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Document 62019CC0393

Conclusões do advogado-geral M. Campos Sánchez-Bordona apresentadas em 25 de junho de 2020.
Processo penal contra OM.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Apelativen sad – Plovdiv.
Reenvio prejudicial — Artigo 17.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito de propriedade — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais — Direito a um recurso efetivo — Decisão‑Quadro 2005/212/JAI — Perda de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime — Diretiva 2014/42/UE — Congelamento e perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia — Regulamentação nacional que prevê a perda a favor do Estado do bem utilizado na prática da infração de contrabando aduaneiro — Bem pertencente a um terceiro de boa‑fé.
Processo C-393/19.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2020:491

 CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MANUEL CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 25 de junho de 2020 ( 1 )

Processo C‑393/19

Okrazhna prokuratura — Haskovo,

Apelativna prokuratura — Plovdiv

contra

OM

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Apelativen sad — Plovdiv (Tribunal de Recurso de Plovdiv, Bulgária)]

«Reenvio prejudicial — Artigo 17.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Direito de propriedade — Legislação nacional que prevê a perda a favor do Estado de um veículo utilizado na prática de um crime de contrabando — Veículo que pertence a um terceiro de boa‑fé — Decisão‑Quadro 2005/212/JAI — Artigo 2.o, n.o 1 — Diretiva 2014/42/UE — Artigo 6.o»

1.

O condutor de um camião de transporte internacional que viajava da Turquia para a Alemanha, depois de ter sido detido na Bulgária quando escondia nesse veículo um tesouro numismático, foi acusado e condenado neste último país pela prática de um crime de contrabando. Na sequência dessa condenação, foi determinada a perda, entre outros bens, do veículo motorizado do camião, cuja empresa proprietária, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, «não sabia, não devia nem podia saber que o seu empregado estava a cometer um crime».

2.

Esse órgão jurisdicional questiona‑se sobre a incidência de dois artigos da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») nas normas nacionais aplicadas ao caso. Em particular, tem dúvidas quanto à compatibilidade dessas normas:

com o artigo 17.o, n.o 1, da Carta, na medida em que o Código Penal búlgaro determina a perda dos meios de transporte utilizados para cometer um crime de contrabando, ainda que pertençam a um terceiro de boa‑fé.

com o artigo 47.o da Carta, na medida em que o terceiro de boa‑fé, proprietário do bem perdido, não pode fazer valer a sua posição perante o tribunal que decreta a perda, segundo a legislação processual búlgara.

3.

Por indicação do Tribunal de Justiça, limitar‑me‑ei a analisar a primeira dessas questões.

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União

1. Carta

4.

Nos termos do seu artigo 17.o, n.o 1:

«Todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, exceto por razões de utilidade pública, nos casos de condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil. A utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral.»

2. Decisão‑Quadro 2005/212/JAI ( 2 )

5.

O artigo 1.o («Definições») estabelece:

«Para efeitos da presente decisão‑quadro, entende‑se por:

[…]

“instrumentos”, quaisquer bens utilizados ou que se destinem a ser utilizados, seja de que maneira for, no todo ou em parte, para cometer uma ou várias infrações penais,

“perda”, uma sanção ou medida, decretada por um tribunal em consequência de um processo relativo a uma ou várias infrações penais, que conduza à privação definitiva de um bem,

[…]»

6.

O artigo 2.o («Perda») prevê:

«1.   Cada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias que o habilitem a declarar perdidos, no todo ou em parte, os instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa da liberdade por período superior a um ano, ou bens de valor equivalente a esses produtos.

2.   Quando se trate de infração fiscal, os Estados‑Membros podem utilizar processos não penais para destituir o autor da infração dos produtos desta.»

7.

O artigo 4.o («Vias de recurso») estabelece:

«Cada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias para assegurar que as partes interessadas afetadas pelas medidas previstas nos artigos 2.o e 3.o disponham de vias de recurso eficazes para defenderem os seus direitos.»

3. Diretiva 2014/42/UE ( 3 )

8.

O artigo 2.o («Definições») enuncia:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

3)

“Instrumentos”: quaisquer bens utilizados ou que se destinem a ser utilizados, seja de que maneira for, no todo ou em parte, para cometer uma ou várias infrações penais;

4)

“Perda”: a privação definitiva de um bem, decretada por um tribunal relativamente a uma infração penal;

[…]»

9.

O artigo 4.o («Perda») prevê:

«1.   Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda, total ou parcial, dos instrumentos e produtos ou dos bens cujo valor corresponda a tais instrumentos ou produtos, sob reserva de uma condenação definitiva por uma infração penal, que também pode resultar de processo à revelia.

2.   Se não for possível a perda com base no n.o 1, e pelo menos se tal impossibilidade resultar de doença ou de fuga do suspeito ou arguido, os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda dos instrumentos ou produtos nos casos em que foi instaurado processo penal por uma infração penal que possa ocasionar direta ou indiretamente um benefício económico, e em que tal processo possa conduzir a uma condenação penal se o suspeito ou arguido tivesse podido comparecer em juízo.»

10.

