de serviços e a livre circulação dos serviços, mantendo simultaneamente um elevado nível de qualidade dos serviços.

[…]

4.   A presente diretiva não afeta as medidas adotadas a nível comunitário ou a nível nacional, em conformidade com o direito comunitário, com vista a proteger ou promover a diversidade cultural ou linguística ou o pluralismo dos meios de comunicação social.»

B. Direito nacional

1.   Constituição letã

8.

O artigo 4.o da Latvijas Republikas Satversme (Constituição da República da Letónia, a seguir «Constituição letã») prevê, nomeadamente, que «o letão é a língua oficial da República da Letónia».

9.

O artigo 105.o da Constituição da Letónia prevê o direito de propriedade e o artigo 112.o da mesma consagra o direito à educação. Nos termos do artigo 113.o da referida Constituição, «o Estado reconhece a liberdade de criação científica, artística ou outra e assegura a proteção dos direitos de autor e do direito das patentes».

2.   Lei relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior

10.

O artigo 5.o da Augstskolu likums (Lei relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior), de 2 de novembro de 1995 ( 8 ), previa que os estabelecimentos de ensino superior tinham por missão cultivar e desenvolver as ciências e as artes. A likums «Grozījumi Augstskolu likumā» (Lei que Altera a Lei relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior), de 21 de junho de 2018 ( 9 ), alterou o terceiro período do artigo 5.o da Lei relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior, que passou a ter o seguinte teor: «no âmbito das suas atividades, [os estabelecimentos de Ensino Superior] cultivam e desenvolvem as ciências, as artes e a língua oficial».

11.

A Lei que altera a Lei relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior, alterou também o artigo 56.o desta lei. Assim, o n.o 3 do referido artigo passou a ter a seguinte redação:

«Nos estabelecimentos de ensino superior e nos estabelecimentos de grau médio e de formação técnica, os programas de estudos serão ministrados na língua oficial. Só é possível realizar programas de estudos numa língua estrangeira nos seguintes casos:

1) Programas de estudos realizados na Letónia por estudantes estrangeiros e programas de estudos organizados no âmbito da cooperação prevista nos programas da União Europeia e nos acordos internacionais podem ser ministrados nas línguas oficiais da União Europeia. Quando os estudos que se prevê serem realizados na Letónia tiverem uma duração superior a seis meses ou representarem mais de 20 créditos, a aprendizagem da língua oficial deve ser incluída no número de horas de ensino obrigatório a seguir pelos estudantes estrangeiros;

2) Não podem ser ministrados nas línguas oficiais da União Europeia mais de um quinto do número de créditos do programa de estudos, entendendo‑se que os exames finais e estatais e a redação dos trabalhos de qualificação, de fim de grau ou de fim de mestrado não são tomados em consideração para esse efeito.

3) Programas de estudos que devam ser realizados numa língua estrangeira, a fim de alcançarem os seus objetivos […] para as seguintes categorias de programas educativos: estudos linguísticos e culturais ou programas relativos ao estudo de línguas. […]

4) Os programas de estudo conjuntos podem ser ministrados nas línguas oficiais da União Europeia.»

3.   Lei relativa à Escola Superior de Ciências Económicas de Estocolmo de Riga e Lei relativa à Escola Superior de Direito de Riga

12.

O artigo 19.o, n.o 1, da Likums «Par Rīgas Ekonomikas augstskolu» (Lei relativa à Escola Superior de Ciências Económicas de Estocolmo de Riga) ( 10 ) dispõe: «Neste estabelecimento, os cursos são ministrados em inglês. A redação e a defesa dos trabalhos necessários à obtenção do grau de Licenciado, de Mestre ou de Doutor e os exames de qualificação profissional são efetuados em inglês».

13.

Por seu turno, o artigo 21.o da Likums «Par Rīgas Juridikas augstskolu» (Lei relativa à Escola Superior de Direito de Riga) ( 11 ) prevê o seguinte: «Este estabelecimento disponibiliza programas de estudos que tenham obtido a licença correspondente e que tenham sido acreditados em conformidade com o legalmente previsto. Os cursos são ministrados em inglês ou noutra língua oficial da União Europeia».

III. Matéria de facto, tramitação do processo nacional e questões prejudiciais

14.

O Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) é chamado a pronunciar‑se, no âmbito de um processo instaurado por 20 deputados do Saeima (Parlamento da Letónia) (a seguir «demandantes»), sobre a conformidade com o direito da União de algumas disposições da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior, conforme alterada, na medida em que tais disposições impõem aos estabelecimentos em causa a obrigação de ministrar cursos unicamente na língua oficial nacional.

15.

No Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional), os demandantes argumentaram que as disposições controvertidas restringem, em primeiro lugar, a autonomia dos estabelecimentos de ensino superior privados e a liberdade académica dos seus professores e estudantes. Sustentaram ainda que as disposições em causa restringem o direito dos estabelecimentos de ensino superior ao exercício de uma atividade comercial e à prestação, a título oneroso, de serviços de ensino superior, violando assim os seus direitos de propriedade. Além disso, ao criarem uma barreira à entrada no mercado do ensino superior e ao impedirem nacionais e empresas de outros Estados‑Membros da União de prestarem serviços de ensino superior em línguas estrangeiras, as disposições controvertidas também violam, segundo os demandantes, os direitos à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços reconhecidos nos artigos 49.o e 56.o TFUE, bem como a liberdade de empresa, consagrada no artigo 16.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

16.

Em 11 de junho de 2020, o Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) proferiu um acórdão no processo n.o 2019‑12‑01. Decidiu dividir o processo sub judice em dois: o processo relativo à conformidade das disposições controvertidas com o artigo 112.o da Constituição da Letónia (a seguir «primeiro processo») e o processo relativo à conformidade das disposições em causa com os artigos 1.o e 105.o da Constituição da Letónia (a seguir «segundo processo»).

17.

O Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) considerou que era competente para conhecer do primeiro processo. Concluiu que o artigo 5.o, n.o 1, terceiro período, da Lei relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior é conforme com o artigo 112.o da Constituição da Letónia, em conjugação com o artigo 113.o desta. Em contrapartida, declarou que o artigo 56.o, n.o 3, da Lei relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior e o ponto 49 das disposições transitórias desta não são conformes com o artigo 112.o da Constituição da Letónia, em conjugação com o artigo 113.o desta, uma vez que tais disposições controvertidas são aplicáveis aos estabelecimentos de ensino superior privados. Todavia, este órgão jurisdicional decidiu manter provisoriamente em vigor as disposições controvertidas, a saber, até 1 de maio de 2021, a fim de dar ao legislador nacional um prazo razoável para adotar a nova legislação.

18.

Já no que diz respeito ao segundo processo, o Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) considerou que teria de analisar novamente a questão de mérito. Concluiu que o direito de propriedade consagrado no artigo 105.o da Constituição da Letónia deve ser interpretado à luz dos princípios da União relativos à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços.

19.

Assim, tendo dúvidas quanto à interpretação a dar às disposições pertinentes do direito da União, o Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) decidiu, em 29 de julho de 2020, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Uma [legislação] como a que está em causa no processo principal constitui uma restrição à liberdade de estabelecimento consagrada no artigo 49.o [TFUE] ou, a título subsidiário, à livre prestação de serviços garantida no artigo 56.o [TFUE], bem como à liberdade de empresa reconhecida no artigo 16.o da [Carta]?

2)

Que considerações devem ser tidas em conta na apreciação do caráter justificado, adequado e proporcionado dessa [legislação] relativamente ao seu objetivo legítimo de proteger a língua oficial como manifestação da identidade nacional?»

20.

Por Lei de 8 de abril de 2021, que entrou em vigor em 1 de maio de 2021, foram introduzidas alterações às disposições controvertidas. Assim, em 6 de setembro de 2021, o Tribunal de Justiça perguntou ao Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) se pretendia retirar o seu pedido de decisão prejudicial ou mantê‑lo. Na sua resposta de 5 de outubro de 2021, o Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) informou o Tribunal de Justiça da sua intenção de manter o seu pedido de decisão prejudicial.

21.

