Choose the experimental features you want to try

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62020CC0237

    Conclusões do advogado-geral G. Pitruzzella apresentadas em 9 de dezembro de 2021.
    Federatie Nederlandse Vakbeweging contra Heiploeg Seafood International BV e Heitrans International BV.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden.
    Reenvio prejudicial — Diretiva 2001/23/CE — Artigos 3.o a 5.o — Transferências de empresas — Manutenção dos direitos dos trabalhadores — Exceções — Processo de insolvência — “Pre‑pack” — Sobrevivência de uma empresa — Transferência de uma (parte de) empresa na sequência de uma declaração de insolvência precedida de um pre‑pack.
    Processo C-237/20.

    Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2021:997

     CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    GIOVANNI PITRUZZELLA

    apresentadas em 9 de dezembro de 2021 ( 1 )

    Processo C‑237/20

    Federatie Nederlandse Vakbeweging

    contra

    Heiploeg Seafood International BV,

    Heitrans International BV

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal, Países Baixos)]

    «Reenvio prejudicial — Diretiva 2001/23/CE — Artigo 5.o, n.o 1 — Transferência da empresa — Manutenção dos direitos dos trabalhadores — Derrogação — Processo de insolvência — Pre‑pack — Sobrevivência da empresa»

    1.

    O presente pedido de decisão prejudicial, apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal, Países Baixos), permitirá ao Tribunal de Justiça pronunciar‑se de novo sobre a questão da relação existente entre o instituto do pre‑pack, tal como se desenvolveu nos Países Baixos, e a derrogação prevista no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23/CE à manutenção dos direitos conferidos por esta diretiva aos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes deles ( 2 ).

    2.

    No direito neerlandês, o pre‑pack não é um processo previsto na lei, mas de origem e aplicação jurisprudencial, que ocorre antes da declaração de insolvência do devedor e no âmbito do qual é preparada a venda da empresa, ou de parte desta, pertencente ao património do devedor a liquidar, venda que é realizada imediatamente após a declaração de insolvência. A questão que se coloca no presente processo é a de saber se, e em que condições, esse processo está abrangido pelo âmbito de aplicação da derrogação referida.

    3.

    O Tribunal de Justiça já teve oportunidade de se pronunciar sobre essa questão no Acórdão de 22 de junho de 2017, Federatie Nederlandse Vakvereniging e o. (C‑126/16, EU:C:2017:489, a seguir «Acórdão “Smallsteps”»). Todavia, este acórdão deu origem, nos Países Baixos, a um amplo debate, tanto jurisprudencial como doutrinal ( 3 ). Nesse contexto de insegurança jurídica, o Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal) decidiu submeter ao Tribunal de Justiça o presente pedido de decisão prejudicial para obter esclarecimentos suplementares, realçando uma série de elementos que distinguem o pre‑pack objeto do processo nele pendente do que é objeto do processo que deu origem ao Acórdão Smallsteps.

    I. Quadro jurídico

    A.   Direito da União

    4.

    O artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 prevê: «Os direitos e obrigações do cedente emergentes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes à data da transferência são, por esse facto, transferidos para o cessionário».

    5.

    O artigo 4.o, n.o 1, da mesma diretiva prevê que a transferência da empresa «não constitui em si mesma fundamento de despedimento por parte do cedente ou do cessionário», sem prejuízo da possibilidade de proceder a despedimentos, no caso de estes se encontrarem justificados por «razões económicas, técnicas ou de organização que impliquem mudanças da força de trabalho».

    6.

    O artigo 5.o da Diretiva 2001/23 prevê uma derrogação ao sistema de proteção acima descrito e estabelece:

    «1.   Salvo determinação em contrário dos Estados‑Membros, os artigos 3.o e 4.o não se aplicam a uma transferência de empresa, estabelecimento ou parte de empresa ou estabelecimento quando o cedente for objeto de um processo de falência ou de um processo análogo por insolvência promovido com vista à liquidação do seu património e que esteja sob o controlo de uma entidade oficial competente (que pode ser um administrador de falências, autorizado por uma entidade competente).

    2.   Quando os artigos 3.o e 4.o se aplicarem a uma transferência no decurso de um processo de insolvência que tenha sido instaurado em relação a um cedente (independentemente do facto de tal processo ter ou não sido instaurado com o objetivo de proceder à liquidação do seu património), e desde que esse processo esteja sob o controlo de uma entidade oficial competente (que pode ser um administrador de falências, se determinado pela legislação nacional), o Estado‑Membro pode determinar que:

    […]

    b)

    O cessionário, o cedente, ou a pessoa ou pessoas que exercem as funções do cedente, por um lado, e os representantes dos trabalhadores, por outro lado, possam acordar em certas alterações das condições de trabalho, na medida em que a legislação ou a prática em vigor o permitam, com o objetivo de salvaguardar as oportunidades de emprego através da garantia de sobrevivência da empresa, do estabelecimento ou da parte de empresa ou estabelecimento em questão.

    […]

    4.   Os Estados‑Membros tomarão as medidas adequadas para evitar o recurso abusivo a processos de insolvência de uma forma que retire aos trabalhadores os direitos previstos na presente diretiva.»

    B.   Direito neerlandês

    7.

    As normas que, no direito nacional dos Países Baixos, regulam os direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas e que contêm as disposições de transposição da Diretiva 2001/23, constam dos artigos 7:662 a 7:666 e do artigo 7:670, n.o 8, do Burgerlijk Wetboek (Código Civil; a seguir «BW»).

    8.

    Nos termos do primeiro período do artigo 7:663 do BW, «[a] transferência de uma empresa acarreta a transferência automática, para o cessionário, dos direitos e obrigações que resultam, nesse momento para o empregador dessa empresa, de um contrato de trabalho que tenha celebrado com um trabalhador dessa empresa».

    9.

    O artigo 7:666, alínea a), do BW, ao prever uma derrogação ao princípio acima enunciado, dispõe que «[o]s artigos 7:662 a 7:665 e o artigo 7:670, n.o 8, não se aplicam à transferência de uma empresa quando […] o empregador seja declarado insolvente e a empresa faça parte da massa insolvente».

    10.

    O processo de insolvência neerlandês é regulado pela Faillissementswet (Lei da Insolvência; a seguir «FW») e tem por finalidade a liquidação dos bens do devedor. Tem por objetivo a repartição do património do devedor entre todos os credores e visa obter a receita mais elevada possível para todos os credores. Na sentença que declara a insolvência do devedor é nomeado um administrador da insolvência e um juiz da insolvência.

    11.

    O pre‑pack é um processo, como já referido, não regulado pela lei, mas de origem jurisprudencial, segundo o qual a insolvência de uma empresa é precedida de uma fase preparatória, no âmbito da qual a cessão da empresa ou de parte dela é negociada pormenorizadamente.

    12.

    Essa fase preparatória começa por iniciativa da empresa insolvente, que requer à autoridade judiciária que designe um «administrador da insolvência indigitado» e um «juiz da insolvência indigitado». Os referidos órgãos não têm, nesta fase preliminar, poderes de autoridade ou de representação da empresa e/ou e todos os credores.

    13.

    Na sequência da negociação do ato de cessão, instaura‑se o processo de insolvência, no âmbito do qual o órgão jurisdicional nomeia um juiz da insolvência e um administrador da insolvência (geralmente as mesmas pessoas designadas durante o processo de pre‑pack). O administrador da insolvência executa o ato de cessão, tal como acordado na fase preliminar, imediatamente após a declaração de insolvência, a fim de evitar ruturas na atividade empresarial.

    14.

    Está atualmente em discussão um projeto de lei no Parlamento dos Países Baixos para regulamentar por via legislativa o pre‑pack com o objetivo de conferir um fundamento jurídico a esse instituto e de garantir a segurança jurídica ( 4 ).

    II. Processo principal e questões prejudiciais

    15.

    O grupo Heiploeg (a seguir: «Antigo Grupo Heiploeg») era constituído por uma série de sociedades que operavam no comércio grossista de produtos da pesca. Nos anos de 2011 e 2012, este grupo acumulou perdas relevantes. Na sequência da aplicação, em 2013, pela Comissão Europeia de uma sanção pecuniária elevada pela prática de uma infração anticoncorrencial, o grupo encontrou‑se numa situação de grave dificuldade financeira.

    16.

