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Document 62016CJ0334

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Sexta Secção) de 20 de dezembro de 2017.
    José Luís Núñez Torreiro contra AIG Europe Limited, Sucursal en España e Unión Española de Entidades Aseguradoras y Reaseguradoras (Unespa).
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pela Audiencia Provincial de Albacete.
    Reenvio prejudicial — Seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis — Diretiva 2009/103/CE — Artigo 3.o, primeiro parágrafo — Conceito de “circulação de veículos” — Regulamentação nacional que exclui a circulação de veículos automóveis em vias e terrenos que não são “aptos para a circulação”, com exceção dos que, embora não tendo tal aptidão, são, no entanto, de “uso comum”.
    Processo C-334/16.

    Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2017:1007

    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção)

    20 de dezembro de 2017 ( *1 )

    «Reenvio prejudicial — Seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis — Diretiva 2009/103/CE — Artigo 3.o, primeiro parágrafo — Conceito de “circulação de veículos” — Regulamentação nacional que exclui a circulação de veículos automóveis em vias e terrenos que não são “aptos para a circulação”, com exceção dos que, embora não tendo tal aptidão, são, no entanto, de “uso comum”»

    No processo C‑334/16,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Audiencia Provincial de Albacete (Tribunal Provincial de Albacete, Espanha), por decisão de 23 de maio de 2016, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 15 de junho de 2016, no processo

    José Luis Núñez Torreiro

    contra

    AIG Europe Limited, Sucursal en España, anteriormente Chartis Europe Limited, Sucursal en España,

    Unión Española de Entidades Aseguradoras y Reaseguradoras (Unespa),

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sexta Secção),

    composto por: C. G. Fernlund, presidente de secção, A. Arabadjiev (relator) e E. Regan, juízes,

    advogado‑geral: Y. Bot,

    secretário: L. Carrasco Marco, administradora,

    vistos os autos e após a audiência de 5 de abril de 2017,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação da AIG Europe Limited, Sucursal en España, e da Unión Española de Entidades Aseguradoras y Reaseguradoras (Unespa), por J. Marín López, abogado,

    em representação do Governo espanhol, por V. Ester Casas, na qualidade de agente,

    em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Mentgen, na qualidade de agentes,

    em representação da Irlanda, por A. Joyce, L. Williams e G. Hodge, na qualidade de agentes, assistidos por G. Gilmore, barrister,

    em representação do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, por J. Kraehling, na qualidade de agente, assistida por A. Bates, barrister,

    em representação da Comissão Europeia, por J. Rius e K.‑P. Wojcik, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 14 de junho de 2017,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 3.o e 5.o da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO 2009, L 263, p. 11).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe José Luis Núñez Torreiro à AIG Europe Limited, Sucursal en España, anteriormente Chartis Europe Limited, Sucursal en España (a seguir «AIG»), e à Unión Española de Entidades Aseguradoras y Reaseguradoras (Unespa) (União espanhola de seguradoras e resseguradoras) relativamente ao pagamento de uma indemnização a título do seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis (a seguir «seguro obrigatório») na sequência de um acidente ocorrido numa zona de exercícios militares.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    3

    Os considerandos 1, 2 e 20 da Diretiva 2009/103 enunciam:

    «(1)

    A Diretiva [72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO 1972, L 103, p. 1; EE 13 F2 p. 113)], a Segunda Diretiva [84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis (JO 1984, L 8, p. 17; EE 13 F15 p. 244)], a Terceira Diretiva [90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis (JO 1990, L 129, p. 33),] e a Diretiva [2000/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de maio de 2000, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis e que altera as Diretivas 73/239/CEE e 88/357/CEE do Conselho (Quarta Diretiva sobre o seguro automóvel) (JO 2000, L 181, p. 65)], foram por diversas vezes alteradas de modo substancial. Por razões de clareza e racionalidade, deverá proceder‑se à codificação dessas quatro diretivas, bem como da [Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, que altera as Diretivas [72/166], [84/5], 88/357/CEE e 90/232/CEE do Conselho e a Diretiva [2000/26] do Parlamento Europeu e do Conselho relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis (JO 2005, L 149, p. 14)].

