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Document 62018CC0327

Conclusões do advogado-geral M. Szpunar apresentadas em 7 de agosto de 2018.
RO.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pela High Court (Irlanda).
Reenvio prejudicial — Processo prejudicial urgente — Cooperação policial e judiciária em matéria penal — Mandado de detenção europeu — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Motivos de não execução — Artigo 50.o TUE — Mandado emitido pelas autoridades judiciárias de um Estado‑Membro que desencadeou o procedimento de saída da União Europeia — Incerteza quanto ao regime aplicável às relações entre esse Estado e a União na sequência da saída.
Processo C-327/18 PPU.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2018:644

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MACIEJ SZPUNAR

apresentadas em 7 de agosto de 2018 ( 1 )

Processo C‑327/18 (PPU)

Minister for Justice and Equality

contra

R O

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela High Court (Tribunal Superior, Irlanda)]

«Pedido de decisão prejudicial — Artigo 50.o TUE — Saída da União Europeia — Cooperação judiciária em matéria penal — Decisão‑Quadro 2002/584/JAI — Mandado de detenção europeu»

Introdução

1.

Sabemos que não sabemos praticamente nada sobre a futura relação jurídica entre a União Europeia e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte (a seguir «Reino Unido»).

2.

Mas será isso relevante para efeitos da execução de um mandado de detenção europeu (a seguir «MDE») emitido pelo Reino Unido para a Irlanda antes da data prevista para o Brexit? Não, não é relevante. Um MDE deve continuar a ser executado. Tal como antes.

3.

Esta é, em suma, a solução que proponho no processo em apreço, que tem origem num pedido de decisão prejudicial apresentado pela High Court (Tribunal Superior, Irlanda).

Quadro jurídico

Direito da União

4.

Como indicado no considerando 6 da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI ( 2 ), o MDE previsto nessa decisão «constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu ( 3 ) qualificou de “pedra angular” da cooperação judiciária».

5.

O considerando 10 da decisão‑quadro afirma que «[o] mecanismo do [MDE] é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados‑Membros. A execução desse mecanismo só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no n.o 1 do artigo 6.o [TUE], verificada pelo Conselho nos termos do n.o 1 do artigo 7.o [TUE] e com as consequências previstas no n.o 2 do mesmo artigo.

6.

O artigo 1.o da decisão‑quadro, com a epígrafe «Definição de [MDE] e obrigação de o executar», tem a seguinte redação:

«1.   O [MDE] é uma decisão judiciária emitida por um Estado‑Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado‑Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

2.   Os Estados‑Membros executam todo e qualquer [MDE] com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente decisão‑quadro.

3.   A presente decisão‑quadro não tem por efeito alterar a obrigação de respeitar os direitos fundamentais e os princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o [TUE].

7.

O capítulo 3 da decisão‑quadro, composto pelos artigos 26.o a 30.o, aborda os «Efeitos da entrega».

8.

O artigo 26.o, n.o 1, da decisão‑quadro, intitulado «Dedução do período de detenção cumprido no Estado‑Membro de execução», dispõe:

«O Estado‑Membro de emissão deduz a totalidade dos períodos de detenção resultantes da execução de um mandado de detenção europeu do período total de privação da liberdade a cumprir no Estado‑Membro de emissão, na sequência de uma condenação a uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.»

9.

O artigo 27.o, n.o 2, da decisão‑quadro, relativo a «Eventuais procedimentos penais por outras infrações», contém a comummente designada «norma especial». O referido número tem a seguinte redação:

«[…] uma pessoa entregue não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infração praticada antes da sua entrega diferente daquela por que foi entregue».

10.

O artigo 28.o da decisão‑quadro trata da «Renúncia e extradição posterior» (para um Estado terceiro).

Direito irlandês

11.

O European Arrest Warrant Act 2003 (Lei de 2003 relativa ao mandado de detenção europeu), conforme alterado, transpôs as disposições da decisão‑quadro para o direito irlandês.

Direito do Reino Unido

12.

O Extradition Act 2003 (Lei de 2003 relativa à extradição) transpôs as disposições da decisão‑quadro para o direito do Reino Unido.

Matéria de facto e tramitação processual no órgão jurisdicional de reenvio

13.

As autoridades judiciárias do Reino Unido solicitaram a entrega de R O com base em dois MDE emitidos em 27 de janeiro e 4 de maio de 2016 e homologados pela High Court (Tribunal Superior, Irlanda) para execução em 1 de fevereiro e 10 de maio de 2016, respetivamente, para efeito de procedimento penal pelos crimes de homicídio, incêndio e violação, que são puníveis com a pena máxima de prisão perpétua.

14.

RO foi detido na Irlanda com base no primeiro MDE em 3 de fevereiro de 2016, continuando detido desde então. Foi detido com base no segundo MDE em 4 de maio de 2016 e foi mantido em detenção.

15.

RO contestou a sua entrega ao Reino Unido com base em questões que se colocam devido à saída do Reino Unido da União Europeia e ao artigo 3.o da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»), quanto a um tratamento desumano ou degradante que alega que sofreria caso viesse a ser detido na Prisão de Maghaberry na Irlanda do Norte. Argumenta que não é clara a forma como os seus direitos ao abrigo da decisão‑quadro serão garantidos após a saída do Reino Unido da União Europeia.

16.

Devido ao seu estado de saúde, R O não pôde ser ouvido até 27 de julho de 2017.

17.

Numa decisão proferida em 2 de novembro de 2017, a High Court (Supremo Tribunal, Irlanda) analisou o argumento de R O segundo o qual seria sujeito a um tratamento desumano ou degradante caso fosse entregue à Irlanda do Norte e, expressamente, remeteu a questão do Brexit para decisão posterior. A High Court (Tribunal Superior) referiu os critérios semelhantes aplicáveis nos termos do artigo 3.o CEDH ( 4 ) e do artigo 4.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta») ( 5 ). A High Court (Tribunal Superior) declarou que havia informação específica e atualizada sobre as condições de detenção na prisão de Maghaberry que levavam a temer que existia um risco efetivo de que RO, pelas suas vulnerabilidades, seria sujeito a um tratamento desumano ou degradante. À luz das disposições acima referidas, tal como interpretadas pela Irish Supreme Court (Supremo Tribunal, Irlanda) e pelo Tribunal de Justiça, e feita uma análise dos elementos de prova que constam dos autos, a High Court (Tribunal Superior) solicitou informações complementares ao Reino Unido quanto às condições de detenção de R O caso o mesmo viesse a ser entregue ao Reino Unido.

18.

Em 16 de abril de 2018, a autoridade judiciária de emissão, a Laganside Court in Belfast (Tribunal de Laganside, Belfast, Irlanda do Norte), prestou informação quanto à forma como os serviços prisionais da Irlanda do Norte iriam lidar com o risco de R O ser sujeito a tratamento desumano ou degradante na Irlanda do Norte.

19.

A High Court (Tribunal Superior) julgou improcedentes todos os fundamentos de objeção de R O, com exceção do relativo às consequências do Brexit em relação com o artigo 3.o da CEDH.

20.

A High Court (Tribunal Superior) recorda que, em 29 de março de 2017, o Reino Unido notificou o Conselho Europeu, nos termos do artigo 50.o, n.o 2, TFUE, da sua intenção de sair da União Europeia. Sem prejuízo de outros acordos, o efeito desta notificação é a saída do Reino Unido da União com efeitos a 29 de março de 2019, nos termos do disposto no artigo 50.o TUE.

21.

A High Court (Tribunal Superior) considera que é altamente provável que, caso seja entregue, R O continue na prisão no Reino Unido após 29 de março de 2019, isto é, após o Reino Unido sair da União. Poderão vir a ser adotadas medidas transitórias para regular a situação imediatamente posterior a tal data e poderão vir a ser celebrados acordos entre a União e o Reino Unido para regular as futuras relações entre as partes em áreas como as abrangidas pela decisão‑quadro.

22.

