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Document 62017CJ0617

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 3 de abril de 2019.
    Powszechny Zakład Ubezpieczeń na Życie S.A. contra Prezes Urzędu Ochrony Konkurencji i Konsumentów.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sąd Najwyższy.
    Reenvio prejudicial — Concorrência — Artigo 82.° CE — Abuso de posição dominante — Regulamento (CE) n.° 1/2003 — Artigo 3.°, n.° 1 — Aplicação da legislação nacional em matéria de concorrência — Decisão da autoridade nacional responsável em matéria de concorrência que aplica uma coima com fundamento no direito nacional e uma coima com fundamento no direito da União — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.° — Princípio ne bis in idem — Aplicabilidade.
    Processo C-617/17.

    Court reports – general

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2019:283

    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

    3 de abril de 2019 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Concorrência — Artigo 82.o CE — Abuso de posição dominante — Regulamento (CE) n.o 1/2003 — Artigo 3.o, n.o 1 — Aplicação da legislação nacional em matéria de concorrência — Decisão da autoridade nacional responsável em matéria de concorrência que aplica uma coima com fundamento no direito nacional e uma coima com fundamento no direito da União — Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Artigo 50.o — Princípio ne bis in idem — Aplicabilidade»

    No processo C‑617/17,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal, Polónia), por Decisão de 26 de setembro de 2017, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 30 de outubro de 2017, no processo

    Powszechny Zakład Ubezpieczeń na Życie S.A.

    contra

    Prezes Urzędu Ochrony Konkurencji i Konsumentów,

    com a intervenção de:

    Edward Dętka,

    Mirosław Krzyszczak,

    Zakład Projektowania i Programowania Systemów Sterowania Atempol Sp. z o.o. w Piekarach Śląskich,

    Ommer Polska Sp. z o.o. w Krapkowicach,

    Glimat Marcinek i S‑ka spółka jawna w Gliwicach,

    Jastrzębskie Zakłady Remontowe Dźwigi Sp. z o.o. w Jastrzębiu Zdroju,

    Petrofer‑Polska Sp. z o.o. w Nowinach,

    Pietrzak B.B. Beata Pietrzak, Bogdan Pietrzak Spółka jawna w Katowicach,

    Ewelina Baranowska,

    Przemysław Nikiel,

    Tomasz Woźniak,

    Spółdzielnia Kółek Rolniczych w Bielinach,

    Lech Marchlewski,

    Zakład Przetwórstwa Drobiu Marica spółka jawna J.M.E.K. Wróbel sp. jawna w Bielsku Białej,

    HTS Polska Sp. z o.o.,

    Paco Cases Andrzej Paczkowski, Piotr Paczkowski spółka jawna w Puszczykowie,

    Bożena Kubalańca,

    Zbigniew Arczykowski,

    Przedsiębiorstwo Produkcji Handlu i Usług Unipasz Sp. z o.o. w Radzikowicach,

    Janusz Walocha,

    Marek Grzegolec,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

    composto por: M. Vilaras, presidente de secção, K. Jürimäe (relatora), D. Šváby, S. Rodin e N. Piçarra, juízes,

    advogado‑geral: N. Wahl,

    secretário: A. Calot Escobar,

    vistos os autos,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação da Powszechny Zakład Ubezpieczeń na Życie S.A., por W. Boruń e J. Wójcik, radcy prawni,

    em representação do Prezes Urzędu Ochrony Konkurencji i Konsumentów, por B. Cebula, radca prawny,

    em representação do Governo polaco, por B. Majczyna, na qualidade de agente,

    em representação da Comissão Europeia, por T. Christoforou, M. Farley, J. Szczodrowski e F. van Schaik, na qualidade de agentes,

    em representação do Órgão de Fiscalização da EFTA, por C. Zatschler, M. Sánchez Rydelski e C. Simpson, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 29 de novembro de 2018,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do princípio non bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em 7 de dezembro de 2000, em Nice (a seguir «Carta»), e do artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 1/2003 do Conselho, de 16 de dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.o e 82.o do Tratado (JO 2003, L 1, p. 1).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Powszechny Zakład Ubezpieczeń na Życie S.A. (a seguir «PZU Życie») ao Prezes Urzędu Ochrony Konkurencji i Konsumentów (presidente do Serviço da Concorrência e da Proteção do Consumidor, a seguir «presidente do UOKiK») a respeito de uma decisão deste último que lhe aplicou, com fundamento na prática de um abuso de posição dominante, uma coima por violação da legislação nacional em matéria de concorrência e uma coima por violação da legislação da União em matéria de concorrência.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    3