    (2)

    O seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis […] assume especial importância para os cidadãos europeus na qualidade de tomadores de seguros ou vítimas de um acidente. Representa igualmente uma preocupação significativa para as empresas de seguros, uma vez que constitui uma parte importante do seguro não vida na [União]. O seguro automóvel tem igualmente repercussões sobre a livre circulação das pessoas e veículos. Assim sendo, reforçar e consolidar o mercado interno do seguro automóvel [na União] deverá constituir um objetivo importante da intervenção comunitária no domínio dos serviços financeiros.

    […]

    (20)

    Deverá ser garantido que as vítimas de acidentes de veículos automóveis recebam tratamento idêntico, independentemente dos locais da [União] onde ocorram os acidentes.»

    4

    Nos termos do artigo 1.o desta diretiva:

    «Para efeitos do disposto na presente diretiva entende‑se por:

    1)

    “Veículo”: qualquer veículo automóvel destinado a circular sobre o solo, que possa ser acionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via férrea, bem como os reboques, ainda que não atrelados;

    […]»

    5

    O artigo 3.o da referida diretiva prevê:

    «Cada Estado‑Membro, sem prejuízo do artigo 5.o, adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.

    As medidas referidas no primeiro parágrafo devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.

    […]

    O seguro referido no primeiro parágrafo deve, obrigatoriamente, cobrir danos materiais e pessoais.»

    6

    O artigo 5.o desta mesma diretiva dispõe:

    «1.   Cada Estado‑Membro pode não aplicar as disposições do artigo 3.o, em relação a certas pessoas, singulares ou coletivas, de direito público ou privado, numa lista elaborada por este Estado e notificada aos outros Estados‑Membros e à Comissão.

    […]

    2.   Cada Estado‑Membro pode derrogar às disposições do artigo 3.o no respeitante a certos tipos de veículos ou a certos veículos que tenham uma chapa especial, incluídos numa lista elaborada por esse Estado e notificada aos outros Estados‑Membros e à Comissão.

    […]»

    7

    O artigo 29.o da Diretiva 2009/103 tem a seguinte redação:

    «São revogadas as Diretivas [72/166], [84/5], [90/232], [2000/26] e [2005/14] […].

    As remissões para as diretivas revogadas devem entender‑se como sendo feitas para a presente diretiva e devem ler‑se nos termos da tabela de correspondência que consta do anexo II.»

    Direito espanhol

    8

    O artigo 1.o da Ley sobre responsabilidad civil y seguro en la circulación de vehiculos a motor (Lei relativa à responsabilidade civil e ao seguro em matéria de circulação de veículos automóveis), codificada pelo Real Decreto Legislativo 8/2004 (Real Decreto‑Lei 8/2004), de 29 de outubro de 2004 (BOE n.o 267, de 5 de novembro de 2004, p. 3662) (a seguir «lei relativa à responsabilidade civil e ao seguro automóvel»), prevê:

    «1.   O condutor de veículos automóveis é responsável, em consequência do risco criado pela sua condução, pelos danos causados a pessoas ou bens, resultantes da circulação.

    […]

    6.   Serão definidos por regulamento os conceitos de “veículos automóveis” e “facto da circulação”, para efeitos desta lei. Em todo [o] caso, não se consideram factos da circulação os resultantes da utilização do veículo a motor como instrumento da prática de crimes dolosos contra pessoas e bens.»

    9

    O artigo 7.o, n.o 1, da lei relativa à responsabilidade civil e ao seguro automóvel dispõe:

    «A seguradora, no âmbito do seguro obrigatório e por força deste, deve pagar ao lesado o valor dos danos de que este tenha sido vítima na sua pessoa e bens, assim como as despesas e outras indemnizações a que tenha direito de acordo com o estabelecido na regulamentação aplicável. Fica exonerada desta obrigação apenas se provar que do facto não decorre responsabilidade civil nos termos do artigo 1.o da presente lei.

