Choose the experimental features you want to try

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62019CJ0609

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 10 de junho de 2021.
    BNP Paribas Personal Finance SA contra VE.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo tribunal d’instance de Lagny-sur-Marne.
    Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 93/13/CEE — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Contrato de mútuo hipotecário denominado em divisa estrangeira (franco suíço) — Artigo 4.o, n.o 2 — Objeto principal do contrato — Cláusulas que expõem o mutuário a um risco cambial — Exigências de inteligibilidade e de transparência — Artigo 3.o, n.o 1 — Desequilíbrio significativo — Artigo 5.o — Redação clara e compreensível de uma cláusula contratual.
    Processo C-609/19.

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2021:469

     ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

    10 de junho de 2021 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Proteção dos consumidores — Diretiva 93/13/CEE — Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Contrato de mútuo hipotecário denominado em divisa estrangeira (franco suíço) — Artigo 4.o, n.o 2 — Objeto principal do contrato — Cláusulas que expõem o mutuário a um risco cambial — Exigências de inteligibilidade e de transparência — Artigo 3.o, n.o 1 — Desequilíbrio significativo — Artigo 5.o — Redação clara e compreensível de uma cláusula contratual»

    No processo C‑609/19,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo tribunal d’instance de Lagny‑sur‑Marne [Tribunal de Primeira Instância (Juiz Singular) de Lagny‑sur‑Marne, França], por Decisão de 2 de agosto de 2019, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 13 de agosto de 2019, no processo

    BNP Paribas Personal Finance SA

    contra

    VE,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

    composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Primeira Secção, C. Toader, M. Safjan e. N. Jääskinen (relator), juízes,

    advogado‑geral: J. Kokott,

    secretário: V. Giacobbo, administradora,

    vistos os autos e após a audiência de 28 de outubro de 2020,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação da BNP Paribas Personal Finance SA, por P. Metais e P. Spinosi, avocats,

    em representação de VE, por C. Constantin‑Vallet e M. Le Bot, avocats,

    em representação do Governo francês, por A.‑L. Desjonquères e E. Toutain, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

    em representação da Comissão Europeia, por C. Valero, N. Ruiz García e M. Van Hoof, na qualidade de agentes,

    vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 3.o e 4.o da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO 1993, L 95, p. 29).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a BNP Paribas Personal Finance SA a VE a respeito do caráter pretensamente abusivo das cláusulas constantes do contrato de mútuo hipotecário denominado em divisa estrangeira celebrado entre estas duas partes no processo principal, que estipulam, nomeadamente, que os pagamentos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros e preveem, a fim de pagar o saldo da conta, o prolongamento da duração desse contrato e o aumento do montante das mensalidades.

    Quadro jurídico

    3

    Nos termos do décimo sexto considerando da Diretiva 93/13:

    «Considerando que a apreciação, segundo os critérios gerais estabelecidos, do caráter abusivo das cláusulas, nomeadamente nas atividades profissionais de caráter público que forneçam serviços coletivos que tenham em conta a solidariedade entre os utentes, necessita de ser completada por um instrumento de avaliação global dos diversos interesses implicados; que tal consiste na exigência de boa‑fé; que, na apreciação da boa‑fé, é necessário dar especial atenção à força das posições de negociação das partes, à questão de saber se o consumidor foi de alguma forma incentivado a manifestar o seu acordo com a cláusula e se os bens ou serviços foram vendidos ou fornecidos por especial encomenda do consumidor; que a exigência de boa‑fé pode ser satisfeita pelo profissional, tratando de forma leal e equitativa com a outra parte, cujos legítimos interesses deve ter em conta».

    4

    O artigo 1.o, n.o 2, desta diretiva prevê:

    «As disposições da presente diretiva não se aplicam às cláusulas contratuais decorrentes de disposições legislativas ou regulamentares imperativas, bem como das disposições ou dos princípios previstos nas convenções internacionais de que os Estados‑Membros ou a [União Europeia] sejam parte, nomeadamente no domínio dos transportes.»

    5

    O artigo 3.o da referida diretiva tem a seguinte redação:

    «1.   Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.

    2.   Considera‑se que uma cláusula não foi objeto de negociação individual sempre que a mesma tenha sido redigida previamente e, consequentemente, o consumidor não tenha podido influir no seu conteúdo, em especial no âmbito de um contrato de adesão.

    […]»

    6

    Nos termos do artigo 4.o da mesma diretiva:

    «1.   Sem prejuízo do artigo 7.o, o caráter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objeto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.

    2.   A avaliação do caráter abusivo das cláusulas não incide nem sobre a definição do objeto principal do contrato nem sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível.»

    7

    O artigo 5.o da Diretiva 93/13 prevê:

    «No caso dos contratos em que as cláusulas propostas ao consumidor estejam, na totalidade ou em parte, consignadas por escrito, essas cláusulas deverão ser sempre redigidas de forma clara e compreensível. Em caso de dúvida sobre o significado de uma cláusula, prevalecerá a interpretação mais favorável ao consumidor. […]»

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    8

    Por escritura notarial de 10 de março de 2009, VE e a sua mulher adquiriram um bem imóvel e subscreveram, para esse efeito, junto da BNP Paribas Personal Finance um contrato de mútuo hipotecário denominado em divisa estrangeira e conhecido como «Helvet Immo».

