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Document 62018CJ0100

Acórdão do Tribunal de Justiça (Segunda Secção) de 20 de junho de 2019.
Línea Directa Aseguradora SA contra Segurcaixa, Sociedad Anónima de Seguros y Reaseguros.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Supremo.
Reenvio prejudicial — Seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis — Diretiva 2009/103/CE — Artigo 3.o, primeiro parágrafo — Conceito de “circulação de veículos” — Dano material causado a um imóvel pelo incêndio de um veículo estacionado numa garagem privada desse imóvel — Cobertura do seguro obrigatório.
Processo C-100/18.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2019:517

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)

20 de junho de 2019 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis — Diretiva 2009/103/CE — Artigo 3.o, primeiro parágrafo — Conceito de “circulação de veículos” — Dano material causado a um imóvel pelo incêndio de um veículo estacionado numa garagem privada desse imóvel — Cobertura do seguro obrigatório»

No processo C‑100/18,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha), por Decisão de 30 de janeiro de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 12 de fevereiro de 2018, no processo

Línea Directa Aseguradora SA

contra

Segurcaixa, Sociedad Anónima de Seguros y Reaseguros,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),

composto por: A. Arabadjiev (relator), presidente de secção, T. von Danwitz e P. G. Xuereb, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Línea Directa Aseguradora SA, por M. Relaño, abogado,

em representação da Segurcaixa, Sociedad Anónima de Seguros y Reaseguros, por C. Blanco Sánchez de Cueto, procurador, e A. Ruiz Hourcadette, abogada,

em representação do Governo espanhol, por L. Aguilera Ruiz e V. Ester Casas, na qualidade de agentes,

em representação do Governo lituano, por R. Krasuckaitė e G. Taluntytė, na qualidade de agentes,

em representação do Governo austríaco, por G. Hesse, na qualidade de agente,

em representação do Governo do Reino Unido, por S. Brandon, na qualidade de agente, assistido por A. Bates, barrister,

em representação da Comissão Europeia, por H. Tserepa‑Lacombe e J. Rius, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 28 de fevereiro de 2019,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 3.o da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO 2009, L 263, p. 11).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Línea Directa Aseguradora SA (a seguir «Línea Directa») à Segurcaixa, Sociedad Anónima de Seguros y Reaseguros (a seguir «Segurcaixa»), a respeito do reembolso das indemnizações que a Segurcaixa pagou à vítima de um incêndio que teve origem no circuito elétrico de um veículo segurado na Línea Directa.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Nos termos do artigo 1.o da Diretiva 2009/103:

«Para efeitos do disposto na presente diretiva entende‑se por:

1)

“Veículo”: qualquer veículo automóvel destinado a circular sobre o solo que possa ser acionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via‑férrea, bem como os reboques, ainda que não atrelados;

[…]»

4

O artigo 3.o da mesma diretiva prevê:

«Cada Estado‑Membro, sem prejuízo do artigo 5.o, adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.

As medidas referidas no primeiro parágrafo devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.

Cada Estado‑Membro adota todas as medidas adequadas para que o contrato de seguro abranja igualmente:

a)

os prejuízos causados no território de um outro Estado‑Membro, de acordo com a respetiva legislação nacional em vigor,

b)

Os prejuízos de que podem ser vítimas os nacionais dos Estados‑Membros, durante o trajeto que ligue diretamente dois territórios em que o Tratado seja aplicável, quando não exista, no território percorrido, Serviço Nacional de Seguros. Neste caso, os prejuízos são ressarcidos de acordo com a legislação nacional do seguro obrigatório em vigor no Estado‑Membro, no território do qual o veículo tiver o seu estacionamento habitual.

O seguro referido no primeiro parágrafo deve, obrigatoriamente, cobrir danos materiais e pessoais.»