O artigo 5.o («Perda alargada») prevê:

«1.   Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda, total ou parcial, dos bens pertencentes a pessoas condenadas por uma infração penal que possa ocasionar direta ou indiretamente um benefício económico, caso um tribunal, com base nas circunstâncias do caso, inclusive em factos concretos e provas disponíveis, como as de que o valor dos bens é desproporcionado em relação ao rendimento legítimo da pessoa condenada, conclua que os bens em causa provêm de comportamento criminoso.

2.   Para efeitos do n.o 1 do presente artigo, o conceito de “infração penal” inclui pelo menos os seguintes elementos:

[…]

b)

As infrações relativas à participação em organização criminosa, conforme disposto no artigo 2.o da Decisão‑Quadro 2008/841/JAI, pelo menos nos casos em que a infração ocasionou um benefício económico;

[…]

e)

As infrações penais puníveis nos termos de um dos atos aplicáveis indicados no artigo 3.o ou, se esse ato não estabelecer um limiar, nos termos do direito nacional aplicável, por uma pena privativa da liberdade cujo máximo não pode ser inferior a quatro anos.»

11.

Nos termos do artigo 6.o («Perda de bens de terceiros»):

«1.   Os Estados‑Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda dos produtos ou dos bens cujo valor corresponda a produtos que, direta ou indiretamente, foram transferidos para terceiros por um suspeito ou arguido, ou que foram adquiridos por terceiros a um suspeito ou arguido, pelo menos nos casos em que o terceiro sabia ou devia saber que a transferência ou a aquisição teve por objetivo evitar a perda, com base em circunstâncias e factos concretos, nomeadamente o facto de a transferência ou aquisição ter sido feita a título gracioso ou em troca de um montante substancialmente inferior ao do valor de mercado.

2.   O n.o 1 deve ser interpretado de forma a não prejudicar os direitos de terceiros de boa‑fé.»

4.   Direito búlgaro. Nakazatelen kodeks ( 4 )

12.

O artigo 53.o, n.o 1, prevê:

«(1)   Independentemente da responsabilidade penal, serão perdidos a favor do Estado:

a)

Os bens pertencentes ao autor do crime destinados a serem utilizados ou que tenham sido utilizados para cometer um crime doloso […];

b)

Os bens pertencentes ao autor do crime que tenham sido objeto de um crime doloso, na medida em que esteja expressamente previsto na parte especial do Código Penal.

(2)   Serão igualmente perdidos a favor do Estado:

a)

Os bens, objeto ou instrumento da infração penal, cuja posse esteja proibida, e

b)

Os produtos obtidos direta ou indiretamente através de uma infração penal, caso não devam ser reembolsados ou restituídos. Se os produtos obtidos direta ou indiretamente tiverem desaparecido ou tiverem sido cedidos, será apreendido um montante correspondente ao seu valor.»

13.

O artigo 242.o, n.o 8, determina a perda a favor do Estado do meio utilizado para transportar os bens contrabandeados, mesmo que não seja propriedade do autor do crime, a menos que o seu valor não corresponda claramente à gravidade do crime.

II. Matéria de facto (segundo o despacho de reenvio) e questão prejudicial

14.

OM trabalhava para uma sociedade turca de transporte internacional de mercadorias, à qual pertence um camião com reboque que este conduzia numa deslocação prevista por vários países da União.

15.

No início de junho de 2018, um desconhecido contactou OM e sugeriu‑lhe que, mediante remuneração, contrabandeasse 2940 moedas antigas ( 5 ) para a Alemanha, aproveitando a viagem que tinha de fazer desde a cidade turca de Istambul até à cidade alemã de Delmenhorst.

16.

OM concordou e, depois de receber as moedas, colocou‑as num espaço destinado a bagagem, ferramentas e outros acessórios que, de série, se encontra debaixo do assento do condutor, onde as camuflou entre diferentes objetos.

17.

Na manhã de 12 de junho de 2018, OM atravessou o posto fronteiriço turco «Kapakule» e entrou no território da República da Bulgária através do posto fronteiriço «Kapitan Andreevo». Nesse posto, o camião foi inspecionado e os serviços aduaneiros descobriram as moedas.

18.

As moedas antigas, o veículo, o reboque, a chave de ignição e o livrete foram apreendidos.

19.

Na fase de instrução do processo, o gerente da empresa proprietária do veículo solicitou a entrega do veículo e do reboque. O pedido foi indeferido, primeiro, pelo Ministério Público e, posteriormente, após propositura de uma ação, por um Despacho do Okrazhen sad — Haskovo (Tribunal de Primeira Instância de Haskovo, Bulgária), de 19 de outubro de 2018.

20.

Por Sentença de 22 de março de 2019 do referido órgão jurisdicional, OM foi condenado a uma pena de prisão de três anos e a uma pena acessória de multa de 20000 leva búlgaros (BGN) como autor de um crime de contrabando agravado de um tesouro numismático cujo valor preenche o critério «em grandes quantidades» do artigo 242.o, n.o 1, alínea e), do NK.

21.

De acordo com o artigo 242.o, n.o 7, do NK, as moedas apreendidas foram perdidas a favor do Estado. Nos termos do artigo 242.o, n.o 8, do NK, o veículo que serviu de meio de transporte das moedas foi igualmente perdido a favor do Estado. O reboque, que não estava diretamente relacionado com o transporte, foi devolvido ao seu proprietário.