    A partir desse momento, considerou‑se a possibilidade de iniciar um processo de pre‑pack. Várias pessoas foram convidadas a apresentar propostas para a aquisição dos ativos do grupo. Diante de três propostas recebidas, a da Parlevliet en Van der Plas Beheer BV foi considerada a melhor e foi, portanto, com esta sociedade que as negociações prosseguiram posteriormente.

    17.

    Em 16 de janeiro de 2014, a pedido do Antigo Grupo Heiploeg, o Rechtbank Noord‑Nederland (Tribunal de Primeira Instância de Noord‑Nederland, Países Baixos) designou dois administradores da insolvência indigitados e um juiz da insolvência indigitado.

    18.

    O despacho de designação determinava que: o objetivo da medida era obter um rendimento tão elevado quanto possível para todos os credores; a designação dos administradores da insolvência indigitados oferecia a possibilidade de preparar ordenadamente uma venda ou uma reorganização a partir de uma situação de insolvência; os administradores da insolvência indigitados e o juiz da insolvência indigitado não dispunham de qualquer competência ou missão legal; eram designados para observar, informar‑se e serem informados e podiam expressar o seu ponto de vista e, eventualmente, aconselhar, mantendo‑se a obrigação do Antigo Grupo Heiploeg de cooperar plenamente com eles; se o órgão jurisdicional considerasse que as obrigações enunciadas não eram respeitadas, reservava‑se a possibilidade de daí retirar as conclusões necessárias e, nomeadamente, de designar outro administrador (de insolvência) no âmbito da insolvência subsequente.

    19.

    Em 27 de janeiro de 2014, o Antigo Grupo Heiploeg pediu ao referido órgão jurisdicional que declarasse a sua insolvência e, em 28 de janeiro de 2014, esse órgão jurisdicional ordenou, em conformidade com o pedido, designando os dois administradores da insolvência indigitados e o juiz da insolvência indigitado como órgãos do processo de insolvência.

    20.

    Na noite de 28 para 29 de janeiro de 2014, foi celebrado o contrato através do qual as sociedades que faziam parte do grupo Parlevliet en Van der Plas Beheer BV (a seguir «Nova Heiploeg») adquiriram uma grande parte da empresa do Antigo Grupo Heilpoeg, incluindo as suas instalações.

    21.

    Dos cerca de 300 trabalhadores da cedente, 210 foram contratados pela cessionária em condições de trabalho menos favoráveis, apesar de exercerem, em geral, as mesmas funções anteriormente exercidas no mesmo local de trabalho.

    22.

    No âmbito do processo principal, a Federatie Nederlandse Vakbeweging (a seguir «FNV»), uma organização sindical, interpôs recurso do acórdão pelo qual o gerechtshof Arnhem‑Leeuwarden (Tribunal de Recurso de Arnhem‑Leeuwarden, Países Baixos) considerou que, por força da disposição nacional que transpõe o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23, a Nova Heiploeg não estava vinculada, por força da disposição nacional que transpôs o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23, a respeitar as condições de trabalho dos seus trabalhadores que vigoravam antes da transferência. A FNV pede, em substância, ao órgão jurisdicional de reenvio que declare que a transferência da empresa do Antigo Grupo Heiploeg está sujeita à proteção prevista pela Diretiva 2001/23 e que, com base numa interpretação conforme com a diretiva dos artigos 7:662 e seguintes do BW, a relação de trabalho de todos os trabalhadores da cedente continuou nas mesmas condições com o cessionário.

    23.

    Após ter apresentado o processo de insolvência e o processo de pre‑pack nos Países Baixos ( 5 ), o órgão jurisdicional de reenvio afirma que, no caso em apreço, é pacífica a verificação da primeira condição fixada no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 para a aplicação da derrogação aí prevista, ou seja, a sujeição do Antigo Grupo Heiploeg a um processo de insolvência. Refere igualmente que, no caso em apreço, a insolvência desse grupo era inevitável. Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que deve ainda apreciar se a segunda e a terceira condições previstas nessa disposição se verificam no que respeita ao pre‑pack objeto do presente processo.

    24.

    No que respeita à segunda condição, de acordo com a qual deve existir um processo com vista à liquidação do património, o órgão jurisdicional de reenvio expõe que, no caso em apreço, o pre‑pack visava obter a maximização das receitas para todos os credores. O mencionado órgão jurisdicional refere‑se, entre outros, à decisão de designação dos dois administradores da insolvência indigitados e do juiz da insolvência indigitado e à análise efetuada por estes dois administradores da insolvência indigitados antes da declaração de insolvência ( 6 ).

    25.

    Quanto à terceira condição, de acordo com a qual a liquidação deve ser efetuada sob o controlo de uma entidade oficial competente, o órgão jurisdicional de reenvio expõe que, no presente processo, o controlo por uma entidade oficial competente previsto no processo de insolvência pelo direito neerlandês não foi comprometido pelo que se passou durante o processo de pre‑pack anterior à declaração de insolvência ( 7 ).

    26.

    Não obstante as considerações precedentes, tendo em conta o Acórdão Smallsteps e uma série de elementos, indicados nas questões prejudiciais, que distinguem o processo de pre‑pack no caso em apreço daquele no processo de Smallsteps, o órgão jurisdicional de reenvio considera que existe uma dúvida razoável quanto à verificação, no caso em apreço, das duas condições acima referidas. No que respeita a esse acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio observa, em primeiro lugar, que, tendo em conta a expressão «sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio», que figura no seu n.o 50, compete, em todo o caso, ao órgão jurisdicional nacional apreciar se o pre‑pack em causa num litígio tem ou não a mesma natureza daquele que deu origem ao Acórdão Smallsteps. Em segundo lugar, o pedido de decisão prejudicial no processo Smallsteps não expôs de forma exaustiva o direito neerlandês em matéria de insolvência, nem o objetivo e as espécies de realização do pre‑pack. Em terceiro lugar, no presente processo, contrariamente ao processo Smallsteps, as negociações relativas à transferência da empresa em causa não tiveram lugar com uma empresa ligada ao cedente.

    27.

    Nestas circunstâncias, o Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1.

    Deve o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23/CE […] ser interpretado no sentido de que a condição de o “processo de falência ou [um] processo análogo por insolvência [ser] promovido com vista à liquidação do […] património [do cedente]”, está preenchida quando: i) a insolvência do cedente é inevitável e, portanto, o cedente está efetivamente insolvente, ii) segundo o direito neerlandês, o objetivo do processo de insolvência consiste na maximização das receitas para todos os credores, mediante a liquidação do património do devedor, e iii) a transferência (de uma parte) da empresa é preparada no contexto de um denominado pre‑pack antes da declaração de insolvência, e só é executada a seguir a esta, sendo que: iv) o administrador da insolvência indigitado, designado pelo tribunal, deve, antes da declaração de insolvência, orientar‑se pelos interesses de todos os credores e por interesses sociais, como a manutenção do emprego, o que também deve ser fiscalizado pelo juiz da insolvência indigitado, igualmente designado pelo tribunal, v) o objetivo do pre‑pack consiste em permitir, no processo de insolvência subsequente, uma espécie de liquidação em que é vendida (uma parte da) empresa em atividade (“going concern”) pertencente ao património do cedente com vista à maximização das receitas para todos os credores e à manutenção, tanto quanto possível, do emprego, e vi) a organização do processo garante que este seja efetivamente o objetivo orientador?

    2.

    Deve o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 (...) ser interpretado no sentido de que a condição de um “processo de falência ou de um processo análogo por insolvência […] que esteja sob o controlo de uma entidade oficial competente”, está preenchida quando a transferência (de uma parte) da empresa é preparada num pre‑pack antes da declaração de insolvência, é concretizada a seguir a esta e: i) é observada, antes da declaração de insolvência, por um administrador da insolvência indigitado e por um juiz da insolvência indigitado, que são designados pelo tribunal mas não dispõem de poderes legais, ii) segundo o direito neerlandês, o administrador da insolvência indigitado deve, antes da declaração de insolvência, orientar‑se pelos interesses de todos os credores e por outros interesses sociais, como a manutenção do emprego, o que deve ser fiscalizado pelo juiz da insolvência indigitado, iii) as funções do administrador da insolvência e do juiz da insolvência indigitados não são diferentes das funções do administrador da insolvência e do juiz da insolvência nomeados, iv) o contrato por força do qual a empresa é transferida e que foi preparado no âmbito de um pre‑pack só é celebrado e executado depois de a insolvência ter sido decretada, v) no momento em que decreta a insolvência, o tribunal pode nomear, como administrador da insolvência ou como juiz da insolvência, pessoas diferentes do administrador da insolvência indigitado e do juiz da insolvência indigitado; e vi) o administrador da insolvência e o juiz da insolvência estão sujeitos às mesmas exigências de objetividade e de independência que o administrador da insolvência e o juiz da insolvência num processo de insolvência que não é antecedido de um pre‑pack e devem, por força das suas atribuições legais e independentemente do seu grau de envolvimento antes da declaração de insolvência, averiguar se a transferência preparada antes da declaração da insolvência (de uma parte) da empresa é do interesse de todos os credores e, na negativa, decidir que essa transferência não terá lugar, e podem sempre tomar a decisão de que a mesma não terá lugar por outros motivos, por exemplo de que a ela se opõem outros interesses sociais, como o emprego?»