Foram apresentadas observações escritas pelos demandantes no processo principal, pelos Governos francês, letão, neerlandês e austríaco, bem como pela Comissão Europeia.

IV. Análise

22.

Nas presentes conclusões, abordarei a problemática — sem dúvida importante e melindrosa — suscitada pelas questões submetidas pelo Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional). Contudo, antes de me debruçar sobre isso, devo responder às dúvidas, manifestadas pela Comissão, no sentido de saber se as questões prejudiciais continuam a ser pertinentes para efeitos de resolução do litígio pendente no órgão jurisdicional de reenvio.

A. Quanto à admissibilidade

23.

O artigo 267.o TFUE e o artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça sujeitam a admissibilidade do pedido de decisão prejudicial a vários requisitos de natureza substantiva e processual. Um desses requisitos é que as respostas do Tribunal de Justiça às questões prejudiciais sejam pertinentes para a resolução do litígio pendente no órgão jurisdicional de reenvio. Por outras palavras, a resposta a estas questões deve ser necessária ao «julgamento da causa» pelo órgão jurisdicional de reenvio ( 12 ).

24.

Os requisitos de admissibilidade do reenvio prejudicial devem estar preenchidos não apenas à data em que o processo é instaurado, mas também ao longo de todo o processo. Se, no decurso da instância, tais requisitos deixarem de estar preenchidos, o Tribunal de Justiça põe termo ao processo, declarando que já não há que conhecer do pedido de decisão prejudicial. Pode ser esse o caso, por exemplo, quando o processo principal ficou desprovido de objeto devido a decisões posteriores do órgão jurisdicional de reenvio (ou de outro órgão jurisdicional nacional) no âmbito do mesmo processo ou em processos conexos ( 13 ), ou quando as disposições aplicáveis do direito nacional são alteradas ou revogadas ( 14 ).

25.

Com base nesta jurisprudência, a Comissão manifesta dúvidas quanto à admissibilidade do presente pedido de decisão prejudicial. A Comissão observa que, nos termos do Acórdão de 11 de junho de 2020 proferido pelo Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional), as disposições nacionais em questão foram consideradas contrárias à Constituição nacional. Além disso, na sequência desse acórdão, o legislador letão alterou as referidas disposições, com efeitos a partir de 1 de maio de 2021 ( 15 ).

26.

Não subscrevo as reservas formuladas pela Comissão.

27.

A título preliminar, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, o juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão judicial a tomar, tem competência exclusiva para apreciar, tendo em conta as especificidades do processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça. Daqui decorre que as questões submetidas pelos órgãos jurisdicionais nacionais gozam de uma presunção de pertinência e que o Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre essas questões se for manifesto que a interpretação solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas ( 16 ).

28.

Ora, não me parece que, no caso em apreço, se verifiquem as condições necessárias para que a presunção de pertinência seja ilidida.

29.

A este respeito, observo que, por Acórdão de 11 de junho de 2020, o Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) decidiu, conforme referido anteriormente nos n.os 16 a 18, dividir o processo em dois: primeiro processo e segundo processo. No primeiro processo, o órgão jurisdicional de reenvio dirimiu o litígio, declarando que as disposições controvertidas são incompatíveis com determinadas disposições da Constituição da Letónia. No segundo processo, o referido órgão jurisdicional considerou que não podia concluir a análise relativa à alegada incompatibilidade entre as disposições controvertidas e outras disposições da Constituição da Letónia. Neste processo, o órgão jurisdicional de reenvio considerou que as disposições do direito nacional em causa deviam ser interpretadas em conformidade com determinadas disposições do direito da União cujo âmbito de aplicação não era suficientemente claro.

30.

As questões submetidas pelo Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) referem‑se precisamente ao segundo processo. Como este órgão jurisdicional explicou na sua resposta de 5 de outubro de 2021 à questão colocada pelo Tribunal de Justiça, este processo ainda está pendente no órgão jurisdicional de reenvio, pelo que o juiz a quo deve pronunciar‑se sobre a questão que lhe é submetida ( 17 ). Isto significa que o órgão jurisdicional de reenvio considera que uma resposta do Tribunal de Justiça às questões submetidas continua a ser necessária para poder proferir a sua decisão.

31.

Não parece haver nenhum elemento nos autos que possa pôr em causa a apreciação do órgão jurisdicional de reenvio a este respeito. Pelo contrário, vários elementos sugerem que não se tornou redundante obter uma resposta às questões suscitadas no âmbito do presente reenvio prejudicial.

32.

Em primeiro lugar, não se pode excluir a possibilidade de a apreciação pelo Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) das questões suscitadas no segundo processo revelar aspetos de incompatibilidade entre as disposições controvertidas e a Constituição nacional — quando esta última é interpretada à luz do direito da União — que são cumulativas com as identificadas no primeiro processo. Esta situação pode, assim, desencadear uma intervenção adicional por parte do legislador letão de forma a garantir a legalidade das disposições controvertidas. Com efeito, através da Lei de 8 de abril de 2021, o legislador manifestou a sua vontade de alterar, e não de revogar na íntegra, as disposições controvertidas.

33.

Em segundo lugar, o Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) decidiu, não obstante as suas conclusões no primeiro processo, manter temporariamente em vigor as disposições controvertidas até 1 de maio de 2021. Estas disposições produziram assim os seus efeitos durante um determinado período de tempo. Não se pode excluir, a priori, a possibilidade de, na sequência da decisão do Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) no segundo processo, as pessoas coletivas e singulares afetadas pelas disposições pretensamente ilegais intentarem uma ação (por exemplo, de indemnização).

34.

Com base nisso, não é certo que o Acórdão do Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) no primeiro processo e/ou a lei que altera as disposições controvertidas tenham posto termo à alegada incompatibilidade com o direito da União. Nestas circunstâncias, não é manifesto que a interpretação das disposições do direito da União solicitada não tenha nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, ou que o problema seja de natureza hipotética ( 18 ).

35.

Mais importante ainda, há que ter presente que os processos atualmente pendentes no Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) não dizem respeito a um ou mais litígios específicos que opõem pessoas singulares ou coletivas à Administração Pública. Com efeito, conforme explicou o órgão jurisdicional de reenvio, nestes processos — que são instaurados por particulares com legitimidade ativa (como é o caso dos deputados ao Parlamento da Letónia), para defender o interesse público — deve proceder‑se a uma fiscalização abstrata da legislação, a fim de verificar se as disposições controvertidas são compatíveis com as normas jurídicas hierarquicamente superiores.

36.

Nestas circunstâncias, considerar que as questões submetidas não são pertinentes para a resolução do litígio significaria, na prática, ignorar a natureza desse procedimento e comprometer o objetivo pretendido.

37.

À luz do que precede, considero que o pedido de decisão prejudicial é admissível.

B. Quanto às questões prejudiciais

38.

Com as suas duas questões, que devem ser analisadas em conjunto, o Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional) pergunta, em substância, ao Tribunal de Justiça se uma legislação nacional que, salvo determinadas exceções, impõe aos estabelecimentos de ensino superior a obrigação de ministrarem cursos apenas na língua oficial nacional, é compatível com o direito da União. A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio manifesta dúvidas quanto à interpretação a dar aos artigos 49.o e 56.o TFUE e ao artigo 16.o da Carta.

39.

Todavia, nas observações apresentadas ao Tribunal de Justiça no âmbito do presente processo, surgem algumas dúvidas no que concerne ao quadro jurídico da União pertinente para efeitos de análise. Por conseguinte, antes de apreciar o mérito das questões submetidas, importa clarificar as disposições do direito da União relativamente às quais deve ser apreciada a compatibilidade das medidas nacionais em causa.

1.   Quadro jurídico pertinente

40.