    9

    Este contrato previa a subscrição de um mútuo à taxa de 4,95 %, reembolsável, em princípio, em 276 datas fixas, denominado em francos suíços e reembolsável em euros. No dia da celebração do referido contrato, o montante desse mútuo ascendia a 143421,53 euros, ou seja, a 216566,51 francos suíços.

    10

    Resulta da decisão de reenvio que esse mesmo contrato previa o reembolso das mensalidades em datas fixas em euros e a conversão destas em francos suíços a fim de contribuir para o pagamento dos juros e para a amortização do capital. As despesas associadas ao crédito, como o seguro, eram faturadas em euros.

    11

    Mais especificamente, o contrato em causa no processo principal incluía cláusulas contratuais segundo as quais:

    a duração do crédito seria prorrogada por cinco anos e os pagamentos previstos em euros seriam prioritariamente imputados aos juros quando a evolução das paridades aumentasse o custo do crédito para o mutuário;

    se a manutenção do montante dos pagamentos em euros não permitisse regularizar a totalidade do saldo da conta sobre o período residual inicial acrescido de cinco anos, o montante das mensalidades seria aumentado.

    12

    Na sequência de mensalidades não pagas, foi determinado o vencimento antecipado e o juiz de execução do tribunal de grande instance de Libourne (Tribunal de Primeira Instância de Libourne, França) ordenou, em 16 de janeiro de 2015, a venda coerciva do bem imóvel em questão.

    13

    Por requerimento de 12 de janeiro de 2017, a BNP Paribas Personal Finance apresentou ao órgão jurisdicional de reenvio um pedido de autorização para penhorar as remunerações de VE. Esta instituição bancária pediu nomeadamente a autorização para proceder à penhora das remunerações de VE quanto à quantia de 234182,61 euros, ou seja, 185695,26 euros a título do montante principal e 48487,35 euros a título de juros, despesas e encargos acessórios.

    14

    Nesse órgão jurisdicional, a BNP Paribas Personal Finance alega que os pedidos através dos quais VE sustenta que determinadas cláusulas do contrato de mútuo em causa no processo principal têm caráter abusivo são inadmissíveis, na medida em que prescreveram, e, em todo o caso, improcedentes. Esta instituição bancária sustenta, nomeadamente, que VE foi informado da variação da taxa de câmbio e das suas consequências na amortização do empréstimo em causa no processo principal.

    15

    VE considera ter sido enganado pela BNP Paribas Personal Finance no que respeita à natureza do contrato de mútuo em causa no processo principal, uma vez que este contrato o expôs a um risco cambial não limitado. Mais especificamente, VE pede que seja declarada a nulidade desse contrato, bem como o indeferimento do requerimento dessa instituição bancária com vista à penhora das suas remunerações. Subsidiariamente, sustenta que o montante do crédito deve ser reduzido em razão do caráter abusivo de uma cláusula de indexação implícita, das cláusulas relativas às moedas de conta e de pagamento, da cláusula de amortização e da cláusula de opção de compra contidas no referido contrato, bem como da falta de menção, nesse mesmo contrato, de um «risco cambial».

    16

    O órgão jurisdicional de reenvio salienta que o contrato de mútuo em causa no processo principal inclui várias cláusulas que fazem parte de um mecanismo de conversão de divisas, que levam a que o risco cambial seja integrado nas mensalidades pagas pelo consumidor. Estas cláusulas referem‑se às regras de imputação dos pagamentos nos juros, ao funcionamento das contas em francos suíços (moeda de conta) e em euros (moeda de pagamento), bem como à prorrogação do empréstimo por um período de cinco anos.

    17

    Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a margem de apreciação de que dispõe quanto à análise das cláusulas do contrato de mútuo em causa no processo principal. Esse órgão jurisdicional questiona‑se, em especial, sobre se devem ser consideradas um todo indivisível que constitui o objeto principal desse contrato, não podendo, como tal, ser qualificadas de abusivas, uma vez que são claras e compreensíveis, ou, inversamente, se há que considerar que essas cláusulas podem ser individualmente consideradas abusivas, com exceção, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, da cláusula que prevê o reembolso do empréstimo em divisa estrangeira.

    18

    Quanto aos elementos de apreciação do caráter claro e compreensível de uma cláusula do contrato, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que VE recebeu uma quantidade significativa de informações antes da subscrição do mútuo em causa no processo principal, sublinhando, em especial, o caráter estável da paridade entre o euro e o franco suíço. O risco cambial, que decorre da aplicação conjugada de várias cláusulas do contrato de mútuo em causa no processo principal, não é de modo algum mencionado nesse contrato.

    19

    Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio precisa que a legislação e a jurisprudência nacionais convidam o juiz a considerar a proposta de mútuo objetivamente, tomando, por exemplo, como referência as simulações quantificadas que demonstram a consequência de uma evolução das paridades entre o euro e as divisas estrangeiras no custo do mútuo em causa. Neste âmbito, esse órgão jurisdicional questiona‑se sobre o alcance do conceito de «transparência», conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, e sobre as informações que devem ser transmitidas a um mutuário que desconhece as previsões económicas que podem ter repercussões na evolução das referidas paridades e nos riscos que lhe estão associados. A este respeito, coloca‑se também a questão da apreciação da boa‑fé do profissional à luz da sua experiência quanto à análise de certas evoluções previsíveis.