    O considerando 6 do Regulamento n.o 1/2003 tem a seguinte redação:

    «Para assegurar a aplicação eficaz das regras [de concorrência da União], as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência deverão ter maior participação nessa aplicação. Para o efeito, deverá ser‑lhe atribuída competência para aplicar o direito [da União].»

    4

    O artigo 3.o, n.o 1, deste regulamento estabelece:

    «Sempre que as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência ou os tribunais nacionais apliquem a legislação nacional em matéria de concorrência a acordos, decisões de associação ou práticas concertadas na aceção do n.o 1 do artigo 81.o [CE], suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados‑Membros, na aceção desta disposição, devem aplicar igualmente o artigo 81.o [CE] a tais acordos, decisões ou práticas concertadas. Sempre que as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência ou os tribunais nacionais apliquem a legislação nacional em matéria de concorrência a qualquer abuso proibido pelo artigo 82.o [CE], devem aplicar igualmente o artigo 82.o [CE].»

    5

    O artigo 5.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Competência das autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência», dispõe:

    «As autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência têm competência para aplicar, em processos individuais, os artigos 81.o e 82.o [CE]. Para o efeito, podem, atuando oficiosamente ou na sequência de denúncia, tomar as seguintes decisões:

    […]

    aplicar coimas, sanções pecuniárias compulsórias ou qualquer outra sanção prevista pelo respetivo direito nacional.

    Sempre que, com base nas informações de que dispõem, não estejam preenchidas as condições de proibição, podem igualmente decidir que não se justifica a sua intervenção.»

    6

    O artigo 11.o do mesmo regulamento, sob a epígrafe «Cooperação entre a Comissão e as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência», prevê:

    «1.   A Comissão e as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência aplicam as regras [da União] de concorrência em estreita cooperação.

    […]

    3.   Sempre que agirem em aplicação dos artigos 81.o ou 82.o [CE], as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência devem comunicá‑lo por escrito à Comissão antes ou imediatamente depois de terem dado início à primeira medida de investigação formal. Esta informação também pode ser disponibilizada às autoridades homólogas dos outros Estados‑Membros.

    […]»

    7

    Nos termos do artigo 16.o do Regulamento n.o 1/2003:

    «1.   Quando se pronunciarem sobre acordos, decisões ou práticas ao abrigo dos artigos 81.o ou 82.o [CE] que já tenham sido objeto de decisão da Comissão, os tribunais nacionais não podem tomar decisões que sejam contrárias à decisão aprovada pela Comissão. Devem evitar tomar decisões que entrem em conflito com uma decisão prevista pela Comissão em processos que esta tenha iniciado. Para o efeito, o tribunal nacional pode avaliar se é ou não necessário suster a instância. Esta obrigação não prejudica os direitos e obrigações decorrentes do artigo 234.o [CE].

    2.   Quando se pronunciarem sobre acordos, decisões ou práticas ao abrigo dos artigos 81.o ou 82.o [CE] que já tenham sido objeto de decisão da Comissão, as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência não podem tomar decisões que sejam contrárias à decisão aprovada pela Comissão.»

    Direito polaco

    8

    O artigo 8.o, n.o 1, da ustawa o ochronie konkurencji i konsumentów (Lei sobre a proteção da concorrência e dos consumidores), de 15 de dezembro de 2000 (Dz. U. de 2000, n.o 122, posição 1319, a seguir «LPCC»), estabelece:

    «É proibido o abuso de uma posição dominante no mercado relevante por uma ou mais empresas.»