    III. Análise jurídica

    28.

    O pedido de decisão prejudicial apresentado pelo órgão jurisdicional de reenvio diz respeito à interpretação do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23. Essa norma prevê uma derrogação ao sistema de proteção dos trabalhadores previsto nos artigos 3.o e 4.o da mesma diretiva em caso de transferência de empresas ou de parte de empresa e dispõe que, salvo determinação em contrário dos Estados‑Membros, esse sistema de proteção não se aplica no caso de transferência de empresa se estiverem preenchidos três requisitos cumulativos: i) que o cedente seja objeto de um processo de falência ou de um processo análogo por insolvência; ii) que esse processo tenha sido promovido com vista à liquidação do património do cedente; iii) que esteja sob o controlo de uma entidade oficial competente ( 8 ).

    29.

    As duas questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio visam esclarecer se, no caso em apreço, a segunda e a terceira condições referidas estão preenchidas, tendo em conta o Acórdão Smallsteps, já referido, e à luz dos elementos, indicados nessas questões, que caracterizam o processo de pre‑pack em causa e que distinguem este processo do processo objeto do Acórdão Smallsteps.

    30.

    Para responder a estas questões, considero oportuno, a título preliminar, efetuar uma análise sistemática da Diretiva 2001/23 e examinar a jurisprudência relativa ao artigo 5.o, n.o 1, desta diretiva. Com base nesta análise, responderei então às interrogações do órgão jurisdicional de reenvio.

    A.   Observações preliminares

    1. Análise sistemática da Diretiva 2001/23

    31.

    A disciplina europeia relativa à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas foi originariamente adotada numa diretiva de 1977 ( 9 ) no âmbito de uma série de medidas normativas destinadas a proteger os direitos dos trabalhadores diante das reestruturações de empresas ocorridas posteriormente à crise económica do início dessa mesma década ( 10 ). A Diretiva 77/187 foi posteriormente alterada pela Diretiva 98/50/CE ( 11 ) e, finalmente, substituída pela atual Diretiva 2001/23.

    32.

    Como resulta, além do seu dispositivo, do seu terceiro e quarto considerandos e da referência, constante do quinto considerando, à Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores adotada em 9 de dezembro de 1989, o objetivo fundamental da Diretiva 2001/23 é a proteção dos trabalhadores.

    33.

    Em particular, com a introdução desta legislação pretendeu‑se evitar que a transferência da empresa constitua a ocasião para reduzir a força de trabalho e de piorar o tratamento económico e normativo aplicado aos prestadores de trabalho ( 12 ). Como tem sido reiteradamente decidido pelo Tribunal de Justiça, a Diretiva 2001/23 tem por objetivo assegurar a manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de mudança de empresário, permitindo‑lhes ficar ao serviço da nova entidade patronal nas mesmas condições que as acordadas com o cedente. O Tribunal de Justiça esclareceu assim que a finalidade da diretiva é assegurar, tanto quanto possível, a continuação dos contratos ou das relações de trabalho com o cessionário, sem modificação, a fim de impedir que os trabalhadores em causa sejam colocados numa posição menos favorável apenas por causa dessa transferência ( 13 ).

    34.

    A Diretiva 2001/23 constitui, portanto, um instrumento de execução da política social da União, que tem por objetivo — corrigindo e compensando o mercado — alcançar objetivos sociais e, nomeadamente, a proteção dos direitos dos trabalhadores, atualmente também enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ( 14 ), e a promoção de um «desenvolvimento dos recursos humanos, tendo em vista um nível de emprego elevado e duradouro, e a luta contra as exclusões», como é mencionado no artigo 151.o TFUE.

    35.

    Nessa perspetiva, o Tribunal de Justiça precisou várias vezes que, sendo esta proteção de ordem pública e, por conseguinte, subtraída à disposição das partes no contrato de trabalho, as normas da Diretiva 2001/23, devem ser consideradas como imperativas no sentido de que não podem ser derrogadas num sentido que seja desfavorável aos trabalhadores ( 15 ).

    36.

    No âmbito da prossecução dos objetivos referidos, a Diretiva 2001/23 prevê, por um lado, no artigo 3.o, n.o 1, primeiro parágrafo, a transferência ipso iure para o cessionário, pelo simples facto da transferência da empresa, dos direitos e obrigações do cedente emergentes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes na data da transferência ( 16 ).

    37.

    Por outro lado, o artigo 4.o, n.o 1, da referida diretiva protege os trabalhadores contra os despedimentos efetuados pelo cedente ou pelo cessionário apenas por causa dessa transferência. Assim, esta disposição não obsta a despedimentos que possam ser feitos por razões económicas, técnicas ou de organização que impliquem mudanças no plano do emprego. A este respeito, o Tribunal de Justiça esclareceu que resulta da redação desta disposição que os despedimentos efetuados num contexto de transferência de empresa devem ser motivados por razões económicas, técnicas ou de organização no plano do emprego que não estejam intrinsecamente ligadas à referida transferência ( 17 ).

    38.

    Em derrogação destas disposições, o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 enuncia que o regime de proteção, visado nos referidos artigos 3.o e 4.o, não se aplica às transferências de empresas efetuadas nas condições especificadas nessa disposição, mencionadas no n.o 28, supra, salvo determinação em contrário dos Estados‑Membros ( 18 ).

    39.

    A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou várias vezes que, na medida em que o referido artigo 5.o, n.o 1, torna, em princípio, inaplicável o regime de proteção dos trabalhadores no caso de determinadas transferências de empresas e se afasta assim do objetivo principal subjacente a esta diretiva, deve necessariamente ser objeto de interpretação estrita ( 19 ).

    40.

    Além disso, o artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva 2001/23 precisa que, quando os seus artigos 3.o e 4.o se aplicarem a uma transferência de empresa, independentemente do facto de tal processo de insolvência ter ou não sido instaurado com o objetivo de proceder à liquidação do património do cedente, um Estado‑Membro pode, sob certas condições, não aplicar algumas garantias previstas nos referidos artigos 3.o e 4.o

    41.

    Mais especificamente, nos termos da alínea b) do referido n.o 2, nessas circunstâncias, o Estado‑Membro pode determinar que o cessionário, o cedente, ou a pessoa ou pessoas que exercem as funções do cedente, por um lado, e os representantes dos trabalhadores, por outro lado, possam acordar em certas alterações das condições de trabalho, na medida em que a legislação ou a prática em vigor o permitam, com o objetivo de salvaguardar as oportunidades de emprego através da garantia de sobrevivência da empresa, do estabelecimento ou da parte de empresa ou estabelecimento em questão.

    42.

    A este respeito, foi salientado que o artigo 5.o da Diretiva 2001/23, designadamente os seus n.os 1 e 2, deixa uma ampla margem de manobra aos Estados‑Membros na definição do âmbito de aplicação das exceções que aí são previstas ( 20 ). O reconhecimento aos Estados‑Membros de uma tão ampla margem de manobra está não só em consonância com a jurisprudência anterior à introdução do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 que esteve na origem dessa norma ( 21 ), mas é coerente com o amplo poder de ação reconhecido em geral aos Estados‑Membros no âmbito da execução e da aplicação da Diretiva 2001/23, que se baseia no facto de esta diretiva visar apenas uma harmonização parcial da matéria que esta regula e não pretender instaurar um nível de proteção uniforme para toda a União em função de critérios comuns ( 22 ).

    2. Análise da jurisprudência relativa à derrogação prevista no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23

    43.

    É neste contexto sistemático que se deve recordar brevemente a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à derrogação prevista no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23.

    44.