22.

OM recorreu da sentença para o Apelativen sad — Plovdiv (Tribunal de Recurso de Plovdiv, Bulgária), na parte relativa à perda do veículo.

23.

O órgão jurisdicional de reenvio esclarece que a perda não é uma sanção e que, nos termos do artigo 242.o, n.o 8, do NK, é obrigatoriamente declarada em relação aos bens utilizados na prática de um crime de contrabando.

24.

Apesar da cobertura legal da perda assim declarada, o referido órgão jurisdicional tem dúvidas quanto à compatibilidade desse artigo do NK, promulgado antes da adesão da Bulgária à União Europeia, com o artigo 17.o, n.o 1, da Carta.

25.

Em especial, considera que a perda a favor do Estado do meio de transporte utilizado como instrumento para praticar um crime de contrabando, quando o seu proprietário não tenha participado no crime, pode provocar um desequilíbrio entre o interesse de um proprietário que desconhece a prática do crime e o interesse do Estado na apreensão dos instrumentos da infração penal.

26.

Além disso, assinala que a legislação nacional não prevê que o proprietário do meio de transporte seja ouvido no processo conducente à perda, o que pode comprometer a sua compatibilidade com o artigo 47.o da Carta e com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva.

27.

Neste sentido, o Apelativen sad — Plovdiv (Tribunal de Recurso de Plovdiv) submete ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 17.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ser interpretado no sentido de que, por perturbar o equilíbrio entre o interesse geral e a necessidade de proteção do direito de propriedade, é ilegal uma disposição nacional como o artigo 242.o, n.o 8, do Nakazatelen kodeks (Código Penal) (a seguir “NK”) da República da Bulgária, segundo a qual é perdido a favor do Estado um meio de transporte utilizado para contrabando agravado pertencente a um terceiro que não sabia, não devia nem podia saber que o seu empregado estava a cometer um crime?

2)

Deve o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ser interpretado no sentido de que é ilegal uma disposição nacional como o artigo 242.o, n.o 8, do NK, segundo a qual um meio de transporte, propriedade de uma pessoa diferente da pessoa que cometeu o crime, pode ser declarado perdido sem que seja garantido ao proprietário um acesso direto à justiça para apresentar a sua posição?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

28.

O despacho de reenvio prejudicial deu entrada no Tribunal de Justiça em 21 de maio de 2019.

29.

A Procuradoria de Haskovo, a Procuradoria de Plovdiv, o Governo grego e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas.

IV. Apreciação

A.   Quanto à admissibilidade

30.

O órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se os artigos 17.o, n.o 1, e 47.o da Carta se opõem a uma norma nacional (o artigo 242.o, n.o 8, do NK) que permite a perda dos bens utilizados para praticar um crime de contrabando, ainda que pertençam a um terceiro que nele não tenha participado.

31.

Tendo a Carta como destinatários os Estados‑Membros «apenas quando apliquem o direito da União» (artigo 51.o), a referência isolada a um dos seus artigos não é suficiente para fundamentar uma questão prejudicial se não existir um vínculo com outras disposições de direito da União.

32.

É verdade, contudo, que o despacho de reenvio menciona o considerando 33 da Diretiva 2014/42. Esta diretiva relaciona‑se com os factos que são objeto do litígio, na medida em que: a) estabelece regras mínimas em relação à perda dos instrumentos do crime e b) prevê que se instaurem vias de recurso judicial para proteger os direitos de terceiros.

33.

Todavia, é duvidoso que a Diretiva 2014/42 seja aplicável ao presente caso, considerando as infrações penais previstas na Convenção, nas decisões‑quadro e nas diretivas que figuram na lista exaustiva do seu artigo 3.o A menos que o contrabando de moedas aqui em questão pudesse ser abrangido por alguma dessas infrações (por exemplo, pelas infrações abrangidas pela Decisão‑Quadro 2008/841/JAI) ( 6 ), os factos relatados ficariam fora do seu âmbito de aplicação.

34.

De qualquer modo, o Tribunal de Justiça pode fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio elementos de interpretação do direito da União que aquele não tenha mencionado no seu despacho de reenvio ( 7 ). O Tribunal de Justiça assim procedeu, recentemente, em resposta a outro pedido de decisão prejudicial ( 8 ), em que um órgão jurisdicional búlgaro o questionava sobre a interpretação da Diretiva 2014/42. O Tribunal de Justiça optou, nesse caso, por lhe fornecer a interpretação da Decisão‑Quadro 2005/212, dado que a Diretiva 2014/42 não era aplicável ( 9 ).

35.

A Decisão‑Quadro 2005/212 foi substituída, em parte, pela Diretiva 2014/212, embora essa alteração não tenha afetado os seus artigos 2.o, 4.o e 5.o, que se mantêm em vigor ( 10 ). Como esclarece a Comissão, a limitação do âmbito de aplicação da Diretiva 2014/42 é a razão pela qual algumas das disposições da Decisão‑Quadro 2005/212 não foram substituídas por aquela.

36.