Todavia, na presente data, não é claro que tais acordos venham a ser celebrados nem, caso o sejam, qual a natureza das medidas relevantes que serão adotadas. Em especial, não se sabe se, após a saída do Reino Unido da União, um cidadão da União que se encontra sob a jurisdição do Reino Unido manterá o direito de submeter questões relevantes de direito da União, em caso de litígio, para decisão do Tribunal de Justiça.

23.

No seu pedido de decisão prejudicial, a High Court (Tribunal Superior) também indica que, no contesto do presente processo, submete essencialmente as mesmas questões que a Irish Supreme Court (Tribunal Supremo, Irlanda) submeteu em março de 2018, no processo KN/Minister for Justice and Equality ( 6 ), que está atualmente pendente no Tribunal de Justiça ( 7 ), mas carece de uma resposta mais rápida, uma vez que R O se encontra detido.

Questões submetidas ao Tribunal de Justiça

24.

É neste contexto que, por despacho de 17 de maio de 2018, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 18 de maio de 2018, a High Court (Tribunal Superior) submeteu as seguintes questões para decisão prejudicial:

«Atendendo:

a)

À notificação apresentada pelo Reino Unido nos termos do artigo 50.o TUE;

b)

À incerteza quanto aos acordos que serão celebrados entre a União Europeia e o Reino Unido que virão a regular as relações após a saída do Reino Unido; e

c)

À consequente incerteza quanto à medida em que [R O] poderá, na prática, gozar dos direitos conferidos pelos Tratados, pela Carta ou pela legislação relevante, no caso de ser entregue ao Reino Unido e de permanecer preso após a saída do Reino Unido,

1.

Um Estado‑Membro requerido é obrigado, à luz do direito da União, a recusar a entrega ao Reino Unido de uma pessoa contra quem foi emitido um [MDE], entrega essa que, de outro modo, seria obrigatória por força da legislação nacional do Estado‑Membro em questão:

i)

Em todos os casos?

ii)

Em certos casos, atendendo às circunstâncias específicas de cada caso?

iii)

Em nenhum caso?

2.

Se a resposta à primeira questão for a indicada na alínea ii), quais são os critérios ou considerações que um tribunal do Estado‑Membro requerido deve apreciar para determinar se a entrega é proibida?

3.

No contexto da segunda questão, deve o tribunal do Estado‑Membro requerido adiar a decisão final sobre a execução do [MDE], enquanto aguarda maior clareza sobre o regime jurídico relevante que vier a ser adotado após a saída da União Europeia do Estado‑Membro requerente em questão:

i)

Em todos os casos?

ii)

Em certos casos, atendendo às circunstâncias específicas de cada caso?

iii)

Em nenhum caso?

4.

Se a resposta à terceira questão for a indicada na alínea ii), quais são os critérios ou considerações que um tribunal do Estado‑Membro requerido deve apreciar para determinar se deve adiar a decisão final sobre a execução do [MDE]?

Tramitação urgente

25.

Nesse mesmo despacho de 17 de maio de 2018, o órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente pedido de reenvio prejudicial fosse sujeito à tramitação urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

26.

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que o reenvio suscita questões numa matéria abrangida pela parte III, título V, do Tratado FUE, ou seja, a cooperação judiciária em matéria penal (capítulo 4), que R O se encontra atualmente detido apenas com base nos MDE emitidos pelo Reino Unido, e que é necessário um acórdão do Tribunal de Justiça para lhe permitir decidir definitivamente o presente processo.

27.

A justificação invocada para a urgência prende‑se com o facto de a tramitação prejudicial ordinária, ou mesmo a tramitação acelerada, aumentar significativamente o período de detenção de RO, que beneficia de uma presunção de inocência no que se refere aos MDE emitidos para efeitos de procedimento penal.

28.

O órgão jurisdicional de reenvio sublinha igualmente que existem outros oito processos em que as pessoas continuam detidas na Irlanda, unicamente com base em MDE emitidos pelo Reino Unido e em que foi invocada a «questão do Brexit» para sustentar que o tribunal não deve ordenar a entrega. Também salienta que se encontram detidas outras pessoas, a cumprir penas nacionais que terminarão brevemente e que poderão, por isso, permanecer detidas enquanto aguardam a entrega ao Reino Unido, mas cujos processos deverão ser suspensos enquanto se aguarda uma decisão sobre a questão relativa ao Brexit. Há, ainda, várias outras pessoas que foram detidas com base em MDE do Reino Unido, mas que se encontram em liberdade sob caução enquanto aguardam uma decisão sobre a entrega e que também suscitaram esta questão relativa ao Brexit. Por último, a Irlanda recebeu um «número significativo» de MDE emitidos pelo Reino Unido que aguardam execução, pelo que são extremamente prováveis novas detenções de «pessoas procuradas».

29.

A Primeira Secção do Tribunal de Justiça decidiu, em 11 de junho de 2018, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral, deferir o pedido do órgão jurisdicional de reenvio no sentido de submeter o presente reenvio prejudicial a tramitação urgente. As partes no processo principal, o Governo do Reino Unido e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas. As mesmas partes, bem como a Roménia, participaram na audiência realizada em 12 de julho de 2018.

Análise

30.

A questão submetida ao Tribunal de Justiça é, no essencial, saber se, numa situação em que um Estado‑Membro tenha, em primeiro lugar, notificado o Conselho Europeu, nos termos do artigo 50.o, n.o 2, TUE, da sua intenção de sair da União e, em segundo lugar, em conformidade com as disposições pertinentes da decisão‑quadro, emitido um MDE com vista à entrega por outro Estado‑Membro de uma pessoa procurada, a apreciação jurídica a efetuar por esse outro Estado‑Membro no momento da execução do MDE é alterada pela referida notificação de saída e, em caso afirmativo, em que medida.

31.

Consequentemente, o Tribunal de Justiça deve determinar se o sistema do MDE deve continuar a ser aplicável enquanto o Reino Unido atua como Estado‑Membro de emissão, apesar de os direitos que o interessado tem nos termos da decisão‑quadro deixarem provavelmente de ser protegidos da mesma forma após 29 de março de 2019, em especial, se o mecanismo do reenvio prejudicial deixar de estar ao dispor dos órgãos jurisdicionais desse Estado.

Admissibilidade

32.

A título preliminar, deve ser salientado que não se coloca nenhuma questão quanto à admissibilidade do presente processo.

33.

A competência do Tribunal de Justiça para decidir a título prejudicial, nos termos do artigo 267.o do TFUE diz respeito à interpretação dos Tratados e à validade e interpretação dos atos das instituições.

34.

As questões submetidas prendem‑se com o artigo 50.o TUE. As explicações claras e a exposição das questões jurídicas com que o órgão jurisdicional de reenvio se vê confrontado ( 8 ) bastam para que o processo seja admissível. Em especial, o caso em apreço não é hipotético na aceção da jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça ( 9 ), dado que o artigo 50.o TUE já produz efeitos jurídicos.

35.

Além disso, caso a situação não se altere, como se verá adiante mais em pormenor, em consequência do artigo 50.o, n.o 3, TUE, o direito da União deixará de ser aplicável ao Reino Unido a partir de 29 de março de 2019. Esta data situa‑se num futuro próximo e, em qualquer caso, num momento em que as disposições da decisão‑quadro relativas às situações após a entrega ainda produzirão efeitos.

36.

Por conseguinte, embora um pedido de decisão prejudicial como o presente não seja de natureza hipotética, isto não significa que não possamos trabalhar com suposições, mesmo que estas sejam que, em termos jurídicos, que tudo continuará como atualmente.

37.

O órgão jurisdicional de reenvio pretende obter uma resposta do Tribunal de Justiça que considere necessária ( 10 ) para decidir se executa um MDE. Deve ser dada uma resposta.

Mérito

38.

A apreciação do mérito será estruturada do seguinte modo: em primeiro lugar, cumpre recordar o processo normal de entrega entre dois Estados‑Membros ao abrigo da decisão‑quadro. Em seguida, examinarei as implicações possíveis do artigo 50.o TUE num processo de entrega, quando a autoridade de emissão seja no Reino Unido. Subsequentemente, abordarei aspetos específicos suscitados por R O no contexto do processo de entrega antes de, por último, me debruçar sobre a questão da competência do Tribunal de Justiça.

