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Document 62018CC0046

Conclusões do advogado-geral M. Bobek apresentadas em 14 de março de 2019.
Caseificio Sociale San Rocco Soc. coop. arl e o. contra Agenzia per le Erogazioni in Agricoltura (AGEA) e Regione Veneto.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Stato.
Reenvio prejudicial — Setor do leite e dos produtos lácteos — Quotas — Imposição suplementar — Regulamento (CEE) n.o 3950/92 — Artigo 2.o — Cobrança da imposição pelo comprador — Entregas que excedem a quantidade de referência de que o produtor dispõe — Montante do preço do leite — Aplicação obrigatória de uma retenção — Restituição do montante da imposição cobrada em excesso — Regulamento (CE) n.o 1392/2001 — Artigo 9.o — Comprador — Incumprimento da obrigação de efetuar a imposição suplementar — Produtores — Incumprimento da obrigação de pagamento mensal — Proteção da confiança legítima.
Processo C-46/18.

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2019:213

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MICHAL BOBEK

apresentadas em 14 de março de 2019 ( 1 )

Processo C‑46/18

Caseificio Sociale San Rocco Soc. coop. Arl,

S.s. Franco e Maurizio Artuso,

Sebastiano Bolzon,

Claudio Matteazzi,

Roberto Tellatin

contra

Agenzia per le Erogazioni in Agricoltura (AGEA)

Regione Veneto

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália)]

«Leite — Quotas — Imposição suplementar — Artigo 2.o do Regulamento (CEE) n.o 3950/92 — Artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento (CE) n.o 1788/2003 — Obrigação dos compradores de deduzirem a imposição ao preço do leite — Artigo 9.o do Regulamento (CE) n.o 1392/2001 — Repartição do excesso de imposição — Categorias prioritárias — Redistribuição de quotas não utilizadas»

1.

Em 1984, com vista a ultrapassar os excedentes estruturais, o legislador da então CEE introduziu um sistema de quotas para a produção de leite e de produtos lácteos associado a uma imposição suplementar sobre as entregas e vendas diretas que excedessem a quota. O funcionamento desse sistema, inicialmente previsto para um período de 5 anos, foi repetidamente prolongado até terminar, finalmente, em 31 de março de 2015.

2.

O sistema de quotas deu origem a um extraordinário volume de contencioso, tanto nos órgãos jurisdicionais da União como nos órgãos jurisdicionais nacionais ( 2 ). Além disso, em alguns Estados‑Membros, o sistema era aplicado apenas de «forma incompleta» ( 3 ). É o caso, em particular, de Itália, onde, durante um período relativamente longo, as autoridades não garantiram que a imposição suplementar devida pela produção realizada acima da quota nacional fosse corretamente imputada, paga em tempo útil e/ou, pelo menos, devidamente registada e cobrada ( 4 ).

3.

O presente processo é mais um episódio da longa saga relativa à cobrança das imposições não pagas em Itália. Resumidamente, suscita a questão de saber se um Estado‑Membro pode exigir, por lei, que os compradores deduzam do preço do leite o montante devido a título de imposição pelos produtores que excedam as respetivas quotas individuais. Se tal legislação nacional for incompatível com o direito da União, coloca‑se então outra questão, que é a de saber quais são as consequências que podem resultar, para os compradores e produtores, da incompatibilidade, a este respeito, do direito nacional com o direito da União.

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União

4.

O Regulamento (CEE) n.o 3950/92 do Conselho, de 28 de dezembro de 1992, que institui uma imposição suplementar no setor do leite e dos produtos lácteos ( 5 ), prorrogou o regime da imposição suplementar no setor do leite e dos produtos lácteos, que deveria terminar em 31 de março de 1993. Este regime aplicava‑se durante sete períodos consecutivos adicionais de 12 meses, com início em 1 de abril de 1993 ( 6 ).

5.

O artigo 2.o do Regulamento n.o 3950/92 dispõe:

«1.   A imposição é devida sobre todas as quantidades de leite ou de equivalente‑leite comercializadas durante o período de doze meses em causa que excedam uma ou outra das quantidades referidas no artigo 3.o A imposição é repartida entre os produtores que contribuíram para o excedente.

Consoante a decisão do Estado‑Membro, a contribuição dos produtores para o pagamento da imposição devida deve ser estabelecida, após eventual redistribuição das quantidades de referência não utilizadas, quer ao nível do comprador, em função do excedente subsistente depois de se terem repartido as quantidades de referência não utilizadas proporcionalmente às quantidades de referência de que dispõe cada um dos produtores, quer ao nível nacional, em função do excedente em relação à quantidade de referência de que cada um dos produtores dispõe.

2.   No que diz respeito às entregas, o comprador responsável pela imposição pagará o montante em dívida ao organismo competente do Estado‑Membro, antes de uma data e segundo regras a determinar; esse montante será deduzido pelo próprio comprador do preço do leite pago aos produtores devedores da imposição, e, se tal não for possível, será cobrado por qualquer outra forma adequada.

[…]

Sempre que as quantidades entregues por um produtor excedam a quantidade de referência de que dispõe, o comprador fica autorizado a reter, a título de provisão para a imposição devida, e de acordo com regras determinadas pelo Estado‑Membro, um montante do preço do leite em relação a todas as entregas efetuadas por esse produtor que excedam a quantidade de referência de que dispõe.

[…]

4.   Quando a imposição for devida e o montante cobrado lhe for superior, o Estado‑Membro pode afetar o excedente cobrado ao financiamento das medidas referidas no primeiro travessão do artigo 8.o e/ou restituí‑lo aos produtores cujo excedente seja imputável a uma situação que o Estado‑Membro possa ter justificavelmente em conta em função de critérios objetivos a determinar e/ou de uma situação excecional resultante de uma disposição nacional que não tenha qualquer relação com esse regime.»

6.

