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Document 62015CJ0161

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 17 de março de 2016.
Abdelhafid Bensada Benallal contra État belge.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Conseil d'État.
Reenvio prejudicial — Diretiva 2004/38/CE — Decisão que revoga uma autorização de residência — Princípio do respeito pelos direitos de defesa — Direito a ser ouvido — Autonomia processual dos Estados‑Membros — Admissibilidade de fundamentos invocados em sede de recurso de cassação — Fundamento de ordem pública.
Processo C-161/15.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2016:175

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

17 de março de 2016 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Diretiva 2004/38/CE — Decisão que revoga uma autorização de residência — Princípio do respeito pelos direitos de defesa — Direito a ser ouvido — Autonomia processual dos Estados‑Membros — Admissibilidade de fundamentos invocados em sede de recurso de cassação — Fundamento de ordem pública»

No processo C‑161/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Conseil d’État (Bélgica), por decisão de 19 de março de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de abril de 2015, no processo

Abdelhafid Bensada Benallal

contra

État belge,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: R. Silva de Lapuerta (relatora), presidente de secção, A. Arabadjiev, C. G. Fernlund, S. Rodin e E. Regan, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: V. Tourrès, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 19 de novembro de 2015,

vistas as observações apresentadas:

em representação de A. Bensada Benallal, por R.‑M. Sukennik e R. Fonteyn, avocats,

em representação do Governo belga, por S. Vanrie, L. Van den Broeck e C. Pochet, na qualidade de agentes, assistidos por S. Cornelis, P. Lejeune e D. Matray, avocats,

em representação do Governo francês, por G. de Bergues, D. Colas e F.‑X. Bréchot, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por R. Troosters e C. Tufvesson, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 13 de janeiro de 2016,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do princípio geral do direito da União do respeito pelos direitos de defesa.

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe A. Bensada Benallal ao État belge (Estado belga, a seguir «État belge») a respeito de um recurso de anulação de uma decisão que revogou a autorização de residência no território belga concedida a A. Bensada Benallal e que lhe ordenou que deixasse este território.

Quadro jurídico

3

O artigo 27.o da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO L 158, p. 77, e retificação no JO 2005, L 195, p. 34), prevê:

«1.   Sob reserva do disposto no presente capítulo, os Estados‑Membros podem restringir a livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias, independentemente da nacionalidade, por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública. Tais razões não podem ser invocadas para fins económicos.

2.   As medidas tomadas por razões de ordem pública ou de segurança pública devem ser conformes com o princípio da proporcionalidade e devem basear‑se exclusivamente no comportamento da pessoa em questão. A existência de condenações penais anteriores não pode, por si só, servir de fundamento para tais medidas.

O comportamento da pessoa em questão deve constituir uma ameaça real, atual e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade. Não podem ser utilizadas justificações não relacionadas com o caso individual ou baseadas em motivos de prevenção geral.

3.   A fim de determinar se a pessoa em causa constitui um perigo para a ordem pública ou para a segurança pública, ao emitir o certificado de registo ou, no caso de não haver sistema de registo, no prazo de três meses a contar da data de entrada da pessoa em questão no seu território ou da data de comunicação da sua presença no território, conforme estabelecido no n.o 5 do artigo 5.o, ou ao emitir o cartão de residência, o Estado‑Membro de acolhimento pode, sempre que o considerar indispensável, solicitar ao Estado‑Membro de origem e, eventualmente, a outros Estados‑Membros informações sobre os antecedentes penais da pessoa em questão. Este tipo de consulta não pode ter caráter de rotina. O Estado‑Membro consultado deve dar a sua resposta no prazo de dois meses.

4.   O Estado‑Membro que tiver emitido o passaporte ou bilhete de identidade deve permitir a reentrada no seu território, sem quaisquer formalidades, do titular do documento que tiver sido afastado por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública, mesmo que esse documento tenha caducado ou a nacionalidade do titular seja contestada.»

4

O artigo 28.o desta diretiva dispõe:

«1.   Antes de tomar uma decisão de afastamento do território por razões de ordem pública ou de segurança pública, o Estado‑Membro de acolhimento deve tomar em consideração, nomeadamente, a duração da residência da pessoa em questão no seu território, a sua idade, o seu estado de saúde, a sua situação familiar e económica, a sua integração social e cultural no Estado‑Membro de acolhimento e a importância dos laços com o seu país de origem.

2.   O Estado‑Membro de acolhimento não pode decidir o afastamento de cidadãos da União ou de membros das suas famílias, independentemente da nacionalidade, que tenham direito de residência permanente no seu território, exceto por razões graves de ordem pública ou de segurança pública.