Na minha opinião, para determinar o quadro jurídico pertinente para efeitos de apreciação da compatibilidade das disposições controvertidas com o direito da União, há três questões que devem ser contempladas. Em primeiro lugar, a organização de cursos de ensino superior constitui uma «atividade económica» estando, como tal, abrangida pelo âmbito de aplicação das regras da União em matéria de livre circulação de serviços? Em segundo lugar, em caso afirmativo, deve a compatibilidade das disposições controvertidas com o direito da União ser apreciada à luz das disposições do Tratado FUE relativas ao direito de estabelecimento e/ou à livre prestação de serviços, ou à luz das disposições da Diretiva Serviços? Em terceiro e último lugar, deve o Tribunal de Justiça apreciar, separadamente, a compatibilidade das disposições controvertidas com o artigo 16.o da Carta?

a)   Organização de cursos de ensino superior enquanto atividade económica na aceção do Tratado FUE

41.

A resposta à primeira questão mencionada no número anterior é bastante simples.

42.

É certo que, conforme salientou o Governo letão, a cultura e a educação são domínios que, em grande medida, se inserem nas competências dos Estados‑Membros. Com efeito, em conformidade com o artigo 6.o TFUE, nesses domínios a União só dispõe de competência para «desenvolver ações destinadas a apoiar, coordenar ou completar a ação dos Estados‑Membros». Além disso, nos termos do artigo 165.o, n.o 1, TFUE, a ação da União no domínio da educação deve respeitar «a responsabilidade dos Estados‑Membros pelo conteúdo do ensino e pela organização do sistema educativo, bem como a sua diversidade cultural e linguística».

43.

Todavia, isso não significa que esses domínios não sejam abrangidos pelo direito da União nem que os Estados‑Membros possam regular essa matéria como bem entenderem, se tal acarretar a violação de uma disposição do direito da União suscetível de ser aplicável em complemento das disposições nacionais pertinentes. Parafraseando o advogado‑geral G. Tesauro, é possível afirmar com certeza que a cultura e a educação não constituem «ilha[s] impermeáv[eis] à influência» do direito da União ( 19 ).

44.

Com efeito, a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça apreciou a compatibilidade com o direito da União de medidas nacionais adotadas com vista a promover a utilização de línguas nacionais ou minoritárias, bem como de disposições nacionais que regem a prestação de serviços culturais e/ou didáticos. Grande parte dessa jurisprudência dizia respeito — tal como acontece no caso em apreço — à compatibilidade das medidas nacionais com as disposições relativas ao mercado interno da União ( 20 ).

45.

Em especial, quanto às atividades didáticas, o Tribunal de Justiça já declarou que o ensino ministrado em estabelecimentos financiados essencialmente por fundos privados constitui um «serviço», na aceção do direito da União ( 21 ). Por conseguinte, as legislações nacionais que regem essas atividades devem, em princípio, respeitar as regras do mercado interno e, mais especificamente, as regras relativas à livre circulação de serviços ( 22 ).

46.

No caso em apreço, considero que as disposições controvertidas são aplicáveis tanto aos estabelecimentos de ensino superior públicos como privados, independentemente de os seus cursos serem ou não ministrados mediante remuneração. Consequentemente, na medida em que se aplicam a estabelecimentos de ensino privados financiados essencialmente por fundos privados, as disposições controvertidas devem respeitar as disposições relativas à livre circulação de serviços.

b)   As disposições do TFUE relativas aos serviços ou a Diretiva Serviços?

47.

O órgão jurisdicional de reenvio pediu ao Tribunal de Justiça que apreciasse a compatibilidade das disposições controvertidas com o direito da União por referência, nomeadamente, aos artigos 49.o e 56.o TFUE. No entanto, algumas partes interessadas que apresentaram observações ao Tribunal de Justiça (em especial, os Governos letão e neerlandês) fizeram igualmente referência às disposições da Diretiva Serviços.

48.

A este respeito, há que referir que, nos termos do seu artigo 1.o, n.o 1, a Diretiva Serviços estabeleceu «disposições gerais que facilitam o exercício da liberdade de estabelecimento dos prestadores de serviços e a livre circulação dos serviços, mantendo simultaneamente um elevado nível de qualidade dos serviços». Em substância, a Diretiva Serviços foi adotada na perspetiva de ir mais longe do já previsto no Tratado FUE em matéria de livre prestação de serviços ( 23 ). Assim sendo, esta diretiva constitui, na prática, uma lex specialis relativamente às disposições pertinentes do Tratado. O Tribunal de Justiça tem aplicado em conformidade e de forma sistemática as regras enunciadas na Diretiva Serviços que servem de quadro jurídico para determinar a compatibilidade de medidas nacionais com a livre circulação de serviços, na medida em que essas medidas se encontrem abrangidas pelo âmbito de aplicação desse instrumento jurídico, sem proceder à sua análise à luz dos artigos 49.o e/ou 56.o TFUE ( 24 ).

49.

Neste contexto, as disposições da Diretiva Serviços são aplicáveis a medidas nacionais como as que estão em causa no processo principal?

50.

Considero que, em princípio, a resposta deve ser negativa; ou, melhor, que deve ser no sentido de que as disposições da Diretiva Serviços não se opõem a medidas como as disposições controvertidas.

51.

Nos termos do seu artigo 2.o, n.o 1, a Diretiva Serviços é aplicável aos serviços fornecidos pelos prestadores estabelecidos num Estado‑Membro. O conceito de «serviço» é definido de forma ampla no artigo 4.o, n.o 1, da diretiva como uma «atividade económica não assalariada prestada geralmente mediante remuneração». É certo que, em termos de oferta educativa, os cursos ministrados por estabelecimentos privados de ensino superior podem ser (e muitas vezes são) propostos mediante remuneração, pelo que constituem «serviços» na aceção da Diretiva Serviços ( 25 ). Também não constam da lista de serviços que o artigo 2.o, n.o 2, exclui do âmbito de aplicação desta diretiva ( 26 ).

52.

No entanto, o artigo 1.o, n.o 4, da Diretiva Serviços dispõe que esta «não afeta as medidas adotadas a nível comunitário ou a nível nacional, em conformidade com o direito comunitário, com vista a proteger ou promover a diversidade cultural ou linguística» ( 27 ). Esta disposição é corroborada pelo disposto no considerando 11 da Diretiva Serviços, segundo o qual esta «não interfere com as medidas tomadas pelos Estados‑Membros, em conformidade com o direito comunitário, relativamente à proteção ou promoção da diversidade cultural e linguística […], incluindo o respetivo financiamento».

53.

É pacífico que as disposições controvertidas foram adotadas, pelo legislador nacional, com o objetivo de proteger e promover a língua nacional. Por conseguinte, as disposições da Diretiva Serviços não podem ser aplicadas de uma forma que «afete» ou «interfira» com esse objetivo ( 28 ).

54.

Dito isto, não decorre do artigo 1.o, n.o 4, da Diretiva Serviços que as medidas nacionais adotadas para proteger ou promover a diversidade cultural ou linguística nunca podem infringir as regras da União em matéria de livre circulação de serviços. Com efeito, como esta disposição — talvez de forma redundante — afirma, essas medidas não são afetadas pela referida diretiva desde que estejam «em conformidade com o direito [da União]».

55.

Daqui decorre que a Diretiva Serviços não dispensa a necessidade de verificar se as disposições controvertidas são conformes com os artigos 49.o e/ou 56.o TFUE ( 29 ).

56.

Se for esse o caso, deverá o Tribunal de Justiça efetuar uma análise nos termos do primeiro, do segundo ou de ambos?

57.

A este respeito, segundo jurisprudência constante, quando uma medida nacional se relaciona simultaneamente com várias liberdades fundamentais, o Tribunal de Justiça, em princípio, examiná‑la‑á em relação a apenas uma dessas liberdades se se verificar que, nas circunstâncias do caso, as outras são totalmente secundárias em relação à primeira e podem estar relacionadas com ela ( 30 ). Neste sentido, o objetivo ( 31 ) e os efeitos ( 32 ) da medida nacional constituem os principais elementos essenciais a tomar em consideração.

58.

Parece‑me que, no caso em apreço, o Tribunal de Justiça pode limitar a sua análise ao artigo 49.o TFUE.

59.

É verdade que, conforme salientou o órgão jurisdicional de reenvio, as disposições controvertidas são também aplicáveis aos estabelecimentos de ensino superior situados em países estrangeiros que pretendem propor cursos em regime transitório na Letónia. No entanto, dificilmente se poderá contestar que tais disposições — e a legislação em que se inserem — tenham sido adotadas principalmente para reger as atividades de estabelecimentos situados (ou que tencionem situar‑se) na Letónia.

