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Document 62018CC0666

Conclusões do advogado-geral M. Campos Sánchez-Bordona apresentadas em 12 de setembro de 2019.
IT Development SAS contra Free Mobile SAS.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pela cour d'appel de Paris.
Reenvio prejudicial — Propriedade intelectual — Respeito pelos direitos de propriedade intelectual — Diretiva 2004/48/CE — Proteção jurídica dos programas de computador — Diretiva 2009/24/CE — Contrato de licença de programa informático — Alteração não autorizada do código fonte de um programa de computador pelo licenciado de um programa informático em violação do contrato de licença — Ação por violação do direito de propriedade intelectual intentada pelo autor do programa informático contra o licenciado do programa — Natureza do regime de responsabilidade aplicável.
Processo C-666/18.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2019:729

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

M. CAMPOS SÁNCHEZ‑BORDONA

apresentadas em 12 de setembro de 2019 ( 1 )

Processo C‑666/18

IT Development SAS

contra

Free Mobile SAS

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris, França)]

«Reenvio prejudicial — Direito de autor e direitos conexos — Proteção jurídica de programas de computador — Contrato de licença de um programa informático — Ação por contrafação intentada pelo autor do programa contra o licenciado — Natureza do regime de responsabilidade aplicável»

1. 

O titular do direito de autor relativo a um programa de computador intentou uma ação contra um dos seus licenciados (com quem tinha celebrado o contrato correspondente) por ter introduzido modificações nesse programa sem o seu consentimento. A ação intentada num tribunal francês de primeira instância, que a declarou inadmissível, baseava‑se na responsabilidade decorrente da violação do direito de autor (responsabilidade ex delicto) e não na violação dos termos do contrato (responsabilidade ex contracto).

2. 

O tribunal de recurso tem de optar entre qualificar o comportamento da recorrida como constitutiva de uma violação dos direitos de autor (contrefaçon) do programa ou como incumprimento das suas obrigações contratuais. O problema em causa reside no facto de, de acordo com um princípio do direito francês, por via de regra, uma ação ex delicto só poder ser intentada quando as partes não estão vinculadas por uma relação contratual.

3. 

A questão prejudicial insta o Tribunal de Justiça a esclarecer as suas dúvidas através da interpretação das Diretivas 2004/48/CE ( 2 ) e 2009/24/CE ( 3 ).

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União

1. Diretiva 2009/24

4.

Nos termos do considerando 13 da Diretiva 2009/24:

«Os direitos exclusivos do autor para impedir a reprodução não autorizada da sua obra deverão ser sujeitos a uma exceção limitada no caso de se tratar de um programa de computador, de forma a permitir a reprodução tecnicamente necessária para a utilização daquele programa pelo seu adquirente legítimo. Tal significa que as ações de carregamento e funcionamento necessárias à utilização de uma cópia de um programa legalmente adquirido, incluindo a ação de correção dos respetivos erros, não poderão ser proibidas por contrato. Na ausência de cláusulas contratuais específicas, nomeadamente quando uma cópia do programa tenha sido vendida, qualquer outra ação necessária à utilização de uma cópia de um programa poderá ser realizada de acordo com o fim a que se destina pelo adquirente legal dessa mesma cópia».

5.

O artigo 4.o («Atos sujeitos a autorização»), n.o 1, desta diretiva dispõe:

«Sem prejuízo do disposto nos artigos 5.o e 6.o, os direitos exclusivos do titular, na aceção do artigo 2.o, devem incluir o direito de efetuar ou autorizar:

a)

A reprodução permanente ou transitória de um programa de computador, seja por que meio for, e independentemente da forma de que se revestir, no todo ou em parte. Se operações como o carregamento, visualização, execução, transmissão ou armazenamento de um programa de computador carecerem dessa reprodução, essas operações devem ser submetidas a autorização do titular do direito;

b)

A tradução, adaptação, ajustamentos ou outras modificações do programa e a reprodução dos respetivos resultados, sem prejuízo dos direitos de autor da pessoa que altere o programa;

c)

Qualquer forma de distribuição ao público, incluindo a locação, do original ou de cópias de um programa de computador».

6.

O artigo 5.o («Exceções aos atos sujeitos a autorização»), n.o 1, da referida diretiva determina:

«Salvo cláusula contratual específica em contrário, os atos previstos nas alíneas a) e b) do n.o 1 do artigo 4.o não se encontram sujeitos à autorização do titular sempre que sejam necessários para a utilização do programa de computador pelo seu legítimo adquirente de acordo com o fim a que esse programa se destina, bem como para a correção de erros.»

7.

O artigo 6.o («Descompilação») da mesma diretiva dispõe:

«1.   Não é necessária a autorização do titular dos direitos quando a reprodução do código e a tradução da sua forma, na aceção das alíneas a) e b) do n.o 1 do artigo 4.o, sejam indispensáveis para obter as informações necessárias à interoperabilidade de um programa de computador criado independentemente, com outros programas, uma vez preenchidas as seguintes condições:

a)

Esses atos serem realizados pelo licenciado ou por outra pessoa que tenha o direito de utilizar uma cópia do programa, ou em seu nome por uma pessoa devidamente autorizada para o efeito;

[…]

2.   O disposto no n.o 1 não permite que as informações obtidas através da sua aplicação:

a)

Sejam utilizadas para outros fins que não o de assegurar a interoperabilidade de um programa criado independentemente;

b)

Sejam transmitidas a outrem, exceto quando tal for necessário para a interoperabilidade do programa criado independentemente; ou

c)

Sejam utilizadas para o desenvolvimento, produção ou comercialização de um programa substancialmente semelhante na sua expressão, ou para qualquer outro ato que infrinja os direitos de autor.

3.   De acordo com o disposto na Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, as disposições do presente artigo não podem ser interpretadas no sentido de permitirem a sua aplicação de uma forma suscetível de lesar os legítimos interesses do titular de direitos ou que não se coadune com uma exploração normal do programa de computador.»

