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Dokumentas 62017CC0122

Conclusões do advogado-geral Y. Bot apresentadas em 10 de abril de 2018.
David Smith contra Patrick Meade e o.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pela Court of Appeal.
Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis — Terceira Diretiva 90/232/CEE — Artigo 1.o — Responsabilidade em caso de danos pessoais causados a todos os passageiros, além do condutor — Seguro obrigatório — Efeito direto das diretivas — Obrigação de não aplicar uma regulamentação nacional contrária a uma diretiva — Não aplicação de uma cláusula contratual contrária a uma diretiva.
Processo C-122/17.

Teismo praktikos rinkinys. Bendrasis rinkinys

Europos teismų praktikos identifikatorius (ECLI): ECLI:EU:C:2018:223

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 10 de abril de 2018 ( 1 )

Processo C‑122/17

David Smith

contra

Patrick Meade,

Philip Meade,

FBD Insurance plc,

Ireland,

Attorney General

[pedido de decisão prejudicial apresentado pela Court of appeal (Tribunal de Recurso, Irlanda)]

«Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis — Terceira Diretiva 90/232/CEE — Artigo 1.o — Responsabilidade em caso de danos corporais causados a todos os passageiros, além do condutor — Seguro obrigatório — Efeito direto das diretivas — Obrigação de não aplicar uma regulamentação nacional contrária a uma diretiva — Oponibilidade pelo Estado de uma diretiva a um particular»

1.

O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação da Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis ( 2 ).

2.

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opunha inicialmente David Smith a Patrick e Philip Meade, à FBD Insurance plc (a seguir «FBD»), à Irlanda e ao Attorney General, a propósito da indemnização pelos danos sofridos por D. Smith na sequência de um acidente rodoviário que envolveu um veículo da propriedade de Philip Meade e conduzido por Patrick Meade.

3.

No seu Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229), o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 1.o da Terceira Diretiva deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional nos termos da qual o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre a responsabilidade por danos corporais causados a pessoas que viajam numa parte de um veículo automóvel que não foi concebida nem construída com assentos para passageiros ( 3 ). O Tribunal de Justiça também declarou que o artigo 1.o da Terceira Diretiva reúne todas as condições exigidas para produzir efeito direto e, portanto, confere aos particulares direitos que estes podem invocar diretamente perante os órgãos jurisdicionais nacionais ( 4 ).

4.

O Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se sobre as consequências do seu Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229), no seguinte contexto: embora o litígio inicial opusesse D. Smith a Philip e Patrick Meade, aos quais se juntaram enquanto demandados, a FBD, a Irlanda e o Attorney General, a questão prejudicial foi submetida na fase processual que opunha a FBD, que se sub‑rogou nos direitos de D. Smith, ao Estado irlandês. Como meio de defesa, este afirma que a Terceira Diretiva permite fazer recair sobre a entidade seguradora a obrigação de indemnizar D. Smith. Coloca‑se assim a questão geral, que, apesar de não ser nova, surge numa configuração procedimental peculiar, de saber se uma diretiva pode impor obrigações a um particular quando o Estado transpôs a diretiva de forma incorreta.

5.

Nas presentes conclusões exporemos, em primeiro lugar, as razões pelas quais consideramos que, no âmbito de um litígio que opõe, por um lado, uma companhia de seguros, que se sub‑roga nos direitos de uma vítima a quem pagou uma indemnização, e, por outro, o Estado, o órgão jurisdicional nacional tem o dever de não aplicar as disposições do seu direito nacional que estipulam que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre a responsabilidade por danos corporais causados a pessoas que viajam numa parte de um veículo automóvel que não foi concebida nem construída com assentos para passageiros, cuja desconformidade com o artigo 1.o da Terceira Diretiva decorre do Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229).

6.

De seguida, explicaremos por que razão consideramos que tal exclusão das disposições de direito nacional contrárias ao artigo 1.o da Terceira Diretiva não pode ter como consequência fazer recair o encargo de indemnizar a vítima de um prejuízo não coberto pela apólice de seguro aprovada sobre a entidade seguradora que respeitou tais disposições.

I. Quadro jurídico

A.   Direito da União

7.

A Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade ( 5 ), revogou a Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade ( 6 ), assim como a Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis ( 7 ), e a Terceira Diretiva. No entanto, atendendo à data em que ocorreram os factos do processo principal, há que tomar em consideração as diretivas revogadas.

8.

Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva:

«Cada Estado‑Membro […] adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. Essas medidas devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.»

9.

O artigo 1.o, n.o 1, da Segunda Diretiva dispunha:

«O seguro referido no n.o 1 do artigo 3.o da [Primeira Diretiva] deve, obrigatoriamente, cobrir os danos materiais e os danos corporais.»

10.

O artigo 2.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da referida diretiva estabelecia:

«Cada Estado‑Membro tomará as medidas adequadas para que qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro, emitida em conformidade com o n.o 1 do artigo 3.o da [Primeira Diretiva], que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos por:

[…]

pessoas que não cumpram as obrigações legais de caráter técnico relativamente ao estado e condições de segurança do veículo em causa,

seja, por aplicação do n.o 1 do artigo 3.o da [Primeira Diretiva], considerada sem efeito […].»

11.

O artigo 1.o, primeiro parágrafo, da Terceira Diretiva previa:

«[…] [O] seguro referido no n.o 1 do artigo 3.o da [Primeira Diretiva] cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, além do condutor, resultantes da circulação de um veículo.»

B.   Direito irlandês

12.

