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Document 62018CC0578

    Conclusões do advogado-geral E. Tanchev apresentadas em 24 de outubro de 2019.
    Processo iniciado pela Energiavirasto.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Korkein hallinto-oikeus.
    Reenvio prejudicial — Mercado interno da eletricidade — Diretiva 2009/72/CE — Artigo 3.o — Proteção dos consumidores — Artigo 37.o — Obrigações e competências das entidades reguladoras — Resolução extrajudicial de litígios — Conceito de “parte” — Direito de recorrer da decisão de entidades reguladoras — Queixa apresentada por um cliente doméstico contra uma empresa operadora de uma rede de distribuição de eletricidade.
    Processo C-578/18.

    Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2019:899

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    EVGENI TANCHEV

    apresentadas em 24 de outubro de 2019 ( 1 )

    Processo C‑578/18

    Energiavirasto

    sendo intervenientes:

    A,

    Caruna Oy

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia)]

    «Reenvio prejudicial — Mercado interno da eletricidade — Diretiva 2009/72/CE — Âmbito de aplicação ratione materiae — Vias de recurso — Artigo 37.o, n.o 17 — Conceito de “parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora nacional” — Legitimidade de um cliente consumidor de uma empresa operadora de rede elétrica — Princípio da tutela jurisdicional efetiva»

    I. Introdução

    1.

    Pode um consumidor, que solicita a uma entidade reguladora nacional que verifique se as modalidades de faturação do seu distribuidor de eletricidade estão em conformidade com a legislação do Estado‑Membro, ser considerado «parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora nacional», nos termos do artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que revoga a Diretiva 2003/54/CE ( 2 ), tendo, por conseguinte, o direito de recorrer de uma decisão tomada por essa entidade para um órgão independente das partes envolvidas e de qualquer governo, conforme previsto na referida disposição?

    2.

    Trata‑se, em substância, da questão principal suscitada no presente pedido de decisão prejudicial submetido ao Tribunal de Justiça pelo Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia).

    3.

    O presente processo confere ao Tribunal de Justiça a oportunidade de se pronunciar, pela primeira vez, sobre a interpretação do artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72 e as consequências que decorrem, em termos de direitos de recurso jurisdicional, da aplicação da referida disposição.

    II. Quadro jurídico

    A.   Direito da União

    4.

    O artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72 prevê:

    «Os Estados‑Membros devem garantir a existência de mecanismos adequados ao nível nacional que confiram a uma parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora nacional o direito de recorrer para um órgão independente das partes envolvidas e de qualquer governo.»

    B.   Direito finlandês

    5.

    Nos termos do disposto no § 2 da Sähkö‑ ja maakaasumarkkinoiden valvonnasta annettu laki (590/2013) (Lei n.o 590/2013, relativa à supervisão do mercado da eletricidade e do gás; a seguir «Lei relativa à supervisão»), esta lei aplica‑se, designadamente, ao exercício das funções de supervisão e controlo atribuídas à Energiavirasto (autoridade da energia, Finlândia; a seguir «Energiavirasto») que se encontram reguladas na Sähkömarkkinalaki (588/2013) (a seguir «Lei relativa ao mercado da eletricidade»), bem como nas disposições e decisões administrativas adotadas com base nesta.

    6.

    Nos termos do § 5 da Lei relativa à supervisão, compete à Energiavirasto verificar o cumprimento das disposições de direito nacional e de direito da União e as decisões administrativas referidas no seu § 2, bem como exercer as restantes funções referidas no § 2 que lhes são confiadas por lei.

    7.

    Nos termos do § 6, n.o 1, ponto 13, da Lei relativa à supervisão, compete à Energiavirasto, no âmbito da sua atividade de entidade reguladora nacional na aceção das disposições do direito da União relativas ao setor da eletricidade e do gás, garantir a eficiência e a aplicação das medidas de defesa do consumidor no mercado da eletricidade e do gás.

    8.

    Nos termos do § 57, n.o 2, da Lei relativa ao mercado da eletricidade, um operador da rede de distribuição deve disponibilizar aos consumidores diferentes métodos de pagamento das faturas relativas distribuição de eletricidade. As alternativas disponibilizadas não podem incluir condições injustificadas ou que discriminem diferentes grupos de clientes.

    9.

    Nos termos do § 106, n.o 2, da Lei relativa ao mercado da eletricidade, compete à Energiavirasto supervisionar o cumprimento desta lei e das disposições e decisões administrativas adotadas com base na mesma, bem como o respeito das decisões de aprovação adotadas com base na referida lei. Segundo esta disposição, a supervisão está especificamente regulada na Lei relativa à supervisão. Nos termos do n.o 4 do mesmo §, o Kuluttaja‑asiamies (Provedor do Consumidor, Finlândia) fiscaliza a legalidade das cláusulas dos contratos referidos no capítulo 13 da Lei relativa ao mercado da eletricidade (contratos de fornecimento de eletricidade) do ponto de vista da defesa do consumidor.

    10.

    Nos termos do § 114 da Lei relativa ao mercado da eletricidade, pode ser interposto recurso, nos termos dos procedimentos estabelecidos no Hallintolainkäyttölaki (586/1996) (a seguir «Código de Processo nos Tribunais Administrativos»), da decisão da Energiavirasto adotada com base na referida lei. Nos termos do § 5, n.o 1, deste código, pode ser interposto recurso de uma decisão através da qual um processo foi decidido ou julgado inadmissível. Nos termos do § 6, n.o 1, do mesmo código, pode interpor recurso de uma decisão a pessoa a quem a decisão é dirigida ou cujos direitos, obrigações ou interesses são diretamente afetados pela decisão.

    III. Matéria de facto, processo principal e questões prejudiciais

    11.

    Segundo o despacho de reenvio, A, que assumia a posição de cliente consumidor, celebrou um contrato de fornecimento de eletricidade com o operador da rede de distribuição Caruna Oy (anteriormente Fortum Sähkösiirto Oy) ( 3 ).