Processo normal de entrega entre dois Estados‑Membros

39.

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o objetivo da decisão‑quadro é substituir o sistema de extradição multilateral entre Estados‑Membros por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal baseado no princípio do reconhecimento mútuo ( 11 ). Mais recentemente, o Tribunal de Justiça especificou que o sistema de extradição multilateral era «baseado na Convenção Europeia de Extradição [ ( 12 )], de 13 de dezembro de 1957» ( 13 ).

40.

As características fundamentais da decisão‑quadro, no que respeita aos fundamentos de não execução de um MDE já são bem conhecidas do Tribunal de Justiça ( 14 ). O artigo 1.o, n.o 2, da decisão‑quadro dispõe que os Estados‑Membros executam todo e qualquer MDE com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na mesma decisão‑quadro. As autoridades judiciárias de execução apenas podem recusar dar execução a tal mandado nos casos, exaustivamente enumerados, de não execução previstos nesta decisão‑quadro ( 15 ), e a execução do MDE apenas pode ser subordinada a uma das condições limitativamente previstas na decisão‑quadro ( 16 ). Por conseguinte, embora a execução do MDE constitua o princípio, a recusa de entrega está concebida como uma exceção que deve ser objeto de interpretação estrita ( 17 ).

41.

O artigo 3.o da decisão‑quadro prevê motivos de não execução obrigatória do MDE, ao passo que os artigos 4.o e 4.o‑A da decisão‑quadro estabelecem os motivos de não execução facultativa do MDE ( 18 ). Além disso, a execução do MDE apenas pode estar subordinada a uma das condições ( 19 ) previstas no artigo 5.o da decisão‑quadro ( 20 ).

42.

A decisão‑quadro assenta no princípio do reconhecimento mútuo, um conceito inicialmente desenvolvido no contexto das liberdades do mercado interno ( 21 ), que, por sua vez, enquanto «pedra angular» da cooperação judiciária, assenta na confiança mútua ( 22 ) entre os Estados‑Membros para alcançar o objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, segurança e justiça ( 23 ). Este princípio impõe genericamente aos Estados‑Membros que considerem que todos os outros Estados‑Membros respeitam o direito da União, em especial, os direitos fundamentais reconhecidos por esse mesmo direito ( 24 ). É seguro afirmar que o reconhecimento mútuo é provavelmente o maior contributo da União para a cooperação judiciária entre as autoridades dos Estados‑Membros e que o instrumento principal neste domínio é a decisão‑quadro ( 25 ). Uma vez que a confiança mútua não é uma confiança cega ( 26 ), o Tribunal de Justiça reconheceu que pode haver limitações ao princípio da confiança mútua e, por conseguinte, do reconhecimento mútuo, em casos excecionais ( 27 ).

43.

Em especial, no que diz respeito à decisão‑quadro, como resulta do importante Acórdão Aranyosi e Căldăraru ( 28 ), tais limitações podem ter lugar quando exista um risco real de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.o da Carta ( 29 ) devido às condições de detenção no Estado‑Membro de emissão. Para este efeito, a autoridade judiciária de execução deve, antes de mais, basear‑se em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados quanto às condições de detenção que prevalecem no Estado‑Membro de emissão e que demonstrem que há deficiências, quer sejam sistémicas ou generalizadas, quer afetem determinados grupos de pessoas ou ainda determinados centros de detenção ( 30 ). Num segundo momento, uma vez constatada a existência de tal risco, a autoridade judiciária de execução deve em seguida apreciar, de maneira concreta e precisa, se existem motivos sérios e comprovados para considerar que a pessoa em causa correrá esse risco em razão das condições de detenção que se prevê aplicar‑lhe no Estado‑Membro de emissão ( 31 ).

44.

Voltando ao caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que não está presente nenhum dos motivos de não execução obrigatória ou facultativa do MDE. Além disso, no que diz respeito às condições de detenção, parece‑nos que o órgão jurisdicional de reenvio efetuou cuidadosamente as duas fases da análise descritas no número anterior das presentes conclusões e chegou à conclusão de que — com exceção das consequências do Brexit — não se suscitava nenhuma questão específica relativamente ao artigo 4.o da Carta ( 32 ).

45.

Tal está, aliás, diretamente refletido no modo como o órgão jurisdicional de reenvio formulou a sua primeira questão, quando afirma que a entrega da pessoa procurada, seria, de outro modo, obrigatória. Por conseguinte, se não fosse a notificação de saída, o órgão jurisdicional de reenvio decidiria que a Irlanda deve proceder à execução dos mandados de detenção europeus a respeito de R O.

Implicações do artigo 50.o TUE

46.

Em seguida, deve ser analisado se a notificação do Reino Unido, em conformidade com o artigo 50.o TUE, ao Conselho Europeu da sua intenção de sair da União influencia nalguma medida o exposto, no sentido de que a apreciação jurídica a efetuar pela autoridade judiciária de execução deva, de algum modo, ser alterada.

– Artigo 50.o TUE

47.

O artigo 50.o TUE, que constitui um corolário do artigo 53.o TUE, nos termos do qual o Tratado tem vigência ilimitada, clarifica que qualquer Estado‑Membro pode decidir retirar‑se da União ( 33 ) e recorda que a União se baseia na participação voluntária ( 34 ). O artigo 50.o, n.o 2, TUE estabelece um procedimento para tal: em primeiro lugar, o Estado‑Membro em questão deve notificar a sua intenção de se retirar ao Conselho Europeu. Em seguida, em função das orientações do Conselho Europeu, a União negocia e celebra com esse Estado um acordo que estabeleça as condições da sua saída, tendo em conta o quadro das suas futuras relações com a União ( 35 ). Esse acordo é celebrado em nome da União pelo Conselho da União Europeia, deliberando por maioria qualificada, após aprovação do Parlamento Europeu.

48.

O artigo 50.o, n.o 3, TUE estabelece que os Tratados (ou seja, o direito da União como um todo) deixam de ser aplicáveis ao Estado em causa a partir da data de entrada em vigor do acordo de saída ou, na falta deste, dois anos após a notificação referida no artigo 50.o, n.o 2, TUE, a menos que o Conselho Europeu, com o acordo do Estado‑Membro em causa, decida, por unanimidade, prorrogar esse prazo.

49.

Na falta de um acordo geral sobre a saída ( 36 ) e de regras detalhadas sobre processo de entrega ou de extradição entre a União e o Reino Unido em especial, resta‑nos um período de dois anos após a notificação, ou seja, se tudo continuar como está, em 29 de março de 2019 o Reino Unido sairá da União. É com base neste pressuposto que devemos trabalhar, pois é a posição de base. Tudo o resto pode estar escrito nas estrelas. E não parece que essas estrelas sejam as da bandeira europeia.

– Critério não abstrato

50.

R O alega que a notificação de saída do Reino Unido de 29 de março de 2017 constitui em si mesma uma circunstância excecional que implica a não execução dos MDE em causa ( 37 ). Em seu entender, a confiança mútua foi «profundamente abalada» pela notificação de saída ( 38 ). R O alega que esta situação implica que os MDE emitidos pelo Reino Unido já não podem ser executados.

51.

Não concordo com esse raciocínio, que força a interpretação dos efeitos jurídicos de uma notificação de saída para lá dos limites de qualquer interpretação jurídica possível.

52.

A saída da União, embora não seja talvez uma opção muito agradável para todos os interessados ( 39 ), é uma possibilidade expressamente reconhecida no artigo 50.o TUE. Embora no contexto da história e objetivos dos Tratados ( 40 ), que se baseiam em valores comuns ( 41 ), o artigo 50.o TUE constitua certamente uma exceção, não deixa de ser verdade que este artigo existe e que um Estado‑Membro pode recorrer ao mesmo.

53.

Se a notificação de saída propriamente dita devesse ser considerada uma circunstância excecional suscetível de abalar profundamente a confiança mútua, tal constituiria um juízo prévio quanto aos motivos que levam um Estado‑Membro a sair e privaria esta disposição de qualquer utilidade.

54.

Além disso, parece arbitrário decidir categoricamente que a situação do presente processo deve ser tratada de forma diferente da de um MDE emitido antes da data da notificação de saída ( 42 ).