    20

    Nestas circunstâncias, o tribunal d’instance de Lagny‑sur‑Marne [Tribunal de Primeira Instância (Juiz Singular) de Lagny‑sur‑Marne, França] decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    Deve o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 ser interpretado no sentido de que constituem o objeto principal de um empréstimo expresso em moeda estrangeira e reembolsável em moeda nacional, sem que possam ser consideradas isoladamente, as cláusulas que preveem reembolsos em datas fixas imputados prioritariamente aos juros e que preveem o prolongamento da duração do contrato e o aumento das prestações para pagar o saldo da conta, sendo que este saldo pode aumentar significativamente em consequência das flutuações cambiais?

    2)

    Deve o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 ser interpretado no sentido de que as cláusulas que determinam pagamentos em datas fixas imputados prioritariamente aos juros e que preveem o prolongamento da duração do contrato e o aumento das prestações para pagar o saldo da conta, podendo este aumentar significativamente devido às flutuações cambiais, criam um desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes no contrato, em especial ao exporem o consumidor a um risco cambial desproporcionado?

    3)

    Deve o artigo 4.o da Diretiva 93/13 ser interpretado no sentido de que exige que o caráter claro e compreensível das cláusulas de um contrato de empréstimo expresso em moeda estrangeira e reembolsável em moeda nacional seja apreciado [com] referência ao momento da celebração do contrato, em função do contexto económico previsível, neste caso as consequências das dificuldades económicas de 2007 a 2009 sobre as flutuações cambiais, tendo em conta a competência e os conhecimentos do mutuante profissional e a sua boa‑fé?

    4)

    Deve o artigo 4.o da Diretiva 93/13 ser interpretado no sentido de que exige que o caráter claro e compreensível das cláusulas de um contrato de empréstimo expresso em moeda estrangeira e reembolsável em moeda nacional seja apreciado verificando que o mutuante, que tem competência e conhecimentos profissionais, forneceu ao consumidor informações, nomeadamente numéricas, que sejam unicamente objetivas e abstratas e que não tinham em conta o contexto económico suscetível de influenciar as variações das taxas de câmbio?»

    Quanto às questões prejudiciais

    Quanto à primeira questão

    21

    Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «objeto principal do contrato», na aceção desta disposição, abrange as cláusulas do contrato de mútuo que estipulam que os reembolsos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros e preveem, a fim de pagar o saldo da conta, o prolongamento da duração desse contrato e o aumento do montante das mensalidades.

    22

    A BNP Paribas Personal Finance sustenta que, por força do artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 93/13, a cláusula que estipula que os pagamentos em datas fixas são imputados prioritariamente aos juros não pode estar sujeita às disposições dessa diretiva. Esta cláusula reflete, na realidade, as disposições do artigo 1343.o‑1 do code civil (Código Civil) francês e aplica‑se às partes supletivamente, ou seja, na falta de acordo diferente entre elas.

    23

    Ora, quando um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro é chamado a conhecer de um litígio relativo a uma cláusula contratual pretensamente abusiva que reflete uma disposição de direito nacional de natureza supletiva, está obrigado a examinar prioritariamente a incidência da exclusão do âmbito de aplicação da Diretiva 93/13 prevista no artigo 1.o, n.o 2, dessa diretiva, e não a incidência da exceção à apreciação do caráter abusivo de cláusulas contratuais prevista no artigo 4.o, n.o 2, da referida diretiva (Despacho de 14 de abril de 2021, Credit Europe Ipotecar IFN e o., C‑364/19, EU:C:2021:306, n.o 42).

    24

    O artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 exclui do âmbito de aplicação da mesma as cláusulas contratuais decorrentes de «disposições legislativas ou regulamentares imperativas».

    25

    A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que esta expressão abrange não só as disposições de direito nacional que se aplicam de maneira imperativa entre as partes contratantes independentemente da sua escolha mas também as que são de natureza supletiva, ou seja, as que se aplicam supletivamente, na falta de acordo diferente entre as partes (v., neste sentido, Acórdãos de 26 de março de 2020, Mikrokasa e Revenue Niestandaryzowany Sekurytyzacyjny Fundusz Inwestycyjny Zamknięty, C‑779/18, EU:C:2020:236, n.os 50 a 53, e de 9 de julho de 2020, Banca Transilvania, C‑81/19, EU:C:2020:532, n.os 23 a 25 e 28).

    26

    Daqui resulta que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, prioritariamente, antes de examinar a incidência da exceção à apreciação do caráter abusivo de cláusulas contratuais prevista no artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13, se a cláusula que estipula que os pagamentos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros está excluída do âmbito de aplicação da Diretiva 93/13 por força do seu artigo 1.o, n.o 2.

    27

    Feita esta precisão, há que salientar, no que respeita ao conceito de «objeto principal do contrato», na aceção do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13, sobre a qual incide a primeira questão, que, em conformidade com esta disposição, a avaliação do caráter abusivo das cláusulas de um contrato não incide nem sobre a definição do objeto principal desse contrato nem sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas estejam redigidas de maneira clara e compreensível. O juiz só pode, portanto, fiscalizar o caráter abusivo de uma cláusula, que incide sobre a definição do objeto principal do contrato, se essa cláusula não for clara e compreensível.

    28

    A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 estabelece uma exceção ao mecanismo de fiscalização substancial das cláusulas abusivas, conforme previsto no âmbito do sistema de proteção dos consumidores instituído por esta diretiva, e que, consequentemente, esta disposição deve ser objeto de interpretação estrita (Acórdão de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C‑186/16, EU:C:2017:703, n.o 34 e jurisprudência referida).