2. Diretiva 2004/48

8.

Nos termos do considerando 10 da Diretiva 2004/48:

«O objetivo da presente diretiva é aproximar essas legislações a fim de assegurar um nível elevado de proteção da propriedade intelectual equivalente e homogéneo no mercado interno».

9.

O considerando 15 desta diretiva tem a seguinte redação:

«A presente diretiva não afeta o direito material da propriedade intelectual […]»

10.

O artigo 2.o («Âmbito de aplicação») da referida diretiva indica:

«1.   Sem prejuízo dos meios já previstos ou que possam vir a ser previstos na legislação comunitária ou nacional e desde que esses meios sejam mais favoráveis aos titulares de direitos, as medidas, procedimentos e recursos previstos na presente diretiva são aplicáveis, nos termos do artigo 3.o, a qualquer violação dos direitos de propriedade intelectual previstos na legislação comunitária e/ou na legislação nacional do Estado‑Membro em causa.

[…]

3.   A presente diretiva não prejudica:

a)

As disposições comunitárias que regulam o direito material da propriedade intelectual […]»

11.

O artigo 3.o («Obrigação geral») da mesma diretiva dispõe:

«1.   Os Estados‑Membros devem estabelecer as medidas, procedimentos e recursos necessários para assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual abrangidos pela presente diretiva. Essas medidas, procedimentos e recursos devem ser justos e equitativos, não devendo ser desnecessariamente complexos ou onerosos, comportar prazos que não sejam razoáveis ou implicar atrasos injustificados.

2.   As medidas, procedimentos e recursos também devem ser eficazes, proporcionados e dissuasivos e aplicados de forma a evitar que se criem obstáculos ao comércio lícito e a prever salvaguardas contra os abusos.»

B.   Direito francês: code de la propriété intellectuelle ( 4 )

12.

O artigo L122‑6 do CPI tem a seguinte redação:

«Sem prejuízo das disposições do artigo L122‑6‑1, o direito de exploração do autor de um programa informático abrange o direito de efetuar e de autorizar:

1o A reprodução permanente ou transitória de um programa informático […]

2o A tradução, adaptação, ajustamentos ou outras modificações do programa informático e a reprodução dos respetivos resultados […]

3o A colocação no mercado, a título oneroso ou gratuito, incluindo a locação, da ou das cópias de um programa informático por qualquer processo […]»

13.

O artigo L122‑6‑1 do CPI dispõe:

«I. Os atos previstos em 1o e 2o do artigo L122‑6, incluindo a correção de erros, não se encontram sujeitos à autorização do autor sempre que sejam necessários para a utilização do programa informático de acordo com a sua finalidade, pela pessoa com direito a utilizá‑lo.

No entanto, o autor pode reservar‑se contratualmente o direito de corrigir os erros e determinar as modalidades especiais a que serão sujeitos os atos, previstos em 1o e 2o do artigo L122‑6, necessários para a utilização do programa informático de acordo com a finalidade, pela pessoa com direito a utilizá‑lo».

14.

Em conformidade com o artigo L335‑3 do CPI:

«[…]

Constitui, igualmente, um delit de contrefaçon a violação de um dos direitos do autor de um programa informático previstos no artigo L122‑6.

[…]»

II. Matéria de facto e questão prejudicial

15.

Por contrato celebrado em 25 de agosto de 2010 ( 5 ), a Free Mobile SAS, operadora de telemóveis, obteve uma licença de utilização do programa informático «ClickOnSite», de cujo direito de autor era titular a sociedade IT Development SAS.

16.

Em 18 de junho de 2015 ( 6 ), a IT Development intentou uma ação contra a Free Mobile por contrefaçon do programa informático «ClickOnSite», pedindo a indemnização pelo prejuízo sofrido. Concretamente, alegou o facto de ter modificado o código‑fonte do programa, especialmente com a introdução de novos formulários, o que violava a cláusula sexta do contrato de licença.

17.

A Free Mobile opôs‑se à ação, alegando a sua inadmissibilidade e improcedência. Além disso, deduziu um pedido reconvencional por litigância de má‑fé.

18.

O tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris, França) proferiu Sentença em 6 de janeiro de 2017, declarando inadmissíveis os pedidos da IT Development assentes na responsabilidade ex delicto e julgando improcedente o pedido reconvencional.

19.

A IT Development recorreu dessa sentença na cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris, França), insistindo nos seus pedidos de primeira instância «a título de contrefaçon», mas acrescentando, a título subsidiário, o pedido de que a Free Mobile fosse condenada, «com fundamento na responsabilidade contratual», a indemnizá‑la pelos prejuízos causados.

20.

A Free Mobile pediu a confirmação da sentença de primeira instância, exceto quanto à decisão de julgar improcedente o pedido reconvencional.

21.

A cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) considerou necessário submeter uma questão prejudicial, com base nos seguintes motivos:

Desde o século XIX, o direito francês da responsabilidade civil assenta no princípio fundamental da não cumulação das responsabilidades ex delicto e ex contracto, que implica: a) que uma pessoa não pode ser chamada a responder por ambas, simultaneamente, pelos mesmos factos; e b) que, quando as partes estão vinculadas por um contrato válido e o dano sofrido por uma das partes resulta do incumprimento ou cumprimento defeituoso das obrigações contratuais da outra, a responsabilidade extracontratual é afastada em benefício da responsabilidade contratual.

O direito francês considera que a contrefaçon, na origem uma infração penal, se enquadra na responsabilidade ex delicto e não no incumprimento de um contrato.

Por este motivo, a decisão do tribunal de grande instance de Paris (Tribunal de Primeira Instância de Paris), estando as partes vinculadas pelo contrato de 25 de agosto de 2010 e tendo sido alegado que o prejuízo resulta do incumprimento das suas cláusulas, afastou a responsabilidade ex delicto em benefício da contratual. Por conseguinte, declarou inadmissível a ação por contrefaçon equiparada à ação de responsabilidade extracontratual.