55.

Com efeito, a abordagem proposta por R O conduziria a uma suspensão geral unilateral ( 43 ) das disposições da decisão‑quadro a partir da data da notificação de saída. Tal entraria em contradição com o princípio subjacente à decisão‑quadro, como descrito no considerando 10, segundo o qual a execução mecanismo de MDE só poderá ser suspensa no caso de violação grave e persistente, por parte de um Estado‑Membro, dos princípios enunciados no artigo 6.o, n.o 1, TUE, verificada pelo Conselho nos termos do artigo 7.o, n.o 1,TUE e com as consequências previstas no n.o 2 do mesmo artigo ( 44 ). Além disso, não seria compatível com o princípio geral do direito da União de que os Estados‑Membros não podem suspender a aplicação das disposições do direito da União.

56.

A simples emissão da notificação de saída não constitui, portanto, uma circunstância excecional que justifique a não execução de um MDE.

Questões específicas após a entrega

57.

A High Court (Tribunal Superior) refere‑se a quatro questões de direito da União suscitadas por R O que, teoricamente ( 45 ), se colocam após a entrega e, sobretudo, após 29 de março de 2019. São as seguintes: em primeiro lugar, se poderá ver descontado o período em que esteve detido, em conformidade com o artigo 26.o da decisão‑quadro; em segundo lugar, se a regra da especialidade, consagrada no artigo 27.o da decisão‑quadro, será cumprida; em terceiro lugar, a proibição de entrega subsequente a um Estado terceiro ( 46 ) pelo Reino Unido e, em quarto lugar, o respeito dos seus direitos fundamentais, tal como consagrados na Carta. De um ponto de vista geral, R O acrescenta que, embora tivesse, sem dúvida, acesso aos tribunais do Reino Unido para obter uma decisão em relação a esses quatro aspetos, caso surgissem, ficaria privado da possibilidade de ter essas questões dirimidas em definitivo pelo Tribunal de Justiça.

58.

Em contrapartida, o Ministro irlandês, o Governo do Reino Unido e a Comissão não veem qualquer obstáculo à execução do MDE. Nem o Governo romeno.

– Brexit significa Brexit ( 47 )

59.

Quando um Estado‑Membro abandona a União, e na falta de quaisquer regras na matéria, a decisão‑quadro deixa de ser aplicável a esse Estado ( 48 ). A consequência natural é que nem um Estado está vinculado às obrigações que dela resultam, nem pode beneficiar dos direitos nela consagrados. Outra consequência natural é que as pessoas singulares já não podem invocar os direitos que lhes são atribuídos na decisão‑quadro relativamente ao Estado ao qual a decisão‑quadro ( 49 ) deixa de ser aplicável.

60.

Trata‑se de um fenómeno geral inerente à saída de um Estado‑Membro de uma organização, de uma convenção ou de qualquer outra forma de cooperação. Com a adesão a uma organização, os direitos e obrigações que são inerentes a essa adesão evoluem. Como a adesão à União é, em princípio, concebida para um período ilimitado ( 50 ), os direitos (e obrigações) decorrentes do direito da União têm, em princípio, a mesma duração que a da qualidade de membro da União. Assim, por exemplo, as pessoas singulares e coletivas já não podem invocar as liberdades fundamentais do mercado interno contra os antigos Estados‑Membros em causa. Já não podem fazer comércio, nem trabalhar nem viajar como antes. Com efeito, este é alegadamente o motivo essencial para um Estado‑Membro abandonar uma organização como a União: deixar de estar vinculado a obrigações. A outra face da moeda é, inevitavelmente e talvez irremediavelmente, perder os direitos.

61.

A decisão‑quadro não constitui exceção a este fenómeno geral ( 51 ).

– A confiança mútua não é posta em causa

62.

Em contrapartida, enquanto um Estado continuar a ser membro da União Europeia, a legislação da União é aplicável. No que diz respeito ao caso em apreço, não vejo qualquer motivo para que as disposições da decisão‑quadro e, em especial, a obrigação de entrega não sejam aplicáveis.

63.

Neste ponto, gostaria de sublinhar que as considerações apresentadas por R O não são sustentadas por provas concretas. Não é possível determinar se as preocupações são reais ou hipotéticas. Este facto é reconhecido pelo próprio órgão jurisdicional de reenvio.

64.

A situação jurídica entre o Reino Unido e a Irlanda no que respeita à entrega continua a estar regulada pela decisão‑quadro que, como foi suficientemente clarificado acima e reiteradamente afirmado pelo Tribunal de Justiça, assenta na confiança mútua ( 52 ). O cenário só seria diferente se a confiança mútua fosse posta em causa.

65.

Não há indicações tangíveis de que as circunstâncias políticas que antecederam, deram origem ou se sucedem à notificação de saída sejam suscetíveis de desrespeitar o conteúdo substantivo da decisão‑quadro e os direitos fundamentais consagrados na Carta ( 53 ). Como o Ministro irlandês corretamente alega, o Reino Unido decidiu sair da União, e não abandonar o Estado de direito ou a proteção dos direitos fundamentais. Por conseguinte, não há qualquer razão para questionar o empenho contínuo do Reino Unido em matéria de direitos fundamentais ( 54 ).

66.

Além disso, se um Estado tiver deixado de ser membro da União e já não estiver vinculado pelas disposições da decisão‑quadro, isto não significa que não sejam aplicáveis outras regras. As disposições do Extradiction Act 2003 (Lei de 2003 relativa à extradição) ( 55 ) continuarão a aplicar‑se como direito (puramente) interno ( 56 ). Acresce que o Reino Unido é, por exemplo, parte na Convenção Europeia de Extradição, de 1957 ( 57 ) e, além disso, está vinculado à CEDH. A Convenção de Extradição contém uma regra de especialidade ( 58 ), bem como uma disposição que proíbe, em princípio, a reextradição para um Estado terceiro ( 59 ).

67.

Neste contexto, não se deve esquecer que, empiricamente, as disposições da decisão‑quadro que digam respeito à situação após a entrega só raramente têm sido objeto de um pedido de decisão prejudicial por parte de um órgão jurisdicional nacional ( 60 ).

68.

Importa, além disso, sublinhar que, também no caso de extradição para um Estado fora da União ( 61 ), o Tribunal de Justiça aplica os mesmos princípios que no Acórdão Aranyosi e Căldăraru ( 62 ), ao interpretar as disposições do Tratado sobre cidadania e não discriminação e as da Carta ( 63 ).

69.

A aplicação de um critério mais estrito para o caso em apreço implicaria inevitavelmente que R O beneficiaria de uma proteção mais forte do que a que receberia se devesse ser extraditado para um Estado fora da União. Isso não seria coerente.

70.

O critério que proponho aplicar é por isso o seguinte: no momento de executar o MDE, as autoridades judiciárias do Estado‑Membro de execução podem presumir que o Estado‑Membro de emissão, no que respeita à pessoa efetivamente entregue, dará cumprimento ao conteúdo substantivo da decisão‑quadro, incluindo no que se refere às situações após a entrega depois de o Estado‑Membro de emissão sair da União. Idêntica presunção pode ser feita caso outros instrumentos internacionais continuem a aplicar‑se ao Estado‑Membro que saiu da União. As autoridades judiciárias de um Estado‑Membro só podem decidir não executar o mandado de detenção se houver provas tangíveis em sentido contrário.

71.

Incumbe às autoridades judiciárias do Estado‑Membro de execução efetuar a referida avaliação. Da informação clara apresentada pelo órgão jurisdicional de reenvio no seu pedido de decisão prejudicial, no que diz respeito ao processo em apreço, não parece haver razões para não executar o MDE em causa.

Quanto à competência do Tribunal de Justiça

72.

Por último, devemos analisar as implicações da falta de competência do Tribunal de Justiça quando se trata de interpretar as disposições da decisão‑quadro.

73.

Esta questão é relativamente simples, já que é melhor analisada olhando não para o futuro ( 64 ) mas para o passado.

74.