    A introdução normativa dessa derrogação é o resultado da evolução jurisprudencial do Tribunal de Justiça. Apesar de a Diretiva 77/187 não conter previsões específicas a este respeito, o Tribunal de Justiça, numa série de acórdãos proferidos nos anos 80 e 90, reconheceu a possibilidade de derrogar a aplicação da disciplina de proteção individual do trabalhador no caso de a empresa envolvida na transferência ser parte em processos de insolvência ( 23 ).

    45.

    Os princípios desenvolvidos por essa jurisprudência foram em seguida recebidos pelo legislador europeu e codificados no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23.

    46.

    O Tribunal de Justiça interpretou pela primeira vez o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23, no muitas vezes citado Acórdão Smallsteps, que, como referido, tem por objeto uma transferência de empresa efetuada na sequência de uma declaração de insolvência precedida de um pre‑pack na aceção do direito neerlandês.

    47.

    Nesse acórdão, o Tribunal de Justiça verificou se o processo de pre‑pack desenvolvido pela jurisprudência nos Países Baixos preenchia as três condições previstas no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23, mencionadas no n.o 28, supra, e se podia, por conseguinte, ser abrangido pelo âmbito de aplicação da derrogação prevista nessa disposição.

    48.

    Sobre este aspeto, no que respeita à primeira condição, o Tribunal de Justiça constatou que, segundo a disciplina nacional, sendo a operação de pre‑pack preparada antes da declaração de insolvência, mas executada posteriormente a esta última, essa operação era suscetível de ser abrangida pelo conceito de «processo de falência» na aceção do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 ( 24 ).

    49.

    Quanto à segunda condição, o Tribunal de Justiça considerou que, numa situação como a que está em causa no processo principal, uma operação de pre‑pack que tenha como objetivo principal a salvaguarda da empresa em insolvência, não pode estar abrangida pelo âmbito de aplicação da derrogação prevista no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23. O Tribunal de Justiça acrescentou que, a mera circunstância de a referida operação de prepack poder visar igualmente a maximização da satisfação dos credores não é suscetível de a transformar num processo aberto para efeitos da liquidação do património do cedente, na aceção do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 ( 25 ).

    50.

    No que respeita à terceira condição, o Tribunal de Justiça excluiu, no mesmo acórdão, a existência de controlo de uma entidade oficial competente sobre o processo de pre‑pack, salientando que esse processo é gerido pela direção da empresa e que nem o administrador da insolvência indigitado nem o juiz da insolvência indigitado designados pelo órgão jurisdicional dispunham de poderes legalmente previstos. O Tribunal de Justiça considerou que um processo desse género é suscetível de esvaziar quase totalmente de conteúdo qualquer eventual controlo do processo de insolvência por parte de uma entidade oficial competente ( 26 ).

    51.

    A abordagem adotada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Smallsteps foi confirmada na jurisprudência posterior.

    52.

    No Acórdão Plessers, o Tribunal de Justiça — após ter reiterado a necessidade de uma interpretação estrita do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 — considerou que um processo de reorganização judicial belga, utilizado com vista à manutenção da totalidade ou de parte da empresa ou das suas atividades, não tem uma finalidade de liquidação do património na aceção da norma referida. No mesmo acórdão, o Tribunal de Justiça excluiu igualmente que o processo estivesse sob o controlo de uma entidade oficial competente, considerando que o controlo efetuado pelo juiz indigitado, encarregado de organizar e realizar a cessão em nome e por conta do devedor, tem um alcance mais restrito do que o controlo exercido pelo respetivo órgão no âmbito de um processo de insolvência ( 27 ).

    53.

    Do mesmo modo, no Acórdão TMD Friction, o Tribunal de Justiça considerou que a cessão de algumas atividades da empresa pelo administrador da insolvência no âmbito de um processo de insolvência de direito alemão, «que têm por objetivo não a liquidação do património do cedente mas a continuação das suas atividades seguida da respetiva transferência não constituem um processo promovido com vista à liquidação do património do cedente, na aceção do artigo 5.o, n.o 1, da referida diretiva» ( 28 ).

    B.   Quanto às questões prejudiciais

    54.

    É com base na análise precedente que se deve responder às questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, esclarecendo simultaneamente o alcance da segunda e terceira condições necessárias para a aplicação da derrogação prevista no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23, no que respeita especificamente ao instituto do denominado pre‑pack conforme este se desenvolveu no direito neerlandês.

    1. Quanto à primeira questão prejudicial

    55.

    Com a sua primeira questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 deve ser interpretado no sentido de que a segunda condição necessária nos termos dessa disposição para a aplicação da derrogação nela prevista, ou seja, que o cedente seja objeto de um processo de falência ou de um processo análogo por insolvência «promovido com vista à liquidação do seu património», deve considerar‑se preenchida no caso de transferência de uma empresa efetuada no âmbito de um processo de pre‑pack, seguido da insolvência do cedente, à luz dos elementos específicos indicados nos n.os i) a vi) da questão.

    56.

    O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que o pre‑pack se inscreve no âmbito do processo de insolvência, que visa, no direito neerlandês, a liquidação do património do devedor e que, nesse contexto, o administrador da insolvência deve avaliar se o pre‑pack constitui o melhor método para maximizar as receitas de todos os credores. Sublinha igualmente que, no caso em apreço, o pre‑pack deve prosseguir o interesse de todos os credores como se a insolvência já tivesse sido decretada e que o objetivo da medida é a maximização das receitas possíveis para os credores. O facto de o pre‑pack ter sido concebido de forma a implicar os administradores da insolvência indigitados e o juiz da insolvência indigitado durante o período anterior à insolvência é essencial para realizar o objetivo prosseguido, ou seja, obter receitas tão elevadas quanto possível para os credores.

    57.

    A este respeito, recordo, antes de mais, que, nos termos do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23, a derrogação aos direitos conferidos aos trabalhadores pelos artigos 3.o e 4.o dessa diretiva aplica‑se quando o processo de falência ou análogos por insolvência de que é objeto o cedente é «promovido com vista à liquidação do seu património».

    58.

    Na sua jurisprudência constante, o Tribunal de Justiça distingue os processos de falência ou os processos análogos por insolvência «promovido[s] com vista à liquidação do […] património» do cedente, que são abrangidos pelo âmbito de aplicação da derrogação mencionada, dos processos que visam a continuidade da atividade da empresa em causa, que estão, ao invés, excluídos dessa derrogação ( 29 ).

    59.

    Para distinguir os dois tipos de processo, o Tribunal de Justiça precisou que os processos que visam a continuidade da atividade são os que tem como objetivo salvaguardar o caráter operacional da empresa, ou das suas unidades viáveis ( 30 ). Processos desse género são desenhados ou aplicados com o objetivo específico de salvaguardar o caráter operacional da empresa (ou das unidades referidas) de maneira a permitir conservar o valor que decorre da continuação, sem interrupção, da exploração da empresa ( 31 ). Em contrapartida, processos tendentes à liquidação do património visam maximizar a satisfação coletiva dos credores ( 32 ).

    60.

    A este respeito importa, todavia, salientar que, não obstante esta distinção jurisprudencial, na realidade, no âmbito de um processo de insolvência, não tem necessariamente de existir oposição entre o objetivo de salvaguardar o caráter operacional da empresa e o de maximizar a satisfação coletiva dos credores. De resto, isso é evidenciado pelo próprio Tribunal de Justiça quando se refere à possibilidade de existir uma certa sobreposição entre esses dois objetivos ( 33 ). É, portanto, possível que um determinado processo prossiga ambos os objetivos e que, no âmbito desse processo, um deles seja funcional para atingir o outro.

    61.

    Com efeito, a salvaguarda do caráter operacional da empresa insolvente ou, pelo menos, das suas unidades viáveis pode potencialmente permitir obter, no âmbito da liquidação, um preço mais elevado pela cessão dessa empresa ou dessas unidades do que aquele que seria obtido pela cessão isolada dos elementos dos ativos. Com efeito, o valor de uma empresa que ainda é normalmente operacional é, em geral, claramente mais elevado, tanto em termos do valor dos seus ativos considerados isoladamente, como do valor que a mesma empresa teria se a sua situação de grave crise financeira fosse divulgada ( 34 ). Além disso, garantir a continuidade empresarial também impede a dispersão dos ativos intangíveis, ou seja, de «asset» [ativo] com valor económico próprio, que contribui para constituir o património que pode ser atacado pelos credores. A salvaguarda do caráter operacional da empresa, além de beneficiar em termos de emprego e sociais, pode, portanto, permitir maximizar a satisfação dos credores.

    62.