Ora, nos termos da Decisão‑Quadro 2005/212 (artigo 2.o, n.o 1), «cada Estado‑Membro tomará as medidas necessárias que o habilitem a declarar perdidos, no todo ou em parte, os instrumentos e produtos de infrações penais puníveis com pena privativa da liberdade por período superior a um ano […]».

37.

Diferentemente do critério da Diretiva 2014/42, que restringe o seu âmbito de aplicação do modo acima exposto, a Decisão‑Quadro 2005/212 é aplicável aos crimes de contrabando praticados na Bulgária, uma vez que o NK os sanciona com uma pena de prisão de três a dez anos.

38.

Considero, em suma, que a Decisão‑Quadro 2005/212 deve ser interpretada neste caso para dissipar as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio ( 11 ). Ao mesmo tempo, a sua aplicabilidade permite identificar uma ligação direta, «de um certo grau, que ultrapassa a mera proximidade das matérias em causa ou das incidências indiretas de uma matéria na outra» ( 12 ), com uma norma de direito derivado e, por conseguinte, abre caminho à invocação da Carta.

B.   Quanto ao mérito

39.

O tribunal a quo esclarece que a empresa proprietária do veículo (motorizado do camião) «não sabia, não devia nem podia conhecer que o seu empregado estava a cometer um crime». Trata‑se, por conseguinte, de um terceiro de boa‑fé, privado de um bem de que é proprietário sem ter participado na prática do crime. Só o autor material da infração é que utilizou esse meio de transporte como instrumento para a prática do crime de contrabando do tesouro numismático.

40.

Para determinar se um proprietário nesta situação pode invocar a seu favor o artigo 17.o, n.o 1, da Carta, há que ter em conta, em primeiro lugar, o conteúdo da Decisão‑Quadro 2005/212.

41.

O artigo 1.o, quarto travessão, dessa decisão‑quadro define a perda como «uma sanção ou medida, decretada por um tribunal, em consequência de um processo relativo a uma ou várias infrações penais, que conduza à privação definitiva de um bem».

42.

Este preceito não alude à titularidade dos bens que são perdidos. Não exclui, em princípio, a possibilidade de pertencerem a um terceiro, diferente do autor ou de outros sujeitos implicados no crime.

43.

Algumas passagens da Decisão‑Quadro 2005/212 servem para precisar o âmbito subjetivo da perda:

o artigo 2.o, n.o 2, prevê que se destitui «o autor [das infrações fiscais] dos produtos desta».

o artigo 3.o, n.o 1, alude a «declarar perdidos […] os bens de uma pessoa condenada por ilícito».

este mesmo artigo 3.o, n.o 3, refere‑se à perda de «bens adquiridos pelos próximos da pessoa em questão e bens cuja propriedade tenha sido transferida para uma pessoa coletiva em relação à qual a pessoa em questão — agindo individualmente ou conjuntamente com os seus próximos — disponha de uma influência de controlo», direto ou indireto.

por último, o considerando 3 adverte que «as disposições nacionais em matéria de apreensão e perda dos produtos do crime devem ser melhoradas e aproximadas, quando necessário, tendo em conta os direitos de terceiros de boa‑fé».

44.

A Decisão‑Quadro 2005/212 oferecia, assim, base suficiente para sustentar que a perda deve recair, em princípio, sobre os bens pertencentes ao autor da infração, mas admitia, em simultâneo, a possibilidade de a estender aos bens de terceiros.

45.

Esses terceiros podem encontrar‑se em situações muito díspares. Seria incauto ignorar que, em muitos casos, os autores materiais (pessoas implicadas, suspeitos ou arguidos) das infrações penais procuram interpor um terceiro com o objetivo de evitar, precisamente, a perda dos seus bens ( 13 ).

46.

Pode, portanto, acontecer que os terceiros, embora não sendo autores materiais da infração,

tenham tido algum grau de intervenção na mesma ou na sua preparação, por exemplo, como instigadores, cúmplices ou encobridores;

fossem proprietários de bens cuja posse é ilegal, tais como armas proibidas, estupefacientes ou outros bens destinados, em especial, a praticar crimes e utilizados nestes;

tenham adquirido os bens com conhecimento da sua origem ilícita, justamente para evitar a sua perda.

47.

Nestas hipóteses (e porventura em outras análogas), nada obstaria à perda dos bens apreendidos, ainda que pertencentes a pessoas diferentes do autor material do crime.

48.

O quadro muda de figura quando se trata dos terceiros de boa‑fé, cujo regime exige uma análise específica.

1. Direitos do terceiro de boa‑fé face à perda dos seus bens

49.

A tutela (processual e substantiva) dos direitos do terceiro de boa‑fé estava presente no espírito do legislador da União, tal como reflete o considerando 3 da Decisão‑Quadro 2005/212 e a Diretiva 2014/42.

50.

Essa tutela diz respeito quer ao direito (substantivo) de propriedade, consagrado no artigo 17.o da Carta, quer ao direito (processual) de defendê‑lo em juízo, nos termos do artigo 47.o da Carta. Contudo, só abordarei o primeiro ( 14 ).

51.