    12.

    Em 5 de setembro de 2013, A enviou uma mensagem de correio eletrónico à Energiavirasto, que funcionava como entidade reguladora nacional (a seguir «ERN») na aceção da Diretiva 2009/72, solicitando‑lhe que verificasse se o sistema de faturação implementado pela Caruna Oy estava em conformidade com o § 57, n.o 2, da Lei relativa ao mercado da eletricidade, segundo o qual um operador da rede de distribuição deve disponibilizar aos clientes diferentes métodos de pagamento das faturas relativas à distribuição de eletricidade. Estava, por conseguinte, em causa, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o direito conferido a um cliente consumidor, nos termos do anexo I, n.o 1, alínea d), da Diretiva 2009/72, de poder escolher entre diferentes métodos de pagamento. Na sequência do pedido de A, a Energiavirasto decidiu proceder à verificação da legalidade do sistema de faturação adotado pela Caruna Oy.

    13.

    Por decisão de 31 de março de 2014, a Energiavirasto considerou que a Caruna Oy não violou o § 57, n.o 2, da Lei relativa ao mercado da eletricidade e que, no caso em apreço, não eram necessárias medidas adicionais. Nessa decisão, a Caruna Oy foi designada como interveniente e A como autor do pedido de investigação.

    14.

    Por decisão de 28 de abril de 2014, a Energiavirasto considerou inadmissível o pedido de A de retificação da decisão de 31 de março de 2014 e indeferiu o seu pedido de atribuição da posição de interveniente e de retificação da decisão quanto ao mérito.

    15.

    A interpôs recurso no Helsingin hallinto‑oikeus (Tribunal Administrativo de Helsínquia, Finlândia), tendo requerido que lhe fosse atribuída a posição de interveniente no processo apreciado pela Energiavirasto. Além disso, pediu a anulação das Decisões de 31 de março e de 28 de abril de 2014 e que o processo fosse remetido à Energiavirasto para nova apreciação.

    16.

    Por decisão de 23 de maio de 2016, o Helsingin hallinto‑oikeus (Tribunal Administrativo de Helsínquia) julgou procedentes os pedidos de A.

    17.

    A Energiavirasto recorreu desta decisão para o Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia). Como fundamento de recurso, alegou que a apresentação de um pedido de investigação à Energiavirasto não confere legitimidade a A para participar no tratamento do seu pedido nem para interpor recurso num órgão jurisdicional nacional das decisões relativas ao mesmo.

    18.

    O Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo) considera que não é claro, do ponto de vista da interpretação correta do artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72, se um cliente consumidor de uma empresa operadora de rede elétrica, como é o caso de A, que considera que foi prejudicado pelo sistema de faturação dessa empresa e que submeteu a questão à ERN, pode ser qualificado como «parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora nacional» na aceção da referida disposição, tendo, por conseguinte, o direito de recorrer dessa decisão para um órgão jurisdicional.

    19.

    O Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo) considera, em especial, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça não prevê nenhum caso em que um cliente consumidor ou outra pessoa singular atuando como cliente tenha tido legitimidade para interpor recurso num órgão jurisdicional das decisões de uma ERN em circunstâncias semelhantes às do caso em apreço, tendo em conta que a decisão da Energiavirasto, na qualidade de ERN, sobre a compatibilidade da faturação da empresa operadora de rede com a Lei relativa ao mercado da eletricidade também estava relacionada com uma cláusula, referente à faturação, constante do contrato de fornecimento de eletricidade celebrado entre a empresa e o cliente consumidor. Além disso, o Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo) refere que a fiscalização da legalidade dos contratos de eletricidade na perspetiva da defesa do consumidor é regulamentada pela legislação nacional como uma tarefa que compete ao Provedor do Consumidor, podendo também o consumidor submeter os litígios à Kuluttajariitalautakunta (Comissão de Litígios de Consumo, Finlândia) ou aos tribunais comuns, embora só caiba a estes últimos, e não aos tribunais administrativos, pronunciar‑se com força vinculativa no âmbito de um litígio individual de consumo, uma vez que na Finlândia não existe uma instituição jurídica específica para a resolução de pequenos litígios de consumo.

    20.

    Foi nestas condições que o Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    Deve o artigo 37.o da [Diretiva 2009/72] ser interpretado no sentido de que o cliente pessoa singular de uma empresa operadora de rede, que instaurou perante a entidade reguladora nacional um processo relativo a essa empresa, deve ser considerado “parte afetada”, na aceção do n.o 17 do referido artigo, quando a decisão da entidade reguladora o afete, tendo, por conseguinte, legitimidade para interpor recurso num tribunal nacional da decisão tomada pela entidade reguladora nacional relativamente à empresa operadora de rede?

    2)

    Caso o cliente referido na primeira questão não deva ser considerado “parte afetada”, na aceção do artigo 37.o da [Diretiva 2009/72], deve entender‑se que um consumidor que se encontre numa posição equivalente à do recorrente no processo principal tem o direito, com base noutra norma de direito da União, de participar no procedimento perante a entidade reguladora de apreciação do pedido de introdução de medidas que apresentou ou de pedir a sua apreciação por um tribunal nacional, ou, pelo contrário, deve entender‑se que esta questão é regulada pelo direito nacional?»

    21.

    A, os Governos finlandês, húngaro e neerlandês e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas ao Tribunal de Justiça. A, a Energiavirasto, o Governo finlandês e a Comissão participaram na audiência que se realizou em 19 de junho de 2019.

    IV. Síntese das observações das partes

    22.

    A, o Governo neerlandês e a Comissão consideram que um cliente consumidor que assume a posição de A pode ser qualificado como «parte afetada» nos termos do artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72, enquanto a Energiavirasto e os Governos finlandês e húngaro sustentam a tese contrária.

    23.