    O Tribunal de Justiça precisou igualmente que, em caso de sobreposição entre esses dois tipos de objetivos, a finalidade principal de um processo que visa a continuidade da atividade da empresa continua a ser, em todo o caso, a salvaguarda da empresa em causa e que a mera circunstância de o referido processo poder visar igualmente a maximização da satisfação dos credores não é suscetível de a transformar num processo abrangido pelo conceito próprio de direito da União de «processo aberto para efeitos da liquidação do […] património» do cedente, na aceção do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 ( 35 ).

    63.

    O processo de pre‑pack, seguido da insolvência, tal como foi desenvolvido na jurisprudência neerlandesa e descrita pelo órgão jurisdicional de reenvio, é um exemplo de processo que prossegue os dois objetivos.

    64.

    Neste tipo de processo, a venda da empresa insolvente (ou das suas unidades ainda viáveis) ocorre no âmbito da liquidação do cedente insolvente e visa maximizar as receitas para todos os credores obtidas com essa liquidação. Todavia, essa venda é efetuada no termo de um processo, o pre‑pack, que é concebido e aplicado com o objetivo e com espécies que visam preservar, na medida do possível, a continuidade empresarial.

    65.

    Se é certo que, como sublinha o órgão jurisdicional de reenvio, o pre‑pack se insere no âmbito do processo de insolvência, que tem indubitavelmente por objetivo maximizar as receitas dos credores, e o seu objetivo final, como é evidenciado no n.o v) da primeira questão prejudicial, consiste em permitir, no processo de insolvência subsequente, uma espécie de liquidação em que é vendida uma (parte da) empresa em atividade (going concern) pertencente ao património do cedente com vista à maximização das receitas para todos os credores, tal não obsta a que o pre‑pack tenha, antes de mais, como objetivo garantir a continuação da empresa ou das suas unidades viáveis, e isto precisamente porque é essa continuação que constitui o pressuposto para a maximização das receitas dos credores. Esta maximização é efetuada por força da continuação da empresa. Por conseguinte, o primeiro objetivo do processo de pre‑pack é a continuação da empresa, que permite obter a maximização da satisfação dos credores.

    66.

    A este respeito, observo que o Tribunal de Justiça sublinhou, no n.o 49 do Acórdão Smallsteps, que uma operação de pre‑pack«tem por objeto preparar a cessão da empresa nos mínimos detalhes de modo a permitir a rápida reativação das unidades viáveis da empresa a seguir à declaração de insolvência no intuito de evitar assim a rutura que resultaria da cessação abrupta das atividades dessa empresa na data da declaração de insolvência, de maneira a preservar o valor da referida empresa e o emprego». Foi precisamente em consideração desta caracterização do processo pre‑pack que o Tribunal de Justiça entendeu no Acórdão Smallsteps que um processo como o que estava em causa no processo principal não preenchia a segunda condição do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23.

    67.

    Todavia, importa salientar que essa caracterização do processo de pre‑pack efetuada pelo Tribunal de Justiça no n.o 49 do Acórdão Smallsteps não é posta em causa nem pelo órgão jurisdicional de reenvio, nem pelo Governo neerlandês, nem por nenhuma das partes intervenientes perante o Tribunal de Justiça.

    68.

    No caso em apreço, resulta dos autos e das observações das partes que a operação de pre‑pack objeto do processo principal, à semelhança da examinada no Acórdão Smallsteps — e não obstante a diferente leitura dada pelo órgão jurisdicional de reenvio — visava preparar em pormenor, antes da insolvência, a cessão da empresa em atividade «going concern», para preservar o seu valor, com vista a maximizar as receitas para os credores, bem como para preservar o emprego ( 36 ). O objetivo de permitir a prossecução da empresa foi, aliás, concretamente atingido, uma vez que a Nova Heiploeg comprou e utilizou as instalações do Antigo Grupo Heiploeg e que mantiveram a própria clientela e assumiram os seus trabalhadores, que continuaram a exercer, em geral, as mesmas funções anteriormente exercidas no mesmo local de trabalho. Essa operação corresponde exatamente à caracterização fornecida pelo Tribunal de Justiça no n.o 49 do Acórdão Smallsteps e recordada no anterior n.o 66.

    69.

    Os elementos apresentados pelo órgão jurisdicional de reenvio na primeira questão prejudicial não permitem, na minha opinião, pôr em causa essa caracterização da operação de pre‑pack e atribuir‑lhe, no caso em apreço, uma finalidade que permita, à luz dos princípios recordados nos n.os 58 a 62 das presentes conclusões, considerá‑la abrangida no âmbito de aplicação da derrogação prevista no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23.

    70.

    Com efeito, o facto de o cedente estar efetivamente insolvente [n.o i) da primeira questão prejudicial] não é relevante, na minha opinião, na medida em que esta circunstância não tem incidência no objetivo do processo. Neste sentido, observa‑se que a situação de insolvência do cedente é uma condição comum também ao artigo 5.o, n.o 2, da diretiva, que admite claramente a existência de processos de insolvência — justificados, portanto, pela situação de insolvência da empresa — mesmo que não tenham uma finalidade de liquidação ( 37 ).

    71.

    O mesmo vale para a prossecução, no âmbito do processo, dos interesses dos credores [objeto dos elementos apresentados nos n.os ii), iv), v) e vi) da primeira questão prejudicial formulada pelo Hoge Raad (Supremo Tribunal, Países Baixos)]. Como foi salientado nos n.os 60 a 62, supra, o facto de um processo prosseguir essa finalidade não impede, em caso de sobreposição de objetivos, qualificá‑lo como processo que visa a prossecução da empresa, quando esse processo prossegue, antes de mais, esse objetivo, ou por outras palavras, quando esse objetivo é o objetivo primário desse processo ( 38 ).

    72.

    Do mesmo modo, sem incidência efetiva sobre o objetivo do processo, é, na minha opinião, o facto de a transferência só ser executada depois da declaração de insolvência [n.o iii) da primeira questão prejudicial], tal como o facto de, contrariamente ao que acontecia no processo que deu origem ao Acórdão Smallsteps, as negociações relativas à transferência da Antiga Heiploeg não terem tido lugar com uma empresa a ela ligada. Considero este último aspeto totalmente neutro relativamente à finalidade do processo de insolvência, que pode efetivamente ser o de preservar a continuidade da empresa, mesmo quando o cessionário é uma pessoa estranha ao grupo do cedente ( 39 ).

    73.

    Em conclusão à luz de todas as considerações precedentes, considero, de forma coerente com a abordagem adotada pelo Tribunal de Justiça no Acórdão Smallsteps e na jurisprudência subsequente, baseada numa interpretação estrita do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23, que o processo de pre‑pack no direito neerlandês, conforme descrito pelo órgão jurisdicional de reenvio, constitui um processo que não preenche a segunda condição prevista por esta disposição e que está, portanto, excluído do âmbito de aplicação da derrogação aí prevista.

    74.

    Assim sendo, considero, todavia, necessário fazer algumas considerações complementares importantes.

    75.

    Em primeiro lugar, considero que é indubitável que processos de pré‑insolvência como o processo de pre‑pack, na medida em que visam prevenir e evitar — ou pelo menos reduzir — perdas de valor e de emprego resultantes da cessação total da atividade da empresa na sequência da sua insolvência, desempenham um papel importante na sociedade e devem, portanto, ser favorecidos ( 40 ). Por conseguinte, devem evitar‑se abordagens demasiado rígidas que tenham como consequência tornar esses processos ineficazes in concreto. Nesta perspetiva, importa abordar a questão do possível efeito dissuasivo na utilização de um processo como o de pre‑pack que, em alguns casos, pode decorrer de uma interpretação da disposição em causa que, em caso de cessão de uma empresa em insolvência ou de algumas unidades dessa empresa, imponha ao cessionário assumir a totalidade da força de trabalho da empresa insolvente.

    76.

    Com efeito, o risco que se corre — risco evidenciado tanto nas observações de alguns intervenientes perante o Tribunal de Justiça como na doutrina dos Países Baixos — é que, em certas situações, a aplicação da disposição em causa no presente processo pode, em concreto, ir mesmo contra o objetivo geral de proteção dos trabalhadores prosseguido por esta diretiva, tal como foi salientado nos n.os 32 e seguintes, supra. Com efeito, no caso de, devido a razões económicas, técnicas ou de organização, a retoma da totalidade da força de trabalho pelo cessionário da empresa em crise (ou de algumas das suas unidades) constituir um elemento determinante que impede a continuação da atividade da empresa, impor essa retoma seria contraproducente para os interesses dos próprios trabalhadores. Por outras palavras, se a empresa for destinada à insolvência e a possibilidade de continuidade da empresa (pelo menos parcial) pressupuser objetivamente uma redução da força de trabalho ou uma modificação das condições de trabalho dos trabalhadores da empresa, é melhor que apenas alguns dos trabalhadores sejam retomados e em condições menos favoráveis, do que ter uma insolvência completa da empresa que implica uma perda total do emprego ( 41 ).