60.

Trata‑se de estabelecimentos que, na maioria dos casos, serão os principais afetados pelas disposições controvertidas. Com efeito, para poderem propor cursos de ensino superior, os estabelecimentos precisam, em princípio, de se dotar de certas estruturas administrativas e logísticas que revestem uma determinada importância, e de obter das autoridades públicas as devidas autorizações para emitir diplomas, certificados ou outros títulos válidos. Este não é o tipo de serviço que pode facilmente ser prestado de forma pontual, temporária ou esporádica ( 33 ).

61.

Isso não quer dizer que a prestação transfronteiriça de tais serviços seja invulgar, muito menos impossível. Aliás, o aumento exponencial de cursos ministrados através da Internet verificado nos últimos anos — que pode, eventualmente, acentuar‑se tendo em conta a experiência adquirida durante a recente pandemia — é um exemplo primordial da existência de tal mercado. No entanto, atualmente, a grande maioria dos estabelecimentos que ministram cursos de ensino superior fazem‑no no país onde têm sede. A prestação de serviços transfronteiriços constitui, até à data, uma componente relativamente insignificante das suas atividades económicas globais.

62.

Além disso, não excluo a possibilidade de a questão ser igualmente abordada na perspetiva dos destinatários dos serviços, o que poderá justificar uma apreciação também ao abrigo do artigo 56.o TFUE ( 34 ). Isso implicaria apreciar o impacto que uma medida nacional como a que está em causa pode ter sobre o direito dos cidadãos da União de circularem livremente no espaço da União Europeia — a título temporário — para frequentar cursos de ensino superior. É de supor que pelo menos alguns desses potenciais estudantes «internacionais» só poderiam, ou pelo menos prefeririam, frequentar (alguns ou todos os) cursos noutras línguas que não o letão. Dados recentes da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE) revelam que a Letónia acolhe uma população estudantil internacional em números consideráveis ( 35 ), sendo que parte desta é obviamente suscetível de ser afetada pelas disposições controvertidas.

63.

A este respeito, o Governo letão insiste que o artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior garante que, na maior parte dos casos, os estudantes estrangeiros podem frequentar cursos noutras línguas que não o letão, nomeadamente nas línguas oficiais dos outros Estados‑Membros da União. Devo confessar que este é um aspeto que não me é inteiramente claro atendendo aos elementos constantes dos autos.

64.

Todavia, este aspeto tem pouca relevância neste contexto, uma vez que, a meu ver, as limitações mais importantes que decorrem diretamente das disposições controvertidas são as impostas a determinados prestadores de serviços, a saber, os estabelecimentos de ensino superior. Com efeito, é sobretudo a sua liberdade económica que está sujeita a limitações impostas pela medida nacional em causa, e é precisamente esta questão que parece estar no cerne do litígio submetido ao órgão jurisdicional de reenvio.

65.

Em todo o caso, tendo em conta a similitude entre ambos os «regimes» relativos ao direito de estabelecimento e à livre prestação de serviços, não vejo de que modo uma análise da compatibilidade das disposições controvertidas com o direito da União à luz do artigo 56.o TFUE poderia apresentar discrepâncias significativas em relação a uma análise à luz do artigo 49.o TFUE ( 36 ).

66.

Em conclusão, proponho ao Tribunal de Justiça, também por razões de economia processual, que aprecie a compatibilidade das disposições controvertidas com o direito da União à luz do artigo 49.o TFUE.

c)   Artigo 16.o da Carta

67.

No seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ainda ao Tribunal de Justiça se as disposições controvertidas são compatíveis com o artigo 16.o da Carta. Esta disposição, sob a epígrafe «Liberdade de empresa», dispõe que: «é reconhecida a liberdade de empresa, de acordo com o direito da União e as legislações e práticas nacionais.»

68.

A este respeito, não considero necessária nem adequada, no caso em apreço, uma apreciação centrada especificamente no artigo 16.o da Carta.

69.

Antes de mais, os artigos 49.o e 56.o TFUE são, pelo menos em certa medida, uma manifestação da liberdade enunciada no artigo 16.o da Carta. Com efeito, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma análise, nos termos dos artigos 49.o e 56.o TFUE, das restrições introduzidas por medidas nacionais abrange igualmente as eventuais restrições ao exercício dos direitos e liberdades consagrados, nomeadamente, no artigo 16.o da Carta, de modo que, regra geral, não é necessária uma análise separada da liberdade de empresa ( 37 ).

70.

Além disso, importa não esquecer que o artigo 16.o da Carta reconhece a liberdade de empresa «de acordo com o direito da União e as legislações nacionais». Assim, ao identificar o âmbito dessa liberdade, o referido artigo remete especificamente para o direito da União, que naturalmente inclui disposições como os artigos 49.o e 56.o TFUE ( 38 ).

71.

Por último, não me foi possível detetar, nem no pedido de decisão prejudicial nem nas observações apresentadas no âmbito do presente processo, qualquer aspeto de alegada incompatibilidade das disposições controvertidas com o direito da União que não se enquadrasse plenamente no âmbito de aplicação dos artigos 49.o e 56.o TFUE. Por outras palavras, não encontrei nenhum argumento especificamente relativo a uma eventual violação do artigo 16.o da Carta ( 39 ), que extravasasse a proteção dos direitos económicos dos prestadores de serviços com sede no estrangeiro.

72.

À luz destas considerações, limitar‑me‑ei, nas secções seguintes das presentes conclusões, a analisar a compatibilidade das medidas nacionais em causa com o artigo 49.o TFUE.

2.   Quanto ao mérito

73.

Nas secções que se seguem, apreciarei a questão de saber se as disposições controvertidas implicam uma restrição nos termos do artigo 49.o TFUE e, em caso afirmativo, se esta restrição pode ser justificada à luz do artigo 4.o, n.o 2, TUE.

a)   Existência de uma restrição

74.

À primeira vista, a respetiva legislação introduz uma restrição ao direito de estabelecimento garantido pelo artigo 49.o TFUE. Em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, devem ser consideradas restrições à liberdade de estabelecimento todas as medidas que proíbam, perturbem ou tornem menos atrativo o exercício desta liberdade ( 40 ).

75.

No caso vertente, as disposições controvertidas dificultam a deslocalização para a Letónia de certas empresas estabelecidas no estrangeiro ou a abertura de outros estabelecimentos nesse país. Como os demandantes no processo principal observam corretamente, na medida em que os cursos devem ser ministrados (quase exclusivamente) em letão, muitos estabelecimentos de ensino superior estrangeiros não poderão recorrer a uma parte (provavelmente considerável) do seu pessoal administrativo e docente na Letónia. Além disso, os estabelecimentos de ensino superior estrangeiros estão impossibilitados de prestar um conjunto de serviços mais diversificado e competitivo, tais como cursos ministrados noutras línguas, apesar de haver uma procura significativa dos mesmos ( 41 ).

76.

À luz do que precede, concluo que, na medida em que tornam mais difícil e menos atrativo o exercício da liberdade de estabelecimento dos estabelecimentos de ensino superior com sede noutros Estados‑Membros, as disposições controvertidas dão origem a uma restrição ao abrigo Artigo 49.o TFUE.

b)   Justificação

77.

Como resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma restrição à liberdade de estabelecimento só pode ser admitida se, em primeiro lugar, for justificada por uma razão imperiosa de interesse geral e, em segundo lugar, respeitar o princípio da proporcionalidade, o que implica que a medida nacional seja adequada para garantir, de forma coerente e sistemática, a realização do objetivo prosseguido, sem ir além do necessário para o alcançar. Além disso, a medida nacional deve ser proporcional stricto sensu porquanto deve alcançar um equilíbrio justo entre os interesses em jogo, isto é, por um lado, o interesse prosseguido pelo Estado com a medida em questão e, por outro, o das pessoas lesadas. Incumbe ao Estado‑Membro em causa demonstrar que estes requisitos cumulativos estão preenchidos ( 42 ).

