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Document 62018CJ0583

Acórdão do Tribunal de Justiça (Nona Secção) de 12 de março de 2020.
Verbraucherzentrale Berlin eV contra DB Vertrieb GmbH.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberlandesgericht Frankfurt am Main.
Reenvio prejudicial – Proteção dos consumidores – Diretiva 2011/83/UE – Âmbito de aplicação – Contrato de prestação de serviços – Artigo 2.o, ponto 6 – Contrato relativo a serviços de transporte de passageiros – Artigo 3.o, n.o 3, alínea k) – Cartões que conferem o direito de beneficiar de descontos no preço na celebração posterior de contratos de transporte de passageiros – Venda em linha desses cartões sem informação ao consumidor sobre o direito de retratação.
Processo C-583/18.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2020:199

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção)

12 de março de 2020 ( *1 )

«Reenvio prejudicial – Proteção dos consumidores – Diretiva 2011/83/UE – Âmbito de aplicação – Contrato de prestação de serviços – Artigo 2.o, ponto 6 – Contrato relativo a serviços de transporte de passageiros – Artigo 3.o, n.o 3, alínea k) – Cartões que conferem o direito de beneficiar de descontos no preço na celebração posterior de contratos de transporte de passageiros – Venda em linha desses cartões sem informação ao consumidor sobre o direito de retratação»

No processo C‑583/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberlandesgericht Frankfurt am Main (Tribunal Regional Superior de Frankfurt am Main, Alemanha), por Decisão de 13 de setembro de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 20 de setembro de 2018, no processo

Verbraucherzentrale Berlin eV

contra

DB Vertrieb GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Nona Secção),

composto por: D. Šváby, exercendo funções de presidente de secção, K. Jürimäe e N. Piçarra (relator), juízes,

advogado‑geral: G. Pitruzzella,

secretário: M. Krausenböck, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 24 de outubro de 2019,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Verbraucherzentrale Berlin eV, por J. Hennig e J. Christ, Rechtsanwälte,

em representação da DB Vertrieb GmbH, por B. Bräutigam, Rechtsanwalt,

em representação do Governo checo, por M. Smolek, J. Vláčil e S. Šindelková, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por B.‑R. Killmann e C. Valero, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o, ponto 6, e do artigo 3.o, n.o 3, alínea k), da Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, que altera a Diretiva 93/13/CEE do Conselho e a Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revoga a Diretiva 85/577/CEE do Conselho e a Diretiva 97/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (JO 2011, L 304, p. 64).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Verbraucherzentrale Berlin eV à DB Vertrieb GmbH a propósito das condições de comercialização em linha de um cartão que confere ao seu titular o direito de beneficiar de descontos no preço na aquisição posterior de títulos de transporte de passageiros.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 27 e 49 da Diretiva 2011/83 enunciam:

«(27)

Os serviços de transporte incluem o transporte de passageiros e o transporte de bens. O transporte de passageiros deverá ser excluído do âmbito de aplicação da presente diretiva, atendendo a que já está sujeito a outras disposições legislativas da União ou, no caso dos transportes públicos e táxis, a uma regulamentação a nível nacional. No entanto, as disposições da presente diretiva destinadas a proteger os consumidores em caso de aplicação de taxas excessivas pela utilização de meios de pagamento ou em caso de custos ocultos deverão ser igualmente aplicadas aos contratos de transporte de passageiros. No que se refere ao transporte de bens e ao aluguer de automóveis, que constituem serviços, os consumidores deverão beneficiar da proteção proporcionada pela presente diretiva, exceto no que diz respeito ao direito de retratação.

[…]

(49)

O direito de retratação deverá admitir certas exceções no que diz respeito tanto aos contratos à distância como aos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial. […] A concessão ao consumidor do direito de retratação poderá ser também inadequada em relação a certos serviços em que a celebração do contrato implica a reserva de recursos que, em caso de exercício do direito de retratação, o profissional poderá ter dificuldade em conseguir preencher. […]»

4

Nos termos do artigo 1.o desta diretiva:

«A presente diretiva tem por objeto contribuir, graças à consecução de um elevado nível de defesa dos consumidores, para o bom funcionamento do mercado interno através da aproximação de certos aspetos das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas aos contratos celebrados entre consumidores e profissionais.»

5

O artigo 2.o da referida diretiva enuncia:

«Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por:

[…]

5)

“Contrato de compra e venda”: qualquer contrato ao abrigo do qual o profissional transfere ou se compromete a transferir a propriedade dos bens para o consumidor e o consumidor paga ou se compromete a pagar o respetivo preço, incluindo qualquer contrato que tenha por objeto simultaneamente bens e serviços;

6)

“Contrato de prestação de serviços”: qualquer contrato, com exceção de um contrato de compra e venda, ao abrigo do qual o profissional presta ou se compromete a prestar um serviço ao consumidor e o consumidor paga ou se compromete a pagar o respetivo preço;

7)

“Contrato à distância”: qualquer contrato celebrado entre o profissional e o consumidor no âmbito de um sistema de vendas ou prestação de serviços organizado para o comércio à distância, sem a presença física simultânea do profissional e do consumidor, mediante a utilização exclusiva de um ou mais meios de comunicação à distância até ao momento da celebração do contrato, inclusive;

[…]»

6

O artigo 3.o da Diretiva 2011/83 dispõe:

«1.   A presente diretiva aplica‑se, nas condições e na medida prevista nas suas disposições, aos contratos celebrados entre um profissional e um consumidor. […]

[…]

3.   A presente diretiva não se aplica aos contratos:

[…]

k)

Relativos a serviços de transporte de passageiros, com exceção dos referidos no artigo 8.o, n.o 2[,] e nos artigos 19.o e 22.o;

[…]»

7

O artigo 6.o desta diretiva, com a epígrafe «Requisitos de informação dos contratos celebrados à distância e dos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial», prevê:

«1.   Antes de o consumidor ficar vinculado por um contrato à distância ou celebrado fora do estabelecimento comercial ou por uma proposta correspondente, o profissional faculta ao consumidor, de forma clara e compreensível, as seguintes informações:

[…]

h)

Sempre que exista um direito de retratação, as condições, o prazo e o procedimento de exercício desse direito nos termos do artigo 11.o, n.o 1, bem como modelo de formulário de retratação apresentado no anexo I, parte B;

[…]»

8

Nos termos do artigo 9.o, n.o 1, da referida diretiva:

«Ressalvando os casos em que se aplicam as exceções previstas no artigo 16.o, o consumidor dispõe de um prazo de 14 dias para exercer o direito de retratação do contrato celebrado à distância ou fora do estabelecimento comercial, sem necessidade de indicar qualquer motivo, e sem incorrer em quaisquer custos para além dos estabelecidos no artigo 13.o, n.o 2, e no artigo 14.o»

Direito alemão

9

Os §§ 312 e seguintes do Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil) visam transpor a Diretiva 2011/83 para o direito alemão.

10

Nos termos do artigo § 312 do Código Civil:

«(1)   O disposto nos capítulos 1 e 2 do presente subtítulo só se aplica aos contratos de consumo […] que tenham por objeto uma prestação a título oneroso fornecida pelo profissional.

(2)   De entre as disposições dos capítulos 1 e 2 do presente subtítulo, só os n.os 1, 3, 4 e 6 do § 312a são aplicáveis aos seguintes contratos:

[…]

5.

Contratos relativos a serviços de transporte de passageiros.»

11

O § 312d do Código Civil dispõe, por remissão para o artigo 246a da Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuch (Lei que aprova o Código Civil), que o profissional está obrigado, em caso de contrato à distância, designadamente, a informar o consumidor, antes de este assumir o seu compromisso contratual, sobre o direito de retratação e a disponibilizar‑lhe o modelo de formulário de retratação.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12

A DB Vertrieb, que faz parte do grupo Deutsche Bahn AG, comercializa, na qualidade de intermediária da DB Fernverkehr AG, os cartões «BahnCard 25» e «BahnCard 50». Estes permitem aos seus titulares obter descontos, de 25 % ou de 50 %, sobre o preço dos bilhetes de comboio da DB Fernverkehr. É possível encomendar em linha o «BahnCard 25». No sítio Internet da DB Vertrieb não é prestada nenhuma informação sobre o direito de retratação do consumidor.