    77.

    Todavia, a esse respeito, parece‑me importante recordar que o sistema da Diretiva 2001/23 contém vários elementos que garantem uma flexibilidade que permite abordar essa questão.

    78.

    Por um lado, há que salientar que, embora, nos termos do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23, a transferência de uma empresa não possa constituir em si mesma fundamento de despedimento por parte do cedente ou do cessionário, resulta todavia expressamente da segunda frase desse artigo que isso não exclui os «despedimentos efetuados por razões económicas, técnicas ou de organização que impliquem mudanças da força de trabalho». O legislador da União teve assim em conta as necessidades do cessionário da empresa ligadas ao eventual excedente de pessoal, impondo‑lhe, todavia, a obrigação de demonstrar que os despedimentos efetuados no âmbito da transferência — que devem naturalmente verificar‑se dentro do respeito de todas as garantias previstas pelas disposições pertinentes do direito da União ou nacional ( 42 ) — são devidos a razões de ordem técnica, económica ou de organização ( 43 ).

    79.

    A este respeito, acrescento ainda que, embora a simples vontade de reduzir os custos de uma retoma da empresa ou de prevenir ou de limitar os problemas financeiros não pode, por conseguinte, ser aceite como motivo justificativo na aceção do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 ( 44 ) e embora uma situação de crise da empresa não possa, necessária e sistematicamente, constituir uma razão económica, técnica ou de organização que implique mudanças da força de trabalho na aceção desta disposição ( 45 ), não está, em minha opinião, excluído que comprovadas razões relacionadas com a necessidade de garantir a sobrevivência da empresa, estabelecimento ou de parte destes, possam ser qualificadas como razões de ordem técnica, económica ou de organização, na aceção desta disposição.

    80.

    Por outro lado, resulta expressamente do artigo 5.o, n.o 2, alínea b), da Diretiva 2001/23 que, quando os artigos 3.o e 4.o se aplicarem a uma transferência no decurso de um processo de insolvência que tenha sido instaurado em relação a um cedente (independentemente do facto de tal processo ter ou não sido instaurado com o objetivo de proceder à liquidação do seu património), os Estados‑Membros podem determinar que o cessionário, o cedente, ou a pessoa ou pessoas que exercem as funções do cedente, por um lado, e os representantes dos trabalhadores, por outro lado, possam acordar em certas alterações das condições de trabalho, na medida em que a legislação ou a prática em vigor o permitam, com o objetivo de salvaguardar as oportunidades de emprego através da garantia de sobrevivência da empresa, do estabelecimento ou da parte de empresa ou estabelecimento em questão.

    81.

    Daqui resulta que, no âmbito da ampla margem de apreciação deixada aos Estados‑Membros na definição do âmbito de aplicação das exceções previstas no artigo 5.o da Diretiva 2001/23 mencionada no anterior n.o 42, um Estado‑Membro pode, dentro dos limites indicados nesse artigo, regular por via legislativa um instituto como o do pre‑pack determinando, respeitando essa disposição, que prevê expressamente o envolvimento dos representantes dos trabalhadores, as consequências sobre o emprego decorrentes do recurso a esse instituto. No caso em apreço, o Reino dos Países Baixos (ainda) não utilizou a margem de manobra que lhe é reconhecida pelas referidas disposições ( 46 ).

    82.

    A este respeito, quero ainda precisar que, na minha opinião, um regime derrogatório como o previsto no artigo 5.o, n.o 2, da Diretiva 2001/23 deve necessariamente basear‑se num ato de natureza legislativa, não sendo suficiente que esse regime tenha a sua origem numa prática de fonte meramente jurisprudencial.

    83.

    Esta consideração é imposta, em primeiro lugar, pela tipologia da temática em discussão. Trata‑se, com efeito, de direitos sociais fundamentais dos trabalhadores, cuja ponderação, mesmo numa ótica de equilíbrio de interesses potencialmente opostos, deve ser confiada a órgãos dotados de legitimidade democrática. Além disso, esta conclusão responde a uma exigência objetiva de segurança jurídica que exige que as normas sejam claras e precisas, para garantir a acessibilidade da base legal e a previsibilidade das situações e das relações jurídicas abrangidas pelo direito da União ( 47 ). Por último, o instrumento legislativo afigura‑se necessário tendo em consideração a própria natureza da margem de apreciação atribuída aos Estados: trata‑se de um poder derrogatório — que pode ser exercido na ótica de uma compressão da proteção dos trabalhadores — em relação a um regime geral contido num ato normativo da União ( 48 ).

    84.

    Em segundo lugar, considero necessário debruçar‑me brevemente sobre a expressão «sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio» que figura no n.o 50 do Acórdão Smallsteps, evidenciada pelo órgão jurisdicional de reenvio e que foi objeto de interpretações muito diferentes nos Países Baixos, dando origem a uma situação de insegurança jurídica. Dessa expressão, o órgão jurisdicional de reenvio, bem como vários órgãos jurisdicionais que conhecem do mérito e parte da doutrina nos Países Baixos, defende que o órgão jurisdicional deve, em todo o caso, apreciar se o processo que lhe foi submetido diz respeito a um pre‑pack como o que está em causa no Acórdão Smallsteps ou outro tipo de pre‑pack, ao qual esse acórdão não se aplica ( 49 ).

    85.

    A este respeito, há que recordar que o sistema de cooperação instituído pelo artigo 267.o TFUE se baseia numa clara separação de funções entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça. No âmbito de um processo instaurado ao abrigo dessa disposição, a reconstrução dos factos e a interpretação das disposições nacionais cabe aos órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros. Em contrapartida, o Tribunal de Justiça é competente para fornecer ao órgão jurisdicional nacional todos os elementos de interpretação do direito da União e as indicações, retiradas dos autos do processo principal e das observações, apresentadas sob forma escrita ou oral, que lhe sejam submetidas, suscetíveis de colocar o órgão jurisdicional nacional em condições de decidir ( 50 ).

    86.

    É nesta perspetiva que deve ser interpretada a expressão acima referida no n.o 50 do Acórdão Smallsteps, bem como outras expressões utilizadas no mesmo acórdão ( 51 ).

    87.

    Todavia, importa constatar que este n.o 50 se segue imediatamente ao referido n.o 49, no qual o Tribunal de Justiça, como foi salientado nos n.os 66 e 67 das presentes conclusões, pôs em evidência as características do instituto jurisprudencial do pre‑pack no direito neerlandês à luz das quais concluiu que operações desse género estão excluídas do âmbito de aplicação da segunda condição prevista no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23. Daqui resulta que, na minha opinião, a verificação pelo órgão jurisdicional nacional mencionada pelo Tribunal de Justiça no n.o 50 do Acórdão Smallsteps não se refere à possibilidade de o referido órgão jurisdicional qualificar, caso a caso, um pre‑pack como tendo uma finalidade de liquidação ou não, na aceção do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23. Essa expressão antes se refere à verificação pelo órgão jurisdicional nacional de que a operação em causa que lhe foi apresentada coincide com a descrita no n.o 49 do Acórdão Smallsteps ( 52 ), o que, no âmbito de um reenvio prejudicial, só o órgão jurisdicional nacional enquanto «dominus» da matéria de facto está em condições de fazer, como foi salientado no anterior n.o 85.

    88.

    De resto, considero que uma interpretação do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23, na qual se pede ao juiz nacional, em sede de contencioso, que verifique caso a caso a finalidade de liquidação ou não de uma operação de pre‑pack daria lugar a uma situação de insegurança jurídica inaceitável que conduziria à inutilidade prática do instituto. Em contrapartida, considero necessário fornecer aos operadores em causa uma disciplina que permita apreciar caso a caso, ex ante, com base em critérios claros e certos os efeitos e os custos da utilização de uma operação desse género.

    89.