A section 56 (1) do Road Traffic Act 1961 (lei de 1961 relativa à circulação rodoviária), na versão em vigor na altura dos factos em apreço no processo principal (a seguir «Lei de 1961»), previa que o condutor não podia conduzir um veículo acionado por uma força mecânica numa estrada pública, sem uma apólice de seguro aprovada com cobertura para a utilização negligente do veículo, o que resulta na obrigação de pagar indemnização por danos a qualquer pessoa, «com exceção das pessoas excluídas».

13.

A section 56(3) da Lei de 1961 determinava que o uso de um veículo em infração à proibição contida no n.o 1 da section 56.o consubstanciava um crime.

14.

Nos termos da section 65 (1)(a) da referida lei, era considerada «pessoa excluída» nos termos da section 56.o, n.o 1, dessa mesma lei:

«Qualquer pessoa que peça uma indemnização por danos corporais sofridos quando se encontrava em ou sobre um veículo de tração mecânica (ou num veículo por ele rebocado), quer o documento pertinente se refira, para além de um veículo de tração mecânica, a um veículo rebocado, quer a veículos que constituam uma combinação de veículos de uma classe especificada para efeitos do presente número em regulamentos adotados pelo Ministro, na medida em que esses regulamentos não prevejam um seguro obrigatório de responsabilidade civil que cubra os passageiros relativamente a:

i)

Qualquer parte de um veículo de tração mecânica, que não seja um veículo de serviço público de grandes dimensões; exceto se essa parte for concebida e equipada com assentos para transportar passageiros, ou

ii)

Um passageiro sentado num reboque ligado a um veículo de tração mecânica quando essa combinação de veículos se desloque em local público.»

15.

O artigo 6.o, n.o 1, alínea a), das Road Traffic (Compulsory Insurance) Regulations 1962 (Regulamento Ministerial de 1962 relativo ao seguro obrigatório em matéria de circulação rodoviária), na versão em vigor na altura dos factos em apreço no processo principal (a seguir «Regulamento Ministerial de 1962»), determinava:

«Os seguintes veículos são designados para efeito do previsto [na section 65(1)(a) da Lei de 1961]:

a)

Todos os veículos, com exceção dos motociclos, destinados ao transporte de passageiros e equipados com assentos para este efeito.»

II. Matéria de facto do processo principal e questão prejudicial

16.

No dia 19 de junho de 1999, D. Smith ficou gravemente ferido quando a carrinha de carga em que viajava como passageiro na parte traseira desse veículo colidiu com um outro veiculo circulando igualmente na via pública, nas proximidades de Tullyallen (Irlanda). No momento do acidente, a carrinha de carga era conduzida por Patrick Meade e era propriedade de Philip Meade. A referida carrinha de carga não tinha assentos fixos para passageiros que viajassem na parte traseira do veículo.

17.

À data do acidente, a apólice de seguro automóvel subscrita por Philip Meade junto da FBD estava em vigor e tinha o estatuto de aprovada nos termos da regulamentação irlandesa aplicável. A apólice continha uma cláusula de exclusão relativa aos passageiros que viajassem na parte traseira da carrinha de carga, que previa que a garantia «Passageiro» abrangia apenas o passageiro sentado no assento fixo na parte dianteira do veículo.

18.

D. Smith processou Philip Meade e Patrick Meade por negligência e culpa.

19.

Na sequência do pedido de indemnização apresentado por D. Smith, a FBD, por carta de 13 de agosto de 2001, recusou‑se a pagar uma indemnização a Philip Meade pelos danos corporais sofridos por D. Smith. A companhia de seguros invocou a cláusula de exclusão contida na apólice de seguro e alegou que os danos corporais causados aos passageiros transportados numa parte do veículo que não foi concebida nem construída com assentos para transportar passageiros não estavam abrangidos por esta apólice.

20.

Em 19 de abril de 2007, o Tribunal proferiu o seu Acórdão Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229), tendo declarado no essencial, a propósito da legislação irlandesa em causa no processo principal, que o artigo 1.o da Terceira Diretiva deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional nos termos da qual o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre a responsabilidade por danos corporais causados a pessoas que viajam numa parte de um veículo automóvel que não foi concebida nem construída com assentos para passageiros e que esta disposição reúne todas as condições exigidas para produzir efeito direto e, portanto, confere aos particulares direitos que estes podem invocar diretamente perante os órgãos jurisdicionais nacionais. Todavia, o Tribunal de Justiça considerou que competia ao juiz nacional verificar se essa disposição podia ser invocada contra um organismo como aquele que estava em causa no processo que deu lugar a esse acórdão.

21.

A High Court (Tribunal Superior, Irlanda), a quem foi submetido, em primeira instância, o litígio entre, por um lado, D. Smith e, por outro, Philip e Patrick Meade, FBD, Irlanda e Attorney General, concluiu na decisão proferida em 5 de fevereiro de 2009, que era possível interpretar a section 65(1)(a) da Lei de 1961 e o artigo 6.o do Regulamento Ministerial de 1962 por forma a chegar a uma interpretação que respeitasse a Terceira Diretiva.

22.

No dia 10 de fevereiro de 2009, a High Court (Tribunal Superior) aprovou o acordo celebrado entre a FBD e D. Smith na sequência da decisão de 5 de fevereiro de 2009. Nos termos deste acordo, a FBD pagou a D. Smith, por Philip Meade, o montante de 3 milhões de euros. De seguida D. Smith ficou sob o regime de tutela judicial. Após este pagamento, a FBD ficou sub‑rogada nos direitos de D. Smith.

23.

O processo contra, por um lado, Philip e Patrick Meade e, por outro, a Irlanda e o Attorney General, foi adiado.

24.

A FBD interpôs recurso da decisão da High Court (Tribunal Superior) junto do órgão jurisdicional de reenvio, a Court of Appeal (Tribunal de Recurso, Irlanda) alegando que o primeiro tribunal fez uma aplicação errada da jurisprudência resultante do Acórdão de 13 de novembro de 1990, Marleasing (C‑106/89, EU:C:1990:395), ao interpretar a legislação nacional contra legem, e que a sua sentença conferiu à Terceira Diretiva uma espécie de efeito direto horizontal retroativo contra ela, uma companhia de seguros privada. Além disso, referiu que se obtivesse êxito no recurso, trataria de recuperar junto do Estado os montantes pagos a D. Smith.

25.

A Court of Appeal (Tribunal de Recurso) observou que, na altura dos factos em apreço no processo principal, as pessoas que viajavam em carrinhas de carga não equipadas com assentos fixos eram «pessoas excluídas» para os efeitos tanto da section 65(1)(a) da Lei de 1961, na redação alterada, como do Regulamento Ministerial de 1962, de modo que não existia qualquer obrigação legal, nos termos do direito irlandês, de estarem seguradas. Esse tribunal refere ainda que os automobilistas que eram titulares de uma apólice de seguro aprovada não cometiam qualquer crime ao conduzir um veículo sem cobertura para pessoas que viajassem sem assentos. Finalmente, o órgão jurisdicional de reenvio realça que o texto da section 65(1)(a) da Lei de 1961 era tal que, caso o Ministro competente pretendesse adotar regulamentação com o objetivo de estender o seguro obrigatório a essas pessoas, teria cometido um abuso de poder.

26.

O órgão jurisdicional de reenvio realça, por outro lado, que a questão que se coloca no âmbito do recurso que lhe foi submetido é a das consequências do Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229). Sublinha a este propósito que, no processo que deu origem a esse acórdão, o condutor não tinha seguro, cabendo a obrigação de garantia ao Motor Insurers Bureau of Ireland (a seguir «MIBI»). Ao invés, no âmbito do processo em análise, a FBD é um organismo privado que não pode ser equiparada a uma emanação do Estado. A isso acresce que, ao contrário do processo que deu lugar ao Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229), o proprietário do veículo, Philip Meade, tinha uma apólice de seguro, embora os termos desta excluísse expressamente a responsabilidade no caso de passageiros que, como D. Smith, viajassem de outra forma que não num assento previsto para o efeito na parte traseira do veículo.

27.

O órgão jurisdicional de reenvio parte da premissa de que a legislação nacional em causa não pode ser interpretada em conformidade com o artigo 1.o, n.o 1, da Terceira Diretiva.

28.

Assim, a Court of Appeal (Tribunal de Recurso) concluiu, contrariamente ao que considera a High Court (Tribunal Superior), que ambas as disposições nacionais são, por si sós, «absolutamente claras e totalmente isentas de qualquer ambiguidade» e que ambas as disposições «excluem expressamente casos como o presente em que o passageiro viajava numa parte de um veículo acionado por tração mecânica que não dispunha de assentos para o efeito» ( 8 ). Estando em causa, segundo a Court of Appeal (Tribunal de Recurso), uma opção de política legislativa, esse tribunal discordou do entendimento que a High Court (Tribunal Superior) fez desta questão interpretativa, ao afirmar que não era simplesmente «possível interpretar estas disposições de modo conforme com os requisitos da Terceira Diretiva, uma vez que, se assim não fosse, essa interpretação seria contra legem e violaria a própria letra de ambas as disposições» ( 9 ).

29.

O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se assim, sobre o que deveria fazer um órgão jurisdicional nacional num processo que envolvesse entidades privadas, nas situações em que a legislação aplicável é manifestamente contrária aos requisitos de uma diretiva e em que é simplesmente impossível interpretar a legislação de modo conforme com esses requisitos.

30.

A Court of Appeal (Tribunal de recurso) considera a este propósito que resulta do Acórdão de 19 de abril de 2016, DI (C‑441/14, EU:C:2016:278), que, quando não é possível uma interpretação conforme, o órgão jurisdicional nacional deve, sempre que possível, deixar de aplicar o direito nacional, mesmo num litígio entre duas partes privadas.

31.

A Court of Appeal (Tribunal de Recurso) concluiu assim que não deve aplicar as disposições da section 65(1)(a) da Lei de 1961 e do artigo 6.o do Regulamento Ministerial de 1962, na medida em que essas disposições excluem da cobertura de seguro os passageiros que não viajam num assento fixo.

32.

A este propósito a Court of Appeal (Tribunal de Recurso) considera que caso a expressão «concebida e construída com assentos para passageiros» que consta do artigo 6.o do Regulamento Ministerial de 1962, for considerada não aplicável, todos os veículos para além dos motociclos motorizados serão considerados para efeitos de aplicação da section 65(1)(a) da Lei de 1961, o que daria lugar a obrigação legal de segurar todos os veículos. No que respeita esta última disposição, o texto a não aplicar seria o ponto i) da alínea a) do n.o 1 da section 65 dessa lei.

33.

A não aplicação dessas disposições teria efeitos retroativos. Tal implicaria que a apólice de seguro em apreço no processo principal deixaria de ser considerada «apólice aprovada» no sentido da section 62 (1)(a) da Lei de 1961. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o condutor e o proprietário do veículo em causa no processo principal teriam, nessas condições e em teoria, cometido um crime, o primeiro por ter conduzido o veículo na via pública sem apólice de seguro aprovada e o segundo por ter permitido que o referido veículo fosse conduzido nessas circunstâncias.

34.