13

A Verbraucherzentrale Berlin, uma associação de defesa dos consumidores, intentou uma ação destinada à condenação da DB Vertrieb a abster-se, no âmbito das suas atividades comerciais, de propor o referido cartão de desconto no seu sítio Internet, sem fornecer, antes do compromisso contratual do consumidor, as informações relativas ao direito de retratação que assiste a este último, e o correspondente modelo de formulário de retratação.

14

Por Decisão de 6 de julho de 2017, o órgão jurisdicional chamado a pronunciar‑se em primeira instância julgou a ação improcedente. Considerou que o contrato em causa no processo principal constitui um «contrato relativo a serviços de transporte de passageiros», na aceção do § 312, n.o 2, ponto 5, do Código Civil, que transpõe o artigo 3.o, n.o 3, alínea k), da Diretiva 2011/83. Por força destas disposições, o referido contrato estava parcialmente excluído do âmbito de aplicação desta diretiva e, nestas condições, o profissional não estava obrigado a informar o consumidor sobre o direito de retratação. Esse órgão jurisdicional salientou que a prestação de um serviço de transporte a um passageiro implica a existência de uma relação sinalagmática com o preço pago em contrapartida desse serviço, conferindo o cartão de desconto ao seu titular o direito de obter a prestação em causa a um preço reduzido.

15

Chamado a pronunciar‑se em sede de recurso, o órgão jurisdicional de reenvio, o Oberlandesgericht Frankfurt am Main (Tribunal Regional Superior de Frankfurt am Main, Alemanha) indica, desde logo, que, em seu entender, o contrato em causa no processo principal está abrangido pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2011/83, na medida em que constitui um «contrato de prestação de serviços», na aceção do artigo 2.o, ponto 6, desta última. Referindo‑se ao artigo 57.o, n.o 1, TFUE, o órgão jurisdicional de reenvio considera que estão igualmente abrangidos pela referida diretiva, tendo em conta a sua redação e a sua finalidade, os serviços prestados ao consumidor sob a forma de um compromisso ou de um direito, como o que está em causa no processo principal, que permite ao consumidor adquirir posteriormente títulos de transporte de passageiros a um preço reduzido.

16

Esse órgão jurisdicional recorda, em seguida, que o artigo 3.o, n.o 3, alínea k), da Diretiva 2011/83 exclui parcialmente os contratos relativos a serviços de transporte de passageiros do âmbito de aplicação desta diretiva, pelo facto de, como refere o seu considerando 27, esses contratos estarem sujeitos a outras disposições legislativas da União ou a uma regulamentação a nível nacional.

17

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, embora o contrato em causa no processo principal não seja diretamente relativo a um serviço de transporte de passageiros, mas constitua um «contrato‑quadro» que permite ao consumidor beneficiar de um desconto no preço na celebração posterior de contratos de transporte de passageiros, está, todavia, abrangido pelo conceito de «contratos relativos a serviços de transporte de passageiros», na aceção do artigo 3.o, n.o 3, alínea k), da Diretiva 2011/83. Com efeito, no Acórdão de 10 de março de 2005, easyCar (C‑336/03, a seguir Acórdão easyCar, EU:C:2005:150), o Tribunal de Justiça interpretou de maneira ampla o conceito de «contratos de prestação […] [de] serviços de transporte», que figura no artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 97/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 1997, relativa à proteção dos consumidores em matéria de contratos à distância (JO 1997, L 144, p. 19), revogada pela Diretiva 2011/83.