    9

    O artigo 101.o, n.o 1, da LPPC dispõe:

    «O [presidente do UOKiK] pode, por despacho, aplicar a uma empresa uma coima, cujo montante não pode ser superior a 10 % do volume de negócios que aquele auferiu no ano económico anterior àquele em que a coima foi aplicada, se essa empresa, mesmo por negligência:

    1)

    Tiver violado a proibição estabelecida no artigo 5.o, salvo se se verificar um dos fundamentos para a exclusão dessa proibição previstos nos artigos 6.o e 7.o, ou a proibição estabelecida no artigo 8.o;

    2)

    Tiver violado o artigo 81.o ou o artigo 82.o [CE];

    […]»

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    10

    Por decisão de 25 de outubro de 2007, o presidente do UOKiK considerou que, durante o período compreendido entre 1 de abril de 2001 e a data de adoção desta decisão, a PZU Życie abusou da sua posição dominante no mercado dos seguros de vida de grupo para trabalhadores na Polónia e, por conseguinte, violou o artigo 8.o da LPCC.

    11

    O presidente do UOKiK considerou igualmente que a prática constitutiva desse abuso era suscetível de ter repercussões negativas nas possibilidades de as seguradoras estrangeiras entrarem no mercado polaco e, como tal, de afetar o comércio entre os Estados‑Membros. Assim, considerou que a PZU Życie violou, além do direito nacional, o artigo 82.o CE.

    12

    O presidente do UOKiK aplicou à PZU Życie uma sanção no montante total de 50381080 zlótis polacos (PLN) (cerca de 11697000 euros), que compreende, por um lado, uma coima de 33022892,77 PLN (cerca de 7664000 euros) pela violação das disposições da legislação nacional em matéria de concorrência no período compreendido entre 1 de maio de 2001 e 25 de outubro de 2007 e, por outro, uma coima de 17358187,23 PLN (cerca de 4033000 euros) a título da violação do artigo 82.o CE no período compreendido entre 1 de maio de 2004, data da adesão da República da Polónia à União, e 25 de outubro de 2007.

    13

    Por Decisão de 28 de março de 2014, o Sąd Okręgowy w Warszawie — Sąd Ochrony Konkurencji i Konsumentów (Tribunal Regional de Varsóvia — Tribunal da Proteção da Concorrência e dos Consumidores, Polónia) negou provimento ao recurso interposto pela PZU Życie da decisão de 25 de outubro de 2007. Esta decisão foi confirmada por Acórdão de 17 de setembro de 2015 do Sąd Apelacyjny w Warszawie (Tribunal de Recurso de Varsóvia, Polónia).

    14

    A PZU Życie interpôs recurso de cassação para o Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal, Polónia), invocando uma violação do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta e no artigo 4.o do Protocolo n.o 7 à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950 (a seguir «CEDH»). A recorrente no processo principal alega que foi sancionada duas vezes por uma violação do direito da União, a saber, uma primeira vez, de forma direta, com base no artigo 82.o CE, conjugado com o artigo 5.o do Regulamento n.o 1/2003 e, uma segunda vez, de forma indireta, nos termos da legislação nacional em matéria de concorrência.

    15

    O órgão jurisdicional de reenvio recorda que o princípio ne bis in idem assume uma importância considerável num Estado de direito democrático e proíbe que a mesma pessoa seja julgada e sancionada duas vezes pelo mesmo facto. O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que o litígio no processo principal tem por objeto, no essencial, a questão de saber em que casos existe, relativamente a um mesmo processo, um segundo julgamento ou uma segunda sanção pela violação do direito da concorrência para efeitos da aplicação do princípio ne bis in idem.