A decisão‑quadro foi adotada, em 13 de junho de 2002, ao abrigo das disposições relevantes do Tratado UE ( 65 ), conforme alterado em último lugar pelo Tratado de Amesterdão ( 66 ), ou seja o anteriormente designado «terceiro pilar». Os procedimentos no âmbito deste pilar eram essencialmente intergovernamentais. Assim, em comparação com o Tratado que estabelece a Comunidade Europeia, o papel da Comissão era bastante reduzido, a votação por unanimidade prevalecia no Conselho e a competência do Tribunal de Justiça era limitada e, além disso, por força do então aplicável artigo 35.o TUE, dependia de uma declaração de cada Estado‑Membro em como aceitava tal competência ( 67 ). Nem o Reino Unido, nem, por coincidência, a Irlanda, fizeram tal declaração ( 68 ).

75.

Por conseguinte, antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o presente processo não poderia ter chegado ao Tribunal de Justiça ( 69 ). Um Tribunal do Reino Unido também não poderia ter submetido um pedido de decisão prejudicial. E contudo, mesmo num passado não muito distante, a União estava firmemente alicerçada no Estado de direito, incluindo o acesso à justiça.

76.

Foi apenas com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa ( 70 ), ou, para ser mais preciso, cinco anos após essa entrada em vigor ( 71 ), que o Tribunal de Justiça passou a dispor de plena competência no que diz respeito à interpretação da decisão‑quadro. Como é sabido, este Tratado suprimiu a estrutura de três pilares e constitucionalizou ( 72 ) — no sentido de que são agora aplicáveis princípios fundamentais supranacionais neste domínio, como o processo legislativo ordinário ( 73 ) e a plena jurisdição do Tribunal de Justiça ( 74 ) — o espaço de liberdade, de segurança e de justiça.

77.

Em suma, não vejo de que forma a questão da falta de competência do Tribunal de Justiça após 29 de março de 2019 constitui um impedimento à entrega de R O ao Reino Unido.

Observações finais

78.

Resulta da apreciação acima que a execução de um MDE emitido pelo Reino Unido com base na decisão‑quadro deve prosseguir como se o Reino Unido não tivesse, nos termos do artigo 50.o TUE, notificado o Conselho Europeu da sua intenção de sair da União. O processo em apreço não é, por isso, sobre a possível complexidade de um período transitório ou de implementação, simplesmente porque atualmente tal período (ainda) não está previsto na lei. Assim, a vasta experiência da União em matéria de períodos transitórios que, em muitos aspetos ( 75 ), não são inovadores no direito da União ( 76 ), não pode ser útil neste momento ( 77 ).

79.

O Brexit constitui terra incognita em matéria de direito da União ( 78 ). Pouco se sabe sobre os acordos que irão vigorar entre a União e o Reino Unido após 29 de março de 2019, nem em geral nem relativamente ao regime do MDE em especial ( 79 ). O que é um facto após a saída da União é que a dado momento a maré vai retroceder. O direito da União irá descer pelos rios e sair dos estuários ( 80 ).

80.

Mas no que diz respeito ao caso em apreço, nada se alterou.

81.

Importa acrescentar que a Cour de cassation (Tribunal de Cassação, França), por decisão de 2 de maio de 2018, considerou não existir motivo para suspender a instância aguardando uma resposta do Tribunal de Justiça num (outro) pedido de decisão prejudicial sobre as consequências do Brexit para a decisão‑quadro ( 81 ).

82.

Por conseguinte, não vejo qualquer razão pela qual o órgão jurisdicional de reenvio deva alterar a sua apreciação jurídica, de forma alguma, apenas devido à notificação do Reino Unido, de 29 de março de 2017, da sua intenção de sair da União.

Conclusão

83.

Tendo em conta as considerações expostas, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões submetidas pela High Court (Tribunal Superior, Irlanda) do seguinte modo:

Numa situação em que um Estado‑Membro tenha, em primeiro lugar, em conformidade com o artigo 50.o, n.o 2, TUE, notificado o Conselho Europeu da sua intenção de sair da União Europeia e, em segundo lugar, em conformidade com as disposições pertinentes da Decisão‑Quadro 2002/584/JHA do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, emitido um mandado de detenção europeu (MDE), com vista à entrega por outro Estado‑Membro de uma pessoa procurada, a apreciação jurídica a realizar pelas autoridades judiciárias desse outro Estado‑Membro para a execução do MDE não é alterada pela referida notificação de saída.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) Decisão‑Quadro do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros (JO 2002, L 190, p. 1), conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, que altera as Decisões‑Quadro 2002/584/JAI, 2005/214/JAI, 2006/783/JAI, 2008/909/JAI e 2008/947/JAI, e que reforça os direitos processuais das pessoas e promove a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo no que se refere às decisões proferidas na ausência do arguido (JO 2009, L 81, p. 24, a seguir a seguir «decisão‑quadro»).

( 3 ) V. Conclusões do Conselho Europeu de Tampere de 15 e 16 de outubro de 1999, referidas no considerando 1 da decisão‑quadro.

( 4 ) Conforme determinados pela Irish Supreme Court (Supremo Tribunal da Irlanda) no processo Minister of Justice contra Rettinger [2010] IESC 45.

( 5 ) Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198).

( 6 ) Processo C‑191/18.

( 7 ) O pedido de decisão prejudicial foi apresentado por decisão de 12 de março de 2018. KN, que foi considerado culpado, no Reino Unido, por crimes de fraude fiscal e condenado a penas de prisão, fugiu para a Irlanda enquanto aguardava a sentença em liberdade. Posteriormente, um tribunal do Reino Unido emitiu um MDE contra si. Tal como no presente processo, a Supreme Court (Tribunal Supremo) pretende saber, no essencial, se as implicações do Brexit a obrigam a alterar a sua apreciação jurídica do litígio. Um pedido do órgão jurisdicional de reenvio para que o Tribunal de Justiça aplique a tramitação acelerada, nos termos do artigo 105.o, n.o 1, do seu Regulamento de Processo, foi indeferido por despacho do presidente do Tribunal de Justiça. No despacho, considerou‑se que o facto de o Reino Unido poder, no futuro próximo, deixar de fazer parte da União e, se for caso disso, deixar de estar sujeito ao direito da União, nomeadamente às disposições da decisão‑quadro, não pode, por si só, criar uma situação de urgência para as partes no processo principal. V. despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 30 de maio de 2018, KN (C‑191/18, não publicado, EU:C:2018:383, n.o 21).

( 8 ) Que cumprem integralmente o artigo 94.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

( 9 ) V., por exemplo, Acórdão de 28 de setembro de 2006, Gasparino e o. (C‑467/04, EU:C:2006:610, n.o 44).

( 10 ) V. artigo 267.o, n.o 2, TFUE. V., igualmente, as minhas Conclusões no processo AY (C‑268/17, EU:C:2018:317, n.os 25 e 26).

( 11 ) Desde o Acórdão de 3 de maio de 2007, Advocaten voor de Wereld (C‑303/05, EU:C:2007:261, n.o 28).

( 12 ) Do Conselho da Europa. V. Convenção Europeia de Extradição. Texto disponível em: https://www.coe.int/en/web/conventions/full‑list/‑/conventions/treaty/024.

( 13 ) V. Acórdãos de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 75); de 10 de novembro de 2016, Kovalkovas (C‑477/16 PPU, EU:C:2016:861, n.o 25); e de 10 de novembro de 2016, Poltorak (C‑452/16 PPU, EU:C:2016:858, n.o 24).

( 14 ) V., ainda, as minhas Conclusões no processo AY (C‑268/17, EU:C:2018:317, n.o 42).

( 15 ) Salvo em circunstâncias excecionais, tal como explicado no n.o 43, infra.

( 16 ) V. Acórdãos de 1 de dezembro de 2008, Leymann e Pustovarov (C‑388/08 PPU, EU:C:2008:669, n.o 51), e de 16 de novembro de 2010, Mantello (C‑261/09, EU:C:2010:683, n.o 37).

( 17 ) V. Acórdão de 29 de junho de 2017, Popławski (C‑579/15, EU:C:2017:503, n.o 19 e jurisprudência referida);

( 18 ) Para mais pormenores, ver as minhas Conclusões no processo AY (C‑268/17, EU:C:2018:317, n.os 45 e segs.).