O artigo 9.o («Critérios de repartição do excesso de imposição») do Regulamento (CE) n.o 1392/2001 da Comissão, de 9 de julho de 2001, que estabelece normas de execução do [Regulamento n.o 3950/92], que institui uma imposição suplementar no setor do leite e dos produtos lácteos ( 7 ) dispõe:

«1.   Se for o caso, os Estados‑Membros determinarão as categorias prioritárias de produtores nos termos do n.o 4 do artigo 2.o do Regulamento (CEE) n.o 3950/92, em função de um ou mais dos seguintes critérios objetivos, por ordem de prioridade:

a)

O reconhecimento formal pela autoridade competente do Estado‑Membro de que a imposição foi, na totalidade ou em parte, indevidamente cobrada;

b)

A situação geográfica da exploração e, em primeiro lugar, as zonas de montanha referidas no artigo 18.o do Regulamento (CE) n.o 1257/1999 [do Conselho de 17 de maio de 1999 relativo ao apoio do Fundo Europeu de Orientação e de Garantia Agrícola (FEOGA) ao desenvolvimento rural e que altera e revoga determinados regulamentos (JO 1999, L 160, p. 80)];

c)

A densidade máxima dos animais na exploração, que caracteriza a extensificação da produção animal;

d)

O montante da superação da quantidade de referência individual;

e)

A quantidade de referência de que o produtor dispõe.

2.   Se a aplicação dos critérios previstos no n.o 1 não esgotar os recursos financeiros disponíveis para um dado período, serão adotados pelo Estado‑Membro outros critérios objetivos, após consulta da Comissão.»

7.

O Regulamento (CE) n.o 1788/2003 do Conselho, de 29 de setembro de 2003, que institui uma imposição no setor do leite e dos produtos lácteos ( 8 ), revogou o Regulamento n.o 3950/92. Nos termos do seu artigo 11.o, n.o 1 («Papel dos compradores»), os compradores são responsáveis pela cobrança, junto dos produtores, das contribuições por estes devidas a título da imposição. Devem pagar tais contribuições ao organismo competente do Estado‑Membro. Nos termos do artigo 11.o, n.o 3, «[s]e, durante o período de referência, as quantidades entregues por um produtor excederem a sua quantidade de referência, o Estado‑Membro pode decidir, segundo modalidades por ele estabelecidas, que, a título de adiantamento sobre a contribuição do produtor para a imposição, o comprador deduza uma parte do preço do leite nas entregas desse produtor que superem a sua quantidade de referência disponível para entrega».

8.

Nos termos do artigo 27.o («Entrada em vigor») do Regulamento n.o 1788/2003, este regulamento entrou em vigor em 24 de outubro de 2003. As suas disposições tornaram‑se aplicáveis a partir de 1 de abril de 2004, com exceção dos artigos 6.o e 24.o, que eram aplicáveis a partir da data de entrada em vigor desse regulamento.

B.   Legislação nacional

9.

O artigo 5.o, n.os 1 e 2 («Obrigações dos compradores») do decreto‑legge n.o 49, Riforma della normativa in tema di applicazione del prelievo supplementare nel settore del latte e dei prodotti lattiero‑caseari (Decreto‑Lei n.o 49, sobre a reforma da legislação em matéria de aplicação da imposição suplementar no setor do leite e dos produtos lácteos de 28 de março de 2003), convertido, com alterações, na Lei n.o 119, de 30 de maio de 2003 (a seguir «Decreto‑Lei n.o 49/2003») ( 9 ), na versão aplicável à data dos factos, dispõe:

«1.   […] Os compradores devem reter a imposição suplementar, calculada em conformidade com o artigo 1.o do Regulamento n.o 3950/92/CEE, conforme alterado, relativa às quantidades de leite entregues que excedam a quantidade de referência individual atribuída a cada produtor, […]

2.   Dentro dos 30 dias subsequentes ao termo do prazo previsto no n.o 1 […] os compradores devem transferir as quantias retidas para a conta corrente na instituição bancária da AGEA.»

10.

O artigo 9.o, n.os 1, 3 e 4 («Restituição do excesso de imposição»), do Decreto‑Lei n.o 49/2003 estabelece:

«1.   No termo de cada período, a AGEA: a) contabiliza as entregas de leite efetuadas e o montante total das imposições pagas pelos compradores na sequência do cumprimento das obrigações previstas no artigo 5.o; b) procede ao cálculo do total da imposição nacional devida à União pelo excedente de produção nas entregas; c) calcula o montante do excesso de imposição pago.

[…]

3.   O montante previsto no n.o 1, alínea c) […] será repartido entre os produtores titulares de quotas que tenham pago a imposição, segundo os seguintes critérios e pela seguinte ordem: […]

4.   Se as referidas restituições não esgotarem os montantes disponíveis nos termos do n.o 3, o saldo será repartido entre os produtores titulares de quotas que tenham pago a imposição, com exceção dos que tenham excedido as respetivas quantidades de referência individuais em mais de 100 por cento, segundo os seguintes critérios e pela seguinte ordem: […]»

11.

O artigo 2.o, n.o 3, do decreto‑legge del 24 giugno 2004 n.o 157 — Disposizioni urgenti per l’etichettatura di alcuni prodotti agroalimentari, nonché in materia di agricoltura e pesca (Decreto‑Lei n.o 157, de 24 de junho de 2004 — Medidas urgentes relativas à rotulagem de determinados produtos agroalimentares, bem como em matéria de agricultura e pescas), convertido, com alterações, na Lei n.o 204, de 3 de agosto de 2004 (a seguir «Decreto‑Lei n.o 157/2004») ( 10 ), dispõe:

«Nos termos do artigo 9.o [do Decreto‑Lei n.o 49/2003], a imposição paga mensalmente em excesso pelos produtores com os pagamentos em dia será restituída a tais produtores. Após tal operação, se o saldo restante total da cobrança de imposições for superior ao montante das imposições devidas à União Europeia, acrescido de 5 por cento, a AGEA procede à anulação da imposição cobrada em excesso aos produtores que não tenham ainda efetuado os pagamentos mensais, aplicando os critérios de prioridade estabelecidos nos n.os 3 e 4 do mesmo artigo 9.o, sem prejuízo das sanções previstas no artigo 5.o, n.o 5, [do Decreto‑Lei n.o 49/2003].»

II. Matéria de facto, tramitação processual e questões prejudiciais

12.

Em julho de 2004, a Agenzia per le Erogazioni in Agricoltura (Agência italiana para o financiamento da agricultura, a seguir «AGEA») enviou uma notificação à Caseificio Sociale San Rocco, na qualidade de «primeiro comprador» de produtos lácteos. Essa notificação, que dizia respeito às quotas leiteiras e à imposição suplementar para o período de 1 de abril de 2003 a 31 de março de 2004, indicava que:

Tinham sido feitos os cálculos para a restituição da imposição paga em excesso sobre as entregas de leite de vaca efetuadas durante o período de referência. Os cálculos baseavam‑se em quantidades de referência fixadas pelas regiões e pelas províncias autónomas e nas declarações mensais das empresas compradoras;

Os produtores podiam beneficiar da restituição se tivessem cumprido a obrigação de pagamento da imposição suplementar, em conformidade com as declarações mensais das empresas compradoras;

A AGEA tinha aplicado o artigo 2.o, n.o 3, do Decreto‑Lei n.o 157/2004, segundo o qual os produtores que tivessem pago em excesso receberiam a restituição do excedente; após tal operação, se o saldo restante total da cobrança de imposições fosse superior ao montante das imposições devidas à União Europeia, acrescido de 5%, a AGEA não exigiria a imposição cobrada em excesso aos produtores que não tivessem ainda efetuado os pagamentos mensais. Nesses casos, aplicaria os critérios de prioridade estabelecidos no artigo 9.o, n.os 3 e 4, bem como as sanções previstas no artigo 5.o do Decreto‑Lei n.o 49/2003. A AGEA repartiria, assim, o excedente já pago apenas entre os produtores titulares de quantidades de referência com os pagamentos em dia.

13.

A AGEA anexou a essa notificação uma lista em que enumerava, relativamente a cada produtor, os montantes já pagos e os montantes a restituir.

14.

Com base na notificação acima referida, a AGEA observou que, em relação ao período de referência, a Caseificio Sociale San Rocco não tinha procedido à retenção da imposição suplementar prevista no artigo 5.o da Lei n.o 49/2003. Por conseguinte, os produtores a quem tinha comprado leite estavam ainda a dever os montantes em questão.

15.

A Caseificio Sociale San Rocco e os produtores (a seguir «recorrentes no processo principal») consideraram que a legislação italiana aplicada pela AGEA era incompatível com o direito da União. Impugnaram a notificação da AGEA no Tribunale Amministrativo Regionale per il Lazio (Tribunal Administrativo Regional do Lácio, Itália). Por sentença de 3 de fevereiro de 2010, este órgão jurisdicional negou provimento ao recurso, concluindo, em substância, que a legislação italiana em questão era compatível com as disposições do Regulamento n.o 1788/2003.

16.

Os recorrentes no processo principal interpuseram recurso da referida sentença para o Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália). Por Acórdão interlocutório de 21 de novembro de 2017, este órgão jurisdicional concedeu provimento parcial ao recurso. Declarou que as normas do direito da União aplicáveis ao caso em apreço não eram as constantes do Regulamento n.o 1788/2003, mas as constantes do Regulamento n.o 3950/92. Contudo, tendo dúvidas quanto à correta interpretação de determinadas disposições do Regulamento n.o 3950/92, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Numa situação como a descrita, e que é objeto do processo principal, deve o direito da União Europeia ser interpretado no sentido de que a incompatibilidade de uma disposição legislativa de um Estado‑Membro com o artigo 2.o, n.o 2, terceiro parágrafo, do Regulamento n.o 3950/92 implica, como consequência, que os produtores já não estejam obrigados a pagar a imposição suplementar quando se verifiquem os requisitos previstos pelo mesmo regulamento?

2)

Numa situação como a descrita, e que é objeto do processo principal, deve o direito da União Europeia, em particular o princípio geral da proteção da confiança legítima, ser interpretado no sentido de que não pode ser protegida a confiança das pessoas que tenham cumprido uma obrigação imposta por um Estado‑Membro e que tenham beneficiado dos efeitos decorrentes do cumprimento dessa obrigação, quando esta seja contrária ao direito da União Europeia?

3)

Numa situação como a descrita, e que é objeto do processo principal, o artigo 9.o do [Regulamento n.o 1392/2001], e o conceito de direito da União de “categoria prioritária”, opõem‑se a uma disposição de um Estado‑Membro, como o artigo 2.o, n.o 3, do Decreto‑Lei n.o 157/2004 adotado pela República Italiana, que estabelece modalidades diferenciadas de restituição da imposição suplementar cobrada em excesso, distinguindo, quanto aos prazos e às modalidades de restituição, os produtores que tenham confiado no dever de respeitar uma disposição nacional que se considerou contrária ao direito da União dos produtores que não tenham cumprido essa disposição?»

17.

Foram apresentadas observações escritas pelos recorrentes no processo principal, pelo Governo italiano e pela Comissão.

18.

Em 21 de novembro de 2018, o Tribunal de Justiça pediu determinados esclarecimentos ao Governo italiano sobre os procedimentos seguidos no que diz respeito ao cálculo da imposição suplementar devida relativamente à campanha leiteira de 2003/2004. O Governo italiano respondeu ao pedido de esclarecimentos em 13 de dezembro de 2018.

19.

Os recorrentes no processo principal, o Governo italiano e a Comissão apresentaram também alegações orais na audiência de 17 de janeiro de 2019.

III. Análise

A.   Observações preliminares

1. Direito aplicável ratione temporis

20.

No seu pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio refere‑se expressamente ao artigo 2.o do Regulamento n.o 3950/92 como sendo a disposição central aplicável ao processo em apreço. Contudo, esta posição é contestada pelo Governo italiano, que defende que o artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1788/2003 é aplicável ao litígio no processo principal, na medida em que a decisão da AGEA impugnada pelos recorrentes no processo principal foi emitida em julho de 2004.

21.

Nestas circunstâncias, parece‑me útil definir o quadro jurídico que é aplicável ratione temporis ao caso em apreço.

22.

Esta questão não é insignificante: os recorrentes no processo principal alegam que a legislação italiana em questão é incompatível com o direito da União, na medida em que obrigava os compradores de leite a deduzirem o montante da imposição do preço do leite. Contudo, as disposições que regem o funcionamento da imposição, respetivamente, no Regulamento n.o 3950/92 e no Regulamento n.o 1788/2003, não são idênticas.

23.

O artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1788/2003, que revogou o Regulamento n.o 3950/92, autorizava expressamente os Estados‑Membros a decidirem que, se durante uma campanha leiteira as quantidades entregues por um produtor excedessem a quota desse produtor, o comprador seria obrigado a deduzir uma parte do preço do leite a título de adiantamento sobre a imposição suplementar do produtor. Pelo contrário, como o Tribunal de Justiça esclareceu no Acórdão Consorzio Caseifici Altopiano di Asiago ( 11 ), o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92 limitava‑se a autorizar, mas sem de modo algum obrigar, os compradores a efetuar tal dedução.

24.

A este respeito, partilho da opinião do órgão jurisdicional de reenvio segundo a qual, no que toca ao direito da União, as normas aplicáveis à data dos factos eram as previstas pelo Regulamento n.o 3950/92 (e, por conseguinte, as incluídas no Regulamento n.o 1392/2001, que estabeleceu as normas de execução).

25.

O processo principal diz respeito à campanha leiteira de 2003/2004 (de 1 de abril de 2003 a 30 de março de 2004). Porém, o Regulamento n.o 1788/2003 só se tornou aplicável, nos termos do seu artigo 27.o, a partir de 1 de abril de 2004.

26.

Isto não é, de modo algum, surpreendente. Tradicionalmente, uma campanha leiteira começa em 1 de abril de cada ano e termina em 30 de março do ano seguinte ( 12 ). É por esta razão que o Regulamento n.o 1788/2003 — à semelhança de instrumentos anteriores, incluindo o Regulamento n.o 3950/92 ( 13 ) — se tornou aplicável no início de uma campanha leiteira.

27.

O funcionamento de um regime como o que prevê uma imposição suplementar sobre o leite exige necessariamente a aplicação de um determinado conjunto de normas ao longo do período de referência. Normas como as que determinam quem é incumbido da tarefa de cobrar a imposição bem como o modo e montante de pagamento da imposição não são normas processuais — como o Governo italiano sustenta — mas normas substantivas ( 14 ). A este respeito, importa ter presente que, segundo jurisprudência assente, enquanto as regras processuais são geralmente aplicáveis a partir da sua entrada em vigor, mesmo a processos e litígios pendentes, salvo no caso de a medida específica em questão dispor em contrário, as regras substantivas são habitualmente interpretadas no sentido de que, em princípio, não se aplicam a situações constituídas antes da sua entrada em vigor ( 15 ).

28.

Disposições como o artigo 2.o do Regulamento n.o 3950/92 e o artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1788/2003 dizem respeito a aspetos fundamentais das obrigações substantivas estabelecidas no Regulamento n.o 3950/92. Por conseguinte, em conformidade com os princípios acima referidos, estas disposições não são aplicáveis a situações existentes antes da sua entrada em vigor.

29.

O argumento do Governo italiano implicaria que o artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1788/2003 se tornasse aplicável a factos (especialmente entregas) ocorridos, e a relações económicas estabelecidas, antes de 1 de abril de 2004. Por outras palavras, conduziria, na prática, a uma aplicação retroativa de facto do artigo 11.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1788/2003, contrariando tanto a letra inequívoca como o espírito do artigo 27.o do mesmo regulamento.

30.

Concluindo quanto a este aspeto, na medida em que a legislação nacional em questão obrigava os compradores de leite a deduzir a imposição do preço do leite num período anterior a 1 de abril de 2004, os parâmetros de compatibilidade com o direito da União só podem ser fornecidos pelas disposições da União aplicáveis durante esse mesmo período: as disposições do Regulamento n.o 3950/92, em particular o artigo 2.o, n.o 2.

2. Regime instituído pelos Regulamentos n.o 3950/92 e n.o 1392/2001

31.

Para uma melhor compreensão das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, pode ser útil começar por descrever os aspetos do regime instituído pelos Regulamentos n.o 3950/92 e n.o 1392/2001 que são relevantes para o caso em apreço.

32.

Com base nestes regulamentos, era aplicada uma imposição sobre as quantidades de leite, recolhidas ou vendidas diretamente para consumo, que excedessem uma determinada quota nacional. Os Estados‑Membros que excedessem a quota nacional tinham de repartir o encargo do seu pagamento entre os produtores que tivessem contribuído para a superação, excedendo as respetivas quotas individuais.

33.

Para evitar atrasos na cobrança e no pagamento da imposição, o legislador da União decidiu que, relativamente às entregas, era o comprador que era responsável pelo pagamento da imposição à administração pública, após a sua cobrança junto dos produtores por meio de uma dedução ao preço do leite ou por qualquer outra forma adequada. Para esse efeito, a autoridade nacional competente comunicava ou confirmava a cada comprador o montante da imposição que deviam pagar, depois de o Estado‑Membro ter tomado uma decisão para determinar se a totalidade ou parte das quotas não utilizadas seria reatribuída aos produtores em causa (diretamente ou por intermédio dos compradores) ( 16 ). Em caso de reatribuição das quotas individuais não utilizadas, estas deviam ser atribuídas proporcionalmente às quantidades de referência de cada produtor.

34.

Contudo, os Estados‑Membros podiam também decidir não reatribuir as quotas não utilizadas. Nesse caso, poderiam utilizar os montantes cobrados em excesso da imposição devida à União Europeia para financiar programas de reestruturação nacionais e/ou restituí‑los aos produtores que fizessem parte de determinadas «categorias prioritárias» ou aos produtores que se encontrassem numa situação excecional.

35.

É neste contexto que passo agora à análise das questões prejudiciais.

B.   Primeira questão

36.

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, essencialmente, se o conflito entre uma disposição legislativa nacional e o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92 tem como consequência os produtores não serem obrigados a pagar a imposição suplementar, mesmo que se verifiquem os requisitos previstos pelo referido regulamento.

37.

A premissa em que esta questão se baseia é a de que, ao obrigar os compradores a deduzir a imposição suplementar do pagamento do leite entregue pelos produtores que exceda as suas quotas individuais, e a transferi‑la mensalmente para a AGEA, a legislação italiana em questão era incompatível com o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92. Como o Tribunal de Justiça esclareceu no Acórdão Consorzio Caseifici dell’Altopiano di Asiago ( 17 ), esta última disposição confere aos compradores a faculdade de deduzir do preço do leite pago ao produtor o montante devido por este a título de imposição suplementar, mas não lhes impõe qualquer obrigação nesse sentido.

38.

No entanto, esta premissa é contestada pelo Governo italiano. Por conseguinte, começarei por abordar esta objeção, antes de me debruçar sobre o problema principal suscitado pela primeira questão prejudicial.

1. Incompatibilidade entre o direito nacional e o direito da União

39.

Na opinião do Governo italiano, a leitura que o órgão jurisdicional de reenvio faz do Acórdão Consorzio Caseifici dell’Altopiano di Asiago vai demasiado longe. Segundo este governo, este acórdão não exclui a possibilidade de os Estados‑Membros poderem limitar a escolha prevista no artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92 no que diz respeito ao modo pelo qual a imposição é cobrada (dedução obrigatória ou qualquer outra forma). O Tribunal de Justiça considerou apenas que os Estados‑Membros não podem impor sanções aos compradores que não cumpram essa obrigação.

40.

É verdade que o processo que deu origem ao Acórdão Consorzio Caseifici dell’Altopiano di Asiago surgiu no âmbito de um recurso interposto por um organismo representativo de produtores de leite contra uma sanção administrativa que lhe tinha sido aplicada pelas autoridades italianas por, nomeadamente, não ter deduzido do preço do leite os montantes devidos pelos produtores que tivessem excedido as suas quotas individuais. Todavia, o Tribunal de Justiça parece ter tratado a questão em termos abstratos, sem dar muito valor aos factos específicos do processo.

41.

O órgão jurisdicional de reenvio nesse processo tinha perguntado, em substância, se um comprador é obrigado, por força do artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92, a reter os montantes devidos pelos produtores que excedam as respetivas quotas individuais. O Tribunal de Justiça respondeu em sentido negativo, sublinhando que o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92 confere aos compradores, a este respeito, uma faculdade, mas não estabelece uma obrigação à qual não se possam subtrair ( 18 ).

42.

É manifesto que tal implica que os Estados‑Membros não podem impor sanções aos compradores que decidam não deduzir os montantes devidos a título de imposição suplementar do preço do leite pago aos produtores e cobrar tais montantes por outra forma. Mas decorre igualmente destas considerações, logicamente, que os Estados‑Membros não podem penalizar os compradores que tomem tal decisão, reservando‑lhes qualquer outro tratamento desfavorável, tal como, por exemplo, a discriminação na redistribuição de quotas não utilizadas ou na restituição da imposição cobrada em excesso ( 19 ). Tal seria incompatível com o facto de o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92 — usando as palavras do advogado‑geral A. La Pergola — respeitar a uma mera faculdade dos compradores cuja inobservância «não pode ser sancionada» ( 20 ). E, acrescento, as «sanções» devem ser entendidas no sentido mais lato.

43.

No Acórdão Consorzio Caseifici dell’Altopiano di Asiago, o Tribunal de Justiça apreciou, portanto, a opção quanto à forma de cobrança da imposição — através da dedução ou por qualquer outra forma adequada — e enquadrou‑a como uma questão de direito subjetivo de cada comprador individual. Se um direito individual é conferido pela legislação da União, daí decorre que a legislação nacional não pode privar as pessoas de tal direito. Assim, tal legislação do Estado‑Membro é, com efeito, incompatível com o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92.

44.

Dito isto, ainda que o próprio legislador da União mais tarde tenha «mudado» para outro modelo de cobrança da imposição, a verdade é que, durante o período relevante, a escolha a este respeito era dos compradores.

45.

Por conseguinte, embora reconhecendo que esta interpretação do artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92 possa conduzir a um certo enfraquecimento do sistema de execução, devo, porém, concordar com os recorrentes no processo principal e com a Comissão no sentido de que, no estado do direito após a decisão do Tribunal no processo Consorzio Caseifici dell’Altopiano di Asiago, a premissa em que a primeira questão se baseia é correta.

46.

Passo agora a abordar o mérito da questão.

2. Consequências da incompatibilidade entre o direito nacional e o direito da União

47.

Em substância, o problema suscitado pela primeira questão é o de saber se, numa situação em que uma norma nacional exige, em violação do artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92, que os compradores deduzam a imposição suplementar do preço do leite, a imposição deixa de ser devida, mesmo que se verifiquem os requisitos previstos pelo referido regulamento. Por outras palavras, a incompatibilidade da legislação nacional em causa com o direito da União tem como consequência dispensar os compradores da obrigação de cobrar a imposição suplementar aos produtores e de a transferir para as autoridades nacionais competentes, e/ou de dispensar os produtores da sua obrigação de pagar a imposição suplementar?

48.

Na minha opinião, a resposta a esta questão é bastante evidente: não. Com efeito, todas as partes que apresentaram observações no presente processo (incluindo os recorrentes no processo principal) estão de acordo: o facto de as normas processuais nacionais que regem a cobrança da imposição suplementar poderem ser incompatíveis com o direito da União não pode dispensar os compradores ou produtores das suas obrigações substantivas. Simplificando, o desacordo (e a incompatibilidade) no que respeita ao modo pelo qual uma imposição é cobrada não tem incidência sobre a questão de saber se a mesma é devida.

49.

No que respeita aos compradores, uma conclusão diferente seria contrária às disposições dos Regulamentos n.o 3950/92 e n.o 1392/2001, que indicam clara e expressamente que, no caso das entregas, é o comprador que é responsável pela imposição ( 21 ). Tal implicaria também que o sistema estabelecido por estes regulamentos se tornaria em grande medida ineficaz, dado que as entregas constituem a vasta maioria das vendas de leite e, por essa razão, os compradores «são os principais agentes da correta aplicação [desse regime]» ( 22 ).

50.

O único efeito que decorre da referida incompatibilidade é que a regulamentação nacional em causa não deve ser aplicada. As consequências para os compradores são duplas: por um lado, readquirem a sua liberdade de cobrança dos montantes «por qualquer outra forma adequada» e, por outro lado, os compradores que não tenham cobrado a imposição através de deduções ao preço do leite não podem ser penalizados.

51.

A fortiori, a incompatibilidade da legislação nacional com o direito da União no que respeita às normas que regem a cobrança da imposição suplementar pelos compradores não pode ter qualquer efeito sobre a obrigação dos produtores de pagarem a imposição.

52.

Como o sexto considerando e o artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 3950/92 clarificam, a obrigação de pagar a imposição suplementar é uma consequência direta do facto de a quota nacional ser excedida e são «os produtores que contribuíram para o excedente» que respondem pelo «pagamento da contribuição».

53.

Como o Tribunal de Justiça recentemente salientou, nos termos do artigo 11.o, n.os 1 e 2, do Regulamento n.o 1392/2001, os Estados‑Membros «devem tomar todas as medidas necessárias para assegurar que a imposição, incluindo os juros nos casos de inobservância do prazo de pagamento, seja corretamente cobrada e efetivamente repartida entre os produtores que tenham contribuído para a superação» ( 23 ). Com efeito, se os produtores não cumprirem as obrigações que lhes incumbem por força do regime e se os compradores não atuarem, os Estados‑Membros têm a faculdade de agir diretamente contra os produtores para cobrança do montante devido ( 24 ).

54.

Pelas razões atrás expostas, sou de opinião que o Tribunal de Justiça deve responder à primeira questão no sentido de que a incompatibilidade da regulamentação nacional que rege a cobrança da imposição suplementar com o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92 não dispensa os produtores da sua obrigação de pagar a imposição suplementar.

C.   Segunda questão

55.

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se deve ser protegida a confiança legítima dos compradores e produtores que cumpriram a obrigação de deduzir a imposição devida do preço do leite e de pagar mensalmente este montante às autoridades públicas. Esta questão, segundo percebi, é colocada apenas para a hipótese de o Tribunal de Justiça responder à primeira questão em sentido afirmativo.

56.

Uma vez que a incompatibilidade da regulamentação nacional que rege a cobrança da imposição suplementar com o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92 não implica, na minha opinião, que os produtores e os compradores sejam dispensados das suas obrigações substantivas decorrentes desse regulamento, a segunda questão prejudicial parece perder a sua relevância.

57.

Com efeito, em tal situação, não estou inteiramente seguro de que legítimas devem ser protegidas.

58.

A este respeito, limito‑me a acrescentar que, nos termos do artigo 8.o, n.os 2 e 3, do Regulamento n.o 1392/2001, as autoridades dos Estados‑Membros devem tomar medidas para assegurar o pagamento da imposição devida pelos produtores em situação de incumprimento. Além disso, os montantes devidos devem ser acrescidos de juros de mora. Por fim, tal não prejudica a possibilidade dos Estados‑Membros de imporem sanções adequadas às partes que violarem as obrigações que lhes incumbem por força do regime.

D.   Terceira questão

59.

A terceira questão prejudicial diz respeito às consequências que podem resultar da incompatibilidade da legislação nacional que rege a cobrança e o pagamento da imposição suplementar com as disposições dos Regulamentos n.o 3950/92 e n.o 1392/2001 no que toca à restituição do excedente de imposição.

60.

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 9.o do Regulamento n.o 1392/2001 se opõe a uma disposição nacional que estabelece modalidades e prazos diferentes para a restituição aos produtores da imposição cobrada em excesso, consoante os montantes devidos por esses produtores a título de imposição tenham ou não sido deduzidos do preço do leite e transferidos, mensalmente, para as autoridades nacionais competentes.

61.

Para melhor compreensão das razões subjacentes à questão prejudicial e dos problemas que a mesma suscita, pode ser útil recordar, sucintamente, os factos específicos relevantes para esta questão em particular.

1. Contexto factual

62.

Em Itália, a produção leiteira durante a campanha de 2003/2004 ultrapassou a quota atribuída a este Estado‑Membro pela legislação pertinente da União. Consequentemente, este Estado‑Membro devia pagar à União Europeia uma imposição suplementar sobre o excedente. Contudo, uma vez que algumas quotas individuais não tinham sido utilizadas, o montante global que as autoridades italianas receberam (ou deviam ter recebido) dos produtores que contribuíram para o excedente — diretamente ou por intermédio dos compradores — foi superior ao montante da imposição devida ao orçamento da União.

63.

Segundo o Governo italiano, as autoridades nacionais competentes decidiram não exercer a faculdade, conferida pelo artigo 2.o, n.o 1, segundo parágrafo, do Regulamento n.o 3950/92, de redistribuir as quotas não utilizadas. Com efeito, foi decidido restituir o excedente aos produtores que faziam parte de determinadas categorias prioritárias, nos termos do artigo 2.o, n.o 4, do Regulamento n.o 3950/92. Para este efeito, a restituição seria feita, em primeiro lugar, aos produtores que tivessem cumprido as suas obrigações de pagamentos mensais e que estivessem situados em zonas de montanha ou noutras zonas desfavorecidas. Caso restasse parte do excedente, as autoridades reduziriam então os montantes exigidos aos produtores que não tivessem cumprido as suas obrigações de pagamento mensal e que estivessem situados em zonas de montanha ou noutras zonas desfavorecidas.

64.

Contudo, os recorrentes no processo principal contestam esta descrição dos factos apresentada pelo Governo italiano. Consideram que o que as autoridades italianas efetivamente fizeram à data dos factos não foi restituir o excesso de imposição, mas sim redistribuir as quotas não utilizadas entre determinados produtores que tinham excedido as suas quotas individuais.

65.

Porém, o modo pelo qual a terceira questão do órgão jurisdicional nacional é formulada parece sugerir que o órgão jurisdicional de reenvio também considera que, em 2004, as autoridades italianas decidiram restituir o excedente da imposição aos produtores que fizessem parte de determinadas categorias prioritárias.

66.

Responderei, portanto, à presente questão conforme foi formulada pelo órgão jurisdicional de reenvio. No âmbito do processo previsto no artigo 267.o TFUE, não cabe ao Tribunal de Justiça apurar os factos relevantes. Essa tarefa cabe ao órgão jurisdicional de reenvio.

67.

Dito isto, e apenas por uma questão de exaustividade, abordarei também, de passagem, o cenário referido pelos recorrentes no processo principal. Na minha opinião, os aspetos factuais do litígio sobre os quais as partes discordam não são determinantes para abordar o problema principal suscitado pela terceira questão prejudicial que consiste, resumidamente, em determinar os critérios que permitem uma diferenciação entre os produtores.

68.

Explicarei em seguida as razões pelas quais considero que os compradores ou produtores que não cumpriram a obrigação, prevista no direito nacional, de deduzir a imposição do preço do leite e de a transferir mensalmente para as autoridades competentes não podem ser tratados de forma menos favorável do que os outros produtores ou compradores, seja na restituição do excesso de imposição ou na redistribuição de quotas não utilizadas.

2. Restituição do excesso de imposição

69.

Como referi no n.o 60, supra, a terceira questão consiste em saber se o artigo 9.o do Regulamento n.o 1392/2001 se opõe a uma disposição nacional, como o artigo 2.o, n.o 3, do Decreto‑Lei n.o 157/2004, que estabelece modalidades e prazos diferentes para a restituição aos produtores da imposição cobrada em excesso, consoante os montantes devidos por esses produtores a título de imposição tenham ou não sido deduzidos do preço do leite e transferidos, mensalmente, para as autoridades nacionais competentes.

70.

Na minha opinião, a resposta a essa questão deve ser afirmativa.

71.

A redação do artigo 9.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1392/2001 é muito clara: um Estado‑Membro que decida repartir o excesso de imposição entre os produtores só pode fazê‑lo em benefício de certas «categorias prioritárias» que devem ser determinadas em função dos critérios enumerados nesse artigo. Estes critérios são manifestamente exaustivos e enumerados «por ordem de prioridade». Os Estados‑Membros não podem, portanto, afastar‑se destes critérios. Por maioria de razão, não podem adicionar, a fim de definir as categorias prioritárias, um critério que consiste em ter cumprido uma norma processual nacional que — além do mais — se revelou incompatível com as disposições do Regulamento n.o 3950/92.

72.

O artigo 9.o, n.o 2, do Regulamento n.o 1392/2001, por seu turno, permite que os Estados‑Membros adotem «outros critérios objetivos», mas apenas «[s]e a aplicação dos critérios previstos no n.o 1 [da mesma disposição] não esgotar os recursos financeiros disponíveis para um dado período», e desde que a Comissão tenha sido consultada nesta matéria.

73.

Contudo, segundo entendi, o critério nacional baseado no cumprimento do artigo 5.o, n.o 1, do Decreto‑Lei n.o 49/2003 foi aplicado para determinar os produtores a quem a restituição seria feita em primeiro lugar. Só no caso de existirem ainda fundos disponíveis após a primeira fase de restituição é que os outros produtores poderiam também dela beneficiar. As disposições nacionais parecem, assim, seguir uma lógica que, na prática, é o oposto da lógica subjacente ao artigo 9.o do Regulamento n.o 1392/2001. Além disso, com base nos autos, não é claro se as autoridades italianas consultaram a Comissão sobre a adoção deste critério «processual».

74.

Na minha opinião, portanto, o artigo 9.o do Regulamento n.o 1392/2001 opõe‑se a que um Estado‑Membro exclua, para efeitos da restituição, os produtores que se enquadrem diretamente numa das categorias prioritárias enumeradas, ou que satisfaçam os critérios acordados entre a Comissão e o Estado‑Membro em questão. Consequentemente, os produtores que não tenham pago a imposição em conformidade com o disposto no artigo 5.o, n.o 1, da Lei n.o 49/2003 não podem ser tratados de forma menos favorável do que outros produtores em caso de restituição do excesso de imposição em conformidade com o artigo 2.o, n.o 4, do Regulamento n.o 3950/92.

75.

Para ser exaustivo, acrescento, como observação final, que não se pode considerar que os produtores que tenham cumprido o disposto no artigo 5.o, n.o 1, do Decreto‑Lei n.o 49/2003 se encontram numa «situação excecional resultante de uma disposição nacional que não tenha qualquer relação com esse regime», na aceção do artigo 2.o, n.o 4, do Regulamento n.o 3950/92. Pondo de parte a interpretação do alcance do conceito de «situação excecional», o qual, em qualquer caso, seria provavelmente interpretado de modo bastante estrito, não há dúvida de que nenhuma interpretação concebível do artigo 2.o, n.o 4, do Regulamento n.o 3950/92 permite que se considere que uma disposição como a do artigo 5.o, n.o 1, do Decreto‑Lei n.o 49/2003 «não [tem] qualquer relação» com o regime das quotas leiteiras.

76.