    A argumenta que o pedido apresentado à Energiavirasto sobre o sistema de faturação da Caruna Oy constitui uma queixa que confere legitimidade para interpor recurso nos termos do artigo 37.o, n.o 11, da Diretiva 2009/72. Os mecanismos de tratamento das queixas dos consumidores previstos na lei finlandesa não substituem o artigo 37.o, n.o 11, da Diretiva 2009/72, tendo em conta, nomeadamente, o tempo e as custas relativas à apresentação de queixas nos tribunais comuns, bem como a circunstância de a decisão da Comissão de Litígios de Consumo proferir recomendações sem força vinculativa para as partes. A declarou na audiência que apresentou uma queixa com o mesmo objeto à Comissão de Litígios de Consumo, mas que, na sequência da decisão da Energiavirasto, não considerou razoável dar continuação ao processo, uma vez que, na prática, dificilmente a comissão tomaria uma decisão diferente da tomada pela ERN.

    24.

    A Energiavirasto alega que o artigo 37.o da Diretiva 2009/72 não se aplica aos clientes consumidores, e que as ERN não são obrigadas a tratar as queixas dos consumidores nos termos desta diretiva. Os pedidos de investigação previstos na legislação nacional e as respetivas decisões não se fundam no artigo 37.o, n.o 11, da Diretiva 2009/72. A foi apenas um informador. A tutela jurisdicional efetiva é garantida pela Comissão de Litígios de Consumo e pelos tribunais comuns, pelo que conferir ao consumidor no processo principal um direito de recurso para os tribunais administrativos implicaria a concessão desse direito a todos os potenciais clientes consumidores na Finlândia.

    25.

    O Governo finlandês, apoiado em larga medida pelo Governo húngaro, defende que a legislação nacional, que prevê a possibilidade de qualquer pessoa singular ou coletiva dirigir um pedido de investigação à Energiavirasto, constitui uma solução puramente nacional que não decorre da Diretiva 2009/72. As ERN não são obrigadas, nos termos da Diretiva 2009/72, a tratar queixas dos consumidores e, tendo em conta a redação, a génese, o contexto e o objetivo prosseguido por esta diretiva, o disposto nos n.os 11, 12 e 17 do seu artigo 37.o apenas é aplicável às empresas de eletricidade. Sublinha que o direito finlandês prevê mecanismos de tratamento das queixas dos consumidores por meio da Comissão de Litígios de Consumo e do Provedor do Consumidor, e que os consumidores também podem intentar ações nos tribunais comuns contra as empresas de eletricidade que alegadamente violam os seus direitos nos termos da Lei relativa ao mercado da eletricidade, sendo‑lhes garantida, assim, uma tutela jurisdicional efetiva.

    26.

    O Governo neerlandês alega que, na sequência da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à legitimidade das partes afetadas pelas decisões da ERN ( 4 ), um cliente particular é considerado «parte afetada» nos termos do artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72, na medida em que a decisão da ERN afete os seus direitos decorrentes do direito da União. É o que sucede no processo principal, no qual A apresentou um pedido à ERN, presumivelmente tratado como queixa nos termos do artigo 37.o, n.o 11, da Diretiva 2009/72, sendo que a decisão da ERN afeta o direito de A a uma escolha quanto aos métodos de pagamento previstos no artigo 3.o, n.o 7, e no anexo I, n.o 1, alínea d), da diretiva. Sublinha que o artigo 3.o, n.o 13, da Diretiva 2009/72 distingue‑se do artigo 37.o, n.o 11, da diretiva, que em nada limita o direito de acesso a um órgão jurisdicional quando uma decisão da ERN afeta os direitos do consumidor decorrentes dessa diretiva.

    27.

    A Comissão concorda com esta posição. Com base na redação e no contexto, o artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72 aplica‑se aos clientes consumidores e, conforme foi sublinhado na audiência, é formulado em termos genéricos, tendo, por conseguinte, um âmbito mais alargado que o artigo 37.o, n.os 11 e 12, da mesma diretiva. Ainda segundo a Comissão, os artigos 3.o, n.o 13, e 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72 impõem obrigações distintas aos Estados‑Membros e, uma vez que se afigura que os tribunais comuns da Finlândia não são competentes para apreciar a legalidade das decisões da ERN, não dispondo do direito de recurso ao abrigo do artigo 37.o, n.o 17, da referida diretiva, o consumidor não pode impugnar uma decisão da ERN que se tenha tornado definitiva.

    V. Análise

    28.

    O cerne das questões submetidas pelo Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo) consiste em saber se a Diretiva 2009/72 e, de um modo mais geral, o direito da União impõem o dever de criar, nas circunstâncias do processo principal, o que aparenta ser uma via de fiscalização jurisdicional não prevista no direito do Estado‑Membro.

    29.

    Considero que, antes de proceder à interpretação do artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72, há que ter em conta, como ponto de partida, a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à legitimidade das partes afetadas pelas decisões da ERN e se a decisão controvertida da Energiavirasto integra o âmbito de aplicação ratione materiae da Diretiva 2009/72.

    30.

    Assim sendo, considero que a segunda questão é inadmissível na medida em que se refere aos direitos de A de participar no procedimento conducente à decisão controvertida da Energiavirasto. Não foram apresentadas quaisquer observações pelas partes relativamente a este aspeto e a sua pertinência também não foi analisada no despacho de reenvio. Por conseguinte, os elementos pertinentes de facto e de direito que constam dos autos são insuficientes para permitir que o Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a questão ( 5 ). Uma vez que o que subsiste da segunda questão diz respeito aos direitos de recurso jurisdicional para um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, reiterando, por isso, a primeira questão, irei responder apenas a esta.

    31.

    A minha análise divide‑se em três partes. Analisarei primeiro o que o Tribunal de Justiça declarou a respeito da legitimidade das partes afetadas pelas decisões da ERN relativas ao presente processo (A); a seguir, abordarei a questão de saber se a decisão controvertida da Energiavirasto se encontra abrangida pelo âmbito de aplicação material da Diretiva 2009/72 (B); e, finalmente, irei debruçar‑me sobre a interpretação do artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72 nas circunstâncias do processo principal (C).

    32.