A Court of Appeal (Tribunal de Recurso) considera, todavia, que, se a cláusula de exclusão, aplicável aos passageiros que não viajam em assentos fixos, fosse, por sua vez, ignorada e afastada da apólice de seguro em análise no processo principal por ser incompatível como o Direito da União, a apólice voltaria a adquirir o estatuto de apólice aprovado na aceção da section 62(1)(a) da Lei de 1961 e o problema de responsabilidade penal do Philip e Patrick Meade deixaria também de existir.

35.

Para esse tribunal essa situação suscita, por sua vez, a questão de saber se uma declaração de não aplicabilidade pode ou deve estender‑se dessa forma e se tal declaração não constituiria, no essencial, uma forma de efeito direito horizontal da Terceira Diretiva para a companhia de seguros privada FBD.

36.

O órgão jurisdicional de reenvio considera, por conseguinte, que o presente processo suscita questões difíceis e até agora não resolvidas quanto a saber até que ponto se pode considerar que as Diretivas relativas ao seguro automóvel produzem efeito direto relativamente a uma parte puramente privada, como a FBD, na sequência da necessária não aplicação das disposições pertinentes da section 65(1)(a) da Lei de 1961 e do artigo 6 do Regulamento Ministerial de 1962, à luz do Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229).

37.

O órgão jurisdicional de reenvio realça que se for obrigado a não aplicar a cláusula de exclusão da apólice de seguro, daí decorrerá que D. Smith poderia ter sido devidamente indemnizado por Patrick e Philip Meade e que a FBD teria, por sua vez, sido obrigada a indemnizá‑los. Em contrapartida, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, se não for obrigado a não aplicar a cláusula de exclusão constante da apólice de seguro, a FBD poderá exigir ao Estado o reembolso dos 3 milhões de euros que pagou a D. Smith por força da transação num processo judicial adequado, incluindo uma ação de indemnização nos termos do Acórdão Francovich e o. ( 10 ).

38.

Nestas circunstâncias, a Court of Appeal (Tribunal de Recurso) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão:

«Quando:

i)

as disposições pertinentes do direito nacional prevejam a exclusão do seguro automóvel obrigatório de pessoas que não dispõem de assentos fixos num veículo de tração mecânica,

(ii)

a apólice de seguro pertinente prevê que a cobertura será limitada aos passageiros que dispõem de assentos fixos e essa apólice era, de facto, uma apólice de seguro aprovada para efeitos da referida legislação nacional à data do acidente,

(iii)

as disposições nacionais pertinentes que preveem essa exclusão da cobertura já foram declaradas contrárias ao direito da União numa decisão anterior do Tribunal de Justiça (processo C‑356/05Farrell/Whitty [EU:C:2007:229]) tendo, por conseguinte, sido exigido que não fossem aplicadas, e

(iv)

a redação das disposições nacionais é tal que não permite uma interpretação conforme com os requisitos da legislação da União,

então, no âmbito de um litígio entre particulares e uma companhia de seguros privada, relativo a um acidente de viação ocorrido em 1999, que causou ferimentos graves a um passageiro que não viajava num assento fixo previsto para o efeito e quando, com o consentimento das partes, o órgão jurisdicional nacional chamou à demanda o Estado e a companhia de seguros privada como demandados […], deve o órgão jurisdicional nacional, ao não aplicar as disposições pertinentes do direito nacional, não aplicar igualmente a […] cláusula de exclusão ou impedir de outro modo que a seguradora invoque a cláusula de exclusão contida na apólice de seguro automóvel em vigor à época, de modo a que a vítima podia ter sido ressarcida diretamente pela companhia de seguros com base nessa apólice? Em alternativa, equivaleria esse resultado, em substância, a alguma forma de efeito direto horizontal de uma diretiva face a um particular, proibida pelo direito da União? Em alternativa, equivaleria esse resultado, em substância, a alguma forma de efeito direto horizontal de uma diretiva face a um particular, proibida pelo direito da União?»

III. Análise

39.

Com a sua questão prejudicial que, em nosso entender, há que reformular de modo a adaptá‑la à configuração e ao objeto do litígio no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, saber, em primeiro lugar, se, no âmbito de um litígio que opõe, por um lado, a entidade seguradora, que é sub‑rogada nos direitos de uma vítima a quem pagou uma indemnização e, por outro lado, o Estado, tem o dever de não aplicar as disposições do direito nacional que estipulam que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre a responsabilidade por danos corporais causados a pessoas que viajam numa parte de um veículo automóvel que não foi concebida nem construída com assentos para passageiros, cuja desconformidade com o artigo 1.o da Terceira Diretiva decorre do Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229).

40.

Num segundo momento, o órgão jurisdicional de reenvio pede ao Tribunal de Justiça que indique se tal marginalização das disposições de direito nacional tem como consequência o afastamento da cláusula de exclusão contida na apólice de seguro, o que fará recair sobre a entidade seguradora o encargo de indemnizar a vítima.

41.

De modo a entender cabalmente em que configuração processual intervém o presente pedido de reenvio prejudicial, há que referir que, conforme confirmado na audiência, o reenvio ocorre na fase processual em que o litígio no processo principal opõe a FBD ao Estado irlandês. Trata‑se portanto de um litígio com caráter vertical.

42.

Neste aspeto, o presente processo distingue‑se, portanto, do processo que deu origem ao Acórdão de 19 de abril de 2016, DI (C‑441/14, EU:C:2016:278), para o qual o órgão jurisdicional de reenvio remete em várias ocasiões. Além disso, esse acórdão era relativo à invocabilidade da exclusão de um princípio geral do direito da União no âmbito de um litígio entre particulares, no caso o princípio da não discriminação em função da idade, ao passo que é a determinação dos efeitos de uma diretiva que está aqui em causa. Tendo em conta às especificidades do ato de direito derivado da União que constitui a diretiva, diversas vezes realçadas pelo Tribunal de Justiça, pensamos, em qualquer caso, que as conclusões do Acórdão de 19 de abril de 2016, DI (C‑441/14, EU:C:2016:278), não podem ser automaticamente transpostas para um processo que coloca a questão dos efeitos de uma diretiva analisada isoladamente.

43.

No âmbito do litígio vertical em causa no processo principal, coloca‑se, no essencial, a questão de saber se uma diretiva pode fazer recair diretamente uma obrigação sobre um particular, neste caso a FBD. Esta questão foi submetida por ser este o meio de defesa invocado pelo Estado irlandês para evitar que lhe seja imputada a obrigação de indemnizar D. Smith.

44.

Nessa medida, confirmou‑se na audiência que, no âmbito do recurso pendente na Court of Appeal, que opõe a FBD ao Estado Irlandês, não existe nenhum processo que vise acionar a responsabilidade deste Estado por violação do direito da União, com fundamentado na jurisprudência resultante do Acórdão de 19 de novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428). Tal foi corroborado pelas indicações do órgão jurisdicional de reenvio segundo as quais, no decorrer da audiência que se realizou perante ele, o advogado da FBD referiu que, caso a sua cliente obtivesse êxito no presente recurso, trataria de recuperar através de um mecanismo jurídico adequado, incluindo um pedido de indemnização por danos nos termos do processo Francovich e o. ( 11 ), os montantes pagos por esta a D. Smith ( 12 ).

45.

Concluímos desses elementos que, da resposta à questão prejudicial colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, dependerá uma eventual ação da FBD para obter do Estado o equivalente do valor pago por esta entidade seguradora a D. Smith.

46.

Assim, no âmbito desta estratégia contenciosa, e é o que transparece da questão prejudicial colocada ao Tribunal de Justiça, as partes do processo principal procuram identificar previamente quais são as obrigações que o direito da União faz recair respetivamente sobre a FBD e sobre o Estado irlandês numa situação como a que se encontra em análise no processo principal.

47.

É evidente que se a resposta do Tribunal de Justiça for no sentido de considerar que, apesar da incorreta transposição do artigo 1 da Terceira Diretiva pelo Estado irlandês, a obrigação de indemnizar D. Smith recai efetivamente sobre a FBD, esta entidade de seguro poderá não pretender promover uma ação que vise reaver junto daquele Estado o valor pago a D. Smith, quer seja por no âmbito de uma ação de indemnização com base na jurisprudência Francovich e o. ( 13 ) ou recorrendo, se necessário, a outro mecanismo processual previsto no direito irlandês.

48.

No âmbito do recurso na Court of Appeal (Tribunal de Recurso), a FBD é sub‑rogada nos direitos da vítima, D. Smith ( 14 ). O desafio desta fase processual é determinar se a obrigação de indemnizar a vítima recai sobre a entidade seguradora ou sobre o Estado em virtude do direito da União. A identificação do responsável pela indemnização implica verificar a justeza do raciocínio da High Court (Tribunal Superior), ou seja, se a section 65(1)(a) da Lei de 1961 e o artigo 6.o do Regulamento Ministerial de 1962, podiam ser objeto de uma interpretação conforme com a Terceira Diretiva e, por conseguinte, se a cláusula de exclusão contida na apólice de seguro devia ser declarada nula.

49.

Conforme referimos previamente, esta premissa foi posta em causa pelo órgão jurisdicional de reenvio. É por este motivo que este coloca agora o foco da questão no âmbito do efeito direto da Terceira Diretiva.

50.

Segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional nacional tem a obrigação de aplicar integralmente o direito da União e de proteger os direitos que este confere aos particulares, não aplicando qualquer disposição, eventualmente contrária, da lei nacional ( 15 ).

51.

Há que recordar que, nos termos do artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, «[c]ada Estados‑Membros […] adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro». Por outro lado, o artigo 1.o, primeiro parágrafo, da Terceira Diretiva especifica que «[…] o seguro referido no n.o 1 do artigo 3.o da [Primeira Diretiva] cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, exceto o condutor, resultantes da circulação de um veículo».

52.

No seu Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229), o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 1.o da Terceira Diretiva deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional nos termos da qual o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre a responsabilidade por danos corporais causados a pessoas que viajam numa parte de um veículo automóvel que não foi concebida nem construída com assentos para passageiros ( 16 ).

53.

O Tribunal de Justiça também declarou que o artigo 1.o da Terceira Diretiva reúne todas as condições exigidas para produzir efeito direto e, portanto, confere aos particulares direitos que estes podem invocar diretamente nos órgãos jurisdicionais nacionais ( 17 ).

54.

A este propósito, o tribunal de Justiça recordou que resulta de jurisprudência assente que uma disposição de uma diretiva tem efeito direto se, do ponto de vista do seu conteúdo, for incondicional e suficientemente precisa ( 18 ).

55.

O Tribunal de Justiça considerou que os critérios estavam preenchidos pelo artigo 1.o da Terceira Diretiva, realçando que este artigo permitia identificar tanto a obrigação do Estado‑Membro como os beneficiários, e que o conteúdo dessas disposições era incondicional e preciso ( 19 ). Por conseguinte, segundo o Tribunal de Justiça, o artigo 1.o da Terceira Diretiva pode ser invocado para afastar as disposições de direito nacional que excluem do benefício da garantia do seguro obrigatório as pessoas que viajam em qualquer parte de um veículo que não seja concebida nem construída com assentos para passageiros ( 20 ).

56.

Quanto à questão de saber se esta disposição pode ser invocada contra um organismo de garantia previsto no artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva, a resposta foi delineada no Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229), e posteriormente completada no Acórdão de 10 de outubro de 2017, Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:745).

57.

Neste último acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que as disposições de uma diretiva suscetíveis de ter efeito direto podem ser opostas a um organismo de direito privado a quem foi confiada por um Estado‑Membro uma missão de interesse público, como a inerente à obrigação imposta aos Estados‑Membros no artigo 1.o, n.o 4, da Segunda Diretiva, e que, para esse efeito, detém, por força da lei, poderes exorbitantes, tais como o poder de impor aos seguradores que exercem uma atividade de seguro automóvel no território do Estado‑Membro em causa que se inscrevem e o financiam ( 21 ).

58.

Ao contrário dos processos que deram origem aos dois Acórdãos Farrell referidos ( 22 ), o litígio do processo principal não envolve o organismo de garantia irlandês, ou seja, o MIBI. O motivo desta ausência é que, ao contrário do proprietário do veículo onde se encontrava sentada Elaine Farrell, o proprietário do veículo (Philip Meade), no qual viajava D. Smith, tinha efetivamente subscrito uma apólice de seguro.

59.

Conforme já referido, o litígio do processo principal, na fase processual em que se inscreve o presente pedido de reenvio prejudicial, opõe a FBD ao Estado irlandês.

60.

Reconhecido o efeito direto do artigo 1.o da Terceira Diretiva, não há, portanto, nenhuma dúvida quanto à possibilidade de que dispõe a FBD de invocar esta disposição contra o Estado irlandês de modo a afastar a aplicação das disposições nacionais contrárias à Terceira Diretiva. O que for possível contra uma emanação do estado tal como o MIBI deve sê‑lo a fortiori contra o Estado, na sua qualidade de autoridade pública. Trata‑se de evitar que o Estado possa tirar proveito da sua inobservância do direito da União ( 23 ).

61.

Decorre do acima exposto que, no âmbito do litígio pendente perante o órgão jurisdicional de reenvio, FBD pode invocar o artigo 1.o da Terceira Diretiva de modo a afastar a aplicação da section 65(1)(a) da Lei de 1961 e do artigo 6 do Regulamento Ministerial de 1962.

62.

Se, no sistema irlandês, a intervenção subsidiária do organismo de garantia não está prevista quando o proprietário do veículo dispõe de uma apólice de seguro e esta não abrange um risco específico ( 24 ), que deveria abranger caso o Estado tivesse transposto corretamente o artigo 1.o da Terceira Diretiva, caberá ao Estado assumir as consequências financeiras.

63.

Ao contrário do que tenta demonstrar o Governo irlandês, a marginalização das disposições de direito nacional contrárias ao artigo 1.o da Terceira Diretiva não pode ter como consequência automática fazer recair sobre a entidade seguradora a obrigação de indemnizar D. Smith. A cláusula de exclusão que consta da apólice de seguro em causa resulta da aplicação das regras determinadas pelo legislador nacional para emissão de uma apólice de seguro aprovada. No âmbito do litígio do processo principal, o Estado irlandês não poderá invocar o artigo 1.o da Terceira Diretiva para afastar a aplicação desta cláusula contratual e daí inferir uma obrigação de a entidade seguradora assumir o encargo de indemnizar D. Smith.

64.

Admitir esta transferência da responsabilidade de assumir as consequências de uma transposição incorreta de uma diretiva iria contra a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça segundo a qual o ato de direito derivado da União que constitui a diretiva não pode, face à sua natureza e às suas características, imputar diretamente obrigações a particulares.

65.

A este respeito, há que recordar que, por força do artigo 288.o, terceiro parágrafo, TFUE, o caráter vinculativo de uma diretiva em que se baseia a possibilidade de a invocar só existe relativamente ao «Estado‑Membro destinatário» ( 25 ). Daqui resulta que uma diretiva não pode, por si própria, criar obrigações para os particulares e que não pode, portanto, ser invocada enquanto tal contra eles num tribunal nacional ( 26 ). De acordo com o Tribunal de Justiça, alargar a invocabilidade das diretivas não transpostas ao domínio das relações entre particulares equivaleria a reconhecer à União Europeia o poder de criar, com efeito imediato, deveres na esfera jurídica dos particulares, quando ela só tem essa competência nas áreas em que lhe é atribuído o poder de adotar regulamentos ( 27 ). Resulta desta jurisprudência que, mesmo que um particular esteja abrangido pelo âmbito de aplicação pessoal de uma diretiva, as disposições desta não podem, enquanto tal, ser invocadas contra o mesmo nos órgãos jurisdicionais nacionais ( 28 ). Não pode, portanto, ser reconhecido um efeito vertical descendente das disposições de uma diretiva, na medida em que um Estado não pode aproveitar‑se do seu erro em relação aos particulares ( 29 ).

66.

Por outro lado, ao contrário do que o Governo irlandês alega no âmbito do presente processo prejudicial, a obrigação da FBD de indemnizar D. Smith não pode decorrer de uma aplicação por analogia da corrente jurisprudencial resultante dos Acórdãos de 30 abril de 1996, CIA Security International (C‑194/94, EU:C:1996:172), e de 26 de setembro de 2000, Unilever (C‑443/98, EU:C:2000:496), porquanto ambos respeitavam à interpretação da Diretiva 83/189/CEE do Conselho de 28 de março de 1983, que previa um procedimento de informação no domínio das disposições e regulamentações técnicas ( 30 ). Conforme referido pelo Tribunal de Justiça no n.o 51 deste acórdão, a especificidade desta jurisprudência assenta no facto de que a «Diretiva 83/189 não define de modo algum o conteúdo material da norma jurídica com base na qual o juiz nacional deve resolver o litígio que lhe foi submetido. Não cria direitos nem obrigações para os particulares».

67.

Além disso, o Acórdão de 28 de março de 1996, Ruiz Bernáldes (C‑129/94, EU:C:1996:143), não pode, na nossa opinião, ser interpretado de forma a permitir ao Estado invocar o artigo 1.o da Terceira Diretiva contra a FBD para que esta assuma o encargo da indemnização, porquanto a problemática referente a invocabilidade da diretiva contra um particular não é analisada como tal nesse acórdão pelo Tribunal de Justiça.

68.

Finalmente realça‑se que fazer recair sobre a FBD o encargo de indemnizar D. Smith nas circunstâncias em apreço no processo principal, levaria a um resultado injusto e contrário ao princípio da segurança jurídica. Com efeito, como realça, e bem, o órgão jurisdicional de reenvio, a entidade privada, como a FBD, agiu obviamente com base nas disposições nacionais controvertidas que previam a exclusão da garantia, para efeitos de emissão de uma apólice de seguro aprovada. A FBD não tinha liberdade contratual e a emissão desta apólice de seguro não foi o resultado de um comportamento autónomo da entidade seguradora, mas sim de um comportamento ditado pela legislação nacional.

69.

Além disso, como observa acertadamente o órgão jurisdicional de reenvio, «não há dúvida de que os custos da apólice de seguro emitida pela FBD no presente processo refletiam os valores que legitimamente entendia corresponderem aos limites dos riscos de seguro, sendo que esses riscos não se estendiam aos passageiros que viajam em carrinhas sem assentos» ( 31 ). Reconhecer um efeito direto vertical descendente ao artigo 1.o da Terceira Diretiva conduziria a fazer suportar pela seguradora uma prestação que não estava prevista no contrato.

70.

Nestas circunstâncias, não podemos aceitar que os efeitos da exclusão das disposições do direito nacional contrária ao artigo 1.o da Terceira Diretiva num litígio que opõe a FBD ao Estado Irlandês tenha como consequência fazer recair diretamente sobre a entidade seguradora, com efeitos retroativos, a obrigação prevista naquele artigo, isto é a obrigação de indemnizar os «danos pessoais de todos os passageiros, além do condutor, resultantes da circulação de um veículo».

71.

Ainda que se considere que a obrigação que recai sobre a entidade seguradora não resulta do artigo 1.o da Terceira Diretiva mas sim das disposições do direito nacional, expurgadas dos seus elementos contrários a este artigo, isso não altera a nossa posição que tem por base a regra segundo a qual um Estado não pode, de uma forma ou outra, tirar qualquer proveito da transposição incorreta de uma diretiva, tentando fazer recair sobre as entidades seguradoras o encargo de garantir os riscos que o próprio Estado expressamente excluiu da obrigação de garantia.

72.

Recordamos a este propósito que resulta do n.o 1 do artigo 3.o da Primeira Diretiva e do artigo 1.o, primeiro parágrafo, da Terceira Diretiva que cada Estado‑Membro deve tomar todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil relativa à circulação de veículos, pelos danos corporais dos passageiros de um veículo, tais como D. Smith, esteja coberta por um seguro. Se o Estado‑Membro não tomou tais medidas e que até, como se verifica no caso em apreço, tomou medidas que excluem das apólices de seguro as indemnizações desta categoria de danos, é nossa opinião que ele deve assumir as consequências financeiras.

73.

Em suma, a entidade seguradora não violou nem a regra prevista no primeiro parágrafo, do artigo 1.o, da Terceira Diretiva nem as disposições do seu direito nacional que transpôs este artigo. Foi o Estado que violou o referido artigo ao transpô‑lo incorretamente. Ora, este não poderá tirar proveito da transposição incorreta.

74.

Na linha da jurisprudência que identificou o efeito direto das diretivas, uma pessoa privada como a FBD, que, recorda‑se, está sub‑rogada nos direitos da vítima, pode, no âmbito de um litígio contra o Estado, exigir‑lhe o respeito das suas obrigações. Recordamos a este propósito que a teoria do efeito direto assenta no argumento da «vigilância dos particulares, interessados na salvaguarda dos seus direitos» ( 32 ).

75.

Finalmente, a situação em causa no processo principal pode ser assim resumida: ao aceitar, por transação, pagar a indemnização de D. Smith após a decisão da High Court (Tribunal Superior), de 5 de fevereiro de 2009, a FBD assumiu, na verdade, uma obrigação que era do Estado irlandês. Tal obrigação não pode ser juridicamente transferida para a FBD, porque resultaria em permitir que o primeiro parágrafo, do artigo 1.o da Terceira Diretiva tivesse um efeito direto contra esta entidade seguradora, ao fazer recair sobre esta um risco que não foi considerado no cálculo do valor do prémio de seguro.

76.

Assim, a situação do processo principal equipara‑se ao enriquecimento sem causa do Estado irlandês e deve, portanto, ser regularizada para garantir a sua conformidade com artigo 3.o, n.o1, da Primeira Diretiva e com o artigo 1.o, primeiro parágrafo, da Terceira Diretiva.

77.

Resulta destas considerações que, no âmbito de um litígio que opõe, por um lado, uma entidade seguradora, que se sub‑rogou nos direitos de uma vítima a quem indemnizou, e, por outro, o Estado, o órgão jurisdicional nacional tem o dever de não aplicar as disposições do seu direito nacional que estipulam que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre a responsabilidade por danos corporais causados a pessoas que viajam numa parte de um veículo automóvel que não foi concebida nem construída com assentos para passageiros, cuja desconformidade com o artigo 1.o da Terceira Diretiva decorre do Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229).

78.

Esta exclusão das disposições de direito nacional contrárias ao artigo 1.o da Terceira Diretiva não pode ter como consequência fazer recair sobre a entidade seguradora que respeitou essas disposições o encargo de indemnizar a vítima por um dano não coberto pela apólice de seguro aprovada.

IV. Conclusão

79.

Face ao acima exposto, propomos ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial apresentada pela Court of Appeal (Tribunal de Recurso, Irlanda) nos seguintes termos:

1)

No âmbito de um litígio que opõe, por um lado, uma entidade seguradora, que se sub‑rogou nos direitos de uma vítima a quem indemnizou, e, por outro, o Estado, o órgão jurisdicional nacional tem o dever de não aplicar as disposições do seu direito nacional que estipulam que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre a responsabilidade por danos corporais causados a pessoas que viajam numa parte de um veículo automóvel que não foi concebida nem construída com assentos para passageiros, cuja desconformidade com o artigo 1.o da Terceira Diretiva decorre do Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229).

2)

Tal exclusão das disposições de direito nacional contrárias ao artigo 1.o da Terceira Diretiva não pode ter como consequência fazer recair sobre a entidade seguradora que respeitou essas disposições o encargo de indemnizar a vítima por um dano não coberto pela apólice de seguro aprovada.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) JO 1990, L 129, p. 33, a seguir «Terceira Diretiva».

( 3 ) Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229, n.o 36).

( 4 ) Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229, n.o 44).

( 5 ) JO 2009, L 263, p. 11.

( 6 ) JO 1972, L 103, p. 1, a seguir «Primeira Diretiva».

( 7 ) JO 1984, L 8, p. 17, a seguir «Segunda Diretiva».

( 8 ) V. decisão de reenvio (n.o 32).

( 9 ) V. decisão de reenvio (n.o 34).

( 10 ) Acórdão de 19 de novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428).

( 11 ) Acórdão de 19 de novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428).

( 12 ) V. decisão de reenvio (n.o 9).

( 13 ) Acórdão de 19 de novembro de 1991, Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428).

( 14 ) V. decisão de reenvio (n.os 8 e 25).

( 15 ) Acórdão de 9 de março de 1978, Simmenthal (106/77, EU:C:1978:49, n.o 21).

( 16 ) Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229, n.o 36).

( 17 ) Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229, n.o 44).

( 18 ) Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229, n.o 37 e jurisprudência aí referida).

( 19 ) Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229, n.o 38).

( 20 ) Acórdão de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229, n.o 38).

( 21 ) Acórdão de 10 de outubro de 2017, Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:745, n.o 42).

( 22 ) Acórdãos de 19 de abril de 2007, Farrell (C‑356/05, EU:C:2007:229), e do 10 de outubro de 2017Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:745).

( 23 ) Acórdão de 10 de outubro de 2017, Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:745, n.o 32 e jurisprudência aí referida).

( 24 ) Como o Tribunal de Justiça declarou no seu Acórdão de 11 de julho de 2013, Csonka e o. (C‑409/11, EU:C:2013:512), «[a] intervenção deste organismo foi concebida como uma medida de último recurso, prevista unicamente nos casos em que os danos tenham sido causados por um veículo não identificado ou por um veículo relativamente ao qual não tenha sido satisfeita a obrigação de seguro referida no artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva» (n.o 30 e jurisprudência aí referida). Esta última hipótese respeita, segundo o Tribunal de Justiça, «um veículo pelo qual não existe uma apólice de seguro» (n.o 31).

( 25 ) V. Acórdão de 12 de dezembro de 2013, Portgás (C‑425/12, EU:C:2013:829, n.o 22).

( 26 ) V., designadamente, Acórdão de 10 de outubro de 2017, Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:745, n.o 31 e jurisprudência aí referida). Conforme foi referido pelo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 8 de outubro de 1987, Kolpinghuis Nijmegen (80/86, EU:C:1987:431), «uma autoridade nacional não pode invocar contra um particular uma disposição de uma diretiva cuja necessária transposição para direito nacional ainda não tenha sido efetuada» (n.o 10). V., também, Acórdão de 27 de fevereiro de 2014, OSA (C‑351/12, EU:C:2014:110, n.o 47 e jurisprudência aí referida).

( 27 ) V., designadamente, Acórdão de 10 de outubro de 2017, Farrell (C‑413/15, EU:C:2017:745, n.o 31 e jurisprudência aí referida).

( 28 ) V. Acórdão de 12 de dezembro de 2013, Portgás (C‑425/12, EU:C:2013:829 n.o 25).

( 29 ) V., a este propósito, Simon, D., Le Système juridique communautaire, 3.a edição, Presses universitaires de France, Paris, 2001, § 317, nomeadamente pp. 396 e 397.

( 30 ) JO 1983, L 109, p. 8.

( 31 ) V. decisão de reenvio (n.o 33).

( 32 ) Acórdão de 5 de fevereiro de 1963, Van Gend & Loos (26/62, EU:C:1963:1, p. 25). Remetemos ainda para as Conclusões do Advogado‑geral N. Wahl no processo Portgás (C‑425/12, EU:C:2013:623), no âmbito das quais este relembrou, ao referir‑se ao Acórdão de 26 de fevereiro de 1986, Marshall (152/84, EU:C:1986:84, n.o 47), que «o reconhecimento do efeito direto das diretivas assenta, definitivamente, em dois objetivos complementares: a necessidade de garantir eficazmente os direitos que os particulares podem retirar destes atos, bem como o desejo de sancionar as autoridades nacionais que não tenham respeitado o efeito obrigatório e não tenham assegurado a aplicação efetiva dos mesmos» (n.o 30).

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