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Document 62017CC0399

    Conclusões do advogado-geral N. Wahl apresentadas em 15 de novembro de 2018.
    Comissão Europeia contra República Checa.
    Incumprimento de Estado — Regulamento (CE) n.o 1013/2006 — Transferência de resíduos — Recusa da República Checa de assegurar a retoma da mistura TPS‑NOLO (Geobal) transferida deste Estado‑Membro para a Polónia — Existência de um resíduo — Ónus da prova — Prova.
    Processo C-399/17.

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2018:922

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    NILS WAHL

    apresentadas em 15 de novembro de 2018 ( 1 )

    Processo C‑399/17

    Comissão Europeia

    contra

    República Checa

    «Incumprimento — Artigo 258.o TFUE — Regulamento (CE) n.o 1013/2006 — Transferências de resíduos — Substância conhecida por TPS‑NOLO (Geobal) — Retoma dos resíduos em caso de transferência ilegal — Questões de classificação — Artigo 28.o — Substância a tratar como resíduo em caso de desacordo sobre questões de classificação — Admissibilidade»

    1. 

    No processo em apreço, o Tribunal de Justiça é chamado a decidir se a República Checa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do Regulamento (CE) n.o 1013/2006 (a seguir «Regulamento relativo a Transferências de Resíduos») ( 2 ). Mais especificamente, está em causa a questão de saber se a República Checa violou disposições deste regulamento ao recusar a retoma de uma substância conhecida como TPS‑NOLO (ou Geobal) que tinha sido transferida para a Polónia sem respeitar os requisitos formais do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos.

    2. 

    A questão assim colocada levanta diversos problemas: o conceito amplo e fluido de resíduos na legislação da UE, o âmbito de aplicação do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos e os requisitos a cumprir para a propositura de uma ação ao abrigo do artigo 258.o TFUE. Nenhum deles é de fácil solução.

    3. 

    A constatação da não existência de um incumprimento no presente processo poderá enfraquecer potencialmente a eficácia e a aplicabilidade do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos, cujo objeto e componente principal e preponderante é a proteção do ambiente. Não obstante, os tribunais pautam‑se acima de tudo por princípios procedimentais que garantem um processo equitativo em cada caso concreto. Estes princípios não podem ser sacrificados para promover uma causa maior, por mais nobre que ela possa ser.

    I. Quadro jurídico

    A.   Regulamento relativo a Transferências de Resíduos

    4.

    Segundo o artigo 1.o («Âmbito de aplicação»), o Regulamento relativo a Transferências de Resíduos «estabelece procedimentos e regimes de controlo relativos a transferências de resíduos, de acordo com a origem, o destino e o itinerário dessas transferências, o tipo de resíduos transferidos e o tipo de tratamento a aplicar aos resíduos no seu destino».

    5.

    O artigo 2.o («Definições») dispõe que se entende por:

    «1.

    “Resíduos”, os resíduos definidos na alínea a) do n.o 1 do artigo 1.o da Diretiva 2006/12/CE;

    […]

    34.

    “Transferência”: o transporte de resíduos com vista à valorização ou à eliminação, que se efetue ou esteja previsto:

    a)

    Entre dois países; […]

    35.

    “Transferência ilegal”, qualquer transferência de resíduos efetuada:

    a)

    Sem ter sido notificada a todas as autoridades competentes envolvidas, nos termos do presente regulamento; ou

    b)

    Sem ter obtido a autorização das autoridades competentes envolvidas, nos termos do presente regulamento; ou

    c)

    Tendo obtido a autorização das autoridades competentes envolvidas através de falsificação, deturpação ou fraude; ou

    d)

    De um modo não especificado de forma material na notificação ou nos documentos de acompanhamento; ou

    e)

    De tal modo que resulte na valorização ou eliminação em violação das regras comunitárias e internacionais; ou

    f)

    Em contrário ao disposto nos artigos 34.o, 36.o, 39.o, 40.o, 41.o e 43.o; ou

    g)

    De tal modo que, em relação às transferências de resíduos referidas nos n.os 2 e 4 do artigo 3.o:

    i)

    se tenha verificado que os resíduos não constam dos anexos III, III‑A ou III‑B, ou

    ii)

    não tenha sido respeitado o n.o 4 do artigo 3.o,

    iii)

    a transferência tenha sido efetuada de um modo não especificado materialmente no documento do anexo VII»

    6.