    […]»

    10

    O artigo 2.o do Real Decreto 1507/2008 por el que se aprueba el reglamento del seguro obligatorio de responsabilidad civil en la circulación de vehículos a motor (Real Decreto 1507/2008 sobre a aprovação do Regulamento relativo ao seguro obrigatório de responsabilidade civil em matéria de circulação de veículos automóveis), de 12 de setembro de 2008 (BOE n.o 222, de 13 de setembro de 2008, p. 37487) (a seguir «regulamento relativo ao seguro obrigatório»), tem a seguinte redação:

    «1.   Para efeitos da responsabilidade civil na circulação de veículos a motor e da cobertura do seguro obrigatório regulado neste regulamento, entende‑se por factos da circulação os decorrentes do risco criado pela condução dos veículos a motor a que se refere o artigo anterior, tanto em garagens e parques de estacionamento como em vias ou terrenos públicos e privados aptos para a circulação, urbanos ou interurbanos, assim como em vias ou terrenos que, não tendo tal aptidão, sejam de uso comum.

    […]»

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    11

    Em 28 de junho de 2012, J. L. Núñez Torreiro, oficial do exército espanhol, participava em exercícios militares noturnos num campo de exercícios militares localizado em Chinchilla (Espanha), quando o veículo de rodas militar todo‑o‑terreno de tipo «Aníbal» (a seguir «veículo em causa»), segurado pela AIG a título do seguro obrigatório, no qual viajava como passageiro, capotou, causando assim diversos ferimentos ao interessado. Este veículo deslocava‑se numa zona dedicada, não aos veículos de rodas, mas aos veículos de lagartas.

    12

    Com base no artigo 7.o da lei relativa à responsabilidade civil e ao seguro automóvel, J. L. Núñez Torreiro exigiu à AIG o pagamento de uma indemnização de 15300,56 euros a título do prejuízo que sofreu em razão deste acidente.

    13

    Baseando‑se no artigo 1.o, n.o 6, da lei relativa à responsabilidade civil e ao seguro automóvel, lido em conjugação com o artigo 2.o do regulamento relativo ao seguro obrigatório, a AIG recusou‑se a pagar‑lhe essa quantia, com o fundamento de que o acidente não tinha resultado de um «facto da circulação», uma vez que tinha ocorrido quando o veículo em causa circulava num campo de exercícios militares, cujo acesso a todos os tipos de veículos não militares era limitado. Com efeito, a referida companhia de seguros considerou que esse terreno não era «apto para a circulação» e que, além disso, não era de «uso comum», na aceção do artigo 2.o deste regulamento.

    14

    J. L. Núñez Torreiro intentou uma ação contra a AIG no Juzgado de Primera Instancia n.o 1 de Albacete (Tribunal de Primeira Instância n.o 1 de Albacete, Espanha). Por decisão de 3 de novembro de 2015, esse órgão jurisdicional julgou improcedente a ação do interessado com o fundamento de que os seus ferimentos não resultavam de um «facto da circulação», uma vez que o veículo no qual se encontrava transitava por um terreno que não era nem apto para a circulação nem de uso comum.

    15

    J. L. Núñez Torreiro interpôs recurso dessa decisão para o órgão jurisdicional de reenvio, a Audiencia Provincial de Albacete (Tribunal Provincial de Albacete, Espanha), alegando que o artigo 1.o, n.o 6, da lei relativa à responsabilidade civil e ao seguro automóvel, lido em conjugação com o artigo 2.o do regulamento relativo ao seguro obrigatório, devia ser interpretado de forma restritiva, em conformidade com o ensinamento decorrente do acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146), no qual o Tribunal de Justiça decidiu que a responsabilidade da seguradora não pode ser excluída se o veículo for utilizado em conformidade com a sua função habitual.

