Choose the experimental features you want to try

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62016CC0171

Conclusões do advogado-geral Y. Bot apresentadas em 17 de maio de 2017.
Trayan Beshkov contra Sofiyska rayonna prokuratura.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski rayonen sad.
Reenvio prejudicial — Espaço de liberdade, segurança e justiça — Decisão‑Quadro 2008/675/JAI — Âmbito de aplicação — Tomada em consideração, por ocasião de um novo procedimento penal, de uma decisão de condenação proferida anteriormente noutro Estado‑Membro para efeitos de aplicação de uma pena unitária — Procedimento nacional de reconhecimento prévio dessa decisão — Alteração das regras de execução da pena aplicada nesse outro Estado‑Membro.
Processo C-171/16.

Court reports – general – 'Information on unpublished decisions' section

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2017:386

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 17 de maio de 2017 ( 1 )

Processo C‑171/16

Trayan Beshkov

Sendo interveniente:

Sofiyska rayonna prokuratura

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Sofiyski Rayonen sad (Tribunal Regional de Sófia, Bulgária)]

«Espaço de liberdade, segurança e justiça — Decisão‑Quadro 2008/675/JAI — Tomada em consideração das decisões de condenação anterior entre os Estados‑Membros — Conceito de “novo procedimento penal” — Não admissão da modificação da execução, pelo Estado‑Membro que iniciou o novo procedimento penal, da condenação anterior»

1. 

No presente processo, o Tribunal de Justiça é chamado, pela primeira vez, a interpretar as disposições da Decisão‑Quadro 2008/675/JAI do Conselho, de 24 de julho de 2008, relativa à tomada em consideração das decisões de condenação nos Estados‑Membros da União Europeia por ocasião de um novo procedimento penal ( 2 ).

2. 

Mais concretamente, o Tribunal de Justiça é convidado pelo órgão jurisdicional de reenvio a clarificar o conceito de «procedimento penal» na aceção do artigo 3.o, n.o 1, dessa decisão‑quadro. De facto, este órgão jurisdicional pretende saber se este conceito abrange um procedimento que tenha como objeto a execução de uma pena aplicada por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro para a qual deva ser tomada em consideração a condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro.

3. 

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio procura saber se a referida disposição se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê que o pedido de tomada em consideração de uma condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro não pode ser apresentado diretamente pela pessoa condenada.

4. 

Por último, a terceira questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio diz respeito às modalidades concretas da tomada em consideração, por um órgão jurisdicional nacional, da condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro e cuja pena aplicada já tenha sido integralmente executada.

5. 

Nas presentes conclusões, começaremos por esclarecer que, na nossa opinião, para efeitos da sua tomada em consideração por ocasião de um novo procedimento penal num Estado‑Membro, em conformidade com as disposições da Decisão‑Quadro 2008/675, uma decisão judicial proferida noutro Estado‑Membro do espaço de liberdade, segurança e justiça não tem de ser previamente reconhecida segundo um procedimento especial, como o previsto no Nakazatelno‑protsesualen kodeks (código de processo penal búlgaro).

6. 

Em seguida, apresentaremos as razões pelas quais consideramos que o artigo 3.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675 deve ser interpretado no sentido de que um procedimento que tenha como objeto a execução de uma pena aplicada por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro para a qual deva ser tomada em consideração a condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro constitui um «procedimento penal» na aceção dessa disposição. Proporemos igualmente que o Tribunal de Justiça declare que a referida disposição deve ser interpretada no sentido de que o pedido de tomada em consideração de uma condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro pode ser apresentado diretamente pela pessoa condenada.

7. 

Posteriormente, explicaremos por que razão consideramos que o artigo 3.o, n.os 1 e 3, dessa decisão‑quadro deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê que um órgão jurisdicional nacional reexamine, por ocasião de um novo procedimento penal, a pena aplicada por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, e já executada, para efeitos da aplicação de uma pena privativa de liberdade unitária que inclua a pena aplicada por esse outro Estado‑Membro.

8. 

Por último, na nossa opinião, para assegurar o efeito útil da referida decisão‑quadro, o juiz nacional deve, se for o caso, e nas condições e com as ressalvas constantes desse diploma, aplicar as disposições do artigo 3.o, n.os 1, 3 e 5, dessa decisão‑quadro, lido à luz dos seus oitavo e nono considerandos.

I. Quadro jurídico

A. Direito da União

9.

O primeiro considerando da Decisão‑Quadro 2008/675 refere que o objetivo de manter e desenvolver um espaço de liberdade, segurança e justiça pressupõe que as informações relativas às decisões de condenação proferidas nos Estados‑Membros possam ser tomadas em consideração fora do Estado‑Membro de condenação, tanto para prevenir novas infrações como por ocasião de um novo procedimento penal.

10.

Os oitavo e nono considerandos dessa decisão‑quadro dispõem:

«(8)

Quando, por ocasião de um procedimento penal num Estado‑Membro, existam informações sobre uma condenação anterior noutro Estado‑Membro, deverá evitar‑se, tanto quanto possível, que a pessoa em causa seja tratada de forma menos favorável do que se a condenação anterior tivesse sido uma condenação nacional.

(9)

O n.o 5 do artigo 3.o deverá ser interpretado, nomeadamente de acordo com o considerando 8, por forma a que se, no novo procedimento penal, o tribunal nacional, ao ter em conta uma pena anterior proferida noutro Estado‑Membro, considerar que impor determinado nível de pena dentro dos limites da legislação nacional é proporcionalmente severo para o infrator, tendo em conta as circunstâncias e se o objetivo da sanção puder ser alcançado através de uma pena mais branda, poderá reduzir o nível da pena em conformidade, se tal fosse possível em processos de âmbito puramente nacional.»

11.

O artigo 2.o da referida decisão‑quadro prevê:

«Para efeitos da presente decisão‑quadro, entende‑se por “condenação” qualquer decisão definitiva de um tribunal penal que declare a culpabilidade de uma pessoa por uma infração penal.»

12.

De acordo com o artigo 3.o da Decisão‑Quadro 2008/675:

«1.   Cada Estado‑Membro assegura que, por ocasião de um procedimento penal contra determinada pessoa, as condenações anteriores contra ela proferidas por factos diferentes noutros Estados‑Membros, sobre as quais tenha sido obtida informação ao abrigo dos instrumentos aplicáveis em matéria de auxílio judiciário mútuo ou por intercâmbio de informação extraída dos registos criminais, sejam tidas em consideração na medida em que são condenações nacionais anteriores e lhes sejam atribuídos efeitos jurídicos equivalentes aos destas últimas, de acordo com o direito nacional.

2.   O n.o 1 é aplicável na fase que antecede o processo penal, durante o processo penal propriamente dito ou na fase de execução da condenação, nomeadamente no que diz respeito às regras processuais aplicáveis, inclusive as que dizem respeito à prisão preventiva, à qualificação da infração, ao tipo e ao nível da pena aplicada, ou ainda às normas que regem a execução da decisão.

3.   A tomada em consideração de condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros, tal como prevista no n.o 1, não tem por efeito interferir com essas condenações nem com qualquer decisão relativa à sua execução, nem que as mesmas sejam revogadas ou reexaminadas pelo Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento.

4.   Em conformidade com o n.o 3, o n.o 1 não se aplica na medida em que, se a condenação anterior tivesse sido uma condenação nacional proferida no Estado‑Membro em que decorre o novo procedimento, a tomada em consideração dessa condenação teria tido por efeito, de acordo com o direito nacional desse Estado‑Membro, interferir com a condenação anterior ou com qualquer outra decisão relativa à sua execução, ou levar à sua revogação ou ao seu reexame.

5.   Se a infração que levou à instauração do novo procedimento tiver sido cometida antes de ser proferida ou integralmente executada a condenação anterior, o disposto nos n.os 1 e 2 não deve ter por efeito obrigar os Estados‑Membros a aplicarem as respetivas normas nacionais ao imporem sentenças, caso a aplicação dessas normas a condenações estrangeiras limite o juiz na imposição da pena no âmbito do novo procedimento.

Os Estados‑Membros asseguram, contudo, a possibilidade de, nesses casos, os seus tribunais tomarem em consideração as condenações anteriores proferidas noutros Estados‑Membros.»

B. Direito búlgaro

13.

De acordo com o artigo 8.o, n.o 2, do Nakazatelen kodeks (código penal), na versão em vigor desde 27 de maio de 2011 (a seguir «código penal»), uma condenação proferida noutro Estado‑Membro da União, e transitada em julgado, por uma conduta que constitua crime nos termos desse código é tomada em consideração em qualquer procedimento penal instaurado contra a mesma pessoa na Bulgária.

14.

O artigo 23.o, n.o 1, do referido código prevê que, se, através da mesma conduta, forem cometidos vários crimes ou se uma pessoa tiver cometido vários crimes diferentes antes de ser condenada pela prática de um desses crimes por decisão transitada em julgado, o tribunal, após determinar a pena aplicável a cada um desses crimes separadamente, aplica a pena mais grave.

15.

Por força do artigo 25.o, n.os 1 e 2, do referido código, as disposições do artigo 23.o são igualmente aplicáveis quando a pessoa tenha sido condenada por decisões diferentes. Por outro lado, quando a pena aplicada numa das condenações tenha sido total ou parcialmente executada, é deduzida, para efeitos de execução da pena, se for da mesma natureza que a pena unitária aplicada.

16.

O artigo 24.o do código penal prevê igualmente que, quando as penas aplicadas sejam da mesma natureza, o que se verifica no caso em apreço, o órgão jurisdicional pode aumentar a pena unitária em um meio, não podendo exceder nenhum dos seguintes limites máximos: por um lado, a soma das penas fixadas para cada uma das infrações dessa natureza e, por outro lado, e em caso algum, a duração máxima prevista para a mais grave dessas penas.

17.

O artigo 4.o, n.o 2, do Nakazatelno‑protsesualen kodeks (código de processo penal), na versão em vigor em 2010, prevê que a condenação proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado, e transitada em julgado, e que não seja reconhecida pela legislação processual búlgara não é executada pelas autoridades búlgaras. O n.o 3 desse artigo esclarece que o seu n.o 2 não se aplica quando uma convenção internacional na qual a República da Bulgária seja parte, que tenha sido ratificada e publicada e esteja em vigor, disponha o contrário.

18.

Na secção consagrada ao reconhecimento e à execução de uma condenação proferida por um órgão jurisdicional estrangeiro, o artigo 463.o do referido código dispõe que uma condenação proferida por um órgão jurisdicional estrangeiro e transitada em julgado é reconhecida e executada pelas autoridades búlgaras quando, por força da legislação búlgara, a conduta relativamente à qual o pedido é feito constitua um crime e o autor seja imputável, quando a condenação tenha sido proferida com pleno respeito pelos princípios consagrados na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de novembro de 1950, e respetivos protocolos de que a República da Bulgária é Parte, quando o autor não tenha sido condenado pela prática de um crime considerado crime político ou de um crime relacionado com tal crime, ou de um crime de guerra, quando a República da Bulgária não tenha reconhecido uma decisão de condenação proferida por outro órgão jurisdicional estrangeiro relativamente ao mesmo autor e pelo mesmo crime e quando a condenação não viole os princípios fundamentais do direito penal e processual penal búlgaro.

19.

O artigo 466.o, n.o 1, do referido código prevê que a decisão que reconheça uma condenação proferida por um órgão jurisdicional estrangeiro tem o mesmo efeito que uma condenação proferida por um órgão jurisdicional búlgaro.

II. Quadro factual

20.

Por decisão proferida em 13 de dezembro de 2010 pelo Landesgericht Klagenfurt (tribunal regional de Klagenfurt, Áustria), T. Beshkov, de nacionalidade búlgara, foi condenado, pela prática de crime de recetação cometido em território austríaco em 14 de novembro de 2010, numa pena de prisão de dezoito meses, dos quais seis de prisão efetiva e doze de pena suspensa, acrescida de um período de regime de prova de 3 anos.

21.

O órgão jurisdicional de reenvio esclarece que a parte da pena correspondente aos seis meses de prisão efetiva foi executada entre 13 de dezembro de 2010 e 14 de maio de 2011, tendo sido deduzido o período em que T. Beshkov esteve em prisão preventiva. Em 14 de maio de 2011, teve início o período de regime de prova.

22.

Por decisão proferida em 29 de abril de 2013 pelo Sofiyski Rayonen sad (Tribunal Regional de Sófia, Bulgária), T. Beshkov foi condenado numa pena de prisão de um ano pela prática, no dia 19 de novembro de 2008, em Sófia, de atos qualificados como ofensas à integridade física simples por motivos que constituem violação grave da ordem pública e da ordem social.

23.

Uma vez que T. Beshkov é procurado pelas autoridades búlgaras, essa pena ainda não foi executada.

24.

Em 14 de maio de 2015, T. Beshkov apresentou um pedido ao Sofiyski Rayonen (Tribunal Regional de Sófia), enviado através do seu mandatário ad litem, no qual requer a aplicação do artigo 23.o, n.o 1, e do artigo 25.o, n.o 1, do Código Penal. Assim, pretende que, para efeitos da execução da pena aplicada pela decisão de 29 de abril de 2013, lhe seja aplicada uma pena privativa de liberdade em cúmulo jurídico, correspondente à pena mais grave aplicada pelos órgãos jurisdicionais austríaco e búlgaro.

25.

Uma vez que uma das penas foi aplicada por um órgão jurisdicional estrangeiro, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se deve proceder previamente ao reconhecimento da decisão do órgão jurisdicional austríaco ou se pode, ou até deve, com fundamento na Decisão‑Quadro 2008/675, deferir o pedido de T. Beshkov.

III. Questões prejudiciais

26.

Uma vez que tem dúvidas quanto à interpretação que deve ser dada ao direito da União, o Sofiyski Rayonen sad (Tribunal Regional de Sófia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Como deve ser interpretado o conceito de “novo procedimento penal”, utilizado na Decisão‑Quadro 2008/675[…] […]: deve tal conceito ser interpretado no contexto do apuramento da culpa pela prática de um crime, ou pode também dizer respeito a processos em que, de acordo com o direito nacional do segundo Estado‑Membro, a pena aplicada na primeira sentença absorve outra pena ou deve nela ser descontada ou deve ser ordenada a sua execução separada?

2)

Deve o artigo 3.o, n.o 1, em conjugação com o considerando 13 da Decisão‑Quadro 2008/675[…] […], ser interpretado no sentido de que não se opõe a disposições nacionais segundo as quais a abertura do processo para ter em consideração uma sentença anterior proferida noutro Estado‑Membro não pode ser requerida pelo condenado, mas apenas pelo Estado‑Membro onde foi proferida a primeira sentença ou pelo Estado‑Membro em que foi instaurado o novo procedimento criminal?

3)

Deve o artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675[…] […] ser interpretado no sentido de que não permite que o Estado onde foi instaurado o novo procedimento criminal altere o modo de execução da pena aplicada no Estado em que foi proferida a primeira sentença, mesmo nos casos em que, segundo o direito nacional do segundo Estado‑Membro, a pena aplicada na primeira sentença absorve outra pena ou deve nela ser descontada ou deve ser ordenada a sua execução separada?»

IV. Análise

27.

Ainda que não coloque formalmente essa questão no enunciado das questões que submete ao Tribunal de Justiça, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a decisão proferida pelo Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt, Áustria) deve ser previamente objeto de reconhecimento de decisão judicial estrangeira segundo o processo específico previsto no artigo 463.o do Nakazatelno‑protsesualen kodeks.

28.

O caráter essencial desta questão levar‑nos‑á a integrá‑la na nossa argumentação, no âmbito da prática tradicional da reformulação.

29.

Afigura‑se claro que deve ser dada resposta negativa a esta questão.

30.

De facto, uma vez que a República da Áustria e a República da Bulgária são membros do espaço de liberdade, segurança e justiça, deve ser aplicado o princípio do reconhecimento mútuo no quadro da circulação e da aplicação das decisões judiciais nesse espaço e de acordo com as normas constantes dos instrumentos legislativos em vigor, tal como interpretados pelo Tribunal de Justiça. Assim, há que recordar que, de acordo com a jurisprudência iniciada no acórdão de 11 de fevereiro de 2003, Gözütok e Brügge ( 3 ), o reconhecimento mútuo tem como consequência que um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro deve acolher a decisão judicial de outro Estado‑Membro como se fosse sua, ainda que a aplicação do direito nacional levasse a uma solução diferente.

31.

No que diz respeito à Decisão‑Quadro 2008/675, que se refere, ela própria, no seu segundo considerando, ao reconhecimento mútuo, há que observar que tal reconhecimento prévio seria contrário não apenas à própria letra desta decisão‑quadro, que não impõe, de forma nenhuma, tal formalidade, mas também aos princípios recordados no número anterior.

32.

Dito isto, há que passar à apreciação das questões submetidas ao Tribunal de Justiça no presente processo, as quais dizem respeito a um dos domínios mais técnicos e, portanto, um dos mais complexos, do direito penal e do processo penal, designadamente o domínio do direito da execução de penas.

33.

Mais concretamente, os problemas suscitados pelo órgão jurisdicional de reenvio dizem respeito à aplicação da Decisão‑Quadro 2008/675, que prevê a tomada em consideração pelos órgãos jurisdicionais nacionais de um Estado‑Membro das decisões penais proferidas noutro Estado‑Membro.

34.

Esta obrigação de tomada em consideração é uma das consequências diretas da existência do espaço de liberdade, segurança e justiça que a União oferece aos seus cidadãos.

35.

A concretização desse espaço pressupõe que as legislações e as práticas nacionais possam combinar‑se de forma a não criar quaisquer incompatibilidades que impeçam não apenas o exercício do reconhecimento mútuo mas igualmente o da simples e quotidiana cooperação judiciária. Caso contrário, passamos a ter quer espaços territoriais nos quais os infratores sabem que encontram refúgio, ficando protegidos contra mandados de prisão ou de execução de penas legalmente emitidos noutros Estados‑Membros, quer tratamentos diferentes para situações idênticas consoante o ou os crimes tenham sido cometidos numa ou noutra margem de um rio que constitua uma dessas fronteiras que o espaço de liberdade, segurança e justiça tem justamente como princípio abolir ( 4 ).

36.

De facto, o próprio conceito de espaço único em matéria penal deve ter em conta a realidade dos comportamentos dos infratores e as normas comuns aplicadas pelos órgãos jurisdicionais nacionais, que constituem princípios gerais do direito da execução de penas.

37.

Os infratores circulam no espaço único como os cidadãos honestos circulam no território dos Estados‑Membros. Nestes, como na União, podem praticar atos isolados ou atos em série. As legislações nacionais tratam os primeiros de forma diferente dos segundos. Os atos em série encontram‑se, em geral, em casos de reincidência, na prática reiterada de crimes ou em casos designados «de concurso real de crimes».

38.

Juridicamente, verifica‑se a reincidência quando, após uma condenação penal transitada em julgado — e, por maioria de razão, executada —, o infrator pratique novamente um crime idêntico ao anterior ou qualificado como tal pela lei.

39.

A prática reiterada de crimes é comparável com a anterior, com a diferença essencial de que, neste segundo caso, o ou os crimes cometidos após uma primeira condenação não apresentam a similitude referida no número anterior.

40.

Em contrapartida, o concurso real de crimes é constituído por vários crimes, todos eles cometidos sem que os atos ilícitos praticados tenham sido separados no tempo por uma condenação definitiva.

41.

A reincidência implica um aumento da duração máxima da pena aplicada pelo crime subsequente. Acrescem a possibilidade de revogação de suspensões de pena anteriores, bem como, eventualmente, a impossibilidade de beneficiar de determinados tipos de medidas favoráveis, como a suspensão de pena simples. Esta severidade explica‑se pelo facto de se ter em conta que, através da primeira condenação, o infrator tomou consciência, pelo menos, de que a punição do ato ilícito era real, de que tal podia ser desagradável para ele e de que, uma vez que se tratava de delinquente primário, porventura beneficiou de uma medida de clemência ou de acompanhamento que constituía, para ele, uma oportunidade para se ressocializar e começar a respeitar a lei. Nesta perspetiva, a reincidência significa um enraizamento na criminalidade, uma vez que é cometido novamente o mesmo crime, o que justifica uma resposta social mais forte.

42.

A prática reiterada de crimes traduz um grau menor de enraizamento num determinado tipo de criminalidade. Por conseguinte, não implica o aumento da duração máxima da pena aplicável aos crimes subsequentes, mas justifica, contudo, um aumento da severidade da repressão através da eventual revogação de suspensões de pena anteriores e da possibilidade de poder não voltar a beneficiar destas.

43.

No caso de um concurso real de crimes, a situação é diferente. A advertência que favorece a tomada de consciência, constituída pela primeira condenação, não se verifica neste caso. A multiplicação dos crimes não pode, por isso, ter o significado atribuído supra e a resposta social não pode, consequentemente, revestir a mesma forma.

44.

Na verdade, o juiz depara‑se com uma pluralidade de crimes aos quais são teoricamente aplicáveis tantas penas diferentes quantos os crimes cometidos. A situação concreta com a qual se confronta pode revestir dois aspetos: ou todos os atos ilícitos praticados são englobados numa única ação penal ou são objeto de ações penais separadas; no primeiro caso, o problema será tratado numa única decisão de condenação; no segundo, haverá que determinar se se adiciona ou não as diferentes penas aplicadas e, em seguida, determinar de que forma o juiz de execução de penas poderá ou deverá combinar a sua decisão com as decisões proferidas por outros órgãos jurisdicionais.

45.

Todos estes «outros» órgãos jurisdicionais serão do mesmo Estado‑Membro ou então, pelo menos em parte, de Estados‑Membros diferentes. É precisamente aqui que reside a problemática suscitada pelo processo principal. Felizmente, a resolução deste problema delicado encontra já uma linha de orientação na existência de princípios gerais que decorrem do direito da execução de penas.

46.

Com efeito, a própria execução da pena não pode reduzir‑se a uma simples operação de cálculo do número de dias de prisão. Para além das questões de dignidade relativas às condições materiais da detenção, a execução de uma sanção penal deve igualmente satisfazer as exigências da função que a pena deve desempenhar.

47.

Recordamos que a função da pena, ainda que não esteja expressamente referida, enquanto tal, na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais nem na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, acarreta consigo um conjunto de valores que exprimem uma conceção quer das relações humanas numa sociedade quer da capacidade das pessoas para se corrigir e se reintegrar.

48.

Concebida inicialmente como uma retaliação, a pena evoluiu para uma sanção entendida, primeiro, como uma retribuição, depois, como uma reparação e, por último, na conceção moderna, como devendo permitir a reintegração da pessoa condenada na sociedade. A reincidência na prática de atos ilícitos colocou imediatamente a questão da sua prevenção. Depressa se tornou claro que o afastamento do infrator em que a pena de prisão se traduz, ainda que incontornável em determinadas situações, longe de evitar a reincidência, podia, pelo contrário, favorecê‑la. Assim se desenvolveu a função de reintegração da pena, que se prende, na fase da sua execução, com o princípio fundamental da sua individualização.

49.

No caso, que é o que nos ocupa, de um concurso real de crimes, é precisamente o princípio da individualização que se encontra no cerne da questão. A adição matemática de todas as penas aplicadas por atos praticados durante um período no qual não se tenha verificado qualquer admoestação ou medida de tutela poderá, na maior parte dos casos, afigurar‑se desproporcionada em relação à personalidade do infrator e às circunstâncias da prática dos atos e, por conseguinte, injusta. Sendo injusta, é mais provável que a pena suscite a revolta e, portanto, a reincidência do que a alteração do comportamento. Daí que se justifique o poder atribuído ao juiz, no seu domínio de apreciação da individualização necessária, e de acordo com os limites da lei, de combinar o melhor possível as sanções aplicáveis aos crimes cometidos durante esse período da vida do infrator.

50.

Uma vez que essas sanções podem ser muito variadas, consistindo umas, por exemplo, em penas de curta duração mas de prisão efetiva e outras em penas mais longas mas acompanhadas de suspensões de pena simples ou com sujeição ao regime de prova, etc., tal pressupõe que o juiz beneficia de uma margem de apreciação que lhe permite adaptar a solução que irá adotar à gravidade dos atos, às circunstâncias nas quais estes foram praticados e à personalidade do infrator, nomeadamente à sua idade.

51.

Além disso, quando se trate de tomar em consideração e de combinar decisões proferidas por órgãos jurisdicionais de vários Estados‑Membros, as especificidades que possam existir nas respetivas legislações devem também ser respeitadas, na medida em que não ponham em causa a unidade, a eficácia e o primado do direito da União.

52.

A Decisão‑Quadro 2008/675 consagra precisamente esse princípio.

53.

Dos quarto e quinto considerandos dessa decisão‑quadro decorre claramente que não devem ser tomadas em consideração pelo juiz as legislações nacionais que apenas reconhecem efeitos às condenações proferidas exclusivamente por órgãos jurisdicionais nacionais. O quinto considerando da referida decisão‑quadro impõe, de facto, que os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros reconheçam às condenações proferidas por outros órgãos jurisdicionais da União efeitos equivalentes aos que o direito nacional reconhece às condenações proferidas pelos órgãos jurisdicionais nacionais.

54.

Esta exigência está claramente relacionada com a realização do espaço de liberdade, segurança e justiça e, assim, com o reconhecimento mútuo, que impõe não apenas que se tome em consideração a decisão estrangeira, mas igualmente que esta seja respeitada.

55.

Assim, ao tomar em consideração esta decisão estrangeira anterior, o órgão jurisdicional que se pronuncie na sequência dessa decisão não pode modificá‑la num sentido ou noutro. Claramente, tal significa que, para aplicar a sua própria decisão, o juiz que se pronuncie em último lugar não pode aumentar nem diminuir a pena anterior, nem revogar a suspensão de pena de que esta possa eventualmente ser acompanhada. O artigo 3.o, n.o 3, da Decisão‑Quadro 2008/675 consagra este princípio.

56.

O juiz nacional ao qual o processo seja submetido em último lugar deve simplesmente reconhecer a essa decisão os efeitos que seriam reconhecidos a uma decisão nacional anterior.

57.

Dito isto, há que proceder à análise mais específica das questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

58.

A este respeito, afigura‑se que as respostas que devem ser dadas às primeira e segunda questões não colocam quaisquer dificuldades.

59.

De facto, quanto à primeira questão, o procedimento adotado é, na nossa opinião, incontestavelmente um procedimento de natureza penal, devido à matéria de que trata, designadamente a execução da pena. Um procedimento pode ser de natureza penal sem ter como objeto novas ações penais. Neste caso, trata‑se da execução da pena, procedimento que mobiliza a técnica e os princípios do direito penal e da sua finalidade específica e que participa, assim, da sua autonomia. De resto, se o legislador tivesse pretendido reservar a aplicação da Decisão‑Quadro 2008/675 apenas às ações penais, teria certamente utilizado o termo específico «ação penal» e não o termo mais genérico «procedimento».

60.

A este respeito, observamos que o conceito de «procedimento penal» é definido no artigo 2.o, alínea b), da Decisão‑Quadro 2009/315/JAI ( 5 ) como «a fase anterior ao julgamento, a fase do julgamento propriamente dito e a execução da condenação». Esta decisão‑quadro e a Decisão‑Quadro 2008/675 estão intimamente ligadas, na medida em que a primeira visa facilitar o intercâmbio, entre os Estados‑Membros, de informações relativas ao registo criminal de uma pessoa condenada num Estado‑Membro e a segunda permite, então, tomar em consideração a ou as condenações assim reveladas. De resto, salientamos que, em vários pontos, o texto da Decisão‑Quadro 2008/675 faz expressamente referência à execução da sanção, o que consideramos que afasta qualquer dúvida ( 6 ).

61.

Quanto à segunda questão, na medida em que a referida decisão‑quadro diz respeito à execução e à individualização da sanção, afigura‑se evidente que este último princípio é estabelecido tanto no interesse da sociedade como no da pessoa condenada, o que é suficiente para permitir que esta invoque as normas nacionais que preveem a tomada em consideração de uma condenação anterior proferida noutro Estado‑Membro. Se a pena tem a função de reintegração que referimos, é evidente que os dois interesses se conjugam, o do infrator em retomar o bom caminho e o da sociedade em contar com um infrator a menos.

62.

Além disso, reconhecer‑lhe esse direito não é mais do que aplicar o princípio do direito ao juiz, tendo em conta sobretudo que da decisão deste pode resultar uma melhor individualização da pena.

63.

De resto, como esclarece o órgão jurisdicional de reenvio, a lei nacional búlgara prevê expressamente o direito de a pessoa condenada iniciar um procedimento nos órgãos jurisdicionais para efeitos de fixação de uma pena unitária que corresponda à pena mais grave aplicada, quando todas as condenações tenham sido proferidas por órgãos jurisdicionais nacionais. Recusar esse direito a uma pessoa condenada a quem tenha sido aplicada uma pena por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro retiraria qualquer efeito útil à Decisão‑Quadro 2008/675, na medida em que a iniciativa caberia exclusivamente ao Ministério Público, que não tem necessariamente conhecimento das condenações anteriores estrangeiras, o que, aliás, era o caso no presente processo, e cuja inação privaria a pessoa condenada de qualquer possibilidade de ser condenada numa pena unitária. Por outro lado, daí decorreria, no âmbito do espaço de liberdade, segurança e justiça, uma discriminação entre cidadãos que se encontram numa situação semelhante.

64.

A este título, o caráter exclusivo do poder do procurador‑geral tem a sua origem, no direito nacional, no facto de a condenação estrangeira dever ser objeto de um reconhecimento prévio. Como salientámos supra, o princípio do reconhecimento mútuo impõe que a condenação anterior proferida noutro Estado‑Membro seja reconhecida sem qualquer outra formalidade e, nomeadamente, sem que seja desencadeado um procedimento de reconhecimento prévio, como sugere o órgão jurisdicional de reenvio.

65.

Por último, o princípio da equivalência, que inspira igualmente a filosofia da Decisão‑Quadro 2008/675, seria assim violado. Nestas condições, afigura‑se que a disposição nacional que institui essa diferença de tratamento deve ser, pura e simplesmente, afastada.

66.

A terceira questão coloca mais dificuldades. Quais são as soluções aplicáveis a uma situação como a que está em causa no processo principal? Recordamos que, por definição, não estamos perante um caso de reincidência nem de uma ação penal única.

67.

Em primeiro lugar, o simples cúmulo matemático não pode ser considerado uma solução aceitável pelas razões e pelos princípios gerais explicados supra. A própria Decisão‑Quadro 2008/675, no seu considerando 9, reconhece ao juiz chamado a pronunciar‑se em segundo lugar a liberdade de não aplicar, como efeito automático da tomada em consideração da decisão anterior, uma sanção que seria desproporcionada se, aplicando uma sanção mais branda, a finalidade da pena puder ser igualmente alcançada.

68.

Em segundo lugar, o juiz pode cumular as penas aplicadas com respeito pelo limite da pena máxima aplicável ao crime mais grave cometido.

69.

Em terceiro lugar, pode considerar que a primeira pena aplicada é suficiente e aplicar uma pena da mesma natureza e com a mesma duração, esclarecendo que esta se cumulará com a que foi aplicada antes. Se essa pena, embora tenha sido aplicada, ainda não tiver sido executada, será então conveniente que o juiz chamado a pronunciar‑se em segundo lugar encete um diálogo com o seu colega estrangeiro para obter a garantia da execução, pelo órgão jurisdicional estrangeiro, da pena anteriormente aplicada ou então para solicitar que a execução dessa pena lhe seja confiada, decisão que deverá ser adotada no quadro das normas instituídas, desta feita, pela Decisão‑Quadro 2008/909/JAI ( 7 ).

70.

Em ambos os casos, a integridade da decisão estrangeira será respeitada, assim como a soberania do órgão jurisdicional que a tenha proferido será preservada.

71.

A estas situações tradicionais e muito frequentes na União acrescem outras que resultam de disposições específicas de determinadas legislações nacionais.

72.

Depreendemos do que nos é apresentado pelo órgão jurisdicional de reenvio que tal é o caso no direito búlgaro.

73.

A este respeito, só podemos lamentar que nem o Governo búlgaro nem, de resto, qualquer outro governo tenham considerado útil estar presentes na audiência, o que levou o Tribunal de Justiça a cancelar a que estava, contudo, inicialmente prevista. Assim, não tivemos possibilidade de esclarecer pormenores importantes, nem beneficiámos das análises dos Estados‑Membros cujos órgãos jurisdicionais são diariamente confrontados com este género de problemas, pelo que prosseguimos a nossa análise com esta ressalva.

74.

De facto, afigura‑se que a legislação nacional apresenta, na situação descrita pelo órgão jurisdicional de reenvio, as seguintes características:

Impõe que o juiz aplique uma pena unitária, normalmente a pena mais grave das duas penas aplicadas, eventualmente modificada, inclusive no sentido da sua agravação, em conformidade com o artigo 24.o do Código Penal;

De acordo com o direito nacional búlgaro, a pena mais grave suscetível de constituir a pena unitária é a pena de 18 meses de prisão, doze dos quais de pena suspensa, aplicada pelo Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt).

Proíbe que o juiz tome em consideração uma pena suspensa, uma vez que a lei nacional proíbe a aplicação de tal medida em face dos antecedentes de T. Beshkov, sem contar com a decisão do Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt).

75.

Daqui retiramos as seguintes consequências: a tomada em consideração da condenação austríaca para efeitos de execução da pena búlgara teria como efeito, nas condições descritas anteriormente, a modificação do modo de execução da pena austríaca, que o juiz búlgaro deveria, por exemplo, transformar em pena efetiva no quadro da fixação de uma pena unitária ( 8 ).

76.

Ora, a Decisão‑Quadro 2008/675 proíbe precisamente a modificação da decisão estrangeira no quadro da sua simples tomada em consideração, tal como clarifica a norma constante do artigo 3.o, n.o 3, dessa decisão‑quadro, que esclarece que a tomada em consideração de uma condenação anterior estrangeira não pode ter como consequência o reexame desta, o que seria o caso se as normas nacionais búlgaras fossem aplicadas.

77.

Esta conclusão conduz à decisão de que o juiz nacional búlgaro não pode proceder à cumulação das penas de acordo com as normas do seu direito nacional. De facto, a referida decisão‑quadro é regida pelo princípio da equivalência ( 9 ). Em conformidade com este princípio, a tomada em consideração de condenações anteriores proferidas por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro apenas é obrigatória para o juiz nacional que tenha de se pronunciar no âmbito de um novo procedimento penal na medida em que essa tomada em consideração seja possível numa situação puramente interna.