78.

No caso em apreço, o Governo letão explicou que as disposições controvertidas são expressões da sua vontade de proteger e promover a utilização da língua oficial do Estado. O referido Governo salienta ainda que a língua oficial deve ser considerada parte da sua identidade nacional e invoca, nesse contexto, o disposto no artigo 4.o, n.o 2, TUE.

79.

A este respeito, importa referir, desde logo, que em conformidade com o artigo 4.o, n.o 2, TUE, a União respeita a identidade nacional dos seus Estados‑Membros, inerente às suas estruturas fundamentais políticas e constitucionais ( 43 ). O Tribunal de Justiça já reconheceu que a identidade nacional de um Estado‑Membro pode incluir a sua língua (ou línguas) oficial (oficiais) ( 44 ). Assim, o objetivo que visa promover e estimular a utilização dessa língua (ou línguas) constitui, na ordem jurídica da União, um interesse legítimo suscetível de justificar uma restrição a uma ou várias liberdades de circulação ( 45 ). Por conseguinte, o direito da União não se opõe à adoção de uma política que vise a defesa e a promoção de uma ou mais línguas oficiais de um Estado‑Membro ( 46 ).

80.

Contudo, tal não implica que, por força do artigo 4.o, n.o 2, TUE, qualquer medida nacional que se inscreva no âmbito de uma política de defesa e promoção da(s) língua(s) oficial(ais) de um Estado‑Membro seja automática e intrinsecamente compatível com o direito da União.

81.

Neste contexto, pode justificar‑se uma breve consideração sobre o artigo 4.o, n.o 2, TUE.

1) Breves considerações relativas ao artigo 4.o, n.o 2, TUE

82.

Até à data, o Tribunal de Justiça não aprofundou o conceito de «identidade nacional» nem a natureza ou o âmbito de aplicação da «cláusula de identidade nacional» prevista no artigo 4.o, n.o 2, TUE. No entanto, à luz da sua redação, e tendo em conta a jurisprudência já existente do Tribunal de Justiça, convém sublinhar alguns aspetos do (ou mesmo limitações intrínsecas ao) artigo 4.o, n.o 2, TUE.

83.

Em primeiro lugar, no que diz respeito à natureza do artigo 4.o, n.o 2, TUE, parece‑me que esta disposição tem, antes de mais, um caráter ambivalente. Por um lado, exige que o legislador da União tenha em conta, aquando da adoção de legislação, as identidades nacionais dos Estados‑Membros. Logicamente, deve existir uma obrigação análoga em relação a todas as instituições, órgãos e organismos da União que adotem outros atos juridicamente vinculativos. A este respeito, a identidade nacional pode, assim, funcionar também como parâmetro de validade: qualquer ato da União que colidisse irremediavelmente com a identidade nacional de um ou mais Estados‑Membros seria inválido por violação do artigo 4.o, n.o 2, TUE. Por outro lado, o mesmo artigo exige que as instituições, órgãos e organismos da União — incluindo os órgãos jurisdicionais da União — tenham em conta as identidades nacionais dos Estados‑Membros na interpretação e aplicação do direito da União ( 47 ).

84.

No entanto, ainda não está claro se e, em caso afirmativo, em que medida o artigo 4.o, n.o 2, TUE pode ser interpretado no sentido de introduzir uma cláusula horizontal ou geral a que os Estados‑Membros possam recorrer para invocar validamente derrogações à aplicação da regulamentação da União. Contudo, na medida em que (no caso em apreço) o direito da União pode ser interpretado de uma forma que, em princípio, permita que os aspetos de identidade nacional invocados pelo Governo letão sejam devidamente tidos em conta na interpretação e aplicação da regulamentação da União pertinente, esta questão não necessita de ser apreciada nas presentes conclusões.

85.

Em segundo lugar, no que diz respeito ao âmbito de aplicação da disposição, resulta claramente da redação do artigo 4.o, n.o 2, TUE que este só pode ser invocado em relação a elementos centrais a nível constitucional de um Estado‑Membro. Com efeito, esta disposição refere‑se à identidade nacional dos Estados‑Membros refletida nas suas «estruturas políticas e constitucionais fundamentais» ( 48 ). Tal é igualmente confirmado pela referência, no artigo 4.o, n.o 2, TUE, ao dever da União Europeia de «respeitar as funções essenciais [dos Estados‑Membros]» ( 49 ).

86.

A meu ver, não compete à União Europeia determinar, para cada Estado‑Membro, os elementos que fazem parte desse núcleo de identidade nacional. Os Estados‑Membros dispõem de uma ampla margem de apreciação a este respeito ( 50 ). No entanto, esta não pode ser ilimitada. Caso contrário, o artigo 4.o, n.o 2, TUE constituiria uma cláusula derrogatória das regras e princípios dos Tratados da União à qual seria facílimo recorrer, podendo ser acionada a qualquer momento por qualquer Estado‑Membro. A obrigação da União Europeia de «respeitar» as identidades nacionais dos Estados‑Membros não pode equivaler ao direito de um Estado‑Membro de violar o direito da União sempre que lhe convier.

87.

Em terceiro lugar, os elementos centrais da identidade nacional invocados por um Estado‑Membro devem necessariamente ser compatíveis com o quadro constitucional da União Europeia e, mais especificamente, com os seus valores fundadores (artigo 2.o TUE) e os seus objetivos (artigo 3.o TUE). O artigo 4.o, n.o 2, TUE estabelece os princípios fundamentais que regem as relações entre a União Europeia e os Estados‑Membros ( 51 ) e não pode ser interpretado como uma redefinição do que é a União Europeia e o que ela representa. Em especial, no que diz respeito aos valores fundadores, os próprios Estados‑Membros aceitaram‑nos — mais uma vez, com o Tratado de Lisboa — como sendo valores que também lhes são «comuns». Consequentemente, o artigo 4.o, n.o 2, TUE não pode ser considerado uma derrogação aos artigos 2.o e 3.o TUE ( 52 ).

88.

Em quarto lugar, mesmo quando invocado em relação a medidas nacionais que visam proteger um elemento genuíno da identidade nacional, e esse elemento é amplamente compatível com o quadro constitucional da União Europeia, a análise da compatibilidade entre a medida nacional em questão e o direito da União não pode ficar por aqui. Podem existir outros aspetos dos pedidos dos Estados‑Membros ao abrigo do artigo 4.o, n.o 2, TUE que, consoante as regras da União eventualmente aplicáveis às circunstâncias específicas do caso, podem ser objeto de fiscalização jurisdicional.

89.

Em casos como o vertente, quando um Estado‑Membro invoca o artigo 4.o, n.o 2, TUE como justificação para uma eventual restrição às liberdades do mercado interno, resulta da jurisprudência ( 53 ) — e a doutrina concorda de um modo geral ( 54 ) — que a medida nacional deve ser apreciada segundo o tradicional critério da proporcionalidade.

90.

Em especial, embora incumba aos Governos dos Estados‑Membros decidir o nível a que pretendem assegurar a proteção do interesse público em causa ( 55 ), as questões de saber i) se as medidas nacionais contribuem significativamente para a consecução do objetivo visado; ii) se podem existir outras medidas igualmente em condições de o fazer, mas menos restritivas das liberdades do mercado interno; e iii) se as medidas nacionais podem ter repercussões desproporcionais sobre as demais matérias em causa, devem ser suscetíveis de fiscalização jurisdicional.

91.

Em quinto lugar, num caso como o vertente, não creio que incumba ao Tribunal de Justiça chegar a uma conclusão inequívoca sobre a proporcionalidade das disposições controvertidas. Os órgãos jurisdicionais nacionais competentes estão, a meu ver, em melhor posição para ponderar os diversos elementos de direito e de facto próprios aos Estados‑Membros em causa, a fim de determinar se as respetivas medidas nacionais preenchem o critério da proporcionalidade ( 56 ).

92.

A identidade nacional advém normalmente da história, da cultura e das características sociopolíticas de um determinado país. Pode não ser tarefa fácil, para um juiz supranacional, compreender plenamente a importância de um determinado elemento da identidade nacional, identificar o nível de proteção pretendido pelas autoridades nacionais e avaliar se existe uma relação razoável entre o objetivo prosseguido e os meios utilizados para atingir esse fim.