    O artigo 3.o do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos trata do quadro processual global das transferências de resíduos e prevê o seguinte:

    «1.   As transferências dos resíduos a seguir enumerados estão sujeitas ao procedimento prévio de notificação e consentimento escrito nos termos do presente título:

    a)

    Quando destinadas a operações de eliminação:

    todos os resíduos;

    b)

    Quando destinadas a operações de valorização:

    i)

    resíduos enumerados no anexo IV, que inclui resíduos constantes dos anexos II e VIII da Convenção de Basileia,

    ii)

    resíduos enumerados no anexo IV‑A,

    iii)

    resíduos não classificados em qualquer rubrica própria nos anexos II, III‑B, IV ou IV‑A,

    iv)

    misturas de resíduos não classificadas em qualquer rubrica própria nos anexos III, III‑B, IV ou IV‑A, exceto se enumeradas no anexo III‑A.

    […]»

    7.

    O artigo 24.o do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos prevê a retoma em caso de transferência ilegal e dispõe:

    «1.   Uma autoridade competente que descubra a ocorrência de uma transferência que considere ilegal, deverá informar imediatamente as outras autoridades competentes envolvidas.

    2.   Se a transferência ilegal for da responsabilidade do notificador, a autoridade competente de expedição assegurará que os resíduos em questão sejam:

    a)

    Retomados pelo notificador de facto ou, se não tiver sido efetuada qualquer notificação;

    b)

    Retomados pelo notificador de jure; ou, se inviável,

    c)

    Retomados pela própria autoridade competente de expedição ou, em seu nome, por uma pessoa singular ou coletiva; ou, se inviável,

    […]

    Esta retoma, valorização ou eliminação serão efetuadas no prazo de 30 dias, ou em qualquer outro prazo acordado entre as autoridades competentes envolvidas, após a autoridade competente de expedição ter tomado conhecimento ou sido avisada por escrito pelas autoridades competentes de destino ou de trânsito sobre a transferência ilegal e respetiva razão ou razões. […]

    As autoridades competentes não podem opor‑se ou levantar objeções à devolução de resíduos de uma transferência ilegal. […]

    […]

    7.   Sempre que sejam detetados resíduos de uma transferência ilegal num Estado‑Membro, a autoridade competente com jurisdição sobre a área em que os resíduos foram detetados é responsável por providenciar uma armazenagem segura dos resíduos enquanto se aguarda a sua devolução ou a sua valorização ou eliminação não intermédia de forma alternativa.»

    8.

    Ademais, o artigo 28.o do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos («Desacordo sobre questões de classificação») tem a seguinte redação:

    «1.   Se as autoridades competentes de expedição e de destino não puderem concordar quanto à classificação no que diz respeito à distinção entre resíduos e não resíduos, as matérias transferidas serão tratadas como se fossem resíduos, sem prejuízo do direito do país de destino de as tratar, após a sua chegada, de acordo com o seu direito interno, desde que esse direito interno cumpra o direito comunitário ou o direito internacional.

    […]

    4.   Os n.os 1 a 3 são aplicáveis apenas para efeitos do presente regulamento e não prejudicam os direitos das partes interessadas na resolução judicial de qualquer litígio relacionado com estas questões.»

    B.   Diretiva 2008/98/CE (a seguir «Diretiva‑Quadro Resíduos») ( 3 )

    9.

    A Diretiva‑Quadro Resíduos substituiu a Diretiva 2006/12/CE ( 4 ) e define no seu artigo 3.o o que se entende por «[r]esíduos» e de «[r]esíduos perigosos» para efeitos da aplicação do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos.

    10.

    O artigo 3.o define «[r]esíduos» como «quaisquer substâncias ou objetos de que o detentor se desfaz ou tem intenção ou obrigação de se desfazer». Além disso, «[r]esíduos perigosos» são definidos como «os resíduos que apresentem uma ou mais das características de perigosidade enumeradas no Anexo III».

    11.