5

O artigo 5.o da referida diretiva prevê:

«1.   Cada Estado‑Membro pode não aplicar as disposições do artigo 3.o, em relação a certas pessoas, singulares ou coletivas, de direito público ou privado, numa lista elaborada por este Estado e notificada aos outros Estados‑Membros e à Comissão.

[…]

2.   Cada Estado‑Membro pode derrogar às disposições do artigo 3.o no respeitante a certos tipos de veículos ou a certos veículos que tenham uma chapa especial, incluídos numa lista elaborada por esse Estado e notificada aos outros Estados‑Membros e à Comissão.

[…]»

6

O artigo 13.o, n.o 1, alínea c), da mesma diretiva dispõe:

«1.   Cada Estado‑Membro toma todas as medidas adequadas para que, por aplicação do artigo 3.o, seja considerada sem efeito, no que se refere a ações de terceiros vítimas de um sinistro qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro, emitida em conformidade com o artigo 3.o e que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos por:

[…]

c)

Pessoas que não cumpram as obrigações legais de caráter técnico relativamente ao estado e condições de segurança do veículo em causa.»

Direito espanhol

7

A Ley sobre responsabilidad civil y seguro en la circulación de vehículos a motor (Lei relativa à responsabilidade civil e ao seguro em matéria de circulação de veículos automóveis), codificada pelo Real Decreto Legislativo 8/2004 por el que se aprueba el texto refundido de la Ley sobre responsabilidad civil y seguro en la circulación de vehículos a motor (Real Decreto Legislativo 8/2004, relativo à responsabilidade civil e ao seguro de circulação de veículos automóveis), de 29 de outubro de 2004 (BOE n.o 267, de 5 de novembro de 2004, p. 3662), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, dispõe, no seu artigo 1.o, n.o 1:

«O condutor de veículos automóveis é responsável, em consequência do risco criado pela sua condução, pelos danos causados a pessoas ou bens, resultantes da circulação.

Em caso de danos causados a pessoas, o condutor só não será responsabilizado se provar que os danos se devem à culpa exclusiva da vítima ou à força maior estranha à condução ou ao funcionamento do veículo; os defeitos do veículo, a rutura ou a falha de qualquer um dos mecanismos ou peças do referido veículo não são considerados como abrangidos pela força maior.

Caso os danos sejam causados a bens, o condutor é responsável perante terceiros quando for civilmente responsável ao abrigo das disposições dos artigos 1902.o e seguintes do Código Civil, dos artigos 109.o e seguintes do Código Penal, e das disposições desta lei.

Se quer o condutor quer a vítima tiverem sido negligentes, a responsabilidade é repartida de forma equitativa e o montante da indemnização é partilhado na proporção da responsabilidade de cada um.

O proprietário não condutor é responsável pelos danos corporais e materiais causados pelo condutor quando estiver ligado a este por um dos nexos referidos no artigo 1903.o do Código Civil e no artigo 120.o, n.o 5, do Código Penal. Esta responsabilidade cessa se o proprietário provar que usou toda a diligência de um bom pai de família para prevenir o dano.

O proprietário não condutor de um veículo que não esteja coberto por um seguro obrigatório responde civil e conjuntamente com o condutor pelos danos corporais e materiais causados pelo veículo, salvo se provar que o veículo lhe foi furtado.»

8

O artigo 2.o, n.o 1, do Reglamento del seguro obligatorio de responsabilidad civil en la circulación de vehículos de motor (Regulamento relativo ao seguro obrigatório de responsabilidade civil em matéria de circulação de veículos automóveis), codificado pelo Real Decreto 1507/2008 por el que se aprueba el Reglamento del seguro obligatorio de responsabilidad civil en la circulación de vehiculos a motor (Decreto Real 1507/2008, que aprova o Regulamento relativo ao seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos a motor), de 12 de setembro de 2008 (BOE n.o 222, de 13 de setembro de 2008, p. 37487), enuncia o seguinte:

«Para efeitos da responsabilidade civil na circulação de veículos automóveis e da cobertura do seguro obrigatório regulado neste regulamento, entende‑se por factos da circulação os decorrentes do risco criado pela condução dos veículos automóveis a que se refere o artigo anterior, tanto em garagens e parques de estacionamento, como em vias ou terrenos públicos e privados adaptados à circulação, urbanos ou interurbanos, assim como em vias ou terrenos que, não sendo adaptadas para o efeito, sejam correntemente utilizadas.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9

Em 19 de agosto de 2013, Luis Salazar Rodes estacionou o seu veículo novo na garagem privada de um imóvel propriedade da Industrial Software Indusoft (a seguir «Indusoft»).

10

Em 20 de agosto de 2013, L. Salazar Rodes, com o propósito de mostrar o seu veículo a um vizinho, ligou o respetivo motor, sem o chegar a mover. Na noite de 20 para 21 de agosto de 2013, o veículo de L. Salazar Rodes, que estava parado há mais de 24 horas, começou a arder, provocando um incêndio no imóvel da Indusoft que causou danos no mesmo. O incêndio teve origem no circuito elétrico do veículo.

11

L. Salazar Rodes tinha subscrito um seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis na companhia de seguros Línea Directa.

12

A Indusoft tinha subscrito um seguro de habitação na Segurcaixa, que lhe pagou o montante total de 44704,34 euros pelos danos causados pelo referido incêndio.

13

Em março de 2014, a Segurcaixa intentou uma ação contra a Línea Directa no Juzgado de Primera Instancia de Vitoria‑Gazteiz (Tribunal de Primeira Instância de Vitoria‑Gazteiz, Espanha) em que pedia o pagamento de uma indemnização no montante de 44704,34 euros, acrescido de juros legais, por considerar que o sinistro teve origem num «facto da circulação» coberto pelo seguro de responsabilidade civil resultante da circulação do veículo automóvel de L. Salazar Rodes. Este órgão jurisdicional julgou a ação improcedente, por considerar que o incêndio em causa não se podia qualificar como um «facto da circulação», na aceção do direito espanhol.

14

A Segurcaixa interpôs recurso da sentença do Juzgado de Primera Instancia de Vitoria‑Gazteiz (Tribunal de Primeira Instância de Vitoria‑Gazteiz) na Audiencia Provincial de Álava (Audiência Provincial de Álava, Espanha), que deu provimento ao recurso e condenou a Línea Directa no pagamento da indemnização pedida pela Segurcaixa.

15

A Línea Directa interpôs recurso de cassação do acórdão da Audiencia Provincial de Álava (Audiência Provincial de Álava) para o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal, Espanha).

16

Este último órgão jurisdicional observa que a Audiencia Provincial de Álava (Audiência Provincial de Álava) se baseou numa interpretação ampla do conceito de «facto da circulação» segundo a qual, na aceção do direito espanhol, se insere nesse conceito uma situação em que um veículo estacionado de forma não permanente numa garagem privada se incendiou, quando esse incêndio ocorreu por causas intrínsecas ao veículo sem que se verifique a interferência de terceiros.

17

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a questão central consiste em saber se o seguro de responsabilidade civil automóvel cobre um sinistro em que esteve envolvido um veículo cujo motor não estava em funcionamento, que estava estacionado numa garagem e que não representava nenhum risco para os utilizadores de uma via de circulação.

18

A este respeito, o referido órgão jurisdicional observa que, segundo a sua jurisprudência, por um lado, estão abrangidas pelo conceito de «facto da circulação», na aceção do direito espanhol, não só as situações em que um veículo está em movimento mas também aquelas em que o motor do veículo não está em funcionamento, assim como as situações em que um veículo fica imobilizado durante um trajeto e se incendeia.

19

Por outro lado, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) já declarou que um incêndio de um veículo estacionado numa via pública e coberto para o proteger da geada não era uma situação abrangida pelo conceito de «facto da circulação», na aceção do direito espanhol.

20

O referido órgão jurisdicional precisa que, segundo a sua jurisprudência, quando um veículo está imobilizado e o sinistro não tenha um nexo com a função de transporte desse veículo, não se trata de um «facto da circulação» que possa estar coberto pelo seguro obrigatório.

21

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, segundo o direito espanhol, o condutor não é responsável pelos danos causados pela circulação de um veículo quando esses danos sejam devidos a um caso de força maior que é alheio à condução do veículo. Todavia, nem os defeitos de um veículo nem a rutura ou a falha de algum dos seus mecanismos são considerados casos de força maior. Por conseguinte, nas situações em que o acidente é causado por um defeito de um veículo, esse defeito não isenta o condutor da sua responsabilidade e não exclui, portanto, a cobertura pelo seguro de responsabilidade civil automóvel.

22

O órgão jurisdicional de reenvio considera, por um lado, que, se o incêndio ocorrer quando o veículo estiver imobilizado, mas esse incêndio tiver a sua origem numa função necessária ou útil para a deslocação desse veículo, deve considerar‑se que essa situação está ligada à função habitual do veículo.

23

Por outro lado, uma situação em que um veículo está estacionado numa garagem privada poderia ser excluída do conceito de «circulação de veículos», na aceção do artigo 3.o da Diretiva 2009/103, quando, na falta de proximidade temporal entre a utilização anterior desse veículo e o incêndio, ou devido ao modo como o sinistro ocorreu, não exista relação entre esse sinistro e a circulação do veículo.

24

O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta, a este respeito, que, se não se tiver em conta o nexo temporal entre a utilização anterior do veículo e a ocorrência do sinistro, isso poderia conduzir a uma equiparação do seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis ao seguro do proprietário que cobre a responsabilidade decorrente da mera detenção ou posse de um veículo.

25

Nestas circunstâncias, o Tribunal Supremo (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O artigo 3.o da Diretiva 2009/103 opõe‑se a uma interpretação que inclui na cobertura do seguro obrigatório os danos causados pelo incêndio de um veículo parado quando o incêndio tem origem nos mecanismos necessários para desempenhar a função de transporte do veículo?

2)

Em caso de resposta negativa à questão anterior, o artigo 3.o da Diretiva 2009/103 opõe‑se a uma interpretação que inclui na cobertura do seguro obrigatório os danos causados pelo incêndio de um veículo quando o incêndio não possa estar relacionado com uma deslocação anterior, de modo que não se possa considerar que existe uma conexão com um trajeto?

3)

Em caso de resposta negativa à segunda questão, o artigo 3.o da Diretiva 2009/103 opõe‑se a uma interpretação que inclui na cobertura do seguro obrigatório os danos causados pelo incêndio de um veículo quando o veículo se encontra estacionado numa garagem privada fechada?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à admissibilidade da primeira questão

26

A Línea Directa considera que a primeira questão é inadmissível, uma vez que suscita uma problemática puramente hipotética. Esta companhia de seguros alega que o único facto que o órgão jurisdicional de reenvio considera provado é que o incêndio em causa teve a sua origem no circuito elétrico do veículo em causa. Em contrapartida, não está demonstrado que esse incêndio tenha tido a sua origem nos mecanismos necessários para desempenhar a função de transporte desse veículo.

27

A este respeito, cabe recordar que, segundo jurisprudência constante, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 24 de outubro de 2018, XC e o., C‑234/17, EU:C:2018:853, n.o 16).

28

Ora, no caso em apreço, não é manifesto que a interpretação do direito da União solicitada no âmbito da primeira questão não tenha nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, ou que o problema seja hipotético. A este respeito, resulta do pedido de decisão prejudicial que esta interpretação visa clarificar o conceito de «circulação de veículos», na aceção do artigo 3.o da Diretiva 2009/103, da qual depende a resolução do litígio no processo principal, que tem por objeto a indemnização de danos causados pelo incêndio de um veículo. Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio forneceu elementos de facto e de direito suficientes para que o Tribunal de Justiça possa responder de forma útil às questões que lhe são submetidas.