    29

    No que respeita à categoria das cláusulas contratuais abrangidas pelo conceito de «objeto principal do contrato», na aceção do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13, o Tribunal de Justiça também declarou que essas cláusulas devem ser entendidas como as que fixam as prestações essenciais desse contrato e que, como tais, o caracterizam. Em contrapartida, as cláusulas que revestem caráter acessório relativamente às que definem a própria essência da relação contratual não podem integrar o referido conceito (Acórdão de 3 de outubro de 2019, Kiss e CIB Bank, C‑621/17, EU:C:2019:820, n.o 32 e jurisprudência referida).

    30

    Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio examinar, tendo em conta a natureza, a sistemática geral e as estipulações do contrato de mútuo em causa no processo principal, bem como o contexto jurídico e factual em que este contrato se inscreve, se as cláusulas referidas na primeira questão constituem um elemento essencial da prestação do devedor que consiste no reembolso do montante disponibilizado pelo mutuante (v., neste sentido, Acórdão de 3 de outubro de 2019, Kiss e CIB Bank, C‑621/17, EU:C:2019:820, n.o 33 e jurisprudência referida).

    31

    Dito isto, incumbe, porém, ao Tribunal de Justiça extrair do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 os critérios aplicáveis a um tal exame (v., neste sentido, Acórdão de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C‑186/16, EU:C:2017:703, n.o 33).

    32

    A este respeito, no que se refere aos contratos de mútuo denominados em divisa estrangeira e reembolsáveis em divisa nacional, o Tribunal de Justiça precisou que a exclusão da apreciação do caráter abusivo das cláusulas relativas à adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, não se pode aplicar a cláusulas que se limitam a determinar, com vista ao cálculo dos reembolsos, a taxa de câmbio da divisa estrangeira em que o contrato de mútuo está denominado, sem que, no entanto, seja prestado qualquer serviço de câmbio pelo mutuante quando do referido cálculo, e, portanto, não comportam uma «remuneração» cuja adequação, enquanto contrapartida de uma prestação efetuada pelo mutuante, não pode ser objeto de uma apreciação do seu caráter abusivo ao abrigo do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 (Acórdão de 30 de abril de 2014, Kásler e Káslerné Rábai, C‑26/13, EU:C:2014:282, n.o 58).

    33

    No entanto, o Tribunal de Justiça precisou igualmente, sem todavia limitar esta constatação apenas aos contratos de mútuo denominados em divisa estrangeira e reembolsáveis nessa mesma divisa, que as cláusulas do contrato relativas ao risco cambial definem o objeto principal desse contrato (v., designadamente, Acórdãos de 20 de setembro de 2018, OTP Bank e OTP Faktoring, C‑51/17, EU:C:2018:750, n.o 68 e jurisprudência referida, e de 14 de março de 2019, Dunai, C‑118/17, EU:C:2019:207, n.o 48).

    34

    No caso em apreço, as cláusulas do contrato de mútuo em causa no processo principal, que fazem parte de um mecanismo de conversão de divisas, levam a que o risco cambial seja integrado nas mensalidades pagas pelo mutuário. As cláusulas referidas na primeira questão têm por objeto as regras de imputação dos pagamentos aos juros, o funcionamento das contas em francos suíços (moeda de conta) e em euros (moeda de pagamento), bem como a prorrogação do empréstimo por um período de cinco anos.

    35

    A este respeito, importa observar que, num contrato de crédito, o mutuante obriga‑se, principalmente, a disponibilizar ao mutuário um determinado montante em dinheiro, obrigando‑se este, por sua vez, principalmente a reembolsar, regra geral com juros, esse montante nas datas de vencimento previstas. As prestações essenciais desse contrato referem‑se, assim, a um montante em dinheiro que deve ser definido com referência às moedas de pagamento e de reembolso nele estipuladas. Por consequência, o facto de um crédito dever ser reembolsado numa determinada moeda refere‑se, em princípio, não a uma modalidade acessória de pagamento, mas sim à própria natureza da obrigação do devedor, constituindo assim um elemento essencial de um contrato de mútuo (Acórdão de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C‑186/16, EU:C:2017:703, n.o 38).

    36

    Embora as cláusulas contratuais referidas na primeira questão façam parte do mecanismo financeiro que expressa o risco cambial que caracteriza um mútuo denominado em divisa estrangeira e reembolsável em divisa nacional, não estão diretamente relacionadas com o montante mutuado ou com os juros do mútuo a reembolsar, nem com a fixação da moeda de conta e de pagamento. Com efeito, estas cláusulas regem as consequências da alteração de paridade, especificando as regras de reembolso aplicáveis em função das variações da taxa de câmbio, de modo que podem ser consideradas modalidades acessórias de pagamento que não fazem parte do «objeto principal do contrato», na aceção do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13.

    37

    No entanto, resulta dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio que as cláusulas relativas às condições de reembolso do empréstimo em causa no processo principal materializam o risco cambial decorrente das variações da paridade entre a moeda de conta e a moeda de pagamento, bem como a taxa de juro que lhe está associada, que caracteriza esse mútuo.

    38

    Cabe, portanto, ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, tendo em conta os critérios enunciados nos n.os 32 a 37 do presente acórdão, se as cláusulas do contrato em causa no processo principal, que estipulam que os reembolsos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros e preveem, a fim de pagar o saldo da conta, o prolongamento da duração desse contrato e o aumento do montante das mensalidades, e que materializam, assim, o risco cambial, dizem respeito à própria natureza da obrigação do devedor de reembolsar o montante posto à sua disposição pelo mutuante.