    16

    O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à compatibilidade dos artigos 1.o, n.o 6, e 7.o, n.o 1, da lei relativa à responsabilidade civil e ao seguro automóvel, lidos em conjugação com o artigo 2.o do regulamento relativo ao seguro obrigatório, com o artigo 3.o da Diretiva 2009/103, uma vez que estas disposições de direito nacional implicam que, em algumas situações, como as que são objeto do litígio que lhe foi submetido, a responsabilidade relativa à utilização de veículos automóveis não deva estar obrigatoriamente coberta por um seguro. O órgão jurisdicional de reenvio considera que as únicas exceções a esta obrigação são as enunciadas no artigo 5.o desta diretiva. Além disso, alega que, no acórdão de 4 de setembro de 2014, Vnuk (C‑162/13, EU:C:2014:2146), o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, que o conceito de «circulação de veículos», na aceção do artigo 3.o da Diretiva 2009/103, não pode ser deixado à apreciação de cada Estado‑Membro.

    17

    Daqui decorre, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, que os Estados‑Membros só podem prever derrogações à obrigação de seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis ou ao conceito de “circulação de veículos” no âmbito do artigo 5.o da Diretiva 2009/103 ou quando o veículo em causa não é utilizado em conformidade com a sua função habitual. As exceções ao conceito de «facto da circulação», resultantes da limitação, por força do artigo 2.o, n.o 1, do regulamento relativo ao seguro obrigatório, desses factos aos que ocorreram num terreno «apto para a circulação» ou que, «não tendo tal aptidão, [seja] de uso comum», são, por conseguinte, incompatíveis com o direito da União. O mesmo se aplica no que diz respeito ao artigo 2.o, n.os 2 e 3, deste regulamento, que prevê uma exceção à obrigação do seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos relativamente à utilização destes nos circuitos desportivos, nos portos e nos aeroportos, bem como enquanto instrumentos de atividade industrial ou agrícola, ou para cometer crimes dolosos.

    18

    Nestas condições, a Audiencia Provincial de Albacete (Tribunal Provincial de Albacete) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    Pode o conceito de “circulação de veículos” ou [de] “facto da circulação”, como risco do seguro de responsabilidade civil pela utilização e circulação de veículos automóveis, a que se refere a legislação da União ([nomeadamente o artigo 3.o da Diretiva 2009/103]) ser [definido] pela legislação nacional de um Estado‑Membro de forma diferente da legislação da União?

    2)

    Em caso afirmativo, pode o referido conceito excluir (para além de determinadas pessoas, matrículas ou tipos de veículos, [como permite] o artigo 5.o, n.os 1 e 2[,] da Diretiva 2009/103) situações de circulação de acordo com o local onde se realizem, como é o caso de vias ou terrenos “não aptos” para a circulação?

    3)

    Da mesma forma, podem ser excluídas do conceito [de] “facto da circulação” determinadas atividades do veículo relacionadas com a sua finalidade (como o caso da sua utilização para fins desportivos, industriais ou agrícolas) ou relacionadas com a intenção do condutor (como o caso da prática de um crime doloso com o veículo)?»

    Quanto às questões prejudiciais

    Quanto à primeira e segunda questões

    19

    Com a primeira e segunda questões, que há que analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que permite excluir da cobertura do seguro obrigatório os danos ocorridos aquando da condução de veículos automóveis em vias e terrenos que não são «aptos para a circulação», com exceção dos que, embora não tendo tal aptidão, são, no entanto, «de uso comum».

    20

    Estas questões baseiam‑se, no caso em apreço, na premissa segundo a qual podem ser excluídos da cobertura do seguro obrigatório, ao abrigo da regulamentação espanhola, os danos resultantes da circulação de veículos automóveis num terreno de exercícios militares, como o que está em causa no processo principal, com o fundamento de que este constitui um terreno não apto para a circulação de veículos que, além disso, não é de «uso comum», na aceção do artigo 2.o, n.o 1, do regulamento relativo ao seguro obrigatório.

    21

    A este respeito, o artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103 prevê que cada Estado‑Membro adota todas as medidas adequadas, sem prejuízo da aplicação do artigo 5.o desta diretiva, para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.