À luz das considerações precedentes, há que responder à terceira questão, na minha opinião, no sentido de que o artigo 9.o do Regulamento n.o 1392/2001 se opõe a uma disposição nacional que estabelece modalidades e prazos diferentes para a restituição aos produtores da imposição cobrada em excesso, consoante os montantes devidos por esses produtores a título de imposição tenham ou não sido deduzidos do preço do leite e transferidos, mensalmente, para as autoridades públicas.

3. Redistribuição das quotas não utilizadas

77.

A minha apreciação não teria sido diferente mesmo que o tratamento diferenciado reservado pelas autoridades italianas aos produtores e compradores que não tivessem cumprido o disposto no artigo 5.o, n.o 1, do Decreto‑Lei n.o 49/2003 respeitasse — como os recorrentes no processo principal sustentam — a uma redistribuição de quotas não utilizadas.

78.

Por força do artigo 2.o, n.o 1, do Regulamento n.o 3950/92, as quotas individuais não utilizadas devem ser repartidas «proporcionalmente às quantidades de referência de que dispõe cada um dos produtores» ( 25 ). Isto significa, plausivelmente, que as quotas não utilizadas devem ser distribuídas entre todos os produtores que tenham contribuído para o excedente e que a sua contribuição para a imposição deve ser determinada em conformidade ( 26 ).

79.

Consequentemente, os compradores ou produtores que não tivessem cumprido o disposto no artigo 5.o, n.o 1, do Decreto‑Lei n.o 49/2003 não podiam ser objeto de discriminação, mesmo em caso de redistribuição de quotas não utilizadas.

IV. Conclusão

80.

Em conclusão, proponho que o Tribunal de Justiça responda à questão submetida pelo Consiglio di Stato (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Itália) do seguinte modo:

A incompatibilidade da regulamentação nacional que rege a cobrança da imposição suplementar com o artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento (CEE) n.o 3950/92 do Conselho, de 28 de dezembro de 1992, que institui uma imposição suplementar no setor do leite e dos produtos lácteos, não dispensa os produtores da sua obrigação de pagar a imposição suplementar.

O artigo 9.o do Regulamento n.o 1392/2001 da Comissão, de 9 de julho de 2001, que estabelece normas de execução do Regulamento (CEE) n.o 3950/92 do Conselho que institui uma imposição suplementar no setor do leite e dos produtos lácteos, opõe‑se a uma disposição nacional que estabelece modalidades e prazos diferentes para a restituição aos produtores da imposição cobrada em excesso, consoante os montantes devidos por esses produtores a título de imposição tenham ou não sido deduzidos do preço do leite e transferidos, mensalmente, para as autoridades nacionais competentes.


( 1 ) Língua original: inglês.

( 2 ) V. O’Reilly, J., «Milk quotas and their consideration before the institutions of the Community of particular interest to lawyers», em Heusel, W., Collins, A.M. (eds.), Agricultural law for the European Union, EIPA, Trier/Dublin, 1999, p. 103.

( 3 ) V., neste sentido, Tribunal de Contas, Relatório especial n.o 4/93 sobre a aplicação do regime de quotas que visa o controlo da produção leiteira acompanhado da resposta da Comissão (JO 1994, C 12, p. 1).

( 4 ) V., recentemente, Acórdão de 24 de janeiro de 2018, Comissão/Itália (C‑433/15, EU:C:2018:31).

( 5 ) JO 1992, L 405, p. 1.

( 6 ) V. primeiro considerando do Regulamento n.o 3950/92.

( 7 ) JO 2001, L 187, p. 19.

( 8 ) JO 2003, L 270, p. 123.

( 9 ) Gazzetta Ufficiale n.o 75, de 31 de março de 2003.

( 10 ) Gazzetta Ufficiale n.o 147, de 25 de junho de 2004.

( 11 ) Acórdão de 29 de abril de 1999 (C‑288/97, EU:C:1999:214, n.os 29 a 32, a seguir «Consorzio Caseifici Altopiano di Asiago»).

( 12 ) V., por exemplo, considerandos 1 a 3 do Regulamento n.o 1788/2003, bem como o seu artigo 1.o, n.o 1.

( 13 ) V. artigo 13.o do Regulamento n.o 3950/92.

( 14 ) Quanto a este aspeto, pode ser útil recordar, a título de analogia, que é pacífico, no direito fiscal da União, que as disposições que dizem respeito, nomeadamente, ao modo e o montante pelo qual o imposto deve ser cobrado não podem aplicar‑se a situações existentes antes da sua entrada em vigor. V., por exemplo, Acórdão de 17 de julho de 2014, Equoland (C‑272/13, EU:C:2014:2091, n.o 20).

( 15 ) V., designadamente, Acórdão de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o. (C‑17/10, EU:C:2012:72, n.o 47 e jurisprudência referida).

( 16 ) V., em especial, artigo 7.o do Regulamento n.o 1392/2001.

( 17 ) N.os 29 a 32 do acórdão.

( 18 ) V., em especial, n.o 30 do acórdão.

( 19 ) Mais desenvolvimentos sobre esta questão infra, n.os 69 a 79 das presentes conclusões.

( 20 ) V. Conclusões do advogado‑geral A. La Pergola no processo Consorzio Caseifici dell’Altopiano di Asiago (C‑288/97, EU:C:1998:574, n.o 13).

( 21 ) Ver, em especial, oitavo considerando e artigo 2.o, n.o 2, do Regulamento n.o 3950/92, e artigos 7.o e 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1392/2001.

( 22 ) Sétimo considerando do Regulamento n.o 1392/2001.

( 23 ) Acórdão de 24 de janeiro de 2018, Comissão/Itália (C‑433/15, EU:C:2018:31, n.o 41). O sublinhado é meu.

( 24 ) V. Acórdão de 15 de janeiro de 2004, Penycoed (C‑230/01, EU:C:2004:20, n.o 41).

( 25 ) O sublinhado é meu.

( 26 ) V. igualmente, neste sentido, Acórdão de 5 de maio de 2011, Etling e Etling e o. (C‑230/09 e C‑231/09, EU:C:2011:271, n.o 64).

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