    39

    Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que as cláusulas do contrato de mútuo que estipulam que os reembolsos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros e preveem, a fim de pagar o saldo da conta, o prolongamento da duração desse contrato e o aumento do montante das mensalidades estão abrangidas por esta disposição no caso de essas cláusulas fixarem um elemento essencial que caracteriza o referido contrato.

    Quanto à terceira e quarta questões

    40

    Com a terceira e quarta questões, que devem ser examinadas em conjunto e previamente à segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito de um contrato de mútuo denominado em divisa estrangeira, a exigência de transparência das cláusulas desse contrato que estipulam que os pagamentos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros e preveem, a fim de pagar o saldo da conta, o prolongamento da duração do referido contrato e o aumento do montante das mensalidades é satisfeita quando o profissional fornece ao consumidor informações objetivas e abstratas relativas à incidência nas obrigações financeiras desse consumidor de qualquer valorização ou desvalorização do euro em relação à divisa estrangeira, sem que, todavia, esse profissional comunique ao consumidor informações sobre o contexto económico que pode ter repercussões nas variações das taxas de câmbio.

    41

    Segundo jurisprudência constante relativa à exigência de transparência, a informação, antes da celebração de um contrato, sobre as condições contratuais e as consequências da referida celebração é de importância fundamental para um consumidor. É, nomeadamente, com base nesta informação que este último decide se deseja vincular‑se contratualmente a um profissional aderindo às condições redigidas previamente por este (Acórdão de 3 de março de 2020, Gómez del Moral Guasch, C‑125/18, EU:C:2020:138, n.o 49 e jurisprudência referida).

    42

    Daqui resulta que a exigência de transparência das cláusulas contratuais, conforme decorre do artigo 4.o, n.o 2, e do artigo 5.o da Diretiva 93/13, não pode ficar reduzida apenas ao caráter compreensível das mesmas nos planos formal e gramatical. Dado que o sistema de proteção instituído por esta diretiva assenta na ideia de que o consumidor se encontra numa situação de inferioridade face ao profissional no que respeita, designadamente, ao nível de informação, esta exigência de redação clara e compreensível das cláusulas contratuais e, portanto, de transparência, imposta pela referida diretiva, deve ser entendida de maneira extensiva (Acórdão de 3 de março de 2020, Gómez del Moral Guasch, C‑125/18, EU:C:2020:138, n.o 50 e jurisprudência referida).

    43

    Consequentemente, a referida exigência deve ser entendida no sentido de que impõe não só que a cláusula em causa seja inteligível para o consumidor nos planos formal e gramatical mas também que um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado esteja em condições de compreender o funcionamento concreto dessa cláusula e avaliar assim, com base em critérios precisos e inteligíveis, as consequências económicas, potencialmente significativas, dessa cláusula sobre as suas obrigações financeiras (Acórdão de 3 de março de 2020, Gómez del Moral Guasch, C‑125/18, EU:C:2020:138, n.o 51 e jurisprudência referida).

    44

    Isto implica, nomeadamente, que o contrato deve expor com transparência o funcionamento concreto do mecanismo a que a cláusula em questão se reporta e, sendo caso disso, a relação entre esse mecanismo e o estabelecido noutras cláusulas, de modo que esse consumidor possa avaliar, com base em critérios precisos e inteligíveis, as consequências económicas que para ele daí decorrem (v., neste sentido, Acórdão de 27 de janeiro de 2021, Dexia Nederland, C‑229/19 e C‑289/19, EU:C:2021:68, n.o 50 e jurisprudência referida).

    45

    A questão de saber se, no caso em apreço, a exigência de transparência foi respeitada deve ser examinada pelo órgão jurisdicional de reenvio à luz de todos os elementos de facto pertinentes, de entre os quais constam a publicidade e a informação fornecidas, no âmbito da negociação do contrato de mútuo em causa no processo principal, não apenas pelo próprio mutuante mas também por qualquer outra pessoa que tenha participado, em nome desse profissional, na comercialização dos mútuos em questão.

    46

    Mais concretamente, incumbe ao juiz nacional, quando considera todas as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato de mútuo, verificar se, no processo em causa, foram comunicados ao consumidor todos os elementos suscetíveis de ter incidência no alcance do seu compromisso que lhe permitam avaliar, designadamente, o custo total do seu empréstimo. Nesta apreciação, têm um papel decisivo, por um lado, a questão de saber se as cláusulas desse contrato estão redigidas de maneira clara e compreensível, de modo que permitam a um consumidor médio, conforme descrito no n.o 43 do presente acórdão, avaliar esse custo, e, por outro, a circunstância ligada à falta de menção, no contrato de crédito, de informações consideradas essenciais, tendo em conta a natureza dos bens ou dos serviços objeto desse contrato (v., neste sentido, Acórdão de 3 de março de 2020, Gómez del Moral Guasch, C‑125/18, EU:C:2020:138, n.o 52 e jurisprudência referida).

    47

    No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que VE recebeu uma quantidade significativa de informações antes da subscrição do mútuo em causa no processo principal. Precisa, todavia, que essas informações se basearam na hipótese de a paridade euro/franco suíço permanecer estável. Todavia, o risco cambial não foi de todo mencionado.

    48

    No que respeita aos contratos de mútuo denominados em divisa estrangeira, como o que está em causa no processo principal, há que constatar, em primeiro lugar, que é pertinente, para efeitos da referida apreciação, qualquer informação fornecida pelo profissional que vise esclarecer o consumidor sobre o funcionamento do mecanismo de câmbio e o risco que lhe está associado. Constituem elementos de particular importância as precisões relativas aos riscos incorridos pelo mutuário no caso de uma depreciação significativa da moeda com curso legal no Estado‑Membro em que este está domiciliado e de um aumento da taxa de juro estrangeira.

    49

    A este respeito, conforme recordou o Comité Europeu do Risco Sistémico na sua Recomendação CERS/2011/1, de 21 de setembro de 2011, relativa aos empréstimos em moeda estrangeira (JO 2011, C 342, p. 1), as instituições financeiras devem prestar aos mutuários informações suficientes que os habilitem a tomar decisões prudentes e fundamentadas, e incluir, no mínimo, o impacto nas prestações de uma forte depreciação da moeda com curso legal no Estado‑Membro de domicílio do mutuário e de um aumento na taxa de juro referente a esses empréstimos (Recomendação A — Sensibilização dos mutuários para o risco, ponto 1) (Acórdão de 20 de setembro de 2018, OTP Bank e OTP Faktoring, C‑51/17, EU:C:2018:750, n.o 74 e jurisprudência referida).

    50

    O Tribunal de Justiça salientou, em específico, que o mutuário deve ser claramente informado do facto de que, ao subscrever um contrato de mútuo denominado numa divisa estrangeira, se expõe a um risco cambial que, eventualmente, poderá ser‑lhe difícil assumir economicamente em caso de desvalorização da moeda em que recebe os seus rendimentos. Além disso, o profissional deve expor as possíveis variações das taxas de câmbio e os riscos inerentes à celebração desse contrato (v., neste sentido, Acórdão de 20 de setembro de 2018, OTP Bank e OTP Faktoring, C‑51/17, EU:C:2018:750, n.o 75 e jurisprudência referida).

    51

    Daqui decorre que, a fim de respeitar a exigência de transparência, as informações comunicadas pelo profissional devem poder permitir a um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado não só compreender que, em função das variações da taxa de câmbio, a evolução da paridade entre a moeda de conta e a moeda de pagamento pode acarretar consequências desfavoráveis face às suas obrigações financeiras mas também compreender, no âmbito da subscrição de um mútuo denominado em divisa estrangeira, o risco real a que se expõe, durante toda a vigência do contrato, na hipótese de uma desvalorização significativa da moeda em que recebe os seus rendimentos relativamente à moeda de conta.

    52

    Neste contexto, há que precisar que as simulações quantificadas, às quais o órgão jurisdicional de reenvio faz referência, podem constituir um elemento de informação útil, se se basearem em dados suficientes e exatos, e se incluírem apreciações objetivas que sejam comunicadas de maneira clara e compreensível ao consumidor. Só nestas condições poderão essas simulações permitir ao profissional chamar a atenção desse consumidor para o risco das consequências económicas negativas, potencialmente significativas, das cláusulas contratuais em causa. Ora, como qualquer outra informação relativa ao alcance do compromisso do consumidor, comunicada pelo profissional, as simulações quantificadas devem contribuir para a compreensão, por esse consumidor, do alcance real do risco, a longo prazo, associado às possíveis variações das taxas de câmbio e, assim, dos riscos inerentes à celebração de um contrato de mútuo denominado em divisa estrangeira.

    53

    Assim, no âmbito de um contrato de mútuo denominado em divisa estrangeira que expõe o consumidor a um risco cambial, não pode satisfazer a exigência de transparência a comunicação a esse consumidor de informações, mesmo numerosas, se estas se basearem na hipótese de que a paridade entre a moeda de conta e a moeda de pagamento permanecerá estável ao longo de toda a vigência desse contrato. É esse o caso, nomeadamente, quando o consumidor não foi avisado pelo profissional do contexto económico suscetível de ter repercussões nas variações das taxas cambiais, de modo que não foi dada ao consumidor a possibilidade de compreender concretamente as consequências potencialmente graves, que podem decorrer da subscrição de um mútuo denominado em divisa estrangeira, na sua situação financeira.

    54

    Em segundo lugar, consta igualmente de entre os elementos pertinentes, para efeitos da apreciação mencionada no n.o 46 do presente acórdão, a linguagem utilizada pela instituição financeira nos documentos pré‑contratuais e contratuais. Em especial, a inexistência de termos ou explicações que alertem o mutuário, de forma explícita, para a existência de riscos específicos associados aos contratos de mútuo denominados em divisa estrangeira pode confirmar que a exigência de transparência, conforme resulta, nomeadamente, do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13, não está satisfeita.

    55

    Em terceiro e último lugar, importa recordar que a constatação do caráter desleal de uma prática comercial, sobre o qual as partes no processo principal argumentaram na audiência no Tribunal de Justiça, pode igualmente constituir um elemento, entre outros, em que o juiz nacional pode basear a sua apreciação do caráter abusivo das cláusulas constantes de um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor (v., neste sentido, Acórdão de 15 de março de 2012, Pereničová e Perenič, C‑453/10, EU:C:2012:144, n.o 43).

    56

    Contudo, este elemento não pode demonstrar automaticamente e por si só que a exigência de transparência que decorre do artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 não está satisfeita, uma vez que esta questão deve ser examinada em função de todas as circunstâncias próprias do caso concreto (v., neste sentido, Acórdão de 15 de março de 2012, Pereničová e Perenič, C‑453/10, EU:C:2012:144, n.o 44 e jurisprudência referida).