18

O órgão jurisdicional de reenvio admite que o âmbito de aplicação da Diretiva 2011/83, na parte em que se refere ao conceito de «contratos relativos a serviços de transporte de passageiros», é mais limitado. No entanto, nada indica que o legislador da União tenha pretendido restringir o âmbito de aplicação do artigo 3.o, n.o 3, alínea k), desta diretiva, à luz do âmbito de aplicação do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 97/7, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça no Acórdão easyCar.

19

Por último, o órgão jurisdicional de reenvio considera que o facto de as condições relativas ao cartão de desconto em causa no processo principal figurarem na tabela tarifária e serem objeto, em conformidade com o § 12, n.o 2, primeiro período, da Allgemeines Eisenbahngesetz (Lei Geral relativa aos Caminhos de Ferro), de controlo por parte da autoridade de supervisão competente enquanto parte integrante das condições gerais de transporte, milita no sentido de uma exclusão do contrato em causa no processo principal do âmbito de aplicação da Diretiva 2011/83, em conformidade com o seu artigo 3.o, n.o 3, alínea k). Este tipo de contrato é, portanto, regulado pelo direito nacional. Ora, segundo o considerando 27 da Diretiva 2011/83, o transporte de passageiros deverá ser excluído do âmbito de aplicação desta última, na medida em que já esteja sujeito, no caso dos transportes públicos, a uma regulamentação a nível nacional.

20

Nestas circunstâncias, o Oberlandesgericht Frankfurt am Main (Tribunal Regional Superior de Frankfurt am Main) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 2.o, [ponto 6], da Diretiva [2011/83] ser interpretado no sentido de que também abrange contratos através dos quais o profissional não está diretamente obrigado a prestar um serviço, antes adquirindo o consumidor o direito de beneficiar de um desconto nos serviços a contratar no futuro?

Em caso de resposta afirmativa à primeira questão prejudicial:

2)

Deve a exclusão da aplicação dos “contratos relativos a serviços de transporte de passageiros” do âmbito de aplicação da diretiva, prevista no artigo 3.o, n.o 3, alínea k), da Diretiva [2011/83] ser interpretada no sentido de que é igualmente válida em situações em que o consumidor não obtém diretamente, como contraprestação, um serviço de transporte, adquirindo antes o direito de beneficiar de um desconto nos contratos de transporte a celebrar no futuro?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

21

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 2.o, ponto 6, da Diretiva 2011/83 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «contrato de prestação de serviços» inclui os contratos que tenham por objeto permitir que o consumidor beneficie de um desconto no preço na celebração posterior de contratos de transporte de passageiros.

22

A este respeito, importa recordar que o conceito de «contrato de prestação de serviços», referido no artigo 2.o, ponto 6, desta diretiva, é definido de maneira ampla como correspondendo a «qualquer contrato, com exceção de um contrato de compra e venda, ao abrigo do qual o profissional presta ou se compromete a prestar um serviço ao consumidor e o consumidor paga ou se compromete a pagar o respetivo preço». Resulta da redação desta disposição que este conceito deve ser entendido no sentido de que abrange todos os contratos que não sejam abrangidos pelo conceito de «contrato de compra e venda».

23

O contrato em causa no processo principal, que tem por objeto permitir que o consumidor beneficie de um desconto no preço na aquisição posterior de um título de transporte, não é relativo à transferência da propriedade de bens, na aceção do artigo 2.o, ponto 5, da Diretiva 2011/83. Por conseguinte, está abrangido, por defeito, pelo conceito de «contrato de prestação de serviços», na aceção do artigo 2.o, ponto 6, desta diretiva.

24

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira questão que o artigo 2.o, ponto 6, da Diretiva 2011/83 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «contrato de prestação de serviços» inclui os contratos que tenham por objeto permitir que o consumidor beneficie de um desconto no preço na celebração posterior de contratos de transporte de passageiros.

Quanto à segunda questão

25

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 3.o, n.o 3, alínea k), da Diretiva 2011/83 deve ser interpretado no sentido de que está abrangido pelo conceito de «contrato relativo a serviços de transporte de passageiros» um contrato que tenha por objeto permitir que o consumidor beneficie de um desconto no preço na celebração posterior de contratos de transporte de passageiros.