    Com base nesta análise, cheguei à conclusão de que um cliente consumidor de uma empresa operadora de rede elétrica, como é o caso de A nas circunstâncias do processo principal, não pode ser considerado uma «parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora nacional», na aceção do artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72.

    A.   As declarações do Tribunal de Justiça quanto às partes afetadas pelas decisões da ERN

    33.

    Conforme referido nas observações dos Governos finlandês, húngaro e holandês e da Comissão, o Tribunal de Justiça já se pronunciou a respeito da legitimidade das partes afetadas pelas decisões da ERN e, em especial, nos Acórdãos Tele2 Telecommunication ( 6 ), T‑Mobile Austria ( 7 ), Arcor ( 8 ) e E.ON Földgáz Trade ( 9 ), no que diz respeito à interpretação de medidas da União relativas a outros mercados regulamentados, nomeadamente, o das telecomunicações e o do gás natural. Contudo, considero que as circunstâncias em causa nessas decisões diferem das circunstâncias do processo principal, porquanto em nenhuma delas estava em causa o alcance material do direito da União. Como explicarei na parte B das presentes conclusões, tal se reveste de uma importância fundamental para a decisão do litígio no processo principal.

    34.

    O Acórdão Tele2 Telecommunication ( 10 ) dizia respeito à interpretação, inter alia, do artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2002/21/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, relativa a um quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações eletrónicas (diretiva‑quadro) ( 11 ). O que estava em causa no processo principal era a legitimidade de uma empresa para contestar uma decisão da ERN cujo destinatário era uma empresa concorrente no âmbito de um procedimento administrativo de análise do mercado conduzido pela ERN nos termos dessa diretiva. Por outras palavras, quando o Tribunal de Justiça declarou, no Acórdão Tele2 Telecommunication, que o artigo 4.o da diretiva e o princípio da tutela jurisdicional efetiva garantido pelo direito da União protegiam os direitos de terceiros afetados pela decisão da ERN, o objeto do processo já se encontrava abrangido pelo âmbito de aplicação material da diretiva‑quadro.

    35.

    No Acórdão T‑Mobile Austria ( 12 ), o Tribunal de Justiça seguiu o quadro definido no Acórdão Tele2 Telecommunication para avaliar a legitimidade de uma empresa para impugnar uma decisão tomada no âmbito de um procedimento de autorização de alteração da estrutura acionista resultante da fusão‑aquisição de determinadas empresas ao abrigo das regras da União em matéria de telecomunicações. O Tribunal de Justiça considerou que tal empresa deve ser considerada parte afetada nos termos do artigo 4.o, n.o 1, da diretiva‑quadro, quando seja uma concorrente da empresa destinatária da decisão da ERN, e quando a ERN se pronuncie no âmbito de um procedimento destinado a salvaguardar a concorrência, e a decisão em causa seja suscetível de afetar a posição dessa empresa no mercado.

    36.

    No Acórdão Arcor ( 13 ), o Tribunal de Justiça adotou uma abordagem semelhante ao interpretar o artigo 5.o‑A, n.o 3, da Diretiva 90/387/CEE do Conselho, de 28 de junho de 1990, relativa à realização do mercado interno dos serviços de telecomunicações mediante a oferta de uma rede aberta de telecomunicações ( 14 ), que é quase idêntico ao artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72. Tal como os Acórdãos Tele2 Telecommunication e T‑Mobile Austria, o Acórdão Arcor tinha por objeto a legitimidade de terceiros para impugnar uma decisão tomada por uma ERN que se encontrava abrangida pelo âmbito de aplicação material da Diretiva 90/387, a saber, uma decisão relativa à autorização das tarifas para o acesso desagregado ao lacete local. O Tribunal de Justiça salientou, no Acórdão Arcor, que não era exigido qualquer vínculo contratual entre terceiros e a parte destinatária da decisão da ERN, para que esses terceiros pudessem beneficiar de uma fiscalização jurisdicional efetiva nos termos da diretiva e, de uma maneira geral, do direito da União.

    37.

    O Acórdão E.ON Földgáz Trade ( 15 ) dizia respeito à legitimidade de um operador no mercado húngaro de gás natural para recorrer, na qualidade de titular de uma autorização de transporte de gás, da decisão de uma ERN que alterou as regras do código de rede de gás relativas aos pedidos de atribuição de capacidade a longo prazo. O Tribunal de Justiça considerou que, embora a Diretiva 2003/55/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2003, que estabelece regras comuns para o mercado interno de gás natural e que revoga a Diretiva 98/30/CE ( 16 ), não contivesse disposições específicas sobre as vias de recurso de que esse operador dispõe, a ERN estava sujeita, na adoção da sua decisão, às regras da União relativas ao acesso dos operadores do mercado à rede de transporte de gás natural. Com base nisso, o Tribunal de Justiça declarou que essas regras da União e o princípio da tutela jurisdicional efetiva que decorre do direito da União garantiam a fiscalização jurisdicional em relação a terceiros que foram lesados nos seus direitos eventualmente violados pela respetiva decisão da ERN. Tal como no caso dos Acórdãos Tele2 Telecommunication, T‑Mobile Austria e Arcor, o Acórdão E.ON Földgáz Trade tinha por objeto uma decisão da ERN que estava abrangida pelo âmbito de aplicação material da regulamentação da União nesta matéria, a saber, uma decisão relativa ao acesso à rede de transporte de gás.

    38.

    As circunstâncias em causa nos acórdãos precedentes diferem, portanto, das circunstâncias do presente processo em pelo menos dois aspetos cruciais. Em primeiro lugar, diziam respeito a uma decisão emitida por uma ERN relativamente à qual o direito de interpor recurso de natureza jurisdicional estava a ser invocado por terceiros. Pelo contrário, no caso em apreço, A pode ser considerado um destinatário da decisão da Energiavirasto, uma vez que A fez o pedido de investigação e que consta da mesma (v. n.o 13 das presentes conclusões). Em segundo lugar, em todas as decisões anteriores, o âmbito de aplicação material da medida da União correspondente era indiscutivelmente aplicável em virtude de um procedimento que a ERN foi autorizada ou obrigada a instituir por força dessa mesma medida. Em contrapartida, no presente processo, é necessário determinar se a decisão da Energiavirasto em causa se encontra abrangida pelo âmbito de aplicação material da Diretiva 2009/72.