93.

Assim, nos casos em que é apresentado um pedido legítimo baseado na identidade nacional, a menos que as questões sejam relativamente simples, e desde que o interesse nacional protegido seja amplamente compatível com o quadro constitucional da União Europeia, cabe principalmente aos órgãos nacionais competentes proceder à apreciação da proporcionalidade. Isto não invalida, naturalmente, a possibilidade de o Tribunal de Justiça fornecer aos órgãos jurisdicionais nacionais competentes todos os elementos de interpretação que lhes possam ser úteis para proceder a essa análise ( 57 ).

94.

É à luz destes princípios que os argumentos invocados pelo Governo letão com base no artigo 4.o, n.o 2, TUE devem ser considerados.

2) Justificação da restrição no caso em apreço

95.

Desde logo, não há dúvidas de que as disposições controvertidas visam efetivamente proteger e promover a utilização da língua oficial do Estado: o letão. Ou seja, conforme foi referido no n.o 79, supra, um interesse legítimo que pode justificar uma restrição ao direito de estabelecimento consagrado no artigo 49.o TFUE.

96.

No entanto, a apreciação relativa à proporcionalidade das disposições controvertidas não é de modo algum evidente. Trata‑se, assim, de uma tarefa que, na minha opinião, é melhor deixar à apreciação do órgão jurisdicional de reenvio.

97.

Contudo, a fim de fornecer algumas orientações úteis a esse órgão jurisdicional, farei a seguir algumas considerações, tendo em conta as especificidades das disposições controvertidas.

98.

Em primeiro lugar, em circunstâncias normais, não teria dificuldade em concluir que a medida controvertida é, em princípio, adequada para atingir o objetivo de proteger e promover a utilização da língua oficial do Estado. Com efeito, a exigência de que professores e estudantes utilizem, em geral, o letão durante as aulas, garante a utilização e a difusão dessa língua.

99.

Todavia, os demandantes no processo principal e a Comissão manifestam algumas dúvidas quanto à capacidade desta medida nacional para concretizar tal objetivo de forma suficientemente coerente e sistemática. Em especial, alegam que não há razão objetiva para conceder um tratamento especial a dois estabelecimentos de ensino privado, como é o caso da Escola Superior de Ciências Económicas de Estocolmo em Riga e da Escola Superior de Direito de Riga, e recusar simultaneamente um tratamento idêntico a outros estabelecimentos privados (incluindo os estabelecimentos com sede no estrangeiro). Além disso, observam que, na legislação nacional, o regime linguístico dos estabelecimentos de ensino superior é mais rigoroso do que o regime equivalente aplicável aos estabelecimentos de ensino primário e secundário. Consideram assim a situação inaceitável: quanto muito, o objetivo de promover e proteger a utilização da língua oficial é mais eficazmente alcançado com a adoção de um regime mais rigoroso para os estabelecimentos de ensino primário e secundário do que para os estabelecimentos de ensino superior.

100.

Estes argumentos têm algum fundamento. No entanto, devo reconhecer que dos autos não consta suficiente informação sobre esses dois aspetos (as razões do tratamento especial concedido à Escola Superior de Ciências Económicas de Estocolmo em Riga e à da Escola Superior de Direito de Riga, e o regime aplicável às instituições de ensino primário e secundário) que me permita assumir uma postura mais firme no que diz respeito à coerência do cômputo geral do sistema. Considero que cabe que ao órgão jurisdicional nacional apreciar esta questão.

101.

Em segundo lugar, a questão de saber se as disposições controvertidas são necessárias para a consecução do objetivo visado é, na minha opinião, mais complexa.

102.

As minhas dúvidas decorrem principalmente do facto de a medida controvertida parecer assentar na premissa de que, para promover a utilização da língua nacional oficial, a utilização de outras línguas no ensino superior deve inevitavelmente ser «sacrificada» (ou pelo menos consideravelmente restringida). Não subscrevo este entendimento.

103.

As respetivas vantagens e desvantagens do monolinguismo e do multilinguismo são objeto de vários trabalhos científicos, pelo que não me cabe certamente tomar uma posição a este respeito. Observo apenas que estudos atuais são, de um modo geral, aparentemente consensuais no sentido de que aprender duas ou mais línguas, especialmente em tenra idade, não causa atrasos no processo de aprendizagem, e que pessoas bilíngues (ou multilíngues) têm, por norma, maior facilidade em aprender outras línguas ( 58 ). Daqui se depreende que a defesa e a promoção de uma língua específica não têm de ser feitas necessariamente em detrimento de outras línguas.

104.

A este respeito, observo que as exceções à obrigação de ministrar cursos na língua oficial do Estado são relativamente poucas e de alcance bastante limitado. As disposições controvertidas têm por efeito a imposição de um monolinguismo de facto no domínio do ensino superior, inclusive no setor privado. A medida nacional mostra‑se, assim, bastante radical e, portanto, eventualmente excessiva ( 59 ).

105.

Por exemplo, questiono‑me se uma certa ampliação e flexibilização das exceções previstas no artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior não garantiriam a promoção e defesa da língua oficial do Estado, sendo menos restritivas em relação a estabelecimentos com sede noutros Estados‑Membros.

106.

Em terceiro e último lugar, quando as vantagens decorrentes das disposições controvertidas relativas à promoção e defesa da língua oficial do Estado são ponderadas em função das desvantagens que afetam negativamente as diversas categorias de pessoas singulares e coletivas, não sei até que ponto a balança pende a favor das primeiras.

107.

Com efeito, de um lado da balança está a vontade (sem dúvida legítima) de cultivar a língua nacional de um Estado‑Membro e, desse modo, preservar a cultura e a identidade nacional. Do outro lado da balança, porém, há diversos outros interesses públicos e privados que a medida restringe consideravelmente ou com os quais interfere.

108.

Vários desses interesses são considerados dignos de proteção ao abrigo do direito da União, bem como da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e — calculo — também do direito nacional letão. No que diz respeito ao direito da União, alguns desses interesses são identificados na Carta como estando em correlação com os direitos ou as liberdades fundamentais ( 60 ). Para além das liberdades económicas dos prestadores e destinatários de serviços que acabam de ser analisadas (e que, conforme foi referido, se encontram igualmente consagradas no artigo 16.o da Carta), a incidência nos seguintes direitos e liberdades não se afigura despicienda.

109.

Em primeiro lugar, a medida restringe a liberdade académica dos professores (definida no artigo 13.o da Carta) e o direito das pessoas singulares e coletivas de criar estabelecimentos de ensino (definido no artigo 14.o, n.o 3, da Carta). Além disso, as disposições controvertidas têm igualmente incidência na possibilidade de os próprios estudantes optarem, sempre que possível, por uma educação que esteja de acordo com as suas «convicções pedagógicas» (que pode incluir uma utilização mais intensiva de línguas estrangeiras nos cursos de ensino superior). Embora tal direito não esteja expressamente proclamado na Carta, creio que pode ser considerado implícito no «direito à educação» que o artigo 14.o, n.o 1, da Carta garante a «todas as pessoas», quando esta disposição é lida em conjugação com o seu n.o 3 ( 61 ).

110.

Além disso, das disposições controvertidas decorre uma forma de discriminação em razão da língua que é proibida pelo artigo 21.o, n.o 1, da Carta, por ser em detrimento dos estrangeiros empregados (ou com potencial de empregabilidade) no setor do ensino superior. Neste contexto, escusado será dizer que os requisitos linguísticos para o acesso a uma determinada atividade económica podem muitas vezes dar origem a uma discriminação indireta em razão da nacionalidade, uma vez que as vagas são mais facilmente preenchidas por profissionais locais do que por profissionais estrangeiros.

111.

Por outro lado, devo salientar que o conceito de «diversidade linguística» apresenta duas vertentes que a União Europeia é obrigada a respeitar nos termos do artigo 22.o da Carta e do artigo 3.o, n.o 3, TUE. Este conceito não pode ser entendido como mera expressão do princípio da igualdade dos Estados‑Membros perante os Tratados, consagrado no artigo 4.o, n.o 2, TUE, o que implica que a União Europeia deve respeitar as suas línguas oficiais e considerá‑las equivalentes. Efetivamente, há que ter em conta um outro aspeto: o respeito pelas línguas minoritárias.

112.

Tanto quanto me é dado a entender, trata‑se de uma questão que é crucial no caso em apreço, devido à existência de uma importante minoria russófona na Letónia. A este respeito, devo recordar que a proteção das línguas minoritárias é um valor consagrado em várias disposições do direito primário da União (incluindo o já referido artigo 2.o TUE e artigo 21.o, n.o 1, da Carta) e em vários instrumentos internacionais que a União Europeia e/ou os Estados‑Membros assinaram ( 62 ).

113.

Afigura‑se que, ao impossibilitarem os estabelecimentos privados de ensino superior de ministrar cursos nessa língua, as disposições controvertidas afetam significativamente os direitos linguísticos dessa minoria. Esta conclusão é válida tanto mais que as exceções previstas no artigo 56.o, n.o 3, da Lei Relativa aos Estabelecimentos de Ensino Superior não se aplicam à língua russa, uma vez que não faz parte das línguas oficiais da União Europeia.

114.

Feita esta precisão, conforme explicado, compete, em última análise, ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar devidamente e, se for caso disso, confrontar os elementos ilustrados nos números anteriores.

115.

À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas no sentido de que uma legislação nacional que, a fim de desenvolver e cultivar a língua oficial do Estado, impõe a obrigação, embora com algumas exceções, de os estabelecimentos de ensino superior financiados essencialmente por fundos privados ministrarem cursos apenas nessa língua é compatível com o direito da União, desde que seja adequada e necessária para a consecução do objetivo visado, e alcance um equilíbrio justo entre os interesses em jogo.

116.

Em jeito de conclusão, farei uma última observação, retomando a ideia que afirmei na minha introdução. Concordo plenamente com o advogado‑geral M. Darmon que é essencial salvaguardar a riqueza cultural da Europa e assegurar a diversidade do seu património linguístico ( 63 ). Dito isto, não considero que este nobre objetivo seja bem atendido pelos Estados‑Membros que impõem o monolinguismo de facto num determinado setor de atividade económica, mesmo quando esse setor vise a organização de cursos de ensino superior. Não é do interesse dos Estados‑Membros, nem da União Europeia, criar — para utilizar novamente a metáfora acima referida — vinte e sete «ilhas» monolingues (ou bilingues ou trilingues) no seio da União Europeia. Provavelmente não será esta a diversidade nem a riqueza que desejamos promover numa «União cada vez mais estreita» entre os povos da Europa. Não existe efetivamente nenhuma relação binária intrinsecamente incompatível entre uma maior integração e a preservação da diversidade linguística e do património cultural europeu.

V. Conclusão

117.

Em conclusão, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Latvijas Republikas Satversmes tiesa (Tribunal Constitucional da Letónia) da seguinte forma:

Uma legislação nacional que, a fim de desenvolver e cultivar a língua oficial do Estado, impõe a obrigação, embora com algumas exceções, de os estabelecimentos de ensino superior financiados essencialmente por fundos privados ministrarem cursos apenas nessa língua, é compatível com o direito da União, desde que seja adequada e necessária para a consecução do objetivo visado, e alcance um equilíbrio justo entre os interesses em jogo.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Resolução de 16 de outubro de 1981 (JO 1981, C 287, p. 106).

( 3 ) Em maior detalhe e com mais referências, v. van der Jeught, S., EU Language Law, Europa Law Publishing, 2015, pp. 55 a 77.

( 4 ) V. Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Itália/Comissão (C‑566/10 P, EU:C:2012:368, n.o 2).

( 5 ) V., com referências à jurisprudência, Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no processo An tAire Talmhaíochta Bia agus Mara e o. (C‑64/20, EU:C:2021:14, n.os 74 e 79).

( 6 ) O sublinhado é meu.

( 7 ) JO 2006, L 376, p. 36.

( 8 ) Latvijas Vēstnesis, 1995 n.o 179.

( 9 ) Latvijas Vēstnesis, 2018, n.o 132.

( 10 ) Latvijas Vēstnesis, 1995, n.o 164/165.

( 11 ) Latvijas Vēstnesis, 2018, n.o 220.

( 12 ) V., entre outros, recentes Acórdãos de 25 de junho de 2020, Ministerio Fiscal (Autoridade suscetível de receber um pedido de proteção internacional) (C‑36/20 PPU, EU:C:2020:495, n.o 48), e de 9 de setembro de 2021, Toplofikatsia Sofia e o. (C‑208/20 e C‑256/20, EU:C:2021:719, n.o 31).

( 13 ) V., nomeadamente, Acórdãos de 24 de outubro de 2013, Stoilov i Ko (C‑180/12, EU:C:2013:693, n.os 39 a 48), e de 27 de fevereiro de 2014, Pohotovosť (C‑470/12, EU:C:2014:101, n.o 33).

( 14 ) V., nomeadamente, Acórdão de 27 de junho de 2013, Di Donna (C‑492/11, EU:C:2013:428, n.os 27 a 32), e Despacho de 3 de março de 2016, Euro Bank (C‑537/15, não publicado, EU:C:2016:143, n.os 34 e 35).

( 15 ) V., supra, n.os 16, 17 e 20 das presentes conclusões.

( 16 ) V., entre outros, Acórdão de 10 de dezembro de 2018, Wightman e o. (C‑621/18, EU:C:2018:999, n.os 26 e 27 e jurisprudência referida).

( 17 ) V., supra, n.o 20 das presentes conclusões.

( 18 ) Do mesmo modo, v. Acórdãos de 19 de novembro de 2009, Filipiak (C‑314/08, EU:C:2009:719, n.os 40 a 46), e de 8 de setembro de 2010, Winner Wetten (C‑409/06, EU:C:2010:503, n.os 29 a 41).

( 19 ) Conclusões do advogado‑geral G. Tesauro no processo Decker (C‑120/95 e C‑158/96, EU:C:1997:399, n.o 17).

( 20 ) V., inter alia, Acórdãos de 13 de novembro de 2003, Neri (C‑153/02, EU:C:2003:614); de 16 de abril de 2013, Las (C‑202/11, EU:C:2013:239); de 21 de junho de 2016, New Valmar (C‑15/15, EU:C:2016:464); e de 11 de junho de 2020, KOB (C‑206/19, EU:C:2020:463).

( 21 ) V., por exemplo, Acórdão de 6 de novembro de 2018, Scuola Elementare Maria Montessori/Comissão, Comissão/Scuola Elementare Maria Montessori e Comissão/Ferracci (C‑622/16 P a C‑624/16 P, EU:C:2018:873, n.o 105 e jurisprudência referida). V., igualmente, Conclusões do advogado‑geral M. Bobek no processo Kirschstein (C‑393/17, EU:C:2018:918, n.os 52 a 59).

( 22 ) V., mais recentemente, Acórdão de 6 de outubro de 2020, Comissão/Hungria (Ensino superior) (C‑66/18, EU:C:2020:792, n.os 160 a 163 e jurisprudência referida).

( 23 ) V., em especial, considerando 6 da Diretiva Serviços. V., igualmente, neste sentido, Acórdão de 30 de janeiro de 2018, X e Visser (C‑360/15 e C‑31/16, EU:C:2018:44, n.o 107).

( 24 ) V., a título de exemplo, Acórdão de 16 de junho de 2015, Rina Services e o. (C‑593/13, EU:C:2015:399).

( 25 ) V., também, supra, n.o 45 das presentes conclusões.

( 26 ) V., neste sentido, Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Comissão/Hungria (Ensino superior) (C‑66/18, EU:C:2020:172, n.o 165).

( 27 ) O sublinhado é meu.

( 28 ) V., em geral, Conclusões do advogado‑geral N. Wahl no processo Čepelnik (C‑33/17, EU:C:2018:311, n.os 49 a 53). Mais especificamente, no que diz respeito aos serviços didáticos, v. Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Comissão/Hungria (Ensino superior) (C‑66/18, EU:C:2020:172, n.os 165 a 169).

( 29 ) V., por analogia, Acórdão de 13 de novembro de 2018, Čepelnik (C‑33/17, EU:C:2018:896, n.o 36).

( 30 ) V., inter alia, Acórdão de 11 de junho de 2020, KOB (C‑206/19, EU:C:2020:463, n.o 22 e jurisprudência referida).

( 31 ) V., neste sentido, Acórdão de 6 de março de 2018, SEGRO e Horváth (C‑52/16 e C‑113/16, EU:C:2018:157, n.o 53 e jurisprudência referida).

( 32 ) V., neste sentido, Acórdão de 30 de janeiro de 2020, Anton van Zantbeek (C‑725/18, EU:C:2020:54, n.o 21).

( 33 ) V. Acórdão de 30 de novembro de 1995, Gebhard (C‑55/94, EU:C:1995:411, n.o 27).

( 34 ) V., a este respeito, Acórdãos de 2 de fevereiro de 1989, Cowan (186/87, EU:C:1989:47, n.o 15), e de 18 de junho de 2019, Áustria/Alemanha (C‑591/17, EU:C:2019:504, n.o 138 e jurisprudência referida).

( 35 ) V. OCDE, Education at a Glance 2021: OECD Indicators [A educação vista de relance 2021: Indicadores OCDE], Publicações da OCDE, Paris, 2021. V., igualmente, dados publicados no sítio Web da OCDE em: https://data.oecd.org/students/international‑student‑mobility.htm (último acesso em 13 de dezembro de 2021).

( 36 ) V., neste sentido, Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar nos processos apensos X e Visser (C‑360/15 e C‑31/16, EU:C:2017:397, n.o 92).

( 37 ) V., neste sentido, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Global Starnet (C‑322/16, EU:C:2017:985, n.o 50 e jurisprudência referida).

( 38 ) V., neste sentido, Acórdão de 13 de fevereiro de 2014, Sokoll‑Seebacher (C‑367/12, EU:C:2014:68, n.os 22 e 23).

( 39 ) Analogamente, Conclusões do advogado‑geral N. Wahl no processo Global Starnet (C‑322/16, EU:C:2017:442, n.os 59 e 60).

( 40 ) V., nomeadamente, Acórdão de 6 de outubro de 2020, Comissão/Hungria (Ensino superior) (C‑66/18, EU:C:2020:792, n.o 167 e jurisprudência referida).

( 41 ) V., por analogia, Acórdão de 5 de outubro de 2004, CaixaBank France (C‑442/02, EU:C:2004:586, n.os 12 a 14).

( 42 ) V., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2020, Comissão/Hungria (Ensino superior) (C‑66/18, EU:C:2020:792, n.os 178 e 179 e jurisprudência referida).

( 43 ) V. recente Acórdão de 14 de dezembro de 2021, Stolichna obshtina, rayon Pancharevo (C‑490/20, EU:C:2021:1008, n.o 54).

( 44 ) V., neste sentido, Acórdãos de 12 de maio de 2011, Runevič‑Vardyn e Wardyn (C‑391/09, EU:C:2011:291, n.o 86), e de 16 de abril de 2013, Las (C‑202/11, EU:C:2013:239, n.o 26).

( 45 ) Ibid., n.os 87 e 27 respetivamente.

( 46 ) Ibid., n.os 85 e 25 respetivamente.

( 47 ) Sobre estas questões, v., também, Conclusões do advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe no processo Ministrstvo za obrambo (C‑742/19, EU:C:2021:77, n.os 47 e 48). Na doutrina, v., por exemplo Di Federico, G., «The Potential of Article 4(2) TEU in the Solution of Constitutional Clashes Based on Alleged Violations of National Identity and the Quest for Adequate (Judicial) Standards», European Public Law, 2019, p. 365.

( 48 ) O sublinhado é meu.

( 49 ) O sublinhado é meu. V. igualmente Conclusões do advogado‑geral H. Saugmandsgaard Øe no processo Ministrstvo za obrambo (C‑742/19, EU:C:2021:77, nota 114).

( 50 ) V., a este respeito, Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Stolichna obshtina, rayon Pancharevo (C‑490/20, EU:C:2021:296, n.os 70 a 73).

( 51 ) Tal como decorre também do título do artigo I‑5.o, «Relações entre a União e os Estados‑Membros», do Projeto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, que inspirou o atual artigo 4.o, n.o 2, TUE. Sobre esta questão, em geral, v. von Bogdandy, A., e Schill, S., «Overcoming absolute primacy: Respect for national identity under the Lisbon Treaty», Common Market Law Review, 2011, pp. 1425 a 1427.

( 52 ) No mesmo sentido, Conclusões da advogada‑geral J. Kokott no processo Stolichna obshtina, rayon Pancharevo (C‑490/20, EU:C:2021:296, n.o 73).

( 53 ) V., nomeadamente, Acórdãos de 12 de maio de 2011, Runevič‑Vardyn e Wardyn (C‑391/09, EU:C:2011:291, n.os 83 a 93), e de 21 de junho de 2016, New Valmar (C‑15/15, EU:C:2016:464, n.os 53 a 56).

( 54 ) Para referências adicionais, v., Millet, F.X., «Successfully Articulating National Constitutional Identity Claims: Strait Is the Gate and Narrow Is the Way», European Public Law, 2021, pp. 592 e 593.

( 55 ) V., neste sentido, Acórdão de 10 de fevereiro de 2009, Comissão/Itália (C‑110/05, EU:C:2009:66, n.o 65). Neste contexto, gostaria de salientar também que, segundo jurisprudência assente, «não é indispensável que a medida restritiva adotada pelas autoridades de um Estado‑Membro corresponda a uma conceção partilhada pela totalidade dos Estados‑Membros no que respeita às modalidades de proteção [do interesse em causa] e que, pelo contrário, a necessidade e a proporcionalidade das disposições adotadas na matéria não são excluídas pelo simples facto de um Estado‑Membro ter escolhido um sistema de proteção diferente do adotado por outro Estado» (v. Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Sayn‑Wittgenstein, C‑208/09, EU:C:2010:806, n.o 91 e jurisprudência referida).

( 56 ) V., por exemplo, Acórdão de 2 de junho de 2016, Bogendorff von Wolffersdorff (C‑438/14, EU:C:2016:401, n.o 78).

( 57 ) V., por exemplo, Acórdão de 4 de julho de 2000, Haim (C‑424/97, EU:C:2000:357, n.o 58).

( 58 ) Não considero necessário fazer referência a nenhum trabalho específico sobre esta matéria, porquanto uma pesquisa rápida na Internet fornecerá inúmeras referências de fontes aparentemente fidedignas, na perspetiva de um advogado.

( 59 ) V. Conclusões do advogado‑geral N. Jääskinen no processo Las (C‑202/11, EU:C:2012:456, n.os 64 e 78).

( 60 ) A este respeito, recordo que, segundo jurisprudência constante, «uma medida nacional que é suscetível de colocar entraves ao exercício da livre circulação das pessoas só pode ser justificada quando essa medida for conforme com os direitos fundamentais garantidos pelo Carta» (v., recentemente, Acórdão de 14 de dezembro de 2021, Stolichna obshtina, rayon Pancharevo, C‑490/20, EU:C:2021:1008, n.o 58 e jurisprudência referida).

( 61 ) O artigo 14.o, n.o 3, invoca «segundo as legislações nacionais que regem o respetivo exercício, […] o direito dos pais de assegurarem a educação e o ensino dos filhos de acordo com as suas convicções religiosas, filosóficas e pedagógicas» (o sublinhado é meu). Parece‑me que se os pais têm esse direito no que diz respeito à educação dos filhos, a fortiori um estudante que já não é menor também deve ter o direito de escolher a sua educação de acordo com as suas convicções pedagógicas.

( 62 ) V., nomeadamente, artigo 27.o do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, tendo entrado em vigor em 23 de março de 1976).

( 63 ) Conclusões no processo Groener (379/87, EU:C:1989:197, p. 3982).

Top