Embora não sejam aplicáveis ao presente caso, as disposições da Diretiva 2014/42 sobre terceiros de boa‑fé podem ser atendidas para efeitos de interpretação da Decisão‑Quadro 2005/212, na medida em que ambas obedecem aos mesmos desígnios, latentes nesta última.

52.

O considerando 33 da Diretiva 2014/42 reconhece que «afeta consideravelmente os direitos das pessoas, não só os direitos dos suspeitos ou arguidos, mas também os de terceiros que não sejam sujeitos processuais». Esses terceiros gozam de um «direito a ser ouvido[s] [quando] aleguem ser proprietários dos bens em causa ou titulares de outros direitos de propriedade (direitos reais ou ius in re)».

53.

Em linha com este considerando, a Diretiva 2014/42 dedica uma disposição (o artigo 6.o) à perda dos bens de terceiros, nos termos da qual:

o n.o 1 se refere a bens «cujo valor corresponda a produtos que, direta ou indiretamente, foram transferidos para terceiros por um suspeito ou arguido, ou que foram adquiridos por terceiros a um suspeito ou arguido […]» ( 15 ).

o n.o 2 prevê que são ressalvados os «direitos de terceiros de boa‑fé».

54.

Esta regulamentação veio substituir o artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2005/212. Embora este último artigo já não esteja em vigor, seria errado, a meu ver, concluir que a possibilidade de perda de bens de terceiros desapareceu no contexto da Decisão‑Quadro 2005/212.

55.

Considero, pelo contrário, que o tratamento conferido à perda de bens de terceiros na Diretiva 2014/42, ainda que se destaque formalmente da regulamentação contida na Decisão‑Quadro 2005/212, pode ajudar na compreensão do alcance desta última ( 16 ).

56.

Por conseguinte, nada impede que o artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212 seja interpretado no sentido de permitir a perda de bens de terceiros, exceto quando estes estejam de boa‑fé.

57.

Tendo isto em consideração, as dimensões do direito de propriedade tuteladas pelo artigo 17.o, n.o 1, da Carta foram recompiladas no Acórdão de maio de 2019 ( 17 ), no qual o Tribunal de Justiça:

reconhece que a proteção conferida por este artigo não é absoluta, admitindo privações de propriedade sempre que forem justificadas por razões de utilidade pública. Para esse efeito, é necessário atender ao artigo 52.o, n.o 1, da Carta ( 18 ).

declara que «uma leitura conjugada dos artigos 17.o, n.o 1, e 52.o, n.o 1, da Carta leva a considerar, por um lado, que, quando uma razão de utilidade pública é invocada para justificar uma privação de propriedade, é à luz dessa razão e dos objetivos de interesse geral que esta representa que se deve assegurar a observância do princípio da proporcionalidade previsto no artigo 52.o, n.o 1, da Carta».

sustenta que «tal leitura implica que, caso não exista uma razão de utilidade pública suscetível de justificar uma privação de propriedade, ou, admitindo que esteja demonstrada essa razão de utilidade pública, esta não cumpra os requisitos previstos no artigo 17.o, n.o 1, segundo período, da Carta, o direito de propriedade garantido por esta disposição é violado» ( 19 ).

58.

À luz do exposto, considero que, em regra, não haverá lugar à perda dos bens que, pertencendo a terceiros de boa‑fé, tenham sido utilizados como instrumento do crime.

59.

Todavia, tal regra poderá ceder, por razões de utilidade pública, perante uma norma nacional que prossiga objetivos legítimos de interesse geral, desde que seja adequada e proporcional ( 20 ). Além disso, é imprescindível que a privação de propriedade seja compensada mediante o pagamento de uma indemnização em tempo razoável ( 21 ).

60.

De qualquer modo, considero oportuno fazer uma reflexão adicional sobre o conceito de boa‑fé neste contexto. Reconheço tratar‑se de um domínio eminentemente casuístico, competindo ao tribunal a quo avaliar se houve ou não boa‑fé (neste caso, ele confirma que esta existiu com os termos vigorosos acima reproduzidos) ( 22 ). O que pretendo afirmar é que não basta a ausência de dolo: a negligência culposa também pode afastar a boa‑fé em determinadas circunstâncias.

61.

Dificilmente se poderia considerar de boa‑fé, por exemplo, a conduta de um terceiro que, embora desconhecendo que o veículo que cede a outrem se destina à prática de um crime de contrabando (ou de tráfico de estupefacientes), acaba por cedê‑lo, quando era razoável presumir que o cessionário se dedicava habitualmente a este tipo de atividades.

2. Privação dos meios de transporte do terceiro de boa‑fé no direito nacional

62.

A extensão da perda aos meios de transporte (automóveis, embarcações e aeronaves) utilizados na prática do crime é algo que, em princípio, compete à legislação de cada Estado ( 23 ). Da perspetiva da Decisão‑Quadro 2005/212, não há qualquer objeção à inclusão desses meios de transporte nos instrumentos utilizados na tentativa ou na prática da infração penal.

63.

O órgão jurisdicional de reenvio dá por assente que o artigo 242.o, n.o 8, do NK se aplica ao presente caso, pelo que cabe declarar perdido a favor do Estado o veículo motorizado do camião, ainda que seja propriedade de um terceiro de boa‑fé.

64.