( 19 ) As condições enumeradas no artigo 5.o da decisão‑quadro têm caráter exaustivo, v. Acórdãos de 16 de julho de 2015, Lanigan (C‑237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.o 36); de 28 de junho de 2012, West (C‑192/12 PPU, EU:C:2012:404, n.o 55); e de 26 de fevereiro de 2013, Melloni (C‑399/11, EU:C:2013:107, n.o 38).

( 20 ) V. também Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas (C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 51).

( 21 ) Desde o Acórdão de 20 de fevereiro de 1979, Rewe‑Zentral (120/78, EU:C:1979:42, n.o 14, dito «Cassis de Dijon»).

( 22 ) Afigura‑se que as versões inglesas dos acórdãos do Tribunal de Justiça por vezes referem «mutual confidence» em vez de «mutual trust». V., designadamente, Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, C‑404/15, EU:C:2016:198, n.o 77). Entendo que estes termos têm exatamente o mesmo significado e podem ser utilizados de forma indistinta.

( 23 ) V., por exemplo, Acórdão de 10 de agosto de 2017, Tupikas (C‑270/17 PPU, EU:C:2017:628, n.o 49).

( 24 ) V., a esse respeito, Acórdãos de 21 de dezembro de 2011, N.S. e o. (C‑411/10 e C‑493/10, EU:C:2011:865, n.os 78 a 80), e de 26 de fevereiro de 2013, Melloni (C‑399/11, EU:C:2013:107, n.os 37 a 63).

( 25 ) V. igualmente Jeney, P., «The European Union’s Area of Freedom, Security and Justice without the United Kingdom: legal and practical consequences of Brexit», ELTE Law Journal, 2016, pp. 117‑137, pp. 126‑127. Este autor acrescenta ainda que o MDE «também se revelou o mais problemático instrumento de reconhecimento mútuo», continuando a proporcionalidade da sua utilização, a falta de garantias em matéria de direitos fundamentais e a inexistência de motivos de recusa assentes nos direitos fundamentais a ser problemas recorrentes na sua aplicação e interpretação.

( 26 ) V. Lenaerts, K., «La vie après l’avis: exploring the principle of mutual (yet not blind) trust», 54 Common Market Law Review 2017, pp. 805‑840, p. 806.

( 27 ) V. Parecer 2/13 (Adesão da União Europeia à CEDH), de 18 de dezembro de 2014 (EU:C:2014:2454, n.o 191).

( 28 ) Acórdão de 5 de abril de 2016 (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198). A nível normativo, tal resulta para o Tribunal de Justiça do artigo 1.o, n.o 3, da decisão‑quadro, nos termos do qual esta decisão não tem por efeito alterar a obrigação de respeito dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos fundamentais consagrados pelo artigo 6.o TUE, v., em especial, n.os 74 e 83 e segs., bem como os fundamentos do acórdão. V., igualmente, Acórdãos de 25 de julho de 2018, Generalstaatsanwaltschaft (Condições de tenção na Hungria) (C‑220/18 PPU, EU:C:2018:589, n.o 117), e de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Deficiências do sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.os 47, 59, 73 e 79), e Conclusões do advogado‑geral E. Tanchev no processo LM (Deficiências no sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:517, n.os 5, 55, 59 e 121).

( 29 ) Esta é uma disposição imperativa que não pode ser objeto de derrogação, v. Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.os 85 e 86, com referência expressa aos artigos 3.o e 15.o, n.o 2, da CEDH). É um elemento fundamental do Estado de direito.

( 30 ) Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 89). Para além de decisões judiciais (nacionais ou internacionais, nomeadamente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem), tais elementos podem ser obtidos a partir de decisões, relatórios e outros documentos de organizações internacionais, sendo o principal órgão o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes do Conselho da Europa, que administra a convenção homónima.

( 31 ) Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 92).

( 32 ) Suscitou assim questões relacionadas com o risco de R O poder ser submetido a tratamentos desumanos ou degradantes em detenção se for entregue, a respeito do que a autoridade judiciária de emissão prestou informações sobre a forma como esse risco seria tratado. Deduzo que o órgão jurisdicional de reenvio está satisfeito com estas informações, uma vez que não se refere a nenhuma questão específica relativamente ao artigo 4.o da Carta, mas apenas o refere incidentalmente na questão da saída do Reino Unido da União.

( 33 ) Obviamente, tal como referido no artigo 50.o, n.o 1, do TUE, em conformidade com as respetivas normas constitucionais.

( 34 ) V. igualmente Hillion, «Withdrawal under Article 50 TEU: an integration‑friendly process», 55 Common Market Law Review 2018, Issue 2/3, pp. 29‑56, p. 53.

( 35 ) O acordo deve ser negociado nos termos do artigo 218.o, n.o 3, do TFUE. Muitos aspetos jurídicos relacionados com o próprio processo continuam a ser pouco claros, v., por exemplo, Łazowski, A., «Be Careful What You Wish for: Procedural Parameters of EU Withdrawal», em C. Closa (ed.), Secession from a Member State and Withdrawal from the European Union, Cambridge University Press, Cambridge, 2017, pp. 234‑256, p. 241, e Frantziou, E., «Brexit and Article 50 TEU: a constitutionalist reading», 54, Common Market Law Review, 2017, p. 695 à 734.

( 36 ) Existe apenas um projeto de acordo, elaborado pelo Grupo de trabalho da Comissão Europeia para a preparação e condução das negociações com o Reino Unido nos termos do artigo 50.o TUE. Foi enviado aos 27 Estados‑Membros, ao Brexit Steering Group do Parlamento Europeu e publicado na página Internet do grupo de trabalho em 19 de março de 2018 de modo a «sublinhar […] o progresso feito na ronda negocial de 16‑18 de março de 2018». Está disponível em: https://ec.europa.eu/commission/sites/beta‑political/files/draft_agreement_coloured.pdf. É evidente que se trata de um documento de trabalho e de um relatório intercalar que foi publicado por razões de transparência. Também está sujeito ao adágio segundo o qual «nada está acordado até tudo estar acordado». Ambos estes princípios constam do ponto 2 das «Orientações na sequência da notificação do Reino Unido nos termos do artigo 50.o TUE (EUCOXT20004/17), adotadas pelo Conselho Europeu em 29 de abril de 2017, com base no artigo 50.o, n.o 2, TUE, disponível em: http://www.consilium.europa.eu/media/21763/29‑euco‑art50‑guidelinesen.pdf.

( 37 ) Presumivelmente, na sua argumentação, R O invoca o artigo 1.o, n.o 3, da decisão‑quadro, tal como fez o Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198).

( 38 ) Nos termos utilizados por R O.

( 39 ) Começando pelo Estado‑Membro em causa, os seus operadores económicos e cidadãos, passando pela União dos outros Estados‑Membros com os seus operadores económicos e cidadãos, para não falar dos nacionais de países terceiros que beneficiem de direitos decorrentes do direito da União, seja qual for a sua forma.

( 40 ) Que visam a criação de uma União cada vez mais estreita entre os povos da Europa (considerando 13 TUE), baseiam‑se em valores comuns (artigo 2.o TUE) e têm vários objetivos (artigo 3.o TUE — sendo os quatro principais objetivos a criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, um mercado interno, uma União Económica e Monetária e uma presença externa comum), que são alcançados pelo conjunto de políticas enumeradas no Tratado FUE.

( 41 ) Artigo 2.o TUE.

( 42 ) Imaginemos que a execução do MDE relativo a R O ocorreu em 28 de março de 2017. Na ausência de uma notificação de saída, o órgão jurisdicional de reenvio teria executado o MDE. Mas, no que respeita à situação após a entrega da pessoa em causa, a situação não seria diferente da do processo em apreço.

( 43 ) Mesmo que, como no processo em apreço, não intencional, no que respeita ao Reino Unido.

( 44 ) A este respeito, v. Acórdão de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Deficiências do sistema judiciário) (C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.o 72).

( 45 ) Cumpre salientar que «teoricamente» é igualmente a perspetiva do órgão jurisdicional de reenvio.