    B.   Aplicação da Diretiva 2009/72 ao processo principal

    39.

    É importante recordar que a União Europeia não tem competência geral relativamente às vias de recurso fora dos âmbitos do direito da União em que dispõe de competência material ( 17 ). Uma vez que o artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72 é essencialmente uma disposição que estabelece vias de recurso, identificando os interessados que poderão impugnar uma decisão da ERN, a resposta à questão prejudicial depende de saber se o âmbito de aplicação material da Diretiva 2009/72 abrange a decisão controvertida da Energiavirasto. Em caso afirmativo, as garantias previstas na Diretiva 2009/72 e, de forma mais abrangente, no direito da União em matéria de vias de recurso aplicam‑se necessariamente.

    40.

    Concluo, em primeiro lugar, que a Diretiva 2009/72, segundo uma interpretação literal, não impõe às ERN uma obrigação de receber pedidos de investigação do tipo em causa no presente processo. Conforme referido pela Energiavirasto e pelo Governo finlandês, a possibilidade prevista na legislação finlandesa de qualquer pessoa singular ou coletiva apresentar pedidos de investigação à ERN constitui uma solução nacional que não decorre da Diretiva 2009/72.

    41.

    Em segundo lugar, conforme indicado pelo Energiavirasto e pelos Governos finlandês e húngaro, o texto da Diretiva 2009/72 também não impõe uma obrigação às ERN de tratar as queixas dos consumidores. Como o Tribunal de Justiça já declarou ( 18 ), a Diretiva 2009/72 contém várias disposições relativas à proteção dos consumidores. O artigo 3.o, n.o 7, da referida diretiva prevê que os Estados‑Membros devem aprovar medidas adequadas para proteger os consumidores e garantir um nível elevado de proteção dos consumidores, especialmente no que respeita aos mecanismos de resolução de litígios. Em especial, esta diretiva obriga os Estados‑Membros a garantir procedimentos adequados de tratamento das queixas e reclamações e procedimentos extrajudiciais de resolução de litígios aplicáveis às queixas dos consumidores ( 19 ).

    42.

    Conforme referido em determinadas disposições e considerandos da Diretiva 2009/72, as ERN desempenham um papel colaborativo com outras autoridades competentes para garantir a eficácia e a aplicação das medidas de proteção do consumidor previstas nessa diretiva ( 20 ), que podem incluir o tratamento de queixas. Nos termos do artigo 3.o, n.o 13, da Diretiva 2009/72, «[o]s Estados‑Membros devem assegurar a criação de um mecanismo independente, como um provedor para a energia ou um organismo de defesa do consumidor, para o tratamento eficiente das reclamações e a resolução extrajudicial de litígios». Decorre da expressão «como» utilizada nessa disposição que a escolha da autoridade competente para tratar as queixas dos consumidores e a resolução de litígios fica ao critério dos Estados‑Membros. As observações do Governo finlandês a respeito dos trabalhos preparatórios da Diretiva 2009/72, segundo as quais as alterações propostas pelo Parlamento Europeu em relação ao tratamento de queixas de consumidores pelas ERN foram passadas do atual artigo 37.o para o artigo 3.o da Diretiva 2009/72 ( 21 ), reforçam esta ideia.

    43.

    Pode ser útil acrescentar que esta análise parece estar em conformidade com a Diretiva (UE) 2019/944 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de junho de 2019, relativa a regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que altera a Diretiva 2012/27/UE (reformulação) ( 22 ), que revoga a Diretiva 2009/72 a partir de 1 de janeiro de 2021 ( 23 ). Note‑se que a Diretiva 2019/944 contém uma disposição idêntica ao artigo 37.o, n.o 17 ( 24 ), mantendo o papel colaborativo das ERN na proteção dos consumidores ( 25 ). Em especial, o artigo 26.o, n.o 1, da referida diretiva prevê o direito dos consumidores à resolução extrajudicial de litígios «no âmbito de um sistema independente, como, por exemplo, um provedor da energia, um organismo de consumidores, ou uma entidade reguladora» ( 26 ), confirmando assim o papel facultativo das ERN.

    44.

    Em terceiro lugar, sem prejuízo da verificação por parte do órgão jurisdicional de reenvio, não parece que a decisão controvertida da Energiavirasto esteja incluída na categoria de resolução de litígios contemplada no artigo 37.o, n.os 11 ou 12, da Diretiva 2009/72. Conforme resulta de diversas disposições da Diretiva 2009/72, o artigo 37.o, n.os 11 e 12, refere‑se a decisões adotadas pela ERN, na qualidade de autoridade competente para a resolução de litígios ( 27 ), com o objetivo de resolver litígios de caráter horizontal entre duas ou mais partes nas situações nele previstas. O artigo 37.o, n.o 11, prevê um procedimento específico relativo às queixas apresentadas por «qualquer interessado» contra um operador de rede de transporte ou distribuição relacionadas com as obrigações desse operador no quadro da referida diretiva, que conduz a uma decisão vinculativa, salvo se esta for, ou até ser, revogada por decisão tomada após a interposição de recurso. O artigo 37.o, n.o 12, refere‑se à possibilidade de «recurso» das decisões da ERN sobre tarifas ou metodologias, suscetível de ser apresentado por «qualquer interessado afetado e que tenha o direito de apresentar queixa» de uma tal decisão, estabelecendo determinadas restrições processuais relativas a este tipo de queixas no que concerne ao prazo para apresentação do recurso e à falta de efeito suspensivo ( 28 ).

    45.