Quanto ao mérito

29

Com as suas questões prejudiciais, que importa examinar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103 deve ser interpretado no sentido de que está abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», previsto nesta disposição, uma situação como a que está em causa no processo principal, em que um veículo estacionado numa garagem privada de um imóvel começou a arder e provocou um incêndio, que teve origem no circuito elétrico desse veículo e causou danos a esse imóvel, mesmo quando o referido veículo estivesse parado há mais de 24 horas no momento em que ocorreu o incêndio.

30

O artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103 prevê que cada Estado‑Membro adota todas as medidas adequadas, sob reserva da aplicação do artigo 5.o desta diretiva, para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.

31

A título preliminar, há que salientar que um veículo, como o que está em causa no processo principal, está abrangido pelo conceito de «veículo», referido no artigo 1.o, ponto 1, da Diretiva 2009/103, porquanto corresponde a um «veículo automóvel destinado a circular sobre o solo, que possa ser acionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via‑férrea». Por outro lado, é facto assente que este veículo tem o seu estacionamento habitual no território de um Estado‑Membro e que não lhe é aplicável nenhuma derrogação adotada em aplicação do artigo 5.o desta diretiva.

32

No que se refere à questão de saber se uma situação como a que está em causa no processo principal está abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», na aceção do artigo 3.o, n.o 1, desta diretiva, importa recordar que este conceito não pode ser deixado à apreciação de cada Estado‑Membro, mas constitui um conceito autónomo do direito da União, que deve ser interpretado à luz, nomeadamente, do contexto desta disposição e dos objetivos prosseguidos pela regulamentação em que se integra (Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro, C‑334/16, EU:C:2017:1007, n.o 24).

33

Ora, a regulamentação da União em matéria de seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos de que faz parte a Diretiva 2009/103 tende, por um lado, a assegurar a livre circulação quer dos veículos com estacionamento habitual no território da União Europeia quer das pessoas que neles viajam e, por outro, a garantir que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da União onde o acidente tenha ocorrido (v., neste sentido, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro, C‑334/16, EU:C:2017:1007, n.os 25 e 26).

34

Além disso, decorre da evolução da regulamentação da União em matéria de seguro obrigatório que este objetivo de proteção das vítimas de acidentes causados por esses veículos foi constantemente prosseguido e reforçado pelo legislador da União (Acórdão 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro, C‑334/16, EU:C:2017:1007, n.o 27).

35

À luz destas considerações, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «circulação de veículos» nele previsto não está limitado às situações de circulação rodoviária, ou seja, à circulação na via pública, mas que este conceito abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual deste último (Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro, C‑334/16, EU:C:2017:1007, n.o 28).

36

O Tribunal de Justiça precisou que, na medida em que os veículos automóveis referidos no artigo 1.o, ponto 1, da Diretiva 2009/103, independentemente das suas características, se destinam a servir habitualmente de meio de transporte, está abrangida por este conceito qualquer utilização de um veículo como meio de transporte (Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro, C‑334/16, EU:C:2017:1007, n.o 29).

37

A este respeito, cabe recordar, por um lado, que o facto de o veículo envolvido no acidente se encontrar imobilizado no momento em que este ocorreu não exclui, por si só, que a utilização deste veículo nesse momento possa estar abrangida pela sua função de meio de transporte e, em consequência, pelo conceito de «circulação de veículos», na aceção do artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103 (v., neste sentido, Acórdão de 15 de novembro de 2018, BTA Baltic Insurance Company, C‑648/17, EU:C:2018:917, n.o 38 e jurisprudência aí referida).