( 46 ) Outro Estado terceiro, atrevo‑me a especificar, tendo em conta que R O refere o período após 29 de março de 2019.

( 47 ) Não pretendo ter sido pioneiro na utilização desta expressão nem, como se poderá verificar nesta parte, lhe atribuo exatamente o mesmo significado que lhe é habitualmente atribuído.

( 48 ) E, contudo, pode acontecer que, nos termos do direito penal nacional, num caso concreto, as autoridades do Estado‑Membro de emissão (in casu, o Reino Unido) sejam obrigadas a aplicar, na sua apreciação pós‑entrega, as disposições (decorrentes da decisão‑quadro ou do direito nacional) mais favoráveis à pessoa objeto de entrega.

( 49 ) Há que salientar, no entanto, que, por força do artigo 2.o, n.o 1, do European Union (Withdrawal) Act 2018 [Lei de 2018 sobre a União Europeia (saída)], que recebeu aprovação real em 26 de junho de 2018, «a legislação interna que decorre do direito da União, uma vez que produz efeitos no direito nacional imediatamente antes do dia de saída, continua a produzir efeitos no direito nacional no e após o dia de saída». O sublinhado é meu. O texto do European Union (Withdrawal) Act 2018 [Lei de 2018 sobre a União Europeia (saída)] está disponível em http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2018/16/pdfs/ukpga_20180016_en.pdf.

( 50 ) Artigo 53.o TUE.

( 51 ) Obviamente, isto não significa que a realidade jurídica da relação pós‑Brexit, independentemente da sua forma, entre a União e o Reino Unido no domínio da justiça penal, de que a decisão‑quadro faz parte, não será complexa; v., a este propósito, Mitsilegas, V., «Cross‑border criminal cooperation after Brexit», em: M. Dougan (ed.), The UK after Brexit. Legal and policy challenges, intersentia, Cambridge, Antwerp, Portland 2017, pp. 203‑221, p. 217.

( 52 ) A confiança mútua é geralmente — e corretamente — considerada parte integrante do ADN do espaço de liberdade, segurança e justiça, v. Labayle, H., ‘Faut‑il faire confiance à la confidence mutuelle’, in K. Lenaerts (ed.), Liber Amicorum Antonio Tizzano, De la Cour CECA à la Cour de l’Union: le long parcours de la justice européenne, G. Giappichelli Editore, Turim 2018, pp. 472‑485, p. 479.

( 53 ) Bem pelo contrário. Na notificação de saída do Reino Unido de 29 de março de 2017, a primeira‑ministra, na sua carta ao Presidente do Conselho Europeu, salientou o seu desejo de uma «profunda e especial parceria» entre a União Europeia e o Reino Unido após a saída do Reino Unido. Acrescentou que «[p]retendemos assegurar que a Europa continue forte e próspera e que é capaz de projetar os seus valores, assumir uma posição de liderança no mundo e defender‑se de ameaças à segurança. Queremos que o Reino Unido, através de uma profunda e especial parceria com uma União Europeia forte, desempenhe plenamente o seu papel na consecução desses objetivos.» O sublinhado é meu. Além disso, salientou especificamente que a União Europeia e o Reino Unido «devem continuar a trabalhar em conjunto para promover e proteger os nossos valores europeus. Talvez agora mais do que nunca, o mundo precisa dos valores liberais e democráticos da Europa». A carta com a notificação de saída está disponível em https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/604079/Prime_Ministers_letter_to_European_Council_President_Donald_Tusk.pdf. Não se pode afirmar que a posição do Reino Unido a este respeito se tenha alterado desde a notificação de saída.

( 54 ) Além disso, durante a audiência, o representante do Reino Unido teve o cuidado de recordar ao Tribunal de Justiça que o Reino Unido é um membro fundador do Conselho da Europa e foi um dos primeiros Estados a ratificar a CEDH. Perdoem‑me por acrescentar que, recentemente, em 2016, o então Ministro do Interior do Reino Unido defendeu que o Reino Unido deveria sair da CEDH (v. Https://www.bbc.co.uk/news/uk‑politics‑eu‑referendum‑36128318 e https://www.theguardian.com/politics/2016/apr/25/uk‑must‑leave‑european‑convention‑on‑human‑rights‑theresa‑may‑eu‑referendum), sendo que a atual política governamental não parece apoiar essa posição (v. Https://www.thetimes.co.uk/article/uk‑would‑not‑leave‑human‑rights‑court‑if‑conservatives‑re‑elected‑3rpblw9zp).

( 55 ) Que, como se viu no quadro jurídico acima, transpôs as disposições da decisão‑quadro para o direito do Reino Unido.

( 56 ) V. n.o 2 (1) do European Union (Withdrawal) Act 2018 [Lei de 2018 sobre a União Europeia (saída)]. Obviamente, esta disposição deve ser contextualizada e está sujeita a todas as outras disposições dessa lei (sobre questões como o primado, o estatuto e a interpretação do direito da União que se manterá e a implementação do acordo de saída, para citar apenas alguns exemplos).

( 57 ) Convenção Europeia de Extradição. Texto disponível em: https://www.coe.int/en/web/conventions/full‑list/‑/conventions/treaty/024.

( 58 ) Artigo 14.o da Convenção Europeia de Extradição.

( 59 ) Artigo 15.o da Convenção Europeia de Extradição. Não nego que esta convenção possa ser consideravelmente menos eficaz do que a decisão‑quadro (v., no que diz respeito às convenções do Conselho da Europa em geral, Davidson, R., «Brexit and criminal justice: the future of the UK’s cooperation relationship with the EU», em Criminal Law Review 2017, pp. 379‑395, p. 385). Mas tal é inerente ao processo de saída, uma vez que é evidente que esta convenção, enquanto instrumento de direito internacional público, não tem o efeito de um ato de direito da União.

( 60 ) V. Acórdãos de 1 de dezembro de 2008, Leymann e Pustovarov (C‑388/08 PPU, EU:C:2008:669), e de 28 de junho de 2012, West (C‑192/12 PPU, EU:C:2012:404).

( 61 ) No direito da União, a entrega nos termos da decisão‑quadro refere‑se a uma situação entre dois Estados‑Membros, ao passo que a extradição em geral refere‑se a uma situação entre um Estado‑Membro e um país terceiro. No entanto, se os países terceiros estiverem estreitamente ligados à União, como no caso dos Estados‑Membros do Espaço Económico Europeu, o termo utilizado é «processos de entrega». V., por exemplo, Acordo entre a União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega sobre os processos de entrega entre os Estados‑Membros da União Europeia e a Islândia e a Noruega, JO 2006, L 292, p. 2. Este Acordo ainda não está em vigor (v. nota 79 das presentes conclusões).

( 62 ) Acórdão de 5 de abril de 2016 (C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198).

( 63 ) V. Acórdão de 6 de setembro de 2016, Petruhhin (C‑182/15, EU:C:2016:630, n.os 56 a 58).

( 64 ) Quanto aos cenários possíveis no que respeita ao espaço de liberdade, segurança e justiça após o Brexit, v. Curtin, D., «Brexit and the EU Area of Freedom, Security’, em F. Fabbrini, The law and politics of Brexit, OUP, Oxford, 2017, pp. 183 a 200, pp. 186 e 187, e Weyembergh, A., ‘Consequences of Brexit for European criminal law’, New Journal of European Criminal Law, 2017, pp. 284 a 299, pp. 295 e 296. Quanto aos reenvios prejudiciais provenientes do Reino Unido, v. Knaier, R., e Scholz, M. «Rechtsschutz in Großbritannien und der EU nach dem “Brexit”», Europäisches Wirtschafts‑ und Steuerrecht, 2018, p. 10 a 17, p. 15 e 16. Quanto à resolução dos litígios entre a União e o reino Unido em geral, v. Fennelly, N. « Brexit: legal consequences for the EU. Dispute‑settling between the EU and the UK », 18, ERA Forum, 2018, p. 493 a 511.

( 65 ) Artigos 31.o, alíneas a) e b), e 34.o, n.o 2, alínea b).