    Se tal desse o assunto por concluído, não teria dificuldade em dar uma resposta negativa à primeira questão. No entanto, conforme referido pelo órgão jurisdicional de reenvio (v. n.os 12 e 19 das presentes conclusões), a decisão controvertida da Energiavirasto diz respeito ao cumprimento, pela empresa operadora de rede de eletricidade, do disposto no § 57, n.o 2, da Lei relativa ao mercado da eletricidade, que é baseada no artigo 3.o, n.o 7, e no anexo I, n.o 1, alínea d), da Diretiva 2009/72, nos termos do qual os Estados‑Membros devem garantir que os clientes consumidores dispõem de uma ampla escolha quanto aos métodos de pagamento e essa decisão também está relacionada com uma cláusula do contrato celebrado entre o cliente consumidor e a empresa operadora de rede no processo principal.

    46.

    Consequentemente, o presente processo diz respeito a uma situação complexa, em que, pelo que me é dado a entender, a Energiavirasto não é obrigada, ao abrigo da legislação do Estado‑Membro, a tomar uma decisão sobre um pedido de investigação, mas porquanto atuou a pedido de A e adotou uma decisão relativa a medidas de proteção dos clientes consumidores, como é o caso de A, nos termos da Diretiva 2009/72, tal é suscetível de criar o vínculo necessário entre a decisão controvertida da Energiavirasto e a Diretiva 2009/72. Com efeito, a decisão da Energiavirasto diz respeito a disposições internas, que constituem a transposição para o direito finlandês de determinadas proteções reconhecidas aos clientes consumidores nos termos da Diretiva 2009/72. Com base neste pressuposto, a decisão da Energiavirasto pode ser considerada abrangida pelo âmbito de aplicação material da Diretiva 2009/72, pelo que as garantias de recurso previstas no artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72 e, de forma mais abrangente, no direito da União aplicam‑se necessariamente.

    C.   Interpretação do artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72

    47.

    O caráter inédito do presente processo reside, portanto, na forma como devem ser interpretados, nestas circunstâncias, o artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72 e o princípio da tutela jurisdicional efetiva garantido pelo direito da União a um cliente consumidor como é o caso de A. Existem suficientes vias conferidas pelo direito do Estado‑Membro para salvaguardar o direito do cliente consumidor a uma tutela jurisdicional efetiva, ou o direito da União impõe ao Estado‑Membro o dever de disponibilizar novas vias de reparação no âmbito de um procedimento administrativo relativo a pedidos de investigação submetidos a ERN?

    48.

    Segundo jurisprudência constante, o princípio da tutela jurisdicional efetiva constitui um princípio geral do direito da União, decorrente das tradições constitucionais comuns aos Estados‑Membros, que foi consagrado pelos artigos 6.o e 13.o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e que foi igualmente reafirmado no artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como no segundo parágrafo do artigo 19.o, n.o 1, TUE, nos termos dos quais os Estados‑Membros devem assegurar a tutela jurisdicional dos direitos conferidos aos litigantes pelo direito da União ( 29 ). Daqui decorre que, embora, em princípio, caiba ao direito nacional determinar a legitimidade e o interesse do litigante em agir judicialmente, o direito da União exige, inter alia, que a legislação nacional não afete o direito a uma tutela jurisdicional efetiva ( 30 ). Importa notar que, conforme o Tribunal de Justiça decidiu no Acórdão Unibet ( 31 ), os Estados‑Membros apenas são obrigados a criar novas vias de recursos nos termos da legislação nacional para assegurar uma tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos aos litigantes pelo direito da União, quando elas não existem.

    49.

    No caso em apreço, resulta do despacho de reenvio (v. n.o 19 das presentes conclusões) que a lei finlandesa prevê vias de recurso jurisdicionais que permitem ao cliente consumidor apresentar uma queixa individual contra uma empresa operadora de rede elétrica para determinar as obrigações que incumbem a essa empresa nos termos da Diretiva 2009/72. Estas vias de recurso incluem a possibilidade de um consumidor apresentar uma queixa à Comissão de Litígios de Consumo e ao Provedor do Consumidor, além de recorrer para os órgãos jurisdicionais comuns.

    50.

    A este respeito, importa salientar que nenhuma das partes que fez observações no presente processo refutou as declarações do Governo finlandês na audiência, segundo as quais um cliente consumidor pode intentar uma ação nos tribunais comuns para determinar se a empresa operadora de rede respeita o disposto na Diretiva 2009/72, garantindo, assim, o seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva nos termos do direito da União, e que as decisões da ERN não são vinculativas para os tribunais comuns ou para a Comissão de Litígios de Consumo. Além disso, os argumentos de A relativos às possíveis desvantagens resultantes da apresentação de uma queixa à Comissão de Litígios de Consumo e aos tribunais comuns (v. n.o 23 das presentes conclusões) não demonstram que os consumidores não dispõem de tais vias de recurso jurisdicionais ou que estão privados do seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva.

    51.

    Pelas considerações expostas, considero que o princípio da tutela jurisdicional efetiva nos termos do direito da União não exige, em princípio, que um Estado‑Membro crie uma nova via de recurso jurisdicional no âmbito de um procedimento para apresentação de pedidos de investigação à ERN, quando o consumidor dispõe de outros meios jurídicos eficazes que lhe permitem determinar o cumprimento por parte da empresa operadora de rede das respetivas obrigações decorrentes da Diretiva 2009/72, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

    52.

    Chego, por conseguinte, à conclusão de que, tendo em conta os meios de que A dispõe nos termos da lei finlandesa e conforme exigido pelas disposições supra descritas previstas na Diretiva 2009/72, A não pode ser considerado «parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora nacional», nos termos do artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72, embora as disposições que preveem vias de recurso, como é o caso deste artigo, sejam habitualmente interpretadas em sentido lato pelo Tribunal de Justiça ( 32 ). A interpretação desta disposição não pode perturbar o quadro jurídico referente ao tratamento das queixas dos consumidores, supra descrito e previsto na Diretiva 2009/72, mesmo quando uma ERN decide tratar uma queixa que pode comportar a aplicação da diretiva. Desde que os meios sejam adequados para garantir uma tutela jurisdicional efetiva dos direitos do consumidor, o que compete ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, nem a redação do artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72 nem o seu contexto ou a sua finalidade podem justificar uma interpretação da referida disposição no sentido preconizado por A, pelo Governo neerlandês e pela Comissão.

    53.

    Estou ciente de que os artigos 37.o, n.os 16 e 17, foram introduzidos na Diretiva 2009/72 juntamente com novas regras que reforçam a independência das ERN, bem como os seus objetivos e as suas obrigações e competências ( 33 ). Conforme referido na Nota Interpretativa da Comissão sobre as ERN ( 34 ), o artigo 37.o, n.os 16 e 17, refere‑se à responsabilidade jurídica da ERN, ou seja, que deve ser permitido intentar ações judiciais contra as decisões da ERN, que estão subordinadas à independência e às responsabilidades desta entidade ( 35 ). A mesma nota assinala ainda a possibilidade de um governo de um Estado contestar uma decisão da ERN ( 36 ). Embora isto sugira que o conceito de «parte afetada» nos termos do artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72 se aplique, em princípio, a qualquer parte afetada por uma decisão da ERN, tal não tem em conta a situação excecional em que esta entidade é chamada a tomar uma decisão incompatível com o sistema de vias de recurso previsto na Diretiva 2009/72 e no direito do Estado‑Membro.

    VI. Conclusão

    54.

    À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões submetidas pelo Korkein hallinto‑oikeus (Supremo Tribunal Administrativo, Finlândia) da seguinte forma:

    O artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade e que revoga a Diretiva 2003/54/CE, deve ser interpretado no sentido de que um cliente consumidor de uma empresa operadora de rede elétrica não pode ser considerado, nas circunstâncias do processo principal, «parte afetada por uma decisão de uma entidade reguladora nacional» para efeitos da referida disposição.


    ( 1 ) Língua original: inglês.

    ( 2 ) JO 2009, L 211, p. 55.

    ( 3 ) É de assinalar que a Diretiva 2009/72 refere‑se ao cliente consumidor como «cliente doméstico», segundo a definição constante do artigo 2.o, n.o 10, da referida diretiva, que também define, no seu artigo 2.o, n.o 6, o conceito de «operador da rede de distribuição». Nestas conclusões, irei empregar geralmente as expressões «cliente consumidor» e «empresa operadora de rede», respetivamente, em conformidade com a redação do despacho de reenvio.

    ( 4 ) O Governo neerlandês refere‑se, em especial, ao Acórdão de 21 de fevereiro de 2008, Tele2 Telecommunication (C‑426/05, EU:C:2008:103, n.os 26, 30 e 32).

    ( 5 ) V., por exemplo, Acórdãos de 13 de dezembro de 2018, Rittinger e o. (C‑492/17, EU:C:2018:1019, n.os 37 a 39), e de 2 de maio de 2019, Asendia Spain (C‑259/18, EU:C:2019:346, n.os 16 a 20).

    ( 6 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2008 (C‑426/05, EU:C:2008:103).

    ( 7 ) Acórdão de 22 de janeiro de 2015 (C‑282/13, EU:C:2015:24).

    ( 8 ) Acórdão de 24 de abril de 2008 (C‑55/06, EU:C:2008:244).

    ( 9 ) Acórdão de 19 de março de 2015 (C‑510/13, EU:C:2015:189).

    ( 10 ) Acórdão de 21 de fevereiro de 2008 (C‑426/05, EU:C:2008:103, em especial n.os 2, 12 a 15, 27, 30 a 39 e 43 a 48).

    ( 11 ) JO 2002, L 108, p. 33; a seguir «diretiva‑quadro». O artigo 4.o, n.o 1, da Diretiva 2002/21 afirma: «Os Estados‑Membros deverão assegurar a existência de mecanismos eficazes, a nível nacional, através dos quais qualquer utilizador ou empresa que ofereça redes e/ou serviços de comunicações eletrónicas que tenha sido prejudicado/a por uma decisão de uma [ERN], tenha o direito de interpor recurso contra essa decisão junto de um organismo de recurso […] independente das partes envolvidas».

    ( 12 ) Acórdão de 22 de janeiro de 2015 (C‑282/13, EU:C:2015:24, em especial n.os 12 a 26, 32 a 39 e 46 a 48).

    ( 13 ) Acórdão de 24 de abril de 2008 (C‑55/06, EU:C:2008:244, em especial n.os 32 a 39 e 171 a 178).

    ( 14 ) JO 1990, L 192, p. 1, com a redação que lhe foi dada pela Diretiva 97/51/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de outubro de 1997, que altera as Diretivas 90/387/CEE e 92/44/CEE do Conselho, para efeitos de adaptação a um ambiente concorrencial no setor das telecomunicações (JO 1997, L 295, p. 23). O artigo 5.o‑A, n.o 3, da Diretiva 90/387 dispunha: «Os Estados‑Membros devem garantir a existência de mecanismos adequados ao nível nacional que confiram ao interessado afetado por uma decisão da [ERN] o direito de recorrer para um órgão independente das partes envolvidas».

    ( 15 ) Acórdão de 19 de março de 2015 (C‑510/13, EU:C:2015:189, n.os 17 a 29 e 37 a 51).

    ( 16 ) JO 2003, L 176, p. 57, e retificação JO 2004, L 16, p. 74. No seu Acórdão de 19 de março de 2015, E.ON Földgáz Trade (C‑510/13, EU:C:2015:189, n.os 30 a 35), o Tribunal de Justiça considerou que a Diretiva 2009/73/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno do gás natural e que revoga a Diretiva 2003/55 (JO 2009, L 211, p. 94), não era aplicável ratione temporis, pelo que não teve a oportunidade de interpretar o artigo 41.o, n.o 17, dessa diretiva, cujo teor é idêntico ao artigo 37.o, n.o 17, da Diretiva 2009/72.