Esse mesmo órgão jurisdicional recorda que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (a seguir «TEDH») declarou, num Acórdão de 2015 ( 24 ), que uma perda decretada na Bulgária ao abrigo daquele preceito violava o artigo 1.o do Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo conteúdo corresponde ao do artigo 17.o, n.o 1, da Carta (direito de propriedade).

65.

A Procuradoria de Plovdiv, que invoca nas suas observações o referido acórdão, cita, em apoio da sua tese sobre a validade da perda, outro acórdão posterior do TEDH ( 25 ), relativo a uma perda decretada na Bulgária com base no artigo 233.o, n.o 6 (anterior n.o 3), da Zakon za mitnitsite (Lei Aduaneira) ( 26 ), cuja redação, afirma, é semelhante, no que respeita ao domínio aduaneiro, à do artigo 242.o, n.o 8, do NK ( 27 ).

66.

Em bom rigor, a pertinência de ambos os acórdãos para inspirar (em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, da Carta) a resposta do Tribunal de Justiça à primeira questão prejudicial é limitada:

no que respeita ao Acórdão Atanasov, o TEDH não chegou certamente a declarar que a aplicação do artigo 233.o, n.o 3, da Lei Aduaneira violava o direito de propriedade, por considerar justificada a ingerência nesse direito, uma vez que A. Atanasov tinha cometido uma infração aduaneira ( 28 ).

no que respeita ao Acórdão Ünsped, cujo quadro factual é semelhante ao do caso em apreço (perda de um camião que transportava estupefacientes, com base no artigo 242.o, n.o 8, do NK, sem que o seu proprietário tivesse participado no crime), o TEDH, após ter analisado os princípios gerais relativos à proteção do direito de propriedade, deu primazia aos aspetos de índole processual ( 29 ).

67.

Segundo o Acórdão Ünsped, as autoridades nacionais deveriam ter examinado naquele caso o grau de culpa ou de diligência do proprietário em relação ao bem perdido ou, pelo menos, a relação entre o comportamento adotado e o crime ( 30 ). Ao não fazê‑lo e, sobretudo, ao não conferir ao proprietário a possibilidade de contestar a perda dos seus bens, decorrente do processo penal, foi violado o direito tutelado pelo artigo 1.o do Protocolo n.o 1 ( 31 ).

68.

Uma vez que os aspetos processuais deste reenvio são tratados na segunda questão prejudicial, o debate relativo à primeira deverá incidir sobre a questão de saber se a perda dos meios de transporte utilizados para o contrabando, quando pertençam a um terceiro de boa‑fé, goza de uma justificação suficiente e proporcionada.

69.

No despacho de reenvio não são feitas referências a essa eventual justificação e o Governo búlgaro não interveio no incidente prejudicial para sustentá‑la. Os procuradores do Ministério Público búlgaros que apresentaram observações nesse incidente aludiram a essa justificação. Além disso, invocaram outros argumentos a favor da posição que sustentaram no processo penal perante os órgãos jurisdicionais de primeira instância e de recurso.

70.

De entre tais argumentos (apresentados, em especial, pela Procuradoria de Plovdiv), considero, com base numa primeira análise, inadmissível o que defende a validade da perda pelo facto de o artigo 242.o, n.o 8, do NK ser uma norma suficientemente acessível, precisa, previsível e que prossegue um fim de interesse geral. O que o órgão jurisdicional de reenvio questiona é, justamente, a compatibilidade daquele preceito legal, tal como o interpreta, com o direito da União.

71.

Também não é aceitável argumentar, em defesa da norma aplicada, que a mesma acautela compromissos internacionais da Bulgária e que a perda é uma forma de aquisição (e correspetiva perda) ex lege da propriedade, alheia à competência da União.

72.

A este respeito, limitar‑me‑ei a recordar que a Decisão‑Quadro 2005/212 foi adotada no âmbito das competências da União e que o respeito do direito de propriedade faz parte do artigo 17.o da Carta, aplicável aos Estados nos termos anteriormente expostos. Os compromissos internacionais referidos não exigem a perda dos bens de terceiros de boa‑fé.

73.

No que respeita ao argumento de que a Lei Búlgara Relativa às Obrigações e aos Contratos admite que a sociedade proprietária do veículo possa intentar uma ação de indemnização contra o condutor pelos prejuízos resultantes da perda (pelo que não sofre propriamente uma privação dos seus direitos, já que pode lançar mão de uma ação judicial para exigir do condenado o ressarcimento correspondente), basta remeter para o Acórdão Comissão/Hungria (Direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas), no qual o Tribunal de Justiça adotou um raciocínio semelhante ( 32 ).

74.

Retomando, por conseguinte, a questão da justificação da medida, a perda tende, pela sua natureza, a frustrar o estímulo patrimonial do autor da infração, privando‑o de todos os bens, instrumentos e efeitos do crime. Essa justificação, aliada à luta contra a criminalidade, não procede, em regra, se os bens apreendidos pertencerem a um terceiro de boa‑fé.

75.