    22

    A título preliminar, há que salientar que um veículo de rodas militar de tipo «Aníbal», como o que está em causa no processo principal, está abrangido pelo conceito de «veículo», referido no artigo 1.o, ponto 1, da Diretiva 2009/103, porquanto corresponde a um «veículo automóvel destinado a circular sobre o solo, que possa ser acionado por uma força mecânica, sem estar ligado a uma via férrea». Por outro lado, é facto assente que este veículo tem o seu estacionamento habitual no território de um Estado‑Membro e que não é abrangido por uma derrogação aplicada nos termos do artigo 5.o desta diretiva.

    23

    Para dar uma resposta útil às questões submetidas, há que determinar se as circunstâncias como as que estão em causa no processo principal são abrangidas pelo conceito de «circulação de veículos», na aceção do artigo 3.o, primeiro parágrafo, da referida diretiva.

    24

    Há que recordar, para esse efeito, que o Tribunal de Justiça declarou que este mesmo conceito, na aceção do artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 72/166 (a seguir «Primeira Diretiva»), cujo conteúdo corresponde, em substância, ao do artigo 3.o, primeiro e segundo parágrafos, da Diretiva 2009/103, não pode ser deixado à apreciação de cada Estado‑Membro, mas constitui um conceito autónomo do direito da União, devendo ser interpretado, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, à luz, nomeadamente, do contexto desta disposição e dos objetivos prosseguidos pela regulamentação em que se integra (v., neste sentido, acórdãos de 4 de setembro de 2014, Vnuk, C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.os 41 e 42, e de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade, C‑514/16, EU:C:2017:908, n.o 31).

    25

    A este respeito, conforme enuncia o considerando 1 da Diretiva 2009/103, esta codificou a Primeira Diretiva, a Segunda Diretiva 84/5, a Terceira Diretiva 90/232, a Diretiva 2000/26 e a Diretiva 2005/14. Estas diretivas vieram progressivamente precisar as obrigações dos Estados‑Membros em matéria de seguro obrigatório. Tendiam, por um lado, a assegurar a livre circulação quer dos veículos com estacionamento habitual no território da União quer das pessoas que neles viajam, e, por outro, a garantir que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território da União onde o acidente tenha ocorrido (v., neste sentido, acórdãos de 23 de outubro de 2012, Marques Almeida, C‑300/10, EU:C:2012:656, n.o 26; de 4 de setembro de 2014, Vnuk, C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.o 50; e de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade, C‑514/16, EU:C:2017:908, n.o 32).

    26

    Em substância, decorre dos considerandos 2 e 20 da Diretiva 2009/103 que esta prossegue os mesmos objetivos.

    27

    Além disso, decorre da evolução da regulamentação da União em matéria de seguro obrigatório que este objetivo de proteção das vítimas de acidentes causados por esses veículos foi constantemente prosseguido e reforçado pelo legislador da União (v., neste sentido, acórdãos de 4 de setembro de 2014, Vnuk, C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.os 52 a 55, e de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade, C‑514/16, EU:C:2017:908, n.o 33).

    28

    Decorre das considerações precedentes que o artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103 deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «circulação de veículos» nele previsto não está limitado às situações de circulação rodoviária, ou seja, à circulação na via pública, mas que este conceito abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual deste último (v., neste sentido, acórdãos de 4 de setembro de 2014, Vnuk, C‑162/13, EU:C:2014:2146, n.o 59, e de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade, C‑514/16, EU:C:2017:908, n.o 34).

    29

    A este respeito, o Tribunal de Justiça precisou que, na medida em que os veículos automóveis referidos no artigo 1.o, ponto 1, da Primeira Diretiva, cuja redação corresponde à do artigo 1.o, ponto 1, da Diretiva 2009/103, independentemente das suas características, se destinam a servir habitualmente de meio de transporte, está abrangida por este conceito qualquer utilização de um veículo como meio de transporte (acórdão de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade, C‑514/16, EU:C:2017:908, n.os 37 e 38).

    30

    Além disso, o Tribunal de Justiça declarou que o alcance do referido conceito não depende das características do terreno em que o veículo automóvel é utilizado (acórdão de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade, C‑514/16, EU:C:2017:908, n.o 35).