Ora, não é irrelevante que a IT Development sustente que «a ação por contrefaçon não é, por definição, uma ação extracontratual, mas que também pode resultar do incumprimento de um contrato».

Com efeito, a contrefaçon define‑se, na sua aceção mais ampla, como qualquer violação de um direito de propriedade intelectual e, no artigo L335‑3 do CPI, como «a violação de um dos direitos do autor de um programa informático» (definidos no artigo L122‑6 do CPI).

Nem essas disposições nem nenhuma outra do direito francês relativo à contrefaçon dispõem expressamente que esta só se aplica quando as partes não estão vinculadas por um contrato.

Embora possam ser qualificadas de exceções ao princípio da não cumulação, existem disposições no direito francês demonstrativas de que a ação por contrefaçon pode ser intentada em matéria de patentes e de marcas contra o licenciado que tenha infringido os limites do seu contrato ( 7 ).

Os artigos L122‑6 e L122‑6‑1 do CPI, que preveem a determinação por contrato das modalidades de modificação de um programa informático, não excluem, nesses casos, uma ação por contrefaçon. O mesmo se aplica aos artigos 4.o e 5.o da Diretiva 2009/24, que aqueles artigos do CPI transpõem para o direito interno.

Por último, o artigo 2.o da Diretiva 2004/48 dispõe, de um modo geral, que as medidas, procedimentos e recursos são aplicáveis a qualquer violação dos direitos de propriedade intelectual, sem distinguir se essa violação resulta ou não do incumprimento de um contrato.

22.

Neste contexto, a cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris) submete ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O facto de o licenciado de um programa informático não respeitar os termos do contrato de licença de um programa informático (por ter expirado o período experimental, ultrapassagem do número de utilizadores autorizados ou de outra unidade de medida, como os processadores que podem ser utilizados para executar as instruções do programa informático, ou pela modificação do código‑fonte do programa informático quando a licença reserva esse direito ao titular inicial) constitui:

uma contrafação (na aceção da Diretiva [2004/48]) sofrida pelo titular do direito de autor [relativo ao] programa informático conferido pelo artigo 4.o da Diretiva [2009/24],

ou pode obedecer a um regime jurídico distinto, como o regime da responsabilidade contratual de direito comum?»

III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e alegações das partes

23.

A decisão de reenvio deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 25 de outubro de 2018.

24.

Apresentaram observações escritas a IT Development e a Free Mobile, o Governo francês e a Comissão Europeia. Não se realizou uma audiência, uma vez que o Tribunal de Justiça não o considerou necessário.

IV. Análise da questão prejudicial

A.   Observações preliminares

1. Quanto ao âmbito da questão prejudicial

25.

A Free Mobile afirma que a questão prejudicial é parcialmente inadmissível por ser hipotética, no que diz respeito a três dos alegados incumprimentos contratuais enumerados na decisão de reenvio (termo do período experimental, ultrapassagem do número de utilizadores autorizados e ultrapassagem de outra unidade de medida). Só o eventual incumprimento do contrato por modificação do código‑fonte estaria relacionado com o litígio no processo principal.

26.

O tribunal de reenvio apresenta essas quatro situações descritas ao mesmo nível, como manifestações de um comportamento único, mas tem razão a Free Mobile quando afirma que não são necessariamente idênticas, sob o ponto de vista jurídico, e, sobretudo, que as três primeiras situações são alheias aos factos em causa. Por conseguinte, a resposta prejudicial não deve abranger esses três comportamentos.

27.

A Diretiva 2009/24 diz respeito, especificamente, à proteção jurídica dos programas de computador que os Estados‑Membros devem conceder, em termos de direitos de autor, como sendo obras literárias, na aceção da Convenção de Berna de 9 de setembro de 1886 (artigo 1.o, n.o 1).

28.

No entanto, os programas de computador têm especificidades que exigem um tratamento diferente do conferido a outras obras protegidas por direitos de autor. Para que o adquirente do programa o possa utilizar segundo o fim previsto, determinadas prerrogativas que, por lei, fazem parte do monopólio característico do titular da propriedade intelectual são excluídas, também por lei, precisamente como consequência da natureza singular da obra protegida.

29.

Daqui decorre que, enquanto o artigo 4.o da Diretiva 2009/24 estabelece direitos exclusivos do titular do programa de computador ( 8 ), os artigos 5.o e 6.o preveem exceções ou «limites internos» a esses direitos, de origem legal ( 9 ).

30.

O artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2009/24 permite alterar, por contrato, o regime de proteção e as exceções estabelecidas pela diretiva. Embora, em princípio, não seja necessária a autorização do titular do direito de autor para determinados atos, é possível, mediante cláusulas contratuais específicas acordadas com o licenciado, que o titular do programa recupere a exclusividade de algumas das prerrogativas enumeradas no artigo 4.o Neste contexto, o fundamento jurídico do direito do titular será o contrato e não a lei; simultaneamente, a responsabilidade do licenciado que viola o direito exclusivo do titular decorrerá também do contrato, e não da lei.

31.

Incumbe ao tribunal de reenvio determinar se as circunstâncias do litígio correspondem às situações de facto da Diretiva 2009/24 (e das disposições nacionais de transposição), nomeadamente do artigo 5.o, n.o 1, no que diz respeito à reserva das prerrogativas do titular do programa por virtude do contrato.

32.

Se assim for, a qualificação do litígio quanto ao mérito só pode ser contratual. Por conseguinte, não estaria em causa o princípio de non‑cumul em vigor no direito francês, cuja compatibilidade com as Diretivas 2004/48 e 2009/24 subjaz à questão prejudicial submetida.

33.

As reflexões subsequentes abordam a questão prejudicial numa perspetiva mais ampla, ou seja, no caso de o comportamento do licenciado poder ser qualificado, simultaneamente, de incumprimento contratual e de violação de um dever geral de respeitar o direito de autor, tal como delimitado pela lei (corolário, em suma, da regra alterum non laedere). Nesse caso, seria aplicável o princípio de non‑cumul.

2. Quanto ao mérito

34.

O Governo francês e a Comissão consideram que a Diretiva 2004/48 não impõe um regime de responsabilidade específico. A solução das questões formuladas encontrar‑se‑ia, por conseguinte, na autonomia processual dos Estados‑Membros, sujeita aos princípios da equivalência e da efetividade.

35.

As partes no litígio, bem como a Comissão, apresentaram outros argumentos em apoio das suas respetivas posições. Chamam desde logo a atenção para o Acórdão de 18 de abril de 2013 ( 10 ), proferido no âmbito de um recurso em que o Tribunal de Justiça se pronunciou sobre a natureza — contratual ou extracontratual — de um litígio que apresenta semelhanças com o atual.

36.

A Free Mobile invoca, também, o artigo 8.o do Regulamento (CE) n.o 864/2007 ( 11 ), nos termos do qual qualquer violação de direitos de propriedade intelectual cria uma obrigação de reparação de natureza extracontratual.

37.

Por último, a Free Mobile e a Comissão referem a jurisprudência do Tribunal de Justiça sobre o Regulamento (UE) n.o 1215/2012 ( 12 ), segundo a qual a responsabilidade extracontratual tem caráter residual no direito da União.

38.

Tendo em conta que, se algum destes argumentos prevalecesse, a análise das Diretivas 2009/24 e 2004/48 poderia não ser necessária, abordá‑los‑ei em primeiro lugar, embora comece por me referir ao princípio de non‑cumul no direito francês.

B.   Princípio de non‑cumul no direito francês. Exceções

39.

O princípio de non‑cumul tem como ponto de partida um facto que pode constituir, simultaneamente, um incumprimento (ou um cumprimento defeituoso) de um contrato e a violação de um dever de origem legal. Consequentemente, o pedido de indemnização poderia basear‑se em dois fundamentos jurídicos — contratual e extracontratual — aos quais geralmente se associam regimes processuais diferentes ( 13 ).

40.

Nessa situação, o demandante deve poder escolher entre os dois títulos jurídicos (Países Baixos, Alemanha e o Reino Unido) ou favorecer um com exclusão do outro (França e Bélgica). Neste caso, a expressão non‑cumul poderia talvez ser substituída pela de não escolha.

41.

Foram invocadas diversas justificações para o princípio. Por um lado, de um ponto de vista prático, com o mesmo evita‑se que o demandante possa escolher discricionariamente o regime de responsabilidade aplicável; deste modo protege‑se o acordo e preserva‑se a força vinculativa dos contratos. Por outro lado, evita‑se uma responsabilidade civil excessivamente ampla (como seria a do artigo 1242.o do code civil francês), não prevista pelas partes e passível de pôr em risco o equilíbrio contratual.

42.

No entanto, importa recordar que o direito francês prevê exceções ao referido princípio: é o que acontece, especificamente, no que diz respeito às patentes e às marcas ( 14 ). A solução tem, em ambos os casos, antecedentes no direito da União ( 15 ).

43.

Entre os motivos que explicariam as derrogações ao princípio da não escolha nessas áreas incluem‑se considerações relativas ao esgotamento dos direitos de propriedade industrial, que não seriam relevantes para os direitos de autor ( 16 ). A explicação não parece adequada no que diz respeito aos programas de computador ( 17 ), mas é verdade que, para a licença de programas de computador, não existem, nem no direito da União, nem no direito francês, disposições semelhantes às vigentes para as marcas ou para as patentes. Por conseguinte, em França, a regra de non‑cumul aplica‑se a esta matéria, embora a sua efetivação enfrente determinadas dificuldades ( 18 ).

C.   Qualificação noutros contextos: Acórdão Systran e Regulamento «Roma II»

1. Acórdão Systran

44.

No Acórdão Systran, o Tribunal de Justiça pronunciou‑se sobre um litígio que tem semelhanças com o caso em apreço, ao decidir o recurso interposto contra o Acórdão do Tribunal Geral da União Europeia de 26 de dezembro de 2010 ( 19 ).

45.

Segundo os factos do referido processo, a Comissão e o grupo Systran estiveram vinculados durante vários anos por uma série de contratos para a utilização, pela primeira, de um programa de tradução automática de que era titular o segundo. Posteriormente, a Comissão passou a utilizar os serviços de outro prestador para a manutenção e o reforço linguístico do seu sistema de tradução automática. Na opinião da Systran, com esse comportamento, a Comissão violou os seus direitos de propriedade intelectual, pelo que a demandou no Tribunal Geral.

46.

A Comissão pediu a declaração da inadmissibilidade da ação por incompetência do Tribunal Geral, tendo em conta a natureza contratual do litígio: não existindo uma cláusula compromissória, os litígios relativos a essa natureza competem aos tribunais nacionais. Como essa exceção foi julgada improcedente, a Comissão interpôs recurso.

47.

O Tribunal de Justiça anulou, por violação das regras de competência jurisdicional, o acórdão do Tribunal Geral, criticando‑lhe o facto de ter concluído, erradamente, pela natureza não contratual do litígio.

48.

A constatação da natureza contratual do litígio foi feita no contexto da repartição de competências, entre os tribunais da União e os nacionais, para apreciarem ações de indemnização dirigidas contra as instituições da União. O Tribunal de Justiça recordou que o conceito de responsabilidade extracontratual, na aceção dos artigos 235.o e 288.o, n.o 2, CE (atualmente artigos 268.o TFUE e 340.o, n.o 2, TFUE), reveste um caráter autónomo e deve ser interpretado à luz da sua finalidade, que consiste em permitir a referida repartição ( 20 ).

49.

Não excluo que do Acórdão Systran se possa extrair algum ensinamento para este processo. No entanto, não creio que constitua corolário desse acórdão a questão de saber que qualificação da responsabilidade (contratual ou extracontratual) prevalece num âmbito completamente diferente, como é o da transposição das Diretivas 2009/24 e 2004/48.

50.

Os objetivos dessas duas diretivas são, respetivamente, harmonizar a proteção material da propriedade intelectual sobre os programas informáticos e os mecanismos de tutela processual dos direitos de propriedade intelectual, ambos muito afastados da finalidade a que se circunscrevia o Acórdão Systran. O raciocínio subjacente a este acórdão não pode, a fortiori, substituir os princípios que, na ordem interna dos Estados‑Membros, caracterizam ambos os tipos de responsabilidade e determinam o seu tratamento processual.

2. Qualificação no Regulamento «Roma II»

51.

Devem também ser rejeitados os argumentos baseados na inclusão da violação dos direitos de propriedade intelectual no Regulamento «Roma II», relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais.

52.

Ao contrário do que sugere a Free Mobile, esse regulamento não estabelece a violação de um direito de propriedade intelectual como responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco de que resulte uma obrigação extracontratual. O que estabelece é a lei aplicável «à obrigação extracontratual que decorra da violação de um direito de propriedade intelectual» (artigo 8.o, n.o 1). Se, como pode acontecer em matéria de programas de computador, a origem das prerrogativas exclusivas do autor do programa que são violadas é um contrato ( 21 ), a lei aplicável não será determinada em conformidade com o Regulamento «Roma II», mas sim de acordo com o Regulamento (CE) n.o 593/2008 ( 22 ).

D.   Quanto ao caráter residual da responsabilidade extracontratual: Regulamento n.o 1215/2012

53.

O argumento apoiado na definição da responsabilidade extracontratual do Tribunal de Justiça para efeitos do Regulamento n.o 1215/2012 também não pode ser acolhido.

54.

Esta definição, que parece certamente conferir à responsabilidade extracontratual um caráter secundário, serve apenas para estabelecer a delimitação entre os n.os 1 e 2 do artigo 7.o do referido regulamento, evitando uma sobreposição que os tornaria parcialmente irrelevantes. Esta delimitação é realizada no contexto da determinação da competência judicial internacional em processos transfronteiriços e corresponde aos princípios específicos desse contexto, pelo que não é passível de ser transposta para outros âmbitos, como o desta questão prejudicial.

E.   Proteção dos programas de computador

1. Âmbito de aplicação das Diretivas 2009/24 e 2004/48

a) Diretiva 2009/24

55.

A Diretiva 2009/24 assume a importância central da tecnologia informática para o desenvolvimento industrial da União. Tendo em conta os efeitos negativos que determinadas divergências nas legislações dos Estados‑Membros têm sobre o funcionamento do mercado interno no que diz respeito aos programas de computador, contém regras de natureza substantiva ( 23 ) que visam eliminá‑las.

56.

Esta diretiva inclui no seu âmbito de aplicação a proteção do direito do titular do programa, tanto no quadro das relações contratuais de que esse programa seja objeto como no que diz respeito às relações entre o titular e terceiros. Em especial, há exceções aos direitos exclusivos (previstos no artigo 4.o) que normalmente fazem sentido no contexto de um contrato: é o que se verifica com a que beneficia o adquirente legítimo do programa (artigo 5.o, n.o 1) ou a «pessoa que esteja autorizada a utilizar o programa» (artigo 5.o, n.o 2). O artigo 6.o, n.o 1, alínea a), contém uma referência explícita à relação entre titular do direito e licenciado.

b) Diretiva 2004/48

57.

A Diretiva 2004/48, contrariamente à Diretiva 2009/24, não contém regras substantivas, mas sim processuais. O seu ponto de partida consiste na necessidade de contar com meios eficazes para fazer respeitar os direitos de propriedade intelectual, uma vez que, na sua ausência, a inovação e a criação são desencorajadas e os investimentos reduzidos (considerando 3). Para limitar as desigualdades existentes entre os Estados‑Membros no que diz respeito a estes meios e ao seu potencial de distorção do mercado interno, estabelece disposições comuns de caráter processual ou na órbita do processo.

58.

O âmbito de aplicação da Diretiva 2004/48 é delimitado sob três aspetos: o objeto protegido (os direitos), o âmbito da proteção (as violações) e as medidas de proteção (mecanismos de proteção harmonizados).

59.

Quanto ao objeto, as medidas, os procedimentos e os recursos previstos na diretiva são aplicáveis «a qualquer violação dos direitos de propriedade intelectual previstos na legislação comunitária e/ou na legislação nacional do Estado‑Membro em causa» (artigo 2.o da diretiva, em conformidade com o considerando 13) ( 24 ).

60.

Neste processo, o direito de autor violado encontra‑se previsto tanto na Diretiva 2009/24 como no CPI (artigos L112‑2, L122‑6, e L122‑6‑1), pelo que é abrangido pela Diretiva 2004/48.

61.

No que diz respeito à violação de direitos à qual se aplica a Diretiva 2004/48, o conceito deve ser objeto de uma interpretação autónoma, que tenha em consideração o contexto e os objetivos da norma. O adjetivo «qualquer» do artigo 2.o e a finalidade geral da diretiva permitem considerar que abrange qualquer violação, incluindo a que decorre do incumprimento de uma cláusula contratual relativa à exploração de um direito de propriedade intelectual, e, por conseguinte, às prerrogativas que, por lei, são exclusivas do seu titular.

62.

No que diz respeito às medidas de proteção, o artigo 2.o, n.o 2, da Diretiva 2004/48 não desloca a proteção que é especificamente prevista por outros atos da União. Entre estes encontra‑se o artigo 7.o da Diretiva 91/250 (atualmente artigo 7.o da Diretiva 2009/24). Uma vez que as situações reguladas neste artigo não têm correspondência com os descritos na questão prejudicial, este aspeto da diretiva não contraria a conclusão prévia relativa à sua aplicação.