Segundo a Procuradoria de Haskovo, a supressão desta consequência legalmente consagrada incentivaria a criminalidade organizada a utilizar meios de transporte alheios na prática do crime de contrabando. A resposta a esta (legítima) preocupação deve ser encontrada na análise dos vínculos entre os proprietários daqueles meios de transportes e os autores do crime, tornando inclusive mais rigorosos os critérios de apreciação da boa‑fé de tais proprietários ( 33 ).

76.

Se a lei nacional optasse por impor, em termos absolutos, a perda dos meios de transporte utilizados, quando os seus proprietários tivessem efetivamente agido de boa‑fé (ou mesmo quando eles próprios tivessem sido privados do seu veículo: pense‑se no caso da pessoa a quem foi roubado o seu automóvel para depois ser utilizado na prática do crime de contrabando), estaria a recorrer a um expediente jurídico inadequado para expropriar aqueles bens.

77.

Transformar, em tais circunstâncias, a perda numa privação forçada da propriedade, exigiria um fundamento suficiente que a justificasse e, em última análise, a ativação da garantia de indemnização prevista no artigo 17.o, n.o 1, segundo período, da Carta.

V. Conclusão

78.

À luz do exposto, sugiro que se responda à primeira questão prejudicial submetida pelo Apelativen sad — Plovdiv (Tribunal de Recurso de Plovdiv, Bulgária), nos seguintes termos:

«O artigo 2.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2005/212/JAI do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à perda de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime, conjugado com o artigo 17.o, n.o 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma disposição que permite a perda a favor do Estado de um meio de transporte utilizado para cometer um crime de contrabando agravado, quando esse meio de transporte seja propriedade de um terceiro de boa‑fé, que não sabia, não devia nem podia saber que aquele seria utilizado para praticar o crime.»


( 1 ) Língua original: espanhol.

( 2 ) Decisão‑Quadro do Conselho, de 24 de fevereiro de 2005, relativa à perda de produtos, instrumentos e bens relacionados com o crime (JO 2005, L 68, p. 49).

( 3 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia (JO 2014, L 127, p. 39).

( 4 ) Código Penal (a seguir «NK»).

( 5 ) Nas suas observações, a Procuradoria de Plovidv alude a «moedas de bronze da antiga cidade de Amisos, que datam dos séculos II e I a.C.». Segundo o despacho de reenvio, o relatório de avaliação arqueológica‑numismática demonstrou que as moedas eram autênticas e que constituíam objetos arqueológicos. Trata‑se, como acrescentava o relatório, de um achado de grande valor histórico.

( 6 ) Decisão‑Quadro do Conselho, de 24 de outubro de 2008, relativa à luta contra a criminalidade organizada (JO 2008, L 300, p. 42).

( 7 ) «No âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e Tribunal de Justiça pelo artigo 267.o TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Consequentemente, embora, no plano formal, o órgão jurisdicional de reenvio tenha limitado a sua questão à interpretação de certas disposições do direito da União, tal circunstância não obsta a que o Tribunal de Justiça lhe forneça todos os elementos de interpretação do direito da União que lhe possam ser úteis para a decisão do processo que lhe foi submetido, quer esse órgão jurisdicional lhes tenha ou não feito referência no enunciado das suas questões. A este respeito, cabe ao Tribunal de Justiça extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, os elementos do referido direito que requerem uma interpretação, tendo em conta o objeto do litígio.» Acórdão de 18 de setembro de 2019, VIPA (C‑222/18, EU:C:2019:751, n.o 50 e jurisprudência referida).

( 8 ) Acórdão de 19 de março de 2020, Agro In 2001 (C‑234/18, EU:C:2020:221, n.os 46 a 50).

( 9 ) Ibidem, n.o 47: «os atos […], conforme descritos no despacho de reenvio, não se encontram entre as infrações abrangidas pelos instrumentos jurídicos enumerados de maneira exaustiva no artigo 3.o da Diretiva 2014/42, pelo que o objeto do processo nacional […] escapa ao âmbito de aplicação material da referida diretiva.»

( 10 ) Ibidem, n.o 48.

( 11 ) O Tribunal de Justiça colocou uma pergunta às partes e aos Estados intervenientes no incidente prejudicial para que apresentassem as suas observações sobre este ponto.

( 12 ) Acórdão de 6 de março de 2014, Siragusa (C‑206/13, EU:C:2014:126, n.o 24).

( 13 ) V. considerando 24 da Diretiva 2014/42.

( 14 ) V. n.o 3 das presentes conclusões.

( 15 ) «[…] pelo menos nos casos em que o terceiro sabia ou devia saber que a transferência ou a aquisição teve por objetivo evitar a perda, com base em circunstâncias e factos concretos.» É necessário um teste triplo: i) o suspeito ou arguido deve reunir as condições para ser declarada a perda; ii) o suspeito ou arguido tem de ter transmitido os bens a um terceiro; e iii) o terceiro sabia ou devia saber que o objetivo da transferência era evitar a perda [D. Nitu, «Extended and third party confiscation in the European Union», em F. Rossi (coord.), Improving confiscation procedures in the European Union, Jovene Editore, Nápoles, 2019, p. 78].

( 16 ) O considerando 25 da Diretiva 2014/42 enuncia que «os Estados‑Membros são livres de definir a perda de bens de terceiros como uma medida subsidiária ou alternativa à perda direta, consoante seja adequado nos termos do direito nacional».