    31

    Nenhuma disposição da Diretiva 2009/103 limita, aliás, o âmbito da obrigação do seguro e da proteção que esta obrigação pretende conferir às vítimas de acidentes causados por veículos automóveis aos casos de utilização de tais veículos em certos terrenos ou em certas vias (v., neste sentido, acórdão de 28 de novembro de 2017, Rodrigues de Andrade, C‑514/16, EU:C:2017:908, n.o 36).

    32

    No caso em apreço, é pacífico que o veículo em causa era utilizado como meio de transporte no momento em que capotou, ferindo assim J. L. Núñez Torreiro.

    33

    Por conseguinte, essa utilização está abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», na aceção do artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103.

    34

    O facto de, como decorre da decisão de reenvio, o veículo em causa circular, quando capotou, num terreno de exercícios militares cujo acesso era interdito a qualquer veículo não militar e numa zona deste terreno que não era apta para a circulação de veículos de rodas não é suscetível de afetar esta conclusão e, por conseguinte, de limitar a obrigação de seguro que decorre desta disposição.

    35

    Ora, uma regulamentação como a que está em causa no processo principal tem como consequência que o alcance da cobertura do seguro obrigatório dependa das características do terreno no qual o veículo automóvel é utilizado. Com efeito, permite limitar o alcance da obrigação geral de seguro que os Estados‑Membros são obrigados a estabelecer no direito interno, por força do artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103, e, por conseguinte, a proteção que esta obrigação pretende conferir às vítimas de acidentes causados por veículos automóveis, nos casos de utilização destes veículos em certos terrenos ou em certas vias.

    36

    À luz das considerações precedentes, há que responder à primeira e segunda questões que o artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que permite excluir da cobertura do seguro obrigatório os danos ocorridos aquando da condução de veículos automóveis em vias e terrenos que não são «aptos para a circulação», com exceção dos que, embora não tendo tal aptidão, são, no entanto, «de uso comum».

    Quanto à terceira questão

    37

    Com a terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio procura saber, em substância, se o artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como os artigos 1.o, n.o 6, e 7.o, n.o 1, da lei relativa à responsabilidade civil e ao seguro automóvel, lidos em conjugação com o artigo 2.o, n.os 2 e 3, do regulamento relativo ao seguro obrigatório, que exclui da cobertura do seguro obrigatório os danos resultantes da utilização de veículos no âmbito de atividades desportivas, industriais e agrícolas, nos portos e aeroportos, bem como no âmbito da prática de um crime doloso.

    38

    A este respeito, cumpre recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro legal e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não compete ao Tribunal de Justiça verificar, beneficiam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar‑se sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional quando for manifesto que a interpretação solicitada do direito da União não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal de Justiça não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (acórdão de 20 de julho de 2017, Piscarreta Ricardo, C‑416/16, EU:C:2017:574, n.o 56 e jurisprudência referida).

    39

    No caso em apreço, decorre da decisão de reenvio que os danos sofridos por J. L. Núñez Torreiro resultam de um acidente que envolve um veículo de rodas militar de tipo «Aníbal» que circulava numa zona de um terreno de exercícios militares, dedicada aos veículos de lagartas. Por conseguinte, o litígio no processo principal não diz respeito à utilização deste veículo no âmbito de atividades desportivas, industriais ou agrícolas, nos portos ou aeroportos, nem no âmbito da prática de um crime doloso.

    40

    Nestas condições, é manifesto que a interpretação do artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103, solicitada no âmbito da terceira questão, não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal e que, por conseguinte, esta questão é inadmissível.

    Quanto às despesas

    41

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sexta Secção) declara:

     

    O artigo 3.o, primeiro parágrafo, da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, que permite excluir da cobertura do seguro obrigatório os danos ocorridos aquando da condução de veículos automóveis em vias e terrenos que não são «aptos para a circulação», com exceção dos que, embora não tendo tal aptidão, são, no entanto, «de uso comum».

     

    Assinaturas


    ( *1 ) Língua do processo: espanhol.

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