26

Para responder a esta questão, importa recordar, em primeiro lugar, que, ao abrigo do artigo 3.o, n.o 3, alínea k), da Diretiva 2011/83, esta última só se aplica parcialmente aos contratos relativos aos serviços de transporte de passageiros, pelo que os consumidores, partes nesses contratos, não dispõem, nomeadamente, de um direito de retratação.

27

Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que quando os termos a interpretar figuram numa disposição que constitui uma derrogação a um princípio ou, mais especificamente, a normas do direito da União que se destinam a proteger os consumidores, devem ser interpretados de forma estrita (v. Acórdão easyCar, n.o 21 e jurisprudência referida).

28

Por conseguinte, o artigo 3.o, n.o 3, alínea k), da Diretiva 2011/83, na medida em que exclui parcialmente do âmbito de aplicação desta diretiva os contratos relativos aos serviços de transporte de passageiros, deve ser interpretado de forma estrita.

29

Em segundo lugar, importa recordar que o Tribunal de Justiça declarou que o conceito de «contratos de prestação […] [de] serviços de transporte», previsto no artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 97/7, é mais amplo do que o conceito de «contratos de transporte», correntemente utilizado nos sistemas jurídicos dos Estados‑Membros. Com efeito, enquanto este último conceito tem unicamente por objeto o transporte de passageiros e de mercadorias efetuado pelo transportador, o conceito de «contratos de prestação […] [de] serviços de transporte» pode abranger todos os contratos de serviços em matéria de transporte, incluindo os que envolvem uma atividade que não consiste, em si mesma, no transporte do cliente ou dos seus bens, antes se destinando a permitir‑lhe realizar esse transporte (v., neste sentido, Acórdão easyCar, n.o 23).

30

Neste contexto, considerou‑se que, embora a prestação fornecida em execução de um contrato de aluguer de automóveis não consista na ação de deslocar pessoas de um local para outro, tem, todavia, por objeto colocar à disposição do consumidor uma forma de encaminhamento. Daqui resulta que esse contrato permite a disponibilização de um meio de transporte de passageiros e está abrangido pelo conceito de «contrato de prestação […] [de] serviços de transporte» (v., neste sentido, Acórdão easyCar, n.os 26 e 27).

31

O Tribunal de Justiça declarou igualmente que esta interpretação do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 97/7 está em conformidade com o objetivo prosseguido por esta última, a saber, estabelecer uma proteção dos interesses dos consumidores que utilizam meios de comunicação à distância, mas também uma proteção dos interesses dos fornecedores de certos serviços, a fim de que estes não sofram os inconvenientes desproporcionados decorrentes da anulação, sem despesas nem justificação, dos serviços que deram lugar a uma reserva prévia, em consequência de uma retratação do consumidor pouco tempo antes da data prevista para a prestação desse serviço (v., neste sentido, Acórdão easyCar, n.o 28).

32

Na medida em que as disposições do artigo 3.o, n.o 3, alínea k), da Diretiva 2011/83 podem ser qualificadas de equivalentes às do artigo 3.o, n.o 2, da Diretiva 97/7, a interpretação que o Tribunal de Justiça fez destas últimas disposições é igualmente válida para as primeiras (v., por analogia, Acórdãos de 9 de março de 2017, Pula Parking, C‑551/15, EU:C:2017:193, n.o 31, e de 19 de dezembro de 2019, Darie, C‑592/18, EU:C:2019:1140, n.o 29).

33

Por conseguinte, há que constatar que o conceito de «contrato relativo a serviços de transporte de passageiros», previsto no artigo 3.o, n.o 3, alínea k), da Diretiva 2011/83, não abrange o contrato que tem por objeto permitir que o consumidor beneficie de um desconto no preço na celebração posterior de contratos de transporte de passageiros.