    57

    Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à terceira e quarta questões que o artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito de um contrato de mútuo denominado em divisa estrangeira, a exigência de transparência das cláusulas desse contrato que estipulam que os pagamentos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros e preveem, a fim de pagar o saldo da conta, o prolongamento da duração do referido contrato e o aumento do montante das mensalidades é satisfeita quando o profissional fornece ao consumidor informações suficientes e exatas que permitem a um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, compreender o funcionamento concreto do mecanismo financeiro em causa e avaliar assim o risco das consequências económicas negativas, potencialmente significativas, dessas cláusulas sobre as suas obrigações financeiras durante toda a vigência desse mesmo contrato.

    Quanto à segunda questão

    58

    Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que as cláusulas de um contrato de mútuo que estipulam que os pagamentos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros e preveem, a fim de pagar o saldo da conta, que pode aumentar de forma significativa na sequência das variações da paridade entre a moeda de conta e a moeda de pagamento, o prolongamento da duração desse contrato e o aumento do montante das mensalidades criam um desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do referido contrato em detrimento do consumidor, uma vez que essas cláusulas expõem o consumidor a um risco cambial desproporcionado.

    59

    Antes de mais, importa recordar que, nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13, uma cláusula não negociada de um contrato celebrado entre um consumidor e um profissional é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa‑fé, dá origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor entre os direitos e obrigações das partes decorrentes desse contrato.

    60

    Cumpre igualmente precisar que, segundo jurisprudência constante, a competência do Tribunal de Justiça abrange a interpretação dos critérios que o juiz nacional pode ou deve aplicar no exame de uma cláusula contratual à luz das disposições desta diretiva, nomeadamente na apreciação do caráter eventualmente abusivo de uma cláusula na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da referida diretiva, precisando‑se que cabe a esse juiz pronunciar‑se sobre a qualificação concreta de uma cláusula contratual específica em função das circunstâncias próprias do caso concreto. Daqui resulta que o Tribunal de Justiça se deve limitar a fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio as indicações que este deve ter em conta para apreciar o caráter abusivo da cláusula em causa (v., neste sentido, Acórdão de 3 de setembro de 2020, Profi Credit Polska, C‑84/19, C‑222/19 e C‑252/19, EU:C:2020:631, n.o 91 e jurisprudência referida).

    61

    No que respeita à apreciação do caráter abusivo de uma cláusula contratual, incumbe ao juiz nacional determinar, tomando em consideração os critérios enunciados no artigo 3.o, n.o 1, e no artigo 5.o da Diretiva 93/13, se, atendendo às circunstâncias específicas do caso concreto, essa cláusula respeita as exigências de boa‑fé, de equilíbrio e de transparência impostas por esta diretiva (v., designadamente, Acórdão de 7 de novembro de 2019, Profi Credit Polska, C‑419/18 e C‑483/18, EU:C:2019:930, n.o 53 e jurisprudência referida).

    62

    Assim, o caráter transparente de uma cláusula contratual, conforme exigido no artigo 5.o da Diretiva 93/13, constitui um dos elementos a ter em conta no âmbito da apreciação do caráter abusivo dessa cláusula que cabe ao juiz nacional efetuar nos termos do artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva (Acórdão de 3 de outubro de 2019, Kiss e CIB Bank, C‑621/17, EU:C:2019:820, n.o 49 e jurisprudência referida).

    63

    No caso em apreço, as cláusulas contratuais em causa no processo principal, inseridas num contrato de mútuo denominado em moeda estrangeira, estipulam que os pagamentos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros e preveem, a fim de pagar o saldo da conta, que pode aumentar de forma significativa na sequência das variações da paridade entre a moeda de conta e a moeda de pagamento, o prolongamento da duração desse contrato e o aumento do montante das mensalidades. Estas cláusulas fazem assim recair o risco cambial, em caso de desvalorização significativa da moeda nacional em relação à divisa estrangeira, sobre o consumidor.

    64

    A este respeito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, no âmbito de um contrato de mútuo denominado em divisa estrangeira, como o que está em causa no processo principal, o juiz nacional deve apreciar, tendo em conta todas as circunstâncias do processo principal e, nomeadamente, a experiência e os conhecimentos do profissional no que respeita às possíveis variações das taxas de câmbio e aos riscos inerentes à subscrição de um mútuo denominado em divisa estrangeira, num primeiro momento, o possível incumprimento da exigência de boa‑fé e, num segundo momento, a existência de um eventual desequilíbrio significativo, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 (v., neste sentido, Acórdão de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C‑186/16, EU:C:2017:703, n.o 56).

    65

    No que respeita à exigência de boa‑fé, importa salientar, como resulta do décimo sexto considerando da Diretiva 93/13, que, no âmbito desta apreciação, há que ter em conta, nomeadamente, a força das posições de negociação das partes e a questão de saber se o consumidor foi de alguma forma incentivado a manifestar o seu acordo à cláusula em questão.

    66

    Tratando‑se da questão de saber se uma cláusula dá origem, a despeito da exigência de boa‑fé, a um desequilíbrio significativo, em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes no contrato decorrentes deste, o juiz nacional deve verificar se o profissional, ao negociar de forma leal e equitativa com o consumidor, podia razoavelmente esperar que este aceitasse essa cláusula, na sequência da negociação individual (v., designadamente, Acórdão de 3 de setembro de 2020, Profi Credit Polska, C‑84/19, C‑222/19 e C‑252/19, EU:C:2020:631, n.o 93 e jurisprudência referida).