2. Meios, procedimentos e recursos para a proteção do direito do titular do programa de computador

a) Diretiva 2009/24

63.

A Diretiva 2009/24 impõe ao legislador nacional o dever de proteção dos programas de computador através de direitos de autor relativos a uma obra literária, mas não associa a esse dever um regime jurídico com preferência ou exclusão de outro. Ou seja, não toma partido relativamente à questão de saber se a ação decorrente da violação do direito de autor, quando resulte de um incumprimento contratual, deve ser tramitada através do regime da responsabilidade contratual de direito comum, ou pode ser abrangida por outro regime, como o previsto em França para a contrefaçon.

b) Diretiva 2004/48

64.

A Diretiva 2004/48 também não impõe uma tramitação processual específica para exigir a responsabilidade numa situação de incumprimento contratual do qual resulte uma violação de um direito de autor ( 25 ).

65.

Em contrapartida, o artigo 3.o da diretiva exige que as medidas, procedimentos e recursos que os Estados‑Membros adotem para assegurar o respeito dos direitos de propriedade intelectual satisfaçam as seguintes condições: têm de ser justos, equitativos, eficazes, proporcionados e dissuasivos, não desnecessariamente complexos ou onerosos; não devem comportar prazos que não sejam razoáveis ou implicar atrasos injustificados; devem ser aplicados sem criarem obstáculos ao comércio lícito e prever salvaguardas contra os abusos.

66.

Não se pode deduzir destas condições que a Diretiva 2004/48 opte por dar preferência à proteção jurisdicional que, em França, assume a forma de action en contrefaçon ( 26 ).

67.

Em abstrato, poderia pensar‑se que a ação no âmbito processual próprio da contrefaçon confere maior proteção ao titular do programa de computador: os processos são atribuídos a tribunais específicos (artigo L331‑1 do CPI); o regime de reparação inclui a possibilidade de obter uma indemnização por perdas e danos para além da reparação integral (artigo L331‑1‑3 do CPI); é permitido o acesso às medidas de saisi‑contrefaçon dos artigos L332‑1 a L332‑4 do CPI. Mas, mesmo que assim fosse ( 27 ), o facto de as regras referidas não serem aplicáveis a uma ação baseada num contrato (por extensão, que não se preveja a possibilidade de o demandante escolher entre a ação de contrefaçon e a ação por responsabilidade contratual de direito comum) não implica necessariamente a violação do mandato de proteção da Diretiva 2004/48.

68.

O legislador da União não impõe que as medidas, os procedimentos e os recursos estabelecidos nos Estados‑Membros para a proteção da propriedade intelectual reúnam as condições previstas no artigo 3.o da Diretiva 2004/48 de forma superlativa, isto é, que sejam os mais eficazes, os mais dissuasivos ou os que menos obstáculos criem ao comércio lícito. Não se deve esquecer que a diretiva é «de mínimos» (artigo 2.o, n.o 1).

69.

A priori, não há motivos para pensar que, quando o direito nacional trata a ação por violação da propriedade intelectual através do regime da responsabilidade contratual de direito comum, o faça através de medidas, procedimentos ou recursos que não satisfazem as exigências do artigo 3.o da Diretiva 2004/48. Em qualquer caso, a apreciação desta questão incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio.

70.

É, no entanto, indispensável que qualquer via processual disponibilizada ao titular do direito violado cumpra todos os requisitos da Diretiva 2004/48, os do artigo 3.o e os restantes. Por exemplo, se o artigo 13.o obriga a calcular a indemnização ponderando «todos os aspetos relevantes», com indicação precisa de alguns, a compatibilidade do direito nacional com essa regra exige que tal avaliação seja efetuada tanto ao apreciar uma ação de contrefaçon como outra baseada na responsabilidade contratual de direito comum. Com exceção desta salvaguarda, nada há que apontar — sob o ponto de vista do direito da União — às duas vias jurisdicionais nem, por extensão, ao princípio de non‑cumul.

F.   Autonomia processual e limites à liberdade do legislador nacional

71.

A Diretiva 2004/48 tem um âmbito limitado ( 28 ) e o seu nível de proteção é, repito, «de mínimos». Como já referi, entre os aspetos que não regula encontra‑se o recurso ou tipo de ação para reagir a uma violação do direito de propriedade intelectual que seja, simultaneamente, um incumprimento contratual ( 29 ).

72.

Ora, na falta de regras processuais na Diretiva 2004/48 ou para desenvolver as que contém, compete ao legislador nacional estabelecer o quadro processual que visa assegurar a proteção dos direitos a que ela diz respeito. Deve fazê‑lo em conformidade com as regras da própria diretiva e, em qualquer caso, com os princípios da equivalência e da efetividade ( 30 ).

1. Equivalência

73.

A condição de equivalência significa que a legislação processual nacional não pode tratar as ações baseadas no direito da União de modo menos favorável que as ações semelhantes baseadas no direito interno. A análise opera em duas etapas, identificando, como ponto de partida, o recurso comparável no ordenamento nacional e ocupando‑se, seguidamente, da própria comparação.

74.

Embora deva ser o órgão jurisdicional nacional a determinar se a situação descrita (o tratamento menos favorável) ocorre em matéria de direitos de autor relativos a programas de computador em França, não consta dos autos nenhum indício de que assim seja. Pelo contrário, parece existir apenas um regime indistintamente aplicável a qualquer violação dos referidos direitos (que inclui a proibição de cumular as ações nos termos já expostos). Não se colocam, por conseguinte, problemas de equivalência, pelo que o debate residiria apenas no contexto do princípio da efetividade dos mecanismos processuais que o direito nacional prevê.

75.

O tribunal de reenvio faz referência, contudo, ao tratamento diferenciado da ação por contrefaçon de um programa de computador relativamente às de violação das patentes e marcas. Creio, no entanto, que não há elementos suficientes para as comparar.