    Por sua vez, o artigo 6.o da Diretiva‑Quadro Resíduos especifica as circunstâncias em que os resíduos deixam de ser resíduos:

    «1.   Determinados resíduos específicos deixam de ser resíduos na aceção do ponto 1 do artigo 3.o caso tenham sido submetidos a uma operação de valorização, incluindo a reciclagem, e satisfaçam critérios específicos a estabelecer nos termos das seguintes condições:

    a)

    A substância ou objeto ser habitualmente utilizado para fins específicos;

    b)

    Existir um mercado ou uma procura para essa substância ou objeto;

    c)

    A substância ou objeto satisfazer os requisitos técnicos para os fins específicos e respeitar a legislação e as normas aplicáveis aos produtos; e

    d)

    A utilização da substância ou objeto não acarretar impactos globalmente adversos do ponto de vista ambiental ou da saúde humana.

    […]

    4.   Caso não tenham sido definidos critérios a nível comunitário nos termos dos n.os 1 e 2, os Estados‑Membros podem decidir caso a caso se determinado resíduo deixou de ser um resíduo tendo em conta a jurisprudência aplicável. Os Estados‑Membros notificam dessas decisões a Comissão […]»

    12.

    Segundo o artigo 40.o, a Diretiva‑Quadro Resíduos devia ser transposta para o direito interno dos Estados‑Membros até 12 de dezembro de 2010.

    C.   Regulamento (CE) n.o 1907/2006 (a seguir «Regulamento REACH») ( 5 )

    13.

    Segundo o seu artigo 1.o, n.o 1, o Regulamento REACH procura «assegurar um elevado nível de proteção da saúde humana e do ambiente, incluindo a promoção do desenvolvimento de métodos alternativos de avaliação do risco de substâncias, e garantir a livre circulação das substâncias no mercado interno, reforçando simultaneamente a competitividade e a inovação».

    14.

    O artigo 2.o, n.o 2 do Regulamento REACH prevê que «[o]s resíduos, tal como definidos na [Diretiva 2006/12] não constituem substâncias, preparações ou artigos na aceção do […] do presente regulamento».

    15.

    O artigo 128.o do regulamento dispõe ainda:

    «1.   Sob reserva do n.o 2, os Estados‑Membros não podem proibir, restringir ou impedir o fabrico, a importação, a colocação no mercado ou a utilização de uma substância, estreme ou contida numa preparação ou num artigo, abrangida pelo âmbito de aplicação do presente regulamento e que cumpra os seus requisitos e, se for caso disso, os de atos comunitários adotados para a execução do presente regulamento.

    2.   Nada no presente regulamento impede os Estados‑Membros de manter ou estabelecer regras nacionais de proteção dos trabalhadores, da saúde humana e do ambiente que se apliquem nos casos em que o presente regulamento não harmoniza os requisitos em matéria de fabrico, colocação no mercado ou utilização.»

    II. Factos na origem do processo e fase pré‑contenciosa

    16.

    Em 3 de dezembro de 2010, Jiří Paškůj, pessoa singular sob a jurisdição do direito checo, e a sociedade Biuro Rozwoju Gospodarczego Sp.z.o.o. (a seguir «BRG»), com sede em Sosnowiec, na Polónia, celebraram um contrato para a expedição de 58000 toneladas da substância TPS‑NOLO (Geobal), destinada a ser utilizada na produção de cimento.

    17.

    Segundo a Comissão, cerca de 20000 toneladas de TPS‑NOLO (Geobal), substância composta por ácido de alcatrão, um óleo remanescente após refinação do petróleo (código 05 01 07 * do Catálogo Europeu de Resíduos), pó de carbono e óxido de cálcio, foram transferidas pelo operador checo e entregues pela BRG numa parcela de terreno em Karol Woźniak Street, Katowice, no final de 2010 ou no início de 2011. Entre o início de 2011 e 11 de setembro de 2011, a substância foi descoberta pela autoridade polaca competente.

    18.

    Em 11 de setembro de 2011, as autoridades polacas competentes notificaram a autoridade checa competente sobre a substância descoberta, que as autoridades polacas consideraram transferida ilegalmente para a Polónia, na aceção do artigo 2.o, n.o 35, alínea a), do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos, uma vez que nem o expedidor nem o destinatário tinham informado as autoridades da Polónia de uma transferência de resíduos, conforme previsto no artigo 3.o do mesmo regulamento. Por entenderem que a substância é um resíduo perigoso classificado no anexo IV do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos [«Resíduos betuminosos (à exceção de betões betuminosos), provenientes da refinação, destilação e pirólise de matérias orgânicas»], as autoridades polacas sustentaram que a transferência dessa substância exigia notificação e consentimento escritos prévios.

    19.

    No decurso do procedimento administrativo, o cidadão checo responsável pela transferência para a Polónia apresentou as normas adotadas pela empresa, bem como a prova de que a substância em causa estava registada ao abrigo do Regulamento REACH e que era utilizada como combustível.

    20.

    Na sequência da recusa das autoridades checas competentes, no decurso do procedimento administrativo, de obrigarem o cidadão checo a fazer a retoma da substância para a República Checa, quando as autoridades polacas invocaram o artigo 28.o do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos que prevê que a substância seja considerada resíduo em caso de desacordo, foi apresentada uma denúncia particular à Comissão em 4 de fevereiro de 2014.

    21.

    Em 12 de junho de 2014, a Comissão decidiu dar seguimento à denúncia e abriu um inquérito (Processo EU Pilot n.o 6603/14/ENVI). Na sua resposta ao pedido no âmbito da iniciativa EU Pilot, a República Checa declarou que a substância TPS‑NOLO (Geobal) tinha sido registada ao abrigo do Regulamento REACH e que, portanto, não era um resíduo. Por conseguinte, o Regulamento relativo a Transferências de Resíduos não se aplicava.

    22.

    Tendo examinado a resposta da República Checa, a Comissão concluiu que aquela tinha violado o direito da União ao não cumprir as suas obrigações ao abrigo do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos e da Diretiva‑Quadro Resíduos. Consequentemente, em 20 de fevereiro de 2015, a Comissão enviou uma notificação para cumprir à República Checa. A República Checa respondeu à notificação para cumprir no mesmo dia, reiterando, no essencial, os argumentos que tinha apresentado em resposta ao pedido no âmbito da iniciativa EU Pilot.

    23.

    Tendo sido informada pelo inspetor da Polónia para a proteção do ambiente que a substância em causa ainda não tinha sido retomada pela República Checa e, após ter examinado os argumentos apresentados pela República Checa na sua resposta à notificação para cumprir, a Comissão, por ofício de 22 de outubro de 2015, enviou um parecer fundamentado à República Checa, indicando as razões pelas quais não podia aceitar os argumentos das autoridades checas de que tinha cumprido as obrigações que lhe incumbem ao abrigo do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos, nomeadamente dos seus artigos 24.o, n.o 2, e 28.o, n.o 1.

    24.

    A República Checa respondeu por ofício de 18 de dezembro de 2015, declarando que o seu entendimento jurídico era que tinha cumprido as obrigações que lhe incumbem por força das referidas disposições, uma vez que a substância em questão não era um resíduo no momento da sua transferência para a Polónia.

    25.

    Após ter examinado as observações da República Checa em resposta ao parecer fundamentado, a Comissão considerou que o incumprimento persistia. Além disso, a Comissão não foi informada de quaisquer medidas tomadas pela República Checa a fim de cumprir as obrigações decorrentes dos artigos 24.o, n.o 2, e 28.o, n.o 1, do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos.

    III. Tramitação do processo no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

    26.

    Por petição de 3 de julho de 2017, a Comissão solicita ao Tribunal de Justiça que se digne:

    declarar que, ao recusar a retoma da substância conhecida como TPS‑NOLO (Geobal), que tinha sido transferida da República Checa para Katowice, na Polónia, a República Checa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 24.o, n.o 2, e do artigo 28.o, n.o 1, do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos;

    condenar a República Checa nas despesas.

    27.

    A República Checa pede ao Tribunal de Justiça que se digne:

    julgar a ação improcedente;

    condenar a Comissão nas despesas.

    28.

    Ambas as partes, República Checa e Comissão, apresentaram alegações na audiência realizada em 20 de setembro de 2018.

    IV. Análise

    29.

    Com esta ação, a Comissão pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao não garantir a retoma da substância TPS‑NOLO (Geobal) transferida da República Checa para Katowice, na Polónia, a República Checa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 24.o, n.o 2, e do artigo 28.o, n.o 1, do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos.

    30.

    A seguir, serão apresentados em primeiro lugar os argumentos das partes, antes de passar à análise do pedido apresentado pela Comissão.

    A.   Argumentos das partes

    31.

    O pedido da Comissão carece de estrutura, o que torna difícil discernir claramente os seus argumentos. No entanto, no resumo dos fundamentos e principais argumentos invocados, a posição da Comissão é apresentada conforme se segue.

    32.

    A Comissão alega, em primeiro lugar, que a substância TPS‑NOLO (Geobal) transferida da República Checa para a Polónia e que provém de resíduos perigosos de um aterro sanitário (bacias de decantação de Ostramo) é armazenada noutro aterro para deposição de resíduos no território da República Checa e que está classificada como resíduos betuminosos provenientes da refinação, destilação e pirólise de matérias orgânicas. Além disso, a substância é considerada pelas autoridades polacas como resíduo na aceção do anexo IV do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos.

    33.

    Em segundo lugar, uma vez que a República Checa contesta a classificação dessa substância como resíduo, baseando‑se no registo da substância ao abrigo do Regulamento REACH, suscita‑se uma questão de classificação na aceção do artigo 28.o, n.o 1, do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos. Esta disposição prevê que, consequentemente, a substância seja tratada como resíduo.

    34.

    Em terceiro lugar, a Comissão entende, contudo que, o Regulamento REACH não garante de modo algum que a utilização de uma substância não produz efeitos nocivos para o ambiente ou a saúde humana ou que uma substância cesse automaticamente de ser considerada resíduo. Na ausência de uma decisão nacional que confirme que uma substância deixou de ser um resíduo, não é possível considerar válido o registo ao abrigo do Regulamento REACH, em conformidade com o artigo 2.o, n.o 2, do mesmo regulamento.

    35.

    Por último, uma vez que a substância em causa foi transferida para fora das fronteiras sem notificação, essa transferência deve ser considerada ilegal, na aceção do artigo 2.o, n.o 35, alínea a), do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos. Neste caso, as autoridades competentes do Estado‑Membro de expedição são informadas da transferência a fim de garantir a retoma da substância em causa, em conformidade com o artigo 24.o, n.o 2, do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos. A República Checa recusou‑se a fazê‑lo. Um registo ao abrigo do Regulamento REACH, que garante no artigo 3.o a livre circulação de substâncias, misturas ou artigos, não altera esta obrigação, uma vez que os resíduos estão expressamente excluídos do âmbito de aplicação do Regulamento REACH.

    36.

    O Governo checo alega, em contrapartida, que a substância não era, no momento relevante para o presente processo, um resíduo na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva‑Quadro Resíduos, uma vez que está registada nos termos do Regulamento REACH e é usada como combustível. Além disso, este Governo sustenta que a Comissão não pode invocar o artigo 28.o, n.o 1, do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos. Se o artigo 28.o, n.o 1, pudesse ser aplicado voluntariamente por um Estado‑Membro, sem haver qualquer indicação objetiva de que uma substância é efetivamente um resíduo, tal constituiria uma grave violação à livre circulação de mercadorias. Os Estados‑Membros poderiam, por exemplo, interferir com a importação de produtos alimentares provenientes de outros Estados‑Membros.

    37.

    O Governo checo alega, fundamentalmente, que a Comissão não fez prova de que a transferência em causa era uma transferência de resíduos na aceção do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos, e de que a mesma não constitui uma transferência ilegal na aceção do referido regulamento. Por conseguinte, o Governo checo considera que a ação da Comissão é manifestamente infundada.

    38.

    Todavia, é pacífico entre as partes que se realizou uma transferência de TPS‑NOLO (Geobal) da República Checa para a Polónia.

    39.

    Dada a falta de clareza da petição da Comissão, em primeiro lugar deve ser apreciada a admissibilidade da mesma petição.

    B.   Admissibilidade

    40.

    A República Checa não suscitou uma exceção de inadmissibilidade. O Tribunal de Justiça pode, no entanto, conhecer oficiosamente do preenchimento dos requisitos previstos no artigo 258.o TFUE para a propositura de uma ação por incumprimento e se o pedido apresentado cumpre os requisitos processuais relevantes. ( 6 )

    41.

    Resulta do artigo 120.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, bem como da jurisprudência deste último relativa a essa disposição, que uma petição deve indicar o objeto do litígio, os fundamentos e argumentos invocados e uma exposição sumária dos referidos fundamentos, e que essa indicação deve ser suficientemente clara e precisa para permitir ao demandado preparar a sua defesa e ao Tribunal de Justiça exercer a sua fiscalização. Daqui resulta que os elementos essenciais de facto e de direito em que se funda uma ação devem decorrer, de forma coerente e compreensível, do texto da própria petição ( 7 ). As acusações devem ser formuladas de forma inequívoca, a fim de evitar que o Tribunal de Justiça decida ultra petita ou não decida quanto a uma dessas acusações ( 8 ).

    42.

    Em especial, a ação da Comissão deve conter uma exposição coerente e pormenorizada das razões que a conduziram à convicção de que o Estado‑Membro em causa não cumpriu uma das obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados ( 9 ). Além disso, as alegações devem ser coerentes com os pedidos ( 10 ).

    43.

    No presente processo, a Comissão pede ao Tribunal de Justiça que decida que, ao recusar garantir a retoma da substância TPS‑NOLO (Geobal), que tinha sido transferida da República Checa para Katowice, na Polónia, a República Checa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 24.o, n.o 2, e do artigo 28.o, n.o 1, do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos.

    44.

    No entanto, não resulta dos argumentos invocados no texto da petição da Comissão, nem das respostas da Comissão às questões colocadas pelo Tribunal de Justiça na audiência, quais os fundamentos em que a Comissão baseia o seu pedido ( 11 ). As obrigações decorrentes das duas disposições mencionadas no número anterior não estão definidas de forma coerente.

    45.

    A Comissão, por um lado, parece defender que o Regulamento relativo a Transferências de Resíduos estabelece como obrigação absoluta e categórica dos Estados‑Membros garantir a retoma de certas transferências que outro Estado‑Membro considera que contêm resíduos. Tal obrigação persistiria independentemente das circunstâncias do caso, bem como da questão de saber se uma substância ou objeto é, de facto, um resíduo. O Estado‑Membro sujeito à obrigação não poderia, nesse caso, apresentar qualquer defesa para evitar a retoma da transferência em litígio.

    46.

    Simultaneamente, a Comissão parece considerar que a obrigação de retomar uma transferência não existe quando uma substância ou um objeto não é, de facto, um resíduo. Assim, a Comissão dedica grande parte da sua petição à demonstração de que a substância em causa é, de facto, um resíduo. Parece, assim, introduzir o conceito de uma obrigação condicionada pelo facto de a substância em causa ser, na realidade, um resíduo.

    47.

    Na minha opinião, estes argumentos não podem ser conciliados.

    48.

    De alguma forma, parece que a Comissão confundiu dois argumentos alternativos numa única linha de argumentação. É possivelmente por isso que os argumentos apresentados parecem confusos e incoerentes.

    49.

    A forma atípica como a petição foi redigida aumenta ainda mais a confusão. Em vez de apresentar os seus argumentos, a Comissão parece apresentar uma resposta aos argumentos da República Checa em resposta ao parecer fundamentado. Esta situação torna muito difícil a identificação pelo Tribunal de Justiça dos argumentos da Comissão no presente processo uma vez que o leitor tem de reconstituir o caso a partir desses contra‑argumentos.

    50.

    A este respeito, convém recordar que não compete ao juiz da União substituir‑se ao recorrente, ou ao seu advogado, tentando identificar os argumentos de uma petição que poderia considerar suscetíveis de justificar os pedidos da parte ( 12 ).

    51.

    Além disso, fico perplexo com o facto de a Comissão parecer pedir ao Tribunal de Justiça que declare a existência de uma violação que, no futuro, poderá revelar‑se uma violação inexistente. Não tenho a certeza se este tipo de violação pro‑tempore condicional está contemplado no procedimento previsto no artigo 258.o TFUE ( 13 ). De qualquer forma, se a Comissão procurou, efetivamente, invocar tal violação, não fundamentou a sua argumentação aduzindo as razões que a levaram a concluir pela existência da mesma.

    52.

    Acresce que a falta de clareza da ação da Comissão afetou a resposta da República Checa a essa ação. Dado que a Comissão não definiu claramente as obrigações que incumbem aos Estados‑Membros, nos termos dos artigos 24.o, n.o 2, e 28.o, n.o 1, do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos, a República Checa não está em condições de responder de um modo exaustivo.

    53.

    Nestas condições, entendo que o Tribunal de Justiça não dispõe de elementos suficientes que lhe permitam apreender exatamente a violação do direito da União imputada à República Checa e verificar assim a existência do incumprimento alegado pela Comissão ( 14 ).

    54.

    Dito isto, compreendo por que razão provavelmente a Comissão encontrou dificuldades em fornecer as razões subjacentes ao seu pedido de uma forma coerente. Sobretudo no que se refere ao artigo 28.o do Regulamento relativo a Transferências de Resíduos, parece difícil conciliar a redação dos diferentes números dessa disposição com o resto desse regulamento, por um lado, e, por outro, efetivamente, com os princípios interpretativos em jogo.

    55.

    Apesar disso, concluo que a ação deve ser julgada inadmissível.

    V. Conclusão

    56.

    À luz das considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça:

    julgue a ação inadmissível;

    condene a Comissão Europeia nas despesas.


    ( 1 ) Língua original: inglês.

    ( 2 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2006, relativo a transferências de resíduos (JO 2006, L 190, p. 1).

    ( 3 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de novembro de 2008, relativa aos resíduos e que revoga certas diretivas (JO 2008, L 312, p. 3).

    ( 4 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2006, relativa aos resíduos (JO 2006, L 114, p. 9).

    ( 5 ) Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de dezembro de 2006, relativo ao registo, avaliação, autorização e restrição de substâncias químicas (REACH), que cria a Agência Europeia das Substâncias Químicas, que altera a Diretiva 1999/45/CE e revoga o Regulamento (CEE) n.o 793/93 do Conselho e o Regulamento (CE) n.o 1488/94 da Comissão, bem como a Diretiva 76/769/CEE do Conselho e as Diretivas 91/155/CEE, 93/67/CEE, 93/105/CE e 2000/21/CE da Comissão (JO 2006, L 396, p. 1).

    ( 6 ) V. Acórdão de 15 de novembro de 2012, Comissão/Portugal (C‑34/11, EU:C:2012:712, n.o 42 e jurisprudência aí referida). V., também, Acórdãos de 2 de junho de 2016, Comissão/Países Baixos (C‑233/14, EU:C:2016:396, n.o 33); de 26 de janeiro de 2012, Comissão/Eslovénia (C‑185/11, não publicado, EU:C:2012:43, n.os 28 a 30 e jurisprudência aí referida); e de 26 de abril de 2007, Comissão/Finlândia (C‑195/04, EU:C:2007:248, n.o 21 e jurisprudência aí referida).

    ( 7 ) Acórdão de 2 de junho de 2016, Comissão/Países Baixos (C‑233/14, EU:C:2016:396, n.o 32 e jurisprudência aí referida). V., também, C‑178/00, n.o 6, e Acórdão de 26 de abril de 2007, Comissão/Finlândia (C‑195/04, EU:C:2007:248, n.o 22 e jurisprudência aí referida).

    ( 8 ) Acórdão de 2 de junho de 2016, Comissão/Países Baixos (C‑233/14, EU:C:2016:396, n.o 34 e jurisprudência aí referida).

    ( 9 ) V. Acórdão de 2 de junho de 2016, Comissão/Países Baixos (C‑233/14, EU:C:2016:396, n.o 35 e jurisprudência aí referida).

    ( 10 ) V. Acórdãos de 14 de outubro de 2004, Comissão/Espanha (C‑55/03, não publicado, EU:C:2004:628, n.os 28 e 29), e de 26 de janeiro de 2012, Comissão/Eslovénia (C‑185/11, não publicado, EU:C:2012:43, n.os 30 a 33).

    ( 11 ) V. Acórdão de 26 de abril de 2007, Comissão/Finlândia (C‑195/04, EU:C:2007:248, n.os 28 a 30).

    ( 12 ) V., neste sentido, Conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo Itália/Comissão (C‑178/00, EU:C:2002:541, n.o 9, e jurisprudência aí referida).

    ( 13 ) V., por analogia, Despacho de 13 de setembro de 2000, Comissão/Países Baixos (C‑341/97, EU:C:2000:434, n.os 9 e 10 e 18 a 21), e Acórdão de 3 de dezembro de 2009, Comissão/Alemanha (C‑424/07, EU:C:2009:749, n.os 25 a 31).

    ( 14 ) V. Acórdão de 26 de abril de 2007, Comissão/Finlândia (C‑195/04, EU:C:2007:248, n.o 32 e jurisprudência aí referida).

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