    67

    Por conseguinte, para apreciar se as cláusulas de um contrato, como as que estão em causa no processo principal, dão origem a um desequilíbrio significativo, em detrimento do consumidor, entre os direitos e as obrigações das partes no contrato de mútuo que contém essas cláusulas, há que ter em conta todas as circunstâncias de que o mutuante profissional podia ter conhecimento no momento da celebração desse contrato, tendo em conta, nomeadamente, a sua experiência, no que respeita às possíveis variações das taxas de câmbio e aos riscos inerentes à subscrição desse mútuo e que eram suscetíveis de ter repercussões no cumprimento posterior do contrato e na situação jurídica do consumidor.

    68

    Tendo em conta os conhecimentos do profissional que incidem sobre o contexto económico previsível que pode ter repercussões nas variações das taxas de câmbio, os meios superiores desse profissional para antecipar o risco cambial, que pode materializar‑se a qualquer momento durante a vigência do contrato, bem como o risco considerável relativo às variações das taxas de câmbio que as cláusulas contratuais como as que estão em causa no processo principal fazem recair sobre o consumidor, há que considerar que essas cláusulas podem dar origem a um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes decorrentes do contrato de mútuo em questão em detrimento do consumidor.

    69

    Com efeito, sem prejuízo das verificações que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar, as cláusulas contratuais em causa no processo principal parecem fazer recair sobre o consumidor, na medida em que o profissional não respeitou a exigência de transparência para com esse consumidor, um risco desproporcionado em relação às prestações e ao montante do mútuo recebidos, uma vez que a aplicação dessas cláusulas tem como consequência dever o consumidor suportar o custo da evolução das taxas de câmbio a prazo. Em função desta evolução, esse consumidor pode encontrar‑se numa situação em que, por um lado, o montante do capital restante devido em moeda de pagamento, no caso em apreço, em euros, é consideravelmente mais elevado do que o montante inicialmente mutuado e, por outro, as mensalidades pagas cobriram quase exclusivamente os juros. É o que acontece, nomeadamente, quando este aumento do capital em dívida em divisa nacional não é equilibrado pela diferença entre a taxa de juro da divisa estrangeira e a da divisa nacional, precisando‑se que a existência dessa diferença constitui a vantagem principal de um mútuo denominado em divisa estrangeira para o mutuário.

    70

    Nestas condições, tendo em conta, nomeadamente, a exigência de transparência que decorre do artigo 5.o da Diretiva 93/13, não se pode considerar que o profissional podia razoavelmente esperar que, negociando de forma transparente com o consumidor, este último aceitaria essas cláusulas na sequência de uma negociação individual (v., por analogia, Acórdão de 3 de setembro de 2020, Profi Credit Polska, C‑84/19, C‑222/19 e C‑252/19, EU:C:2020:631, n.o 96), o que, não obstante, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

    71

    Tendo em conta o que precede, há que responder à segunda questão que o artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que as cláusulas de um contrato de mútuo que estipulam que os pagamentos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros e preveem, a fim de pagar o saldo da conta, que pode aumentar de forma significativa na sequência das variações da paridade entre a moeda de conta e a moeda de pagamento, o prolongamento da duração desse contrato e o aumento do montante das mensalidades são suscetíveis de criar um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes decorrentes do referido contrato em detrimento do consumidor, uma vez que o profissional não podia razoavelmente esperar que, cumprindo a exigência de transparência em relação ao consumidor, este aceitasse, na sequência de uma negociação individual, um risco cambial desproporcionado resultante dessas cláusulas.

    Quanto às despesas

    72

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

     

    1)

    O artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, deve ser interpretado no sentido de que as cláusulas do contrato de mútuo que estipulam que os reembolsos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros e preveem, a fim de pagar o saldo da conta, o prolongamento da duração desse contrato e o aumento do montante das mensalidades estão abrangidas por esta disposição no caso de essas cláusulas fixarem um elemento essencial que caracteriza o referido contrato.

     

    2)

    O artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito de um contrato de mútuo denominado em divisa estrangeira, a exigência de transparência das cláusulas desse contrato que estipulam que os pagamentos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros e preveem, a fim de pagar o saldo da conta, o prolongamento da duração do referido contrato e o aumento do montante das mensalidades é satisfeita quando o profissional fornece ao consumidor informações suficientes e exatas que permitem a um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, compreender o funcionamento concreto do mecanismo financeiro em causa e avaliar assim o risco das consequências económicas negativas, potencialmente significativas, dessas cláusulas sobre as suas obrigações financeiras durante toda a vigência desse mesmo contrato.

     

    3)

    O artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 93/13 deve ser interpretado no sentido de que as cláusulas de um contrato de mútuo que estipulam que os pagamentos em datas fixas são prioritariamente imputados aos juros e preveem, a fim de pagar o saldo da conta, que pode aumentar de forma significativa na sequência das variações da paridade entre a moeda de conta e a moeda de pagamento, o prolongamento da duração desse contrato e o aumento do montante das mensalidades são suscetíveis de criar um desequilíbrio significativo entre os direitos e as obrigações das partes decorrentes do referido contrato em detrimento do consumidor, uma vez que o profissional não podia razoavelmente esperar que, cumprindo a exigência de transparência em relação ao consumidor, este aceitasse, na sequência de uma negociação individual, um risco cambial desproporcionado resultante dessas cláusulas.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: francês.

    Top