76.

Em primeiro lugar, a ação de contrefaçon de patentes e marcas visa a proteção de prerrogativas exclusivas do titular cuja origem é legal. Em contrapartida, no que diz respeito aos programas de computador, determinados atos que, sob o regime comum da propriedade intelectual, necessitariam da autorização do titular estão dela isentos por lei, de modo que o titular apenas recupera a exclusividade se esta for acordada contratualmente. Deste modo, dependendo do ato considerado, o ponto de partida pode ser diferente do que se verifica em matéria de patentes e de marcas.

77.

Em segundo lugar, tanto em França como a nível internacional, o debate sobre a proteção dos programas de computador através de patentes ou de direitos de autor foi resolvido a favor destes últimos. Nos termos do artigo L611‑10, n.o 2, alínea c), do CPI, os programas de computador não são patenteáveis.

2. Efetividade

78.

Sob o ponto de vista do princípio da efetividade, o que é decisivo para este processo é a questão de saber se a legislação francesa aplicável à proteção dos programas informáticos torna impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos de autor conferidos pelo direito da União, ao negar ao titular de um programa a ação por contrefaçon quando (e porque) a violação desses direitos implique, simultaneamente, um incumprimento contratual.

79.

Na minha opinião, a simples existência da ação por responsabilidade contratual permite afirmar que a proteção jurisdicional do direito de autor não é impossível.

80.

Também não creio que o regime francês nesta matéria torne excessivamente difícil o exercício desse direito, ao ponto de dissuadir a pessoa em causa de iniciar um procedimento judicial. Mesmo que pudesse ser assegurado que, em abstrato, a pessoa em causa se encontraria numa situação melhor ao agir através da via da contrefaçon, o princípio da efetividade, como limite à autonomia processual do legislador nacional, não chega a tanto.

81.

Do ponto de vista deste princípio, o que é determinante não é a questão de saber que solução protegeria mais o direito do titular do programa de computador, mas sim saber se a que existe dificulta excessivamente a sua defesa.

82.

Como já afirmei, não existem motivos para considerar a priori que as medidas, os procedimentos e os recursos que regulam uma ação de base contratual em França suscitem essas dificuldades, ao ponto de porem em causa, na prática, a proteção dos direitos dos titulares dos direitos de autor relativos a programas informáticos.

83.

No entanto, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se assim é à luz dos elementos relevantes da ação por responsabilidade contratual.

V. Conclusão

84.

Atendendo ao exposto, proponho que o Tribunal de Justiça responda à questão prejudicial da cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris, França) nos seguintes termos:

«Os artigos 4.o e 5.o da Diretiva 2009/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à proteção jurídica dos programas de computador, em conjugação com o artigo 3.o da Diretiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual, devem ser interpretados no sentido de que:

a modificação do código‑fonte de um programa de computador, em incumprimento de um contrato de licença, constitui uma contrafação sofrida pelo titular do direito de autor do programa, sempre que essa modificação não esteja isenta de autorização em conformidade com os artigos 5.o e 6.o da Diretiva 2009/24;

o fundamento jurídico da ação que um titular dos direitos de autor relativos a um programa informático pode intentar contra o licenciado, por violação das prerrogativas próprias do primeiro, reveste‑se de natureza contratual quando o próprio contrato de licença reserva essas prerrogativas ao titular do programa, nos termos do artigo 5.o, n.o 1, da Diretiva 2009/24;

cabe ao legislador nacional determinar, respeitando as disposições da Diretiva 2004/48 e os princípios da equivalência e da efetividade, as modalidades processuais necessárias para a proteção dos direitos de autor do programa de computador em caso da sua violação, quando esta implica simultaneamente a violação dos referidos direitos e um incumprimento contratual.»


( 1 ) Língua original: espanhol.

( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual (JO 2004, L 157, p. 45).

( 3 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à proteção jurídica dos programas de computador (JO 2009, L 111, p. 16). A Diretiva 2009/24 codifica o conteúdo da Diretiva 91/250/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1991, relativa à proteção jurídica de programas de computador (JO 1991, L 122, p. 42), que tinha sido alterada anteriormente.

( 4 ) A Diretiva 2009/24 foi transposta no code de la propriété intellectuelle (Código da Propriedade Intelectual, a seguir «CPI»).

( 5 ) Alterado por um aditamento de 1 de abril de 2012.

( 6 ) Tinha promovido, anteriormente, uma apreensão por contrafação nas instalações de outra sociedade, subcontratante da Free Mobile, que foi realizada em 22 de maio de 2015.

( 7 ) Refere, a este respeito, dois artigos do CPI: o L613‑8, terceiro parágrafo, em matéria de licenças de patentes, e o L714‑1, em matéria de licenças de marcas.

( 8 ) O Tribunal de Justiça interpretou o artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 91/250 no sentido de que inclui o programa de computador em todas as suas formas de expressão, incluindo o código‑fonte (Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Bezpečnostní softwarová asociace, C‑393/09, EU:C:2010:816, n.o 35).

( 9 ) Quanto às exceções aos atos sujeitos a autorização do artigo 5.o da Diretiva 91/250 (idêntico ao artigo 5.o da Diretiva 2009/24) no âmbito de um contrato de licença, v. Acórdão de 2 de maio de 2012, SAS Institute (C‑406/10, EU:C:2012:259).

( 10 ) Acórdão Comissão/Systran e Systran Luxembourg (C‑103/11 P, a seguir «Acórdão Systran, EU:C:2013:245).

( 11 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II») (JO 2007, L 199, p. 40).

( 12 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2012, L 351, p. 1).

( 13 ) Tipicamente em relação à competência judicial, à prescrição dos atos respetivos, à prova ou ao âmbito da indemnização.

( 14 ) V., supra, nota 7, que refere as correspondentes leis francesas, invocadas pelo tribunal de reenvio.