( 17 ) Acórdão de 21 de maio de 2019, Comissão/Hungria (Direitos de usufruto sobre terrenos agrícolas) (C‑235/17, EU:C:2019:432).

( 18 ) Ibidem, n.os 87 e 88.

( 19 ) Ibidem, n.o 89.

( 20 ) Ibidem, n.o 94: «as razões justificativas suscetíveis de ser invocadas por um Estado‑Membro devem ser acompanhadas das provas apropriadas ou de uma análise da adequação e da proporcionalidade da medida restritiva adotada por esse Estado, bem como dos elementos precisos que permitam sustentar a sua argumentação».

( 21 ) Ibidem, n.o 126: «[…] uma legislação nacional que opera uma privação de propriedade deve prever, de forma clara e precisa, que essa privação dá direito a uma indemnização, bem como as respetivas condições».

( 22 ) V. n.os 1 e 39 das presentes conclusões.

( 23 ) Em alguns países, a perda só é determinada quando o veículo é utilizado como instrumento de um crime que, em si mesmo, implica o transporte de certos bens (por exemplo, estupefacientes escondidos no seu interior), constituindo esse veículo um elemento imprescindível da atividade criminosa.

( 24 ) Acórdão TEDH, 13 de outubro de 2015, Ünsped Paket Servisi San. VE TİC. A.Ş. c. Bulgaria (CE:ECHR:2015:1013JUD000350308) (a seguir «Acórdão Ünsped»).

( 25 ) O alegado facto consistia na importação de um veículo ao arrepio das disposições aduaneiras, o que levou à sua perda por ser considerado objeto de contrabando.

( 26 ) Lei Aduaneira, DV n.o 15, de 6 de fevereiro de 1998. Nos termos deste artigo, «independentemente da situação de propriedade, as mercadorias que sejam objeto de contrabando são perdidas. Se não forem encontradas ou tiverem sido subtraídas, é‑lhes atribuído um valor correspondente ao seu valor aduaneiro ou ao seu valor de exportação».

( 27 ) Acórdão TEDH, 7 de dezembro de 2017, Atanasov c. Bulgária (CE:ECHR:2017:1207JUD000604608) (a seguir «Acórdão Atanasov»).

( 28 ) Ibidem, n.os 38 a 49. O TEDH especifica que, naquele caso, as autoridades aduaneiras búlgaras tinham razões para concluir que o recorrente havia subtraído o veículo ao controlo aduaneiro e introduzindo‑o ilegalmente no seu território, pelo que não se pode censurar essas autoridades por terem considerado o veículo objeto de contrabando. Além disso, atende às circunstâncias profissionais do recorrente para corroborar que lhe era exigível o conhecimento das formalidades administrativas e das consequências do seu incumprimento.

( 29 ) O TEDH pondera o justo equilíbrio entre a ingerência e a concretização do fim prosseguido e, apesar de entender que este era legítimo, afirma que não se respeitou o princípio da proporcionalidade, na medida em que a legislação búlgara não oferecia ao proprietário a possibilidade de contestar de forma efetiva a perda do seu bem.

( 30 ) Acórdão Ünsped, n.o 45: «Nor did [the national courts] examine the conduct of the confiscated lorry’s owner or the relationship between the conduct of the latter and the offence. There is no evidence before this Court suggesting that the owner could or should have known of an offence being committed and the owner was clearly not given an opportunity to put its case.»

( 31 ) Ibidem, n.o 38: embora o artigo 1.o do Protocolo não preveja um requisito processual, estabeleceu‑se na jurisprudência a necessidade de ser dada às pessoas afetadas por medidas que incidam sobre a sua propriedade a oportunidade razoável de defenderem a sua posição jurídica perante as autoridades competentes.

( 32 ) Acórdão de 21 de maio de 2019 (C‑235/17, EU:C:2019:432, n.os 127 e 128). «[A] remissão para as regras gerais de direito civil […] não satisfaz as exigências que decorrem do artigo 17.o, n.o 1, da Carta. De resto, e mesmo admitindo que fosse legalmente possível a um Estado‑Membro, à luz dessa disposição, exonerar‑se face aos particulares da indemnização pela privação de propriedades na origem da qual está exclusivamente esse Estado‑Membro, não se pode deixar de observar que […] essa remissão coloca nos titulares de direitos […] o ónus de ter de proceder à cobrança, mediante processos que se podem revelar longos e dispendiosos, de eventuais indemnizações […]. Tais regras de direito civil não permitem determinar de forma simples e suficientemente precisa ou previsível se podem efetivamente ser obtidas indemnizações no termo de tais processos, nem saber, sendo caso disso, quais serão a sua natureza e montante.»

( 33 ) Tal poderia ser o caso, por exemplo, dos meios de transporte cujas características os tornam particularmente aptos para a prática de um crime de contrabando, como as embarcações com equipamentos que lhes permitem ludibriar a vigilância marítima aduaneira. Nada obstaria, nestes casos, a que se lançasse mão da presunção (iuris tantum) segundo a qual quem cede essa embarcação a um terceiro não age de boa‑fé, invertendo‑se assim o ónus da prova.

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