( 66 ) O regime jurídico de «Amesterdão» foi aplicável entre 1 de maio de 1999 e 31 de janeiro de 2003. Para uma descrição concisa sobre este regime, v. Peers, S., EU Justice and Home Affairs Law (Volume II: EU Criminal Law, Policing, and Civil Law), 4.a ed., OUP, Oxford, 2016, pp. 14 a 22.

( 67 ) V. anterior artigo 35.o, n.o 2, TUE: «Mediante declaração feita no momento da assinatura do Tratado de Amesterdão, ou posteriormente, a todo o tempo, qualquer Estado‑Membro pode aceitar a competência do Tribunal de Justiça para decidir a título prejudicial, nos termos do n.o 1» V. igualmente anterior artigo 35.o, n.o 3, TUE, nos termos do qual essa declaração devia especificar se apenas os órgãos jurisdicionais cujas decisões não fossem suscetíveis de recurso ou se todos os órgãos jurisdicionais podiam submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça.

( 68 ) V. a contrario lista publicada no JO 2010, L 56, p. 14. Com efeito, no anos seguintes à entrada em vigor, 19 Estados‑Membros fizeram uma declaração: doze dos (quinze) Estados‑Membros (partes no Tratado de Amesterdão) à época (todos exceto o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca) e sete dos doze Estados‑Membros que aderiram à União em 2004 e em 2007 (todos exceto a Estónia, a Polónia, Eslováquia, a Bulgária e Malta).V. igualmente, Grzelak, A. «Aspekty prawne jurysdykcji Trybunału Sprawiedliwości WE do orzekania w trybie prejudycjalnym w III filarze UE (interpretacja art. 35 ust. 1‑4 TUE», em J. Barcz, A. Gajda, A. Grzelak, T. Ostropolski (eds), Postępowanie prejudycjalne w Przestrzeni Wolności, Bezpieczeństwa i Sprawiedliwości Unii Europejskiej, LexisNexis, Warsaw 2007, pp. 19 a 42, p. 29).

( 69 ) Nem nos cinco anos após a entra da em vigor desse Tratado, v. n.o 76 das presentes conclusões.

( 70 ) Em 1 de dezembro de 2009.

( 71 ) Em consequência do artigo 10.o, n.os 1 e 3, do Protocolo (n.o 36) relativo às disposições transitórias, as competências do Tribunal de Justiça continuaram a ser reguladas, para todos os Estados‑Membros exceto o Reino Unido, até 30 de novembro de 2014, pelo anterior artigo 35.o TUE. V., com mais pormenor, Lenaerts, K. «The contribution of the European Court of Justice to the area of freedom, security and justice», 59 International and Comparative Law trimestal 2010, pp. 255 a 301, p. 269 e 270. No que respeita ao Reino Unido, a situação é regulada pelo artigo 10.o, n.os 4 e 5, do Protocolo n.o 36. Em aplicação destas disposições, o Reino Unido exerceu o seu direito de opt‑out e, por carta de 24 de julho de 2013, notificou o Presidente do Conselho de que não aceitava as competências das instituições da União relativamente aos atos da União no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal adotados antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa (v. documento do Conselho 12750/13, «Notificação do Reino Unido em aplicação do artigo 10, n.o 4, do Protocolo n.o 36 aos Tratados EU e TFUE», 26 de julho de 2013). Posteriormente, o Reino Unido notificou a sua participação em 35 medidas relativamente às quais tinha exercido o seu direito de opt‑out (v. Documento do Conselho 15398/14, Notificação do Reino Unido ao abrigo do artigo 10, n.o 5, do Protocolo n.o 36 aos Tratados UE, 27 de novembro de 2014, e Decisão 2014/857/UE do Conselho, de 1 de dezembro de 2014, relativa à notificação do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte da sua intenção de participar em algumas das disposições do acervo de Schengen que estão contidas em atos da União no domínio da cooperação policial e da cooperação judiciária em matéria penal e que altera as Decisões 2000/365/CE e 2004/926/CE (JO 2014, L 345, p. 1). A decisão‑quadro é uma dessas medidas. Por conseguinte, desde 1 de dezembro de 2014, o Tribunal de Justiça é competente para apreciar reenvios prejudiciais do reino Unido relativos à decisão‑quadro. Quanto ao complexo sistema de opt‑in e opt‑out, v. Mitsilegas, V., «European criminal law after Brexit», 28 Criminal Law Forum, 2017, p. 219 a 250, p. 224 a 226, e Ambos, K., «Brexit und Europäisches Strafrecht», Juristenzeitung 14/2017, p. 707 a 713, p. 710.

( 72 ) Quanto à constitucionalização operada pelo Tratado de Lisboa, v. Mitsilegas, V., EU criminal law after Lisbon, Hart Publishing, Oxford e Portland, Oregon, 2016, pp. 4‑52.

( 73 ) Sem prejuízo de algumas exceções, como o artigo 86.o TFUE relativo à Procuradoria Europeia ou o artigo 87.o, n.o 3, TFUE relativo à cooperação policial operacional.

( 74 ) Com exceção da limitação do artigo 276.o TFUE, que não é, no entanto, pertinente no caso em apreço.

( 75 ) Quer seja no quadro do direito primário (por exemplo, atos de adesão) ou secundário (por exemplo, transposição de diretivas nos termos do artigo 288.o, n.o 2, TFUE).

( 76 ) V., no contexto específico do Brexit, M. Dougan, «An airbag for the crash test dummies? EU_UK negotiations for a post‑withdrawal status quo transitional regime under article 50 TEU», 55 Common Market Law Review, 2018, n.o 2/3, pp. 57 a 100, p. 83.

( 77 ) Relativamente aos períodos transitórios no direito da União, v. Kalėda, S. L., «Przejęcie prawa wspólnotowego przez nowe państwo członkowskie. Zagadnienia przejściowe oraz międzyczasowe», Prawo i praktyka Gospodarcza, Varsóvia, 2003, pp. 237 a 240).

( 78 ) V. Müller‑Graff, P.‑Chr., «Brexit — die unionsrechtliche Dimension», em M. Kramme, Chr. Baldus Schmidt‑Kessel, M. (eds), Brexit und die juristischen Folgen, Nomos, Baden‑Baden, 2017, pp. 33 a 56, p. 33.

( 79 ) São concebíveis muitos cenários neste contexto, por exemplo, a de um acordo especial entre a União e o Reino Unido, como o Acordo entre a União Europeia e a República da Islândia e o Reino da Noruega mencionado na nota 61 das presentes conclusões, aprovado, em nome da União, primeiro pela Decisão do Conselho de 27 de junho de 2006 (JO 2006, L 292, p. 1) e, posteriormente à entrada em vigor do Tratado de Lisboa, que tornou necessária outra aprovação, pela Decisão do Conselho de 27 de novembro de 2014 (JO 2014, L 343, p. 1). Contudo, tanto quanto é do meu conhecimento, este acordo não entrou ainda em vigor. A este propósito, o referido acordo, no seu artigo 36.o, prevê um procedimento intergovernamental e não jurisdicional para a resolução de litígio. Sobre outros cenários possíveis, v. Câmara dos Lordes, Brexit: future UK‑EU Security and Police Cooperation, Report, n.os 124 a 140, publicado em 16 de dezembro de 2016, https://publications.parliament.uk/pa/ld201617/ldselect/ldeucom/77/77.pdf.

( 80 ) Estes termos devem ser entendidos como uma alusão ao falecido Lord Denning, que afirmou no processo HP Bulmer Ltd & Anor contra J. Bollinger SA & Ors [1974] EWCA Civ 14, que, «quando chegámos às questões com uma componente europeia, o Tratado apresenta‑se como uma maré crescente. Desagua nos estuários e sobre pelos rios. Não pode ser travada». Available at: http://www.bailii.org/cgi‑bin/markup.cgi?doc=/ew/cases/EWCA/Civ/1974/14.htm.

( 81 ) V. Cour de cassation, chambre criminelle, Acórdão de 2 de maio de 2018, Processo de recurso n.o 18‑82167, disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/affichJuriJudi.do?oldAction=rechExpJuriJudi&idTexte=JURITEXT000036900182&fastReqId=1561028715&fastPos=1.

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