    Resulta de todas as considerações precedentes que, na minha opinião, se deve responder à primeira questão prejudicial declarando que o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 deve ser interpretado no sentido de que não preenche a segunda condição prevista nessa disposição para a derrogação da manutenção dos direitos conferidos aos trabalhadores pelos artigos 3.o e 4.o da mesma diretiva, uma operação de pre‑pack, seguida da insolvência, em que a cessão da empresa ou das suas unidades viáveis é preparada nos mais pequenos detalhes antes da declaração de insolvência, para permitir a retoma rápida da empresa ou das suas unidades viáveis após a declaração de insolvência, no intuito de evitar assim a rutura que resultaria da cessação abrupta das atividades dessa empresa na data da declaração de insolvência, de maneira a preservar o valor da referida empresa e o emprego. Não é relevante a este respeito que o objetivo prosseguido por essa operação de pre‑pack seja também o de maximizar as receitas da cessão para todos os credores da empresa em questão e que a insolvência do cedente seja inevitável. Esta interpretação não prejudica a possibilidade de efetuar, em conformidade com todas as garantias previstas pelas disposições aplicáveis, os despedimentos que possam ter lugar por razões económicas, técnicas ou de organização que impliquem mudanças da força de trabalho, na aceção do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23. Além disso, os Estados‑Membros continuam a ter a liberdade de prever uma disciplina normativa de pre‑pack em cumprimento das condições estabelecidas no artigo 5.o, n.o 2, da mesma diretiva.

    2. Quanto à segunda questão prejudicial

    90.

    Com a sua segunda questão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 5.o, n.o 1, da diretiva deve ser interpretado no sentido de que a terceira condição necessária nos termos dessa disposição para a aplicação da derrogação nele prevista, ou seja, um processo de falência ou de um processo análogo por insolvência que esteja «sob o controlo de uma entidade oficial competente», está preenchida quando a transferência da empresa ou de uma sua parte é preparada num pre‑pack antes da declaração de insolvência e é concretizada a seguir a esta, à luz dos elementos específicos indicados nos n.os i) a vi) da questão prejudicial.

    91.

    A este respeito, tendo em conta a resposta que proponho à primeira questão prejudicial, da qual resulta que o processo de pre‑pack não preenche, na minha opinião, a segunda condição prevista no artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23, considero que não é necessário responder à segunda questão. Por conseguinte, é apenas ad abundantiam que faço as seguintes observações

    92.

    Antes de mais, saliento que as considerações efetuadas pelo Tribunal de Justiça nos n.os 53, 54 e 55, primeira frase, do Acórdão Smallsteps são igualmente aplicáveis no caso em apreço, ou seja, por um lado, a inexistência de poderes formais com fundamento na lei do administrador da insolvência indigitado e do juiz da insolvência indigitado — como salientou, aliás, o órgão jurisdicional de reenvio no n.o i) da segunda questão — e, por outro, o facto de, na prática, ser a direção da empresa que conduz as negociações e toma as decisões na preparação da venda ( 53 ).

    93.

    Quanto às circunstâncias invocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio nos n.os ii) e vi) da segunda questão, relativa aos interesses que devem nortear o administrador da insolvência indigitado na fase preliminar, bem como os requisitos de objetividade e de independência que devem caracterizar o referido administrador de insolvência e o juiz da insolvência indigitado — não obstam a que esses órgãos sejam desprovidos de competências legalmente previstas. A este respeito, saliento que, para efeitos da existência desta terceira condição, não é tão relevante identificar os interesses que esses órgãos devem prosseguir ou os requisitos que devem possuir, como identificar as competências efetivas de que dispõem.

    94.

    Quanto à circunstância mencionada no n.o iii) da segunda questão — ou seja, que «as funções do administrador da insolvência indigitado e do juiz da insolvência indigitado não diferem das do administrador da insolvência e do juiz da insolvência» — também não parece infirmar a falta de poderes legalmente previstos para os órgãos designados na fase que precede a declaração de insolvência.

    95.

    Quanto ao poder do órgão jurisdicional de nomear pessoas diferentes do administrador da insolvência indigitado e do juiz da insolvência indigitado no âmbito do processo de insolvência posterior, circunstância deduzida pelo órgão jurisdicional de reenvio do n.o v) da segunda questão, é suficiente, na minha opinião, salientar que não diz respeito à efetividade dos poderes do administrador da insolvência indigitado e do juiz da insolvência indigitado, mas é uma circunstância que se concretizará, eventualmente, após a declaração de insolvência.

    IV. Conclusão

    96.

    Com base em todas as considerações anteriores, proponho que o Tribunal responda às questões prejudiciais apresentadas pelo Hoge Raad der Nederlanden (Supremo Tribunal, Países Baixos) da seguinte forma:

    Resulta de todas as considerações precedentes que, na minha opinião, se deve responder à primeira questão prejudicial que o artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23 deve ser interpretado no sentido de que não preenche a segunda condição prevista nessa disposição para a derrogação da manutenção dos direitos conferidos aos trabalhadores pelos artigos 3.o e 4.o da mesma diretiva, uma operação de pre‑pack, seguida da insolvência, em que a cessão da empresa ou das suas unidades viáveis é preparada nos mais pequenos detalhes antes da declaração de insolvência, para permitir a retoma rápida da empresa ou das suas unidades viáveis após a declaração de insolvência, no intuito de evitar assim a rutura que resultaria da cessação abrupta das atividades dessa empresa na data da declaração de insolvência, de maneira a preservar o valor da referida empresa e o emprego. Não é relevante a este respeito que o objetivo prosseguido por essa operação de pre‑pack seja também o de maximizar as receitas da cessão para todos os credores da empresa em questão e que a insolvência do cedente seja inevitável. Esta interpretação não prejudica a possibilidade de efetuar, em conformidade com todas as garantias previstas pelas disposições aplicáveis, os despedimentos que possam ter lugar por razões económicas, técnicas ou de organização que impliquem mudanças da força de trabalho, na aceção do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23. Além disso, os Estados‑Membros continuam a ter a liberdade de prever uma disciplina normativa de pre‑pack em cumprimento das condições estabelecidas no artigo 5.o, n.o 2, da mesma diretiva.


    ( 1 ) Língua original: italiano.

    ( 2 ) Diretiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de estabelecimentos (JO 2001, L 82, p. 16).

    ( 3 ) Para uma descrição pormenorizada do debate jurisprudencial e doutrinal surgido nos Países Baixos sobre a questão, v. Conclusões do advogado‑geral B. Drijber, de 1 de novembro de 2019 (ECLI: NL: PHR:2019:1237) (FNV/Heiploeg).

    ( 4 ) Kamerstukken II, 2014/2015, 34218, nr. Kamerstukken II, 2014/2015, 34218, nr. 2‑3 en Kamerstukken I, 2018/2019, 34218, K‑.T (v. https://zoek.officielebekendmakingen.nl/dossier/34218).

    ( 5 ) V. n.os 3.5.1 a 3.6.6 da decisão de reenvio.

    ( 6 ) Mais precisamente, v. n.os 3.9.1 e 3.9.2 da decisão de reenvio.

    ( 7 ) Mais precisamente, v. n.o 3.10.1 da decisão de reenvio.

    ( 8 ) V. Acórdão Smallstep, n.o 44, bem como os posteriores Acórdãos de 16 de maio de 2019, Plessers (C‑509/17, EU:C:2019:424, a seguir «Acórdão Plessers», n.o 40), e de 9 de setembro de 2020, EM e FL (C‑674/18 e C‑675/18, EU:C:2020:682, a seguir «Acórdão TMD Friction», n.o 60).

    ( 9 ) Diretiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos (JO 1977, L 61, p. 26).

    ( 10 ) Para uma análise histórica da evolução normativa neste domínio, v. n.os 38 a 41 das Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo Plessers (C‑509/17, EU:C:2019:50), onde são feitas outras extensas referências legislativas.

    ( 11 ) Diretiva 98/50/CE do Conselho, de 29 de junho de 1998, que altera a Diretiva 77/187/CEE (JO 1998, L 201, p. 88).

    ( 12 ) V., neste sentido, no que respeita à Diretiva 77/187, o Acórdão de 7 de fevereiro de 1985, Abels (C‑135/83, EU:C:1985:55, n.o 18), e o Acórdão de 13 de junho de 2019, Ellinika Nafpigeia AE (C‑664/17, EU:C:2019:496, n.o 41 e jurisprudência aí referida).

    ( 13 ) V., inter alia, Acórdãos Plessers, n.o 52 e jurisprudência aí referida, e TMD Friction, n.o 48 e jurisprudência aí referida.