    16

    Em primeiro lugar, sublinha que, no Acórdão de 10 de fevereiro de 2009, Sergueï Zolotoukhine c. Rússia (CE:ECHR:2009:0210JUD001493903, n.os 78 a 82), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem declarou que este princípio se aplica no caso de uma identidade dos factos e não no caso de uma mesma infração. Resulta desta jurisprudência que o facto de, como no caso vertente, uma pessoa ser punida em duas ocasiões pelo mesmo comportamento anticoncorrencial constitui uma violação do referido princípio. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça seguiu a mesma abordagem noutras matérias que não o direito da concorrência, em particular nos Acórdãos de 5 de maio de 1966, Gutmann/Comissão (18/65 e 35/65, EU:C:1966:24), e de 9 de março de 2006, Van Esbroeck (C‑436/04, EU:C:2006:165).

    17

    Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, na sua jurisprudência em matéria de concorrência, o Tribunal de Justiça declarou, em contrapartida, que o princípio ne bis in idem está sujeito a uma tripla condição da identidade dos factos, da unidade do infrator e da unidade do interesse jurídico protegido. No que se refere, mais em particular, à identidade dos factos, o Tribunal de Justiça precisou, no Acórdão de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o. (C‑17/10, EU:C:2012:72, n.o 99), que esta deve ser apreciada não apenas sob o ângulo do comportamento da empresa, mas tendo igualmente em conta os seus efeitos no plano temporal e territorial.

    18

    Assim, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, existe uma divergência entre a abordagem do Tribunal de Justiça nos processos de concorrência e a sua abordagem nos outros domínios do direito da União. Com efeito, em matéria de concorrência, o Tribunal de Justiça exige que, para além da identidade dos factos e da unidade do infrator, também haja unidade do interesse jurídico protegido. Este requisito adicional restringe o âmbito de aplicação do princípio ne bis in idem. Conduz, no caso vertente, à conclusão de que não houve violação desse princípio.

    19

    Esse órgão jurisdicional questiona‑se, portanto, sobre o alcance do princípio ne bis in idem, na medida em que é obrigado a aplicar tanto as disposições da CEDH com as da Carta. Além disso, coloca a questão de saber se a jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa à aplicação deste princípio em matéria de concorrência está em conformidade com o artigo 52.o, n.o 3, segundo período, da Carta, uma vez que esta jurisprudência confere uma proteção mais limitada do que a assegurada pela CEDH.

    20

    Em terceiro lugar, no caso de o Tribunal de Justiça confirmar que a unidade do interesse jurídico protegido constitui um elemento adicional que condiciona a aplicação do princípio ne bis in idem, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre a questão de saber se o Acórdão de 13 de fevereiro de 1969, Wilhelm e o. (14/68, EU:C:1969:4), proferido num processo em que não estava em causa o princípio ne bis in idem, deve ser interpretado no sentido de que a legislação da União e a legislação nacional em matéria de concorrência protegem o mesmo interesse jurídico. Essa ambiguidade resulta igualmente do Acórdão de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o. (C‑17/10, EU:C:2012:72, n.os 81 e 98), que pode, todavia, ser interpretado no sentido de que essas duas legislações protegem o mesmo interesse jurídico. Esta questão, que ainda não foi resolvida, é determinante para resolver o litígio no processo principal, caracterizado por uma identidade dos factos e no qual foram aplicadas paralelamente, no âmbito do mesmo processo, disposições análogas do direito da União e do direito nacional.

    21

    Nestas condições, o Sąd Najwyższy (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    Pode o artigo 50.o da [Carta] ser interpretado no sentido de que a aplicação do princípio ne bis in idem exige não só a identidade do infrator e dos factos, mas também a identidade do bem jurídico protegido?

    2)

    Deve o artigo 3.o [do Regulamento n.o 1/2003], conjugado com o artigo 50.o da [Carta], ser interpretado no sentido de que as normas de direito da concorrência da União Europeia e as normas de direito da concorrência nacionais que a autoridade da concorrência de um Estado‑Membro aplica paralelamente protegem o mesmo bem jurídico?»

    Quanto às questões prejudiciais

    22

    Através das suas questões prejudiciais, que há que examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio ne bis in idem, enunciado no artigo 50.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que uma autoridade nacional responsável em matéria de concorrência aplique a uma empresa, no quadro da mesma decisão, uma coima por violação da legislação nacional em matéria de concorrência e uma coima por violação do artigo 82.o CE.