38

A questão de saber se o motor do veículo em causa estava ou não em funcionamento no momento em que o acidente ocorreu também não é determinante (v., neste sentido, Acórdão de 15 de novembro de 2018, BTA Baltic Insurance Company, C‑648/17, EU:C:2018:917 , n.o 39 e jurisprudência aí referida).

39

Por outro lado, cabe recordar que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, nenhuma disposição da Diretiva 2009/103 limita o âmbito da obrigação do seguro e da proteção que esta obrigação pretende conferir às vítimas de acidentes causados por veículos automóveis aos casos de utilização de tais veículos em certos terrenos ou em certas vias (Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Núñez Torreiro, C‑334/16, EU:C:2017:1007, n.o 31).

40

Daqui resulta que o alcance do conceito de «circulação de veículos», na aceção do artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103, não depende das características do terreno em que o veículo automóvel é utilizado e, nomeadamente, da circunstância de, no momento do acidente, o veículo em causa estar imobilizado e se encontrar num parque de estacionamento (v., neste sentido, Acórdão de 15 de novembro de 2018, BTA Baltic Insurance Company, C‑648/17, EU:C:2018:917, n.os 37 e 40).

41

Nestas circunstâncias, há que considerar que o estacionamento e o período de imobilização do veículo são etapas naturais e necessárias que fazem parte integrante da sua utilização como meio de transporte.

42

Assim, um veículo é utilizado em conformidade com a sua função de meio de transporte quando está em movimento, mas, em princípio, também durante o seu estacionamento entre duas deslocações.

43

No caso em apreço, há que observar que o estacionamento de um veículo numa garagem privada constitui uma utilização do veículo conforme com a sua função de meio de transporte.

44

Esta conclusão não é posta em causa pelo facto de o referido veículo estar estacionado há mais de 24 horas nessa garagem. Com efeito, o estacionamento de um veículo pressupõe a sua imobilização, por vezes durante um longo período, até à sua próxima deslocação.

45

Quanto à circunstância de o acidente em causa no processo principal resultar de um incêndio causado pelo circuito elétrico de um veículo, há que considerar que, uma vez que esse veículo que está na origem desse acidente corresponde à definição de «veículo» na aceção do artigo 1.o, n.o 1, da Diretiva 2009/103, não há que identificar qual das peças do veículo provocou o dano nem determinar as funções que essa peça desempenha.

46

Esta interpretação está em conformidade com o objetivo de proteção das vítimas de acidentes causados por veículos automóveis que foi constantemente prosseguido e reforçado pelo legislador da União, como recordado no n.o 34 do presente acórdão.

47

Por outro lado, há que salientar que resulta do artigo 13.o da Diretiva 2009/103 que deve considerar‑se sem efeito, no que se refere ao recurso de terceiros vítimas de um sinistro, qualquer disposição legal ou contratual que exclua da cobertura do seguro os danos causados pela utilização ou pela condução de um veículo por uma pessoa que não cumpriu as obrigações legais de ordem técnica relativas ao estado e à segurança do veículo em causa, o que corrobora esta interpretação.

48

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103 deve ser interpretado no sentido de que está abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», previsto nesta disposição, uma situação, como a que está em causa no processo principal, em que um veículo estacionado numa garagem privada de um imóvel utilizado em conformidade com a sua função de meio de transporte começou a arder e provocou um incêndio, que teve origem no circuito elétrico desse veículo e causou danos a esse imóvel, mesmo quando o referido veículo estivesse parado há mais de 24 horas no momento em que ocorreu o incêndio.

Quanto às despesas

49

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:

 

O artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que está abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», previsto nesta disposição, uma situação, como a que está em causa no processo principal, em que um veículo estacionado numa garagem privada de um imóvel utilizado em conformidade com a sua função de meio de transporte começou a arder e provocou um incêndio, que teve origem no circuito elétrico desse veículo e causou danos a esse imóvel, mesmo quando o referido veículo estivesse parado há mais de 24 horas no momento em que ocorreu o incêndio.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: espanhol.

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