    ( 14 ) V. especificamente artigos 27.o, 30.o e 33.o da Carta.

    ( 15 ) V., mais recentemente, Acórdão TMD Friction, n.o 51 e jurisprudência aí referida.

    ( 16 ) V., neste sentido, entre outros, Acórdão de 25 de julho de 1991, Urso e o. (C‑362/89, EU:C:1991:326, n.o 20); mais recentemente, Acórdão de 7 de agosto de 2018, Colino Sigüenza (C‑472/16, EU:C:2018:646, n.o 52).

    ( 17 ) V. Acórdão Plessers, n.o 54.

    ( 18 ) V. Acórdãos Smallsteps, n.o 40, e TMD Friction, n.o 55.

    ( 19 ) V. Acórdão Plessers, n.o 38 e jurisprudência aí referida.

    ( 20 ) A esse respeito, v. Conclusões apresentadas pelo advogado‑geral P. Mengozzi no processo Federatie Nederlandse Vakvereniging e o. (C‑126/16, EU:C:2017:241, n.os 62 e 63).

    ( 21 ) V. n.o 44, supra, e as referências feitas na nota de pé de página n.o 23.

    ( 22 ) Quanto à falta de uma previsão de harmonização completa da matéria pela Diretiva 2001/23, v. Acórdão TMD Friction, n.o 49 e jurisprudência aí referida.

    ( 23 ) Para uma análise aprofundada da elaboração jurisprudencial anterior à introdução, com a Diretiva 98/50, da disposição do atual artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2001/23, remeto para a análise completa efetuada, em primeiro lugar, nos n.os 41 a 48 das Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo Federatie Nederlandse Vakvereniging e o. (C‑126/16, EU:C:2017:241) e, em seguida, para os n.os 42 a 47 das Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo Plessers (C‑509/17, EU:C:2019:50), onde se encontram outras amplas referências jurisprudenciais.

    ( 24 ) Acórdão Smallsteps, n.os 45 e 46.

    ( 25 ) V. Acórdão Smallsteps, n.os 47 a 52.

    ( 26 ) V. Acórdão Smallsteps, n.os 53 a 57.

    ( 27 ) V. Acórdão Plessers, n.os 44 a 47. V., igualmente, n.os 53 a 69 das Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo Plessers (C‑509/17, EU:C:2019:50).

    ( 28 ) V. Acórdão TMD Friction, n.os 20 a 23 e 61 e 62. V., igualmente, n.os 61 a 66 das Conclusões do advogado‑geral E. Tanchev nos processos apensos TMD Friction e TMD Friction Esco (C‑674/18 e C‑675/18, EU:C:2020:180).

    ( 29 ) V. Acórdão Smallsteps, n.o 47 e jurisprudência aí referida. V. também Acórdão Plessers, n.o 44 e TMD Friction, n.os 61 e 62.

    ( 30 ) V. Acórdão Smallsteps, n.o 48.

    ( 31 ) V. n.o 57 das Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo Federatie Nederlandse Vakvereniging e o. (C‑126/16, EU:C:2017:241), número explicitamente referido pelo Tribunal de Justiça no n.o 48 do Acórdão Smallsteps.

    ( 32 ) Acórdão Smallsteps, n.o 48.

    ( 33 ) Acórdão Smallsteps, n.o 48, última frase. A esse respeito, v. igualmente, n.o 58 das Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo Nederlandse Vakvereniging e o. (C‑126/16, EU:C:2017:241).

    ( 34 ) V. n.o 58 das Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo Federatie Nederlandse Vakvereniging e o. (C‑126/16, EU:C:2017:241), número explicitamente referido pelo Tribunal de Justiça no n.o 48 do Acórdão Smallsteps.

    ( 35 ) Acórdão Smallsteps, n.o 48, última frase, n.o 51 e última frase da parte decisória do acórdão.

    ( 36 ) Isto resulta claramente, entre outros, do relatório público redigido pelos administradores da insolvência em 4 de fevereiro de 2014, onde se faz referência expressa à elaboração de um plano de recuperação da empresa com um novo acionista, bem como da decisão de designação do administrador da insolvência indigitado e do juiz da insolvência indigitado, promovido, também, para a possibilidade de uma «reorganização» da empresa a partir de uma situação de insolvência.

    ( 37 ) Por outro lado, a insolvência da empresa cedente constitui uma característica também comum aos factos subjacentes ao Acórdão Smallsteps (v. n.o 17 do acórdão) e ao Acórdão TMD Friction (v. n.os 21 e 29 do acórdão), que excluíram a finalidade de liquidação do processo em causa.

    ( 38 ) V. Acórdão Smallsteps, n.os 48, 51 e 52, já referidos.

    ( 39 ) Outra questão é a da possibilidade de abusar do processo de insolvência para privar os trabalhadores dos direitos que lhes são reconhecidos pela Diretiva 2001/23. V., a este respeito, artigo 5.o, n.o 4, da mesma.

    ( 40 ) A este respeito, v. n.o 78 das Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo Nederlandse Vakvereniging e o. (C‑126/16, EU:C:2017:241).

    ( 41 ) O Tribunal de Justiça já teve oportunidade de se pronunciar sobre essa questão. A esse respeito, v., igualmente, Acórdãos de 25 de julho de 1991, d’Urso e o. (C‑362/89, EU:C:1991:326, n.os 18 e 19), e de 7 de dezembro de 1995, Spano e o. (C‑472/93, EU:C:1995:421, n.os 34 e 35).

    ( 42 ) A este respeito, v. n.o 85 das Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo Federatie Nederlandse Vakvereniging e o. (C‑126/16, EU:C:2017:241) e jurisprudência referida.

    ( 43 ) Nesse sentido, v. Acórdão Plessers, n.o 54. V. também os acórdãos citados na nota 41.

    ( 44 ) A este respeito, v. Conclusões do advogado‑geral M. Szpunar no processo Plessers (C‑509/17, EU:C:2019:50, n.o 77).

    ( 45 ) V. Acórdão de 11 de junho de 2009, Comissão/Itália (C‑561/07, EU:C:2009:363, n.o 36). O sublinhado é meu.

    ( 46 ) V. Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi no processo Federatie Nederlandse Vakvereniging e o. (C‑126/16, EU:C:2017:241, n.o 64).

    ( 47 ) Uma derrogação de origem puramente jurisprudencial corre o risco de abrir caminho a regimes potencialmente diferenciados segundo a autoridade judiciária envolvida, criando assim um quadro jurídico potencialmente incerto, o que parece ter acontecido nos Países Baixos em que a aplicação do regime do pre‑pack pelos órgãos jurisdicionais que conhecem do mérito parece ter sido marcada por alguma incerteza. A este respeito, v. o quadro da discussão jurisprudencial e doutrinal nos Países Baixos reproduzido nas Conclusões do advogado‑geral B. Drijber citadas na nota 3, supra.

    ( 48 ) A solução que acaba de ser oferecida é, aliás, coerente com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, que destacou a exigência de respeito pelos princípios gerais do direito da União, no âmbito das derrogações às diretivas relativas aos direitos dos trabalhadores (v., a este respeito, Acórdão de 21 de outubro de 2010, Accardo e o., C‑227/09, EU:C:2010:624, n.o 55).

    ( 49 ) V. n.o 3.11.3 da decisão de reenvio, bem como as Conclusões do advogado‑geral B. Drijber citadas na nota 3, supra.

    ( 50 ) V., inter alia, Acórdão de 18 de novembro de 2020, Syndicat CFTC (C‑463/19, EU:C:2020:932, n.o 29 e jurisprudência aí referida).

    ( 51 ) Como as expressões «uma operação de prepack, como a que está em causa no processo principal» no n.o 49 do Acórdão Smallsteps e «numa situação, como a que está em causa no processo principal», no n.o 59 e no dispositivo desse acórdão.

    ( 52 ) Esta interpretação do n.o 50 do Acórdão Smallsteps é corroborada não só pela utilização da expressão «nestas condições», mas também pela referência na sequência do número a uma «tal operação».

    ( 53 ) Com efeito, resulta dos autos que, antes da declaração de insolvência, o administrador da insolvência indigitado e do juiz da insolvência indigitado não têm poderes com fundamento normativo, embora tivessem, com base na decisão judicial de designação, a missão de «observar, informar‑se e expressar o seu ponto de vista» em relação à negociação com vista à cessão da empresa, que era, de qualquer forma, diretamente conduzida pela gestão do Antigo Grupo Heiploeg.

    Top