    23

    Nos termos do seu considerando 6, o Regulamento n.o 1/2003 visa, para assegurar a aplicação eficaz das regras de concorrência da União, envolver mais as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência atribuindo‑lhes competência para aplicar o direito da União.

    24

    Assim, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 1, segundo período, do referido regulamento, sempre que as autoridades dos Estados‑Membros responsáveis em matéria de concorrência apliquem a legislação nacional em matéria de concorrência a qualquer abuso proibido pelo artigo 82.o CE, devem aplicar igualmente esse artigo.

    25

    O Tribunal de Justiça tem declarado reiteradamente que a legislação da União e a legislação nacional em matéria de concorrência se aplicam em paralelo. As regras de concorrência a nível europeu e nacional consideram as práticas restritivas sob diferentes aspetos e os seus âmbitos de aplicação não coincidem (Acórdão de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o., C‑17/10, EU:C:2012:72, n.o 81 e jurisprudência referida).

    26

    Daqui decorre que, caso a Comissão não tenha dado início a um processo tendo em vista a adoção de uma decisão nos termos do capítulo III do Regulamento n.o 1/2003, quando a autoridade nacional responsável em matéria de concorrência aplica as disposições do direito nacional que proíbem os atos unilaterais de uma empresa suscetíveis de afetar o comércio entre os Estados‑Membros na aceção do artigo 82.o CE, o artigo 3.o, n.o 1, segundo período, desse regulamento impõe‑lhe que aplique igualmente, em paralelo, o artigo 82.o CE (v., por analogia, no que respeita ao artigo 81.o CE, Acórdão de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o., C‑17/10, EU:C:2012:72, n.os 77 e 78).

    27

    O artigo 5.o do Regulamento n.o 1/2003 precisa que a autoridade nacional responsável em matéria de concorrência competente para aplicar o artigo 82.o CE pode aplicar coimas, sanções pecuniárias compulsórias ou qualquer outra sanção prevista pelo seu direito nacional.

    28

    A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou que o princípio ne bis in idem deve ser respeitado nos processos que visam a aplicação de coimas, no domínio do direito da concorrência. O referido princípio proíbe, em matéria de concorrência, que uma empresa seja condenada ou objeto de um processo, uma segunda vez, devido a um comportamento anticoncorrencial pelo qual já foi punida ou declarada isenta de responsabilidade por uma decisão anterior que já não seja suscetível de recurso (Acórdão de 14 de fevereiro de 2012, Toshiba Corporation e o., C‑17/10, EU:C:2012:72, n.o 94 e jurisprudência referida).

    29

    Decorre assim da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o princípio ne bis in idem visa evitar que uma empresa seja «condenada ou objeto de um processo, uma segunda vez», o que pressupõe que essa empresa tenha sido condenada ou declarada isenta de responsabilidade por uma decisão anterior que já não seja suscetível de recurso.

    30

    Esta interpretação do princípio ne bis in idem é corroborada pela redação do artigo 50.o da Carta, bem como pela razão de ser desse princípio.

    31

    No que se refere, em primeiro lugar, à redação do artigo 50.o da Carta, este dispõe que «[n]inguém pode ser julgado ou punido penalmente por um delito do qual já tenha sido absolvido ou pelo qual já tenha sido condenado na União por sentença transitada em julgado, nos termos da lei».

    32

    Como salientou o advogado‑geral no n.o 21 das suas conclusões, este artigo visa assim especificamente a repetição de processos com objeto idêntico que já tenham sido concluídos através de uma decisão transitada em julgado relativa ao mesmo elemento material. Ora, na situação em que, nos termos do artigo 3.o, n.o 1, segundo período, do Regulamento n.o 1/2003, a autoridade nacional responsável em matéria de concorrência aplica paralelamente a legislação nacional em matéria de concorrência e o artigo 82.o CE, tal repetição, de facto, não se verifica.