( 15 ) Para a patente, no artigo 43.o da fracassada Convenção do Luxemburgo de 15 de dezembro de 1975, que foi ratificada pela República Francesa (Loi n.o 77‑681, de 30 de junho de 1977, JO de 1 de julho de 1977, p. 3479). Para a marca, é o resultado da transposição do artigo 8.o, n.o 2, da Diretiva 2008/95/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, que aproxima as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 2008, L 299, p. 25). A disposição é retomada no artigo 25.o, n.o 2, da Diretiva (UE) 2015/2436 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015, que aproxima as legislações dos Estados‑Membros em matéria de marcas (JO 2015, L 336, p. 1). V., também, artigo 25.o, n.o 2, do Regulamento (UE) 2017/1001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, sobre a marca da União Europeia (JO 2017, L 154, p. 1).

( 16 ) Léger, P., «La nature de la responsabilité dans l’hypothèse de la violation du périmètre d’une licence de logiciel», Recueil Dalloz, 2018, p. 1320, sob a epígrafe I.A.

( 17 ) V. artigo 4.o, n.o 2, da Diretiva 2009/24, bem como Acórdão de 12 de outubro de 2016, Ranks e Vasiļevičs (C‑166/15, EU:C:2016:762).

( 18 ) A cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris), no seu Acórdão de 10 de maio de 2016 (Paris, pôle 5, n.o 14/25055, https://www.doctrine.fr/d/CA/Paris/2016/R4668A71A97317DB905E0), declarou inadmissível a ação por violação de direitos de autor num processo relativo ao desacordo das partes relativamente ao âmbito de uma licença e à questão de saber se incluía programas de computador. Um ano antes, a cour d’appel de Versailles (Tribunal de Recurso de Versalhes, França), no Acórdão de 1 de setembro de 2015 (n.o 13/08074), tinha decidido que a ação relativa à exploração do programa em benefício de terceiros não especificados no momento da conclusão do contrato era «relatif aux droits patrimoniaux concédés et rélève tant de la responsabilité contractuelle que de l’atteinte portée au droit d’auteur». No entanto, há leituras diferentes da decisão: v. Hadadd, S., e Casanova, A. (RLDI, 2015, n.o 121). O Acórdão da cour d’appel de Paris (Tribunal de Recurso de Paris), de 23 de maio de 2007, Sté Tech ‑ Airport c/Sté Arkad Informatique et autre (n.o 06/09541, RLDI 2007, n.o 28, obs. L. Costes et J.‑B. Auroux), admite a ação por contrefaçon por utilização do software para além do âmbito do contrato.

( 19 ) Acórdão Systran e Systran Luxembourg/Comissão (T‑19/07, EU:T:2010:526).

( 20 ) Acórdão Systran, n.o 62.

( 21 ) V. n.o 30 das presentes conclusões.

( 22 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) (JO 2008, L 177, p. 6).

( 23 ) Com exceção do seu artigo 7.o, a Diretiva 2009/24 não contém disposições processuais.

( 24 ) A versão francesa do artigo 2.o refere‑se à violação prevista pela legislação nacional ou da União («à toute atteinte aux droits de propriété intellectuelle prévue»), enquanto a alemã, a espanhola, a italiana e a portuguesa associam a previsão aos direitos de propriedade intelectual; o mesmo se verifica no considerando 13 da diretiva na versão francesa. O artigo 2.o da proposta de diretiva, COM(2003) 46 final, em francês, aponta no mesmo sentido e o Relatório do Parlamento de 5 de dezembro de 2003, A5‑0468/2003 não contém propostas de alteração relativas a este aspeto. O texto inglês do artigo 2.o, n.o 1, é neutro e não permite determinar se está ou não alinhado com o texto francês. Se existir uma discrepância entre as versões linguísticas de uma disposição do direito da União, a referida disposição deve ser interpretada em função da estrutura e da finalidade da legislação na qual está inserida, o que leva a considerar que são os direitos de propriedade intelectual que devem estar incluídos nas legislações nacional ou da União.

( 25 ) No âmbito da avaliação da necessidade de harmonização na matéria, a proposta da Comissão indicava que «[i]mporta, na verdade, atender às tradições jurídicas e à situação própria de cada Estado‑Membro». V. COM(2003) 46, p. 17. Por outro lado, os Estados‑Membros estão vinculados por instrumentos internacionais sobre propriedade intelectual e industrial administrados pela Organização Mundial da Propriedade intelectual (OMPI), bem como pelo Acordo sobre os Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (Acordo ADPIC), que contém disposições para fazer respeitar os direitos de propriedade intelectual. A diretiva indica expressamente que não afeta as obrigações internacionais dos Estados decorrentes desses instrumentos (v. considerandos 4 a 6).

( 26 ) O artigo L331 do CPI regula, nas suas diferentes epígrafes, as ações civis e as ações relativas à propriedade literária e artística. Concretamente, o artigo L331‑1‑4 refere‑se às «condenações civis por contrefaçon».

( 27 ) Em contrapartida, o demandante deve provar a originalidade do programa, da qual decorre a sua proteção em termos de direito de autor e não contratuais. Outros elementos relevantes, como os prazos de prescrição, são idênticos independentemente do tipo de ação.

( 28 ) Acórdão de 10 de abril de 2014, ACI Adam e o. (C‑435/12, EU:C:2014:254, n.o 61).

( 29 ) Também não abrange outros aspetos que podem variar em função do tipo de ação, como a natureza da jurisdição (comum ou especializada) que conhecerá dos eventuais litígios ou dos prazos para a interposição da ação. Mesmo nos domínios por ela abrangidos e que tiveram de ser transpostos para as legislações nacionais, o nível de concretização da Diretiva 2004/48 não é sempre igual, coexistindo disposições precisas com outras mais abertas.

( 30 ) V. Acórdão de 21 de junho de 2017, W e o. (C‑621/15, EU:C:2017:484, n.o 25).

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