34

Com efeito, em primeiro lugar, contrariamente ao contrato de aluguer de automóveis em causa no processo que deu origem ao Acórdão easyCar, um contrato que tenha por único objeto permitir que o consumidor beneficie de um preço reduzido na celebração posterior de contratos relativos à aquisição de títulos de transporte não visa diretamente, enquanto tal, permitir a realização de um transporte de passageiros.

35

Em segundo lugar, como salientaram todos os interessados que apresentaram observações no âmbito do processo, um contrato que tenha por objeto permitir o consumidor beneficiar de um desconto no preço na celebração posterior de contratos de transporte de passageiros e um contrato relativo à aquisição de um título de transporte de passageiros constituem dois contratos juridicamente distintos um do outro, pelo que o primeiro não pode ser considerado um contrato indissociavelmente ligado ao segundo. Com efeito, a aquisição de um cartão que permite ao seu titular beneficiar de descontos no preço na aquisição de títulos de transporte não implica necessariamente a celebração posterior de um contrato que tenha por objeto o transporte de passageiros enquanto tal.

36

Em terceiro lugar, como salientou a Comissão Europeia, a existência de um direito de retratação, por força do artigo 9.o da Diretiva 2011/83, na sequência da aquisição de um cartão que permite beneficiar de um desconto no preço na aquisição posterior de títulos de transporte de passageiros não implica, para a empresa encarregada do transporte dos passageiros, inconvenientes desproporcionados equiparáveis aos ligados ao exercício de um direito de retratação no âmbito de um contrato relativo ao aluguer de automóveis, conforme identificados no Acórdão easyCar.

37

Com efeito, quando não tenha sido adquirido nenhum título de transporte a preço reduzido, o consumidor, em caso de retratação, recebe o montante pago, correspondente ao preço desse cartão, e perde o direito de beneficiar de um preço reduzido na aquisição posterior de títulos de transporte de passageiros. Por outro lado, no caso de ter sido adquirido um título de transporte a preço reduzido durante o prazo de retratação, resulta das observações formuladas na fase oral do processo no Tribunal de Justiça, que era possível impor ao consumidor o pagamento da diferença entre o preço do título de transporte correspondente à tarifa reduzida, resultante da utilização do cartão de desconto, e o preço desse título de transporte correspondente à tarifa integral.

38

Daqui resulta que um contrato que tenha por objeto permitir ao consumidor beneficiar de um desconto no preço na celebração posterior de contratos de transporte de passageiros não está abrangido pela exceção ao direito de retratação referida no considerando 49 da Diretiva 2011/83 em relação a «certos serviços em que a celebração do contrato implica a reserva de recursos que, em caso de exercício do direito de retratação, o profissional poderá ter dificuldade em conseguir preencher».

39

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 3.o, n.o 3, alínea k), da Diretiva 2011/83 deve ser interpretado no sentido de que um contrato que tenha por objeto permitir que o consumidor beneficie de um desconto no preço, na celebração posterior de contratos de transporte de passageiros, não está abrangido pelo conceito de «contrato relativo a serviços de transporte de passageiros» e está, por conseguinte, abrangido pelo âmbito de aplicação desta diretiva, incluindo pelas suas disposições relativas ao direito de retratação.

Quanto às despesas

40

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) declara:

 

1)

O artigo 2.o, ponto 6, da Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, que altera a Diretiva 93/13/CEE do Conselho e a Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e que revoga a Diretiva 85/577/CEE do Conselho e a Diretiva 97/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «contrato de prestação de serviços» inclui os contratos que tenham por objeto permitir que o consumidor beneficie de um desconto no preço na celebração posterior de contratos de transporte de passageiros.

 

2)

O artigo 3.o, n.o 3, alínea k), da Diretiva 2011/83 deve ser interpretado no sentido de que um contrato que tenha por objeto permitir que o consumidor beneficie de um desconto no preço, na celebração posterior de contratos de transporte de passageiros, não está abrangido pelo conceito de «contrato relativo a serviços de transporte de passageiros» e está, por conseguinte, abrangido pelo âmbito de aplicação desta diretiva, incluindo pelas suas disposições relativas ao direito de retratação.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

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