    33

    No que se refere, em segundo lugar, à razão de ser do princípio ne bis in idem, há que recordar, como salientou, em substância, o advogado‑geral no n.o 18 das suas conclusões, que, como corolário do princípio da força do caso julgado, este princípio tem por objeto garantir a segurança jurídica e a equidade, ao garantir que quem for julgado e, se for caso disso, condenado não voltará a ser acusado judicialmente pela mesma infração.

    34

    Assim, a proteção que o princípio ne bis in idem visa conferir contra a repetição dos processos que conduzem à aplicação de uma condenação não é aplicável a uma situação em que, na mesma decisão, são paralelamente aplicadas a legislação nacional em matéria de concorrência e a legislação da União em matéria de concorrência.

    35

    Daqui resulta, como alegam, em substância, o presidente do UOKiK, o Governo polaco, a Comissão e o Órgão de Fiscalização da EFTA nas suas observações, que o princípio ne bis in idem não é aplicável a uma situação como a que está em causa no processo principal, em que a autoridade nacional responsável em matéria de concorrência aplica em paralelo, em conformidade com o artigo 3.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1/2003, a legislação nacional em matéria de concorrência e as regras de concorrência da União e sanciona, nos termos do artigo 5.o deste regulamento, uma empresa através da aplicação, no âmbito da mesma decisão, de uma coima pela violação dessa legislação e de uma coima pelo desrespeito dessas regras.

    36

    Há, todavia, que esclarecer que, caso, ao abrigo desta última disposição, a autoridade nacional responsável em matéria de concorrência decida aplicar uma coima por violação do artigo 82.o CE, esta autoridade é obrigada a exercer a sua competência respeitando o direito da União.

    37

    Com efeito, resulta de jurisprudência constante que, quando um regulamento da União não contenha qualquer disposição específica que preveja uma sanção em caso de violação desse regulamento ou remeta, a esse respeito, para as disposições legislativas, regulamentares e administrativas nacionais, o artigo 10.o CE impõe que os Estados‑Membros tomem todas as medidas adequadas para garantir o alcance e a eficácia do direito da União. Para esse efeito, ao mesmo tempo que conservam a possibilidade de escolher as sanções, os Estados‑Membros devem, designadamente, velar para que as violações do direito da União sejam punidas em condições, substantivas e de processo, análogas às aplicáveis às violações do direito nacional de natureza e importância semelhantes e que, de qualquer forma, confiram à sanção um caráter proporcionado (v., por analogia, Acórdão de 10 de julho de 1990, Hansen,C‑326/88, EU:C:1990:291, n.o 17).

    38

    Assim, como sustentou o Órgão de Fiscalização da EFTA nas suas observações, quando, no âmbito da mesma decisão, a autoridade nacional responsável em matéria de concorrência aplica duas coimas para sancionar, respetivamente, uma violação da legislação nacional em matéria de concorrência e uma violação do artigo 82.o CE, essa autoridade deve garantir que as coimas, consideradas em conjunto, são proporcionais à natureza da infração, o que, no processo principal, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

    39

    Face ao exposto, há que responder às questões prejudiciais que o princípio ne bis in idem enunciado no artigo 50.o da Carta deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que uma autoridade nacional responsável em matéria de concorrência aplique a uma empresa, no âmbito da mesma decisão, uma coima por violação da legislação nacional em matéria de concorrência e uma coima por violação do artigo 82.o CE. Numa situação dessa natureza, a autoridade nacional responsável em matéria de concorrência deve, contudo, garantir que as coimas, globalmente consideradas, são proporcionais à natureza da infração.

    Quanto às despesas

    40

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

     

    O princípio ne bis in idem consagrado no artigo 50.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em 7 de dezembro de 2000, em Nice, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que uma autoridade nacional responsável em matéria de concorrência aplique a uma empresa, no âmbito da mesma decisão, uma coima por violação da legislação nacional em matéria de concorrência e uma coima por violação do artigo 82.o CE. Numa situação dessa natureza, a autoridade nacional responsável em matéria de concorrência deve, contudo, garantir que as coimas, globalmente consideradas, são proporcionais à natureza da infração.

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: polaco.

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