78.

Por conseguinte, concluímos que o juiz búlgaro não deve tomar em consideração a decisão de condenação proferida pelo Landesgericht Klagenfurt (Tribunal Regional de Klagenfurt).

79.

Assim, de acordo com a nossa análise, neste caso, não é possível existir qualquer cumulação, uma vez que esta questão apenas se colocava entre duas decisões de condenação, uma das quais não pode ser tomada em consideração.

80.

Daqui resulta, concretamente, que T. Beshkov ficará sujeito, na verdade, aos doze meses de prisão efetiva a que foi condenado na Bulgária, que acrescerão aos seis meses já cumpridos na Áustria. Esta situação poderá parecer exageradamente severa ao juiz búlgaro.

81.

Por conseguinte, tendo em conta a função da pena que recordámos anteriormente, o juiz nacional poderá utilizar a possibilidade que lhe é concedida pela Decisão‑Quadro 2008/675 de garantir a aplicação do princípio da individualização da pena com recurso a um mecanismo relacionado com o princípio da proporcionalidade.

82.

De facto, decorre do artigo 3.o, n.o 5, dessa decisão‑quadro, tal como deve ser interpretado à luz dos seus oitavo e nono considerandos, que, se a impossibilidade de o juiz nacional aplicar as normas do seu ordenamento jurídico — o que se verifica no caso em apreço — o obrigar a adotar uma decisão excessiva — o que parece transparecer da questão submetida —, pode aplicar uma pena menos severa se formar a convicção de que as circunstâncias nas quais o crime foi cometido o permitem e a finalidade da pena está assegurada.

83.

As situações e as soluções concretas previstas supra são‑no apenas a título exemplificativo da nossa análise, uma vez que, em todo o caso, incumbe apenas ao juiz nacional determinar as modalidades de execução da pena búlgara, em conformidade com o seu direito nacional e tendo em conta as normas previstas na Decisão‑Quadro 2008/675.

V. Conclusão

84.

Tendo em conta as considerações precedentes, propomos que o Tribunal de Justiça responda às questões prejudiciais submetidas pelo Sofiyski rayonen sad (Tribunal Regional de Sófia) da seguinte forma:

1)

Para efeitos da sua tomada em consideração por ocasião de um novo procedimento penal num Estado‑Membro, em conformidade com as disposições da Decisão‑Quadro 2008/675/JAI do Conselho, de 24 de julho de 2008, relativa à tomada em consideração das decisões de condenação nos Estados‑Membros da União Europeia por ocasião de um novo procedimento penal, uma decisão judicial proferida noutro Estado‑Membro do espaço de liberdade, segurança e justiça não tem de ser previamente reconhecida segundo um procedimento especial, como o previsto no Nakazatelno‑protsesualen kodeks (código de processo penal búlgaro).

2)

O artigo 3.o, n.o 1, da Decisão‑Quadro 2008/675 deve ser interpretado no sentido de que:

um procedimento que tenha como objeto a execução de uma pena aplicada por um órgão jurisdicional de um Estado‑Membro para a qual deva ser tomada em consideração a condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro constitui um procedimento penal;

o pedido de tomada em consideração de uma condenação anterior proferida por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro pode ser apresentado diretamente pela pessoa condenada.

3)

O artigo 3.o, n.os 1 e 3, da Decisão‑Quadro 2008/675 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê que um órgão jurisdicional nacional reexamine, por ocasião de um novo procedimento penal, a pena aplicada por um órgão jurisdicional de outro Estado‑Membro, e já executada, para efeitos de aplicação de uma pena privativa de liberdade unitária que inclua a pena aplicada por esse outro Estado‑Membro.

4)

Para assegurar o efeito útil da Decisão‑Quadro 2008/675, o juiz nacional deve, se for o caso, e nas condições e com as ressalvas constantes desse diploma, aplicar as disposições do artigo 3.o, n.os 1, 3 e 5, dessa decisão‑quadro, lido à luz dos seus oitavo e nono considerandos.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) JO 2008, L 220, p. 32.

( 3 ) C‑187/01 e C‑385/01, EU:C:2003:87.

( 4 ) «É um tipo peculiar de justiça cujos limites são demarcados por um rio, verdadeiro neste lado dos Pirenéus e falso no outro», B., Pascal, Pensées, 1970.

( 5 ) Decisão‑Quadro do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, relativa à organização e ao conteúdo do intercâmbio de informações extraídas do registo criminal entre os Estados‑Membros (JO 2009, L 93, p. 23).

( 6 ) V., nomeadamente, artigo 3.o, n.o 2, dessa decisão‑quadro.

( 7 ) Decisão‑Quadro do Conselho, de 27 de novembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia (JO 2008, L 327, p. 27).

( 8 ) Recorde‑se aqui a ressalva referida no n.o 73 das presentes conclusões.

( 9 ) V., quinto a sétimo considerandos dessa decisão‑quadro.

Top