    ( 17 ) V. Conclusões do advogado‑geral E. Tanchev no processo GRDF (C‑236/18, EU:C:2019:441, n.o 34 e jurisprudência referida).

    ( 18 ) V., por exemplo, Despacho de 14 de maio de 2019, Acea Energia e o. (C‑406/17 a C‑408/17 e C‑417/17, não publicado, EU:C:2019:404, n.o 55).

    ( 19 ) V. Diretiva 2009/72, em especial considerandos 42, 54; Anexo I, n.o 1, alínea f).

    ( 20 ) V. Diretiva 2009/72, em especial considerandos 37, 51; Artigos 36.o, alínea g), 37.o, n.o 1, alíneas j) e n), e n.o 2. V. também, por exemplo, a Nota Interpretativa da Comissão, de 22 de janeiro de 2010, sobre os mercados de retalho no quadro da Diretiva 2009/72 e da Diretiva 2009/73, disponível em https://ec.europa.eu/energy/, em especial as secções 3 e 4.5.

    ( 21 ) Na primeira leitura da proposta do Parlamento que culminou na Diretiva 2009/72, propôs‑se o aditamento de um número ao atual artigo 37.o: «As [ERN] criam serviços independentes de reclamações e sistemas alternativos de recurso, como um provedor independente para a energia ou um organismo dos consumidores. Esses serviços ou sistemas são responsáveis pelo tratamento eficiente das reclamações e devem preencher os critérios das melhores práticas. As [ERN] definem normas e diretrizes sobre o modo como as reclamações devem ser tratadas por parte dos produtores e dos operadores das redes». A Resolução legislativa do Parlamento Europeu, de 18 de junho de 2008, sobre uma proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera a Diretiva 2003/54/CE que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade (JO 2009, C 286 E, p. 106), propôs o artigo 22.o‑C, n.o 13. Esta proposta não foi incluída na Posição Comum do Conselho (JO 2009, C 70 E, p. 1) e, na segunda leitura, foram aditadas disposições semelhantes ao atual artigo 3.o V. Recomendação do Parlamento Europeu para segunda leitura, 2 de abril de 2009, A6‑0216/2009.

    ( 22 ) JO 2019, L 158, p. 125.

    ( 23 ) V. artigo 72.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2019/944.

    ( 24 ) V. artigo 60.o, n.o 8, da Diretiva 2019/944.

    ( 25 ) V. Diretiva 2019/944, em especial considerando 86; Artigos 58.o, alínea g), 59.o, alínea r).

    ( 26 ) O sublinhado é meu. V., igualmente, Diretiva 2019/944, considerando 36.

    ( 27 ) V. Diretiva 2009/72, em especial artigos 34.o, n.o 4, 37.o, n.o 3, alínea b), n.o 4, alínea e), e n.o 5, alínea c). Nos termos do artigo 37.o, n.o 15, desta diretiva, as queixas referidas no artigo 37.o, n.os 11 e 12, da mesma «não prejudicam o exercício dos direitos de recurso previstos no direito [da União] ou no direito nacional».

    ( 28 ) V., a esse respeito, Cabau, E. e Ennser, B., «Chapter 6. National Regulatory Authorities», in Jones, C. (ed.,), EU Energy Law. Vol. I: The Internal Energy Market, 4.a ed., Claeys & Casteels, 2016, n.os 6.107 a 6.115.

    ( 29 ) V., por exemplo, Acórdãos de 13 de março de 2007, Unibet (C‑432/05, EU:C:2007:163, n.os 37 e 38 e jurisprudência referida), e de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (independência do Supremo Tribunal) (C‑619/18, EU:C:2019:531, n.os 48 e 49 e jurisprudência referida).

    ( 30 ) V., por exemplo, Acórdãos de 16 de julho de 2009, Mono Car Styling (C‑12/08, EU:C:2009:466, n.o 49 e jurisprudência referida), e de 19 de março de 2015, E.ON Földgáz Trade (C‑510/13, EU:C:2015:189, n.o 50).

    ( 31 ) Acórdão de 13 de março de 2007, Unibet (C‑432/05, EU:C:2007:163, em especial n.os 40 e 41). V., também, por exemplo, Acórdãos de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho (C‑583/11 P, EU:C:2013:625, n.os 103 e 104), e de 24 de outubro de 2018, XC e o. (C‑234/17, EU:C:2018:853, n.o 51).

    ( 32 ) Com efeito, este entendimento é corroborado pelas decisões do Tribunal de Justiça discutidas supra na parte A destas conclusões. V., igualmente, a título exemplificativo, Acórdão de 13 de outubro de 2016, Polkomtel (C‑231/15, EU:C:2016:769, n.os 20 e 21).

    ( 33 ) V. Diretiva 2009/72, em especial considerando 33. O artigo 37.o, n.o 16, desta diretiva dispõe: «As decisões tomadas pelas entidades reguladoras devem ser plenamente fundamentadas de forma a permitir a fiscalização judicial. Essas decisões devem ser disponibilizadas ao público, garantindo, ao mesmo tempo, a confidencialidade das informações comercialmente sensíveis».

    ( 34 ) V. Nota interpretativa da Comissão, de 22 de janeiro de 2010, sobre as entidades reguladoras nacionais previstas na Diretiva 2009/72 e na Diretiva 2009/73, disponível em https://ec.europa.eu/energy/(a seguir «Nota interpretativa da Comissão sobre as ERN»), secção 5.

    ( 35 ) V., a este respeito, Conclusões do advogado‑geral A. Geelhoed no processo Connect Austria (C‑462/99, EU:C:2001:683, n.os 43 a 49). Para uma discussão mais aprofundada, v., por exemplo, De Somer, S., «The powers of national regulatory authorities as agents of EU law», ERA Forum, Vol. 18, 2018, pp. 581 a 595, em especial pp. 589 a 593.

    ( 36 ) V. Nota interpretativa da Comissão sobre as ERN (v. nota 34, supra), p. 20.

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