3.   Não pode ser decidido o afastamento de cidadãos da União, exceto se a decisão for justificada por razões imperativas de segurança pública, tal como definidas pelos Estados‑Membros, se aqueles cidadãos da União:

a)

Tiverem residido no Estado‑Membro de acolhimento durante os 10 anos precedentes; ou

b)

Forem menores, exceto se o afastamento for decidido no supremo interesse da criança, conforme previsto na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989.»

5

Nos termos do artigo 30.o da referida diretiva:

«1.   Qualquer decisão nos termos do n.o 1 do artigo 27.o deve ser notificada por escrito às pessoas em questão, de uma forma que lhe permita compreender o conteúdo e os efeitos que têm para si.

2.   As pessoas em questão são informadas, de forma clara e completa, das razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública em que se baseia a decisão, a menos que isso seja contrário aos interesses de segurança do Estado.

3.   A notificação deve especificar o tribunal ou autoridade administrativa perante o qual a pessoa em questão pode impugnar a decisão, o prazo de que dispõe para o efeito e, se for caso disso, o prazo concedido para abandonar o território do Estado‑Membro. Salvo motivo de urgência devidamente justificado, o prazo para abandonar o território não pode ser inferior a um mês a contar da data da notificação.»

6

O artigo 31.o da mesma diretiva tem a seguinte redação:

«1.   As pessoas em questão devem ter acesso às vias judicial e, quando for caso disso, administrativa no Estado‑Membro de acolhimento para impugnar qualquer decisão a seu respeito por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública.

2.   Se a impugnação, quer administrativa, quer judicial, da decisão de afastamento for acompanhada de um pedido de medida provisória para suspender a execução da decisão, o afastamento do território não pode ser concretizado enquanto não for tomada a decisão sobre a medida provisória, a não ser que:

a decisão de afastamento se baseie em decisão judicial anterior, ou

as pessoas em questão já anteriormente tenham impugnado judicialmente o afastamento, ou

a decisão de afastamento se baseie em razões imperativas de segurança pública ao abrigo do n.o 3 do artigo 28.o

3.   A impugnação deve permitir o exame da legalidade da decisão, bem como dos factos e circunstâncias que fundamentam a medida prevista. Deve certificar que a decisão não é desproporcionada, em especial no que respeita às condições estabelecidas no artigo 28.o

4.   Os Estados‑Membros podem recusar a presença da pessoa em questão no seu território durante a impugnação, mas não podem impedir que apresente pessoalmente a sua defesa, a não ser que a sua presença seja suscetível de provocar grave perturbação da ordem pública ou da segurança pública ou quando a impugnação disser respeito à recusa de entrada no território.»

7

De acordo com o artigo 35.o da Diretiva 2004/38:

«Os Estados‑Membros podem tomar as medidas necessárias para recusar, fazer cessar ou retirar qualquer direito conferido pela presente diretiva em caso de abuso de direito ou de fraude, como os casamentos de conveniência. Essas medidas devem ser proporcionadas e sujeitas às garantias processuais estabelecidas nos artigos 30.° e 31.°»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

8

A. Bensada Benallal, de nacionalidade espanhola, chegou à Bélgica em 24 de maio de 2012. Na sequência de um pedido apresentado em 31 de maio de 2012, foi autorizado, por decisão de 24 de setembro de 2012, a residir nesse Estado‑Membro na qualidade de trabalhador por conta de outrem.

9

Em 26 de setembro de 2013, o État belge revogou, por intermédio do Office des étrangers (Serviço belga de Estrangeiros, a seguir «Office des étrangers»), a autorização de residência concedida a A. Bensada Benallal e ordenou‑lhe que abandonasse o território belga. Nesta decisão, refere‑se, nomeadamente, o seguinte:

«Constata‑se que o interessado prestou informações erróneas que foram determinantes para o reconhecimento do seu direito de residência pela administração municipal de Berchem‑Sainte‑Agathe [(Bélgica)]. Com efeito, [concluiu‑se] pela não inscrição de nenhuma das pessoas declaradas pela empresa [...] no regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem: ‘vários elementos precisos e concordantes estabelecem de forma juridicamente suficiente a falta de atividade [da referida empresa] com ocupação de trabalhadores por conta de outrem […] e, em consequência, a inexistência de contratos de trabalho entre esta empresa e as pessoas que declarou [...]’.»

10

Em 2 de janeiro de 2014, A. Bensada Benallal interpôs recurso de anulação da referida decisão no Conseil du contentieux des étrangers (Conselho de Contencioso de Estrangeiros, a seguir «Conseil du contentieux des étrangers»).

11

A. Bensada Benallal invocou um fundamento único de recurso, relativo, nomeadamente, à violação de uma disposição legislativa respeitante à fundamentação formal dos atos administrativos, à violação do princípio da boa administração, do princípio da segurança jurídica, do princípio da proporcionalidade, dos princípios da prudência e da cautela, do princípio da gestão conscienciosa, do princípio de que a administração, quando se pronuncia, deve tomar em conta todos os elementos do processo, sendo igualmente relativo à violação do artigo 35.o da Diretiva 2004/38.

12

Na sua argumentação que visa explicitar o fundamento invocado, A. Bensada Benallal alegou, nomeadamente, que a decisão do Office des étrangers enfermava de um vício de falta de fundamentação. Alegou, a este respeito, que o relatório no qual este Office baseou a sua decisão não foi junto a esta última decisão nem foi transmitido a A. Bensada Benallal antes de esta decisão ter sido notificada, nem se encontra reproduzido nesta quanto ao essencial, pelo que este não logrou compreender os fundamentos da decisão contra si adotada.

13

Por decisão do Conseil du contentieux des étrangers de 30 de abril de 2014, foi negado provimento a este recurso. No seu acórdão, este último salientou, nomeadamente, o seguinte:

«Em qualquer hipótese, o Conseil [du contentieux des étrangers] constata que decorreu cerca de um ano entre a apresentação, [por A. Bensada Benallal,] do seu contrato de trabalho com a empresa […] e o relatório [...] que conduziu à tomada da decisão impugnada, período durante o qual [A. Bensada Benallal] não fez chegar nem comunicou [ao Office des étrangers] nenhuma informação sobre os problemas invocados no recurso e com que alegadamente se confrontou no âmbito do seu contrato de trabalho com a referida empresa.

Ora, se [A. Bensada Benallal] considerava que podia invocar elementos suscetíveis de obstar à revogação da sua autorização de residência, incumbia‑lhe dá‑los a conhecer [ao Office des étrangers], e não a [este último] convidar [A. Bensada Benallal] a apresentar as suas observações a esse respeito. Com efeito, o Conseil recorda que é ao recorrente que incumbe fazer a prova de que preenche as condições inerentes ao direito que reivindica e à manutenção desse direito. Uma vez que [A. Bensada Benallal] apresentou um pedido de emissão de certificado de registo na Bélgica enquanto trabalhador por conta de outrem, podia/devia esperar legitimamente que a inexecução do seu contrato de trabalho (ainda que não dependa [da sua pessoa]) teria consequências na sua residência e ter consciência de que era necessário fornecer espontaneamente essas informações [ao Office des étrangers], o que, como decorre do processo administrativo, não aconteceu.

Esta constatação não pode ser posta em causa pela circunstância de que [A. Bensada Benallal] ‘não recebeu nenhuma carta registada, como afirmado no inquérito, e, por isso, não teve a possibilidade de ser ouvido’, uma vez que esta crítica [de A. Bensada Benallal] respeita à sua audição pelo inspetor social […] (esta audição, de resto, não se baseia apenas em declarações mas também em constatações objetivas que não foram contestadas [por A. Bensada Benallal]) e não se refere diretamente à decisão impugnada».

14

A. Bensada Benallal interpôs recurso de cassação administrativa deste acórdão do Conseil du contentieux des étrangers no órgão jurisdicional de reenvio, o Conseil d’État. Este recurso compreende, nomeadamente, um fundamento, nos termos do qual A. Bensada Benallal alega que a autoridade administrativa, em concreto, o Office des étrangers, o devia ter ouvido antes de adotar a sua decisão de 26 de setembro de 2013. Entende igualmente que o Conseil du contentieux des étrangers devia ter considerado que o processo administrativo poderia ter conduzido a um resultado diferente se a defesa de A. Bensada Benallal tivesse podido ser mais bem exercida. Em apoio deste fundamento, A. Bensada Benallal alega não apenas a violação, por um lado, dos princípios gerais de direito belga do respeito pelos direitos de defesa e do contraditório, bem como, por outro, do direito a ser ouvido (audi alteram partem), mas também dos artigos 41.° e 51.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

15

O État belge invoca a inadmissibilidade do referido fundamento, uma vez que este é invocado pela primeira vez perante o órgão jurisdicional de reenvio, na fase do recurso de cassação, e que não é relativo à violação de uma disposição de ordem pública. Além disso, o recorrente não precisa de que forma terá sido violado o artigo 51.o da Carta nem apresenta nenhum elemento que permita apreciar se o processo administrativo poderia ter conduzido a outro resultado caso tivesse sido ouvido antes de a decisão administrativa em causa ser adotada.

16

Quanto ao mérito, o État belge sustenta que o direito a ser ouvido previsto no artigo 41.o da Carta não impõe que seja efetuado um debate com o interessado sobre as circunstâncias que este invoca. Com efeito, o État belge considera que é suficiente que o interessado tenha tido oportunidade de dar a conhecer o seu ponto de vista, como aconteceu no caso em apreço, conforme decorre do acórdão proferido pelo Conseil du contentieux des étrangers.

17

O auditor de justiça responsável pelo processo no órgão jurisdicional de reenvio constatou, no seu parecer de 16 de outubro de 2014, que o fundamento único invocado perante o Conseil du contentieux des étrangers não dizia respeito à violação dos artigos 41.° e 51.° da Carta, à violação dos princípios gerais do direito do respeito pelos direitos de defesa e do contraditório, nem ao direito a ser ouvido (audi alteram partem). Atendendo aos requisitos previstos no direito processual belga a este respeito, o auditor de justiça concluiu no seu parecer que A. Bensada Benallal não podia ter invocado, pela primeira vez perante o órgão jurisdicional de reenvio que decide em sede de recurso de cassação, a violação destas disposições e princípios gerais de direito, uma vez que não são de ordem pública.

18

No articulado que apresentou na sequência deste parecer, A. Bensada Benallal alega que o fundamento relativo à violação de direitos fundamentais reveste uma natureza de ordem pública, na medida em que resulta do artigo 41.o da Carta e da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o direito a ser ouvido constitui a transposição do princípio geral do direito da União do respeito pelos direitos de defesa, cuja violação pode ser conhecida oficiosamente.

19

O órgão jurisdicional de reenvio constata que o fundamento invocado por A. Bensada Benallal, na parte em que é relativo à violação do direito a ser ouvido previsto no artigo 41.o da Carta, não foi invocado por este último perante o Conseil du contentieux des étrangers. Ora, em conformidade com o direito belga, uma vez que é apresentado pela primeira vez na fase do recurso de cassação, esse fundamento só é admissível se for de ordem pública.

20

Nestas condições, o Conseil d’État decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O princípio geral do direito da União Europeia que consagra o respeito pelos direitos de defesa, nomeadamente o direito de uma pessoa ser ouvida por uma autoridade nacional antes da adoção, por essa autoridade, de qualquer decisão suscetível de afetar desfavoravelmente os interesses da pessoa em causa, como uma decisão que revoga a sua autorização de residência, reveste, na ordem jurídica da União Europeia, uma importância equivalente à que têm as normas de ordem pública de direito belga no direito interno, e o princípio da equivalência exige que o fundamento relativo à violação do princípio geral do direito da União Europeia de respeito pelos direitos de defesa possa ser invocado pela primeira vez no Conseil d’État, que decide em sede de recurso de cassação, como é permitido em direito interno para os fundamentos de ordem pública?»

Quanto à questão prejudicial

21

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o direito da União deve ser interpretado no sentido de que, nos casos em que, em conformidade com o direito nacional aplicável, um fundamento relativo à violação do direito interno que é invocado pela primeira vez perante o juiz nacional que se pronuncia em sede de recurso de cassação só é admissível se for de ordem pública, então um fundamento relativo à violação do direito a ser ouvido, conforme garantido pelo direito da União, deverá ser julgado admissível quando seja invocado pela primeira vez perante este mesmo juiz.

22

Para responder a esta questão, há que constatar, em primeiro lugar, que, conforme resulta da decisão de reenvio, a situação factual que está na origem do litígio no processo principal está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União, nomeadamente pelo da Diretiva 2004/38. Com efeito, esta última diz respeito, designadamente, às condições que regem o exercício do direito à livre circulação e de residência no território dos Estados‑Membros pelos cidadãos da União e às restrições aos referidos direitos por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública. Esta diretiva aplica‑se a todos os cidadãos da União que se desloquem ou residam num Estado‑Membro que não aquele de que são nacionais.

23

Embora a referida diretiva preveja um certo número de regras que os Estados‑Membros deverão respeitar no caso de pretenderem proceder a uma eventual restrição do direito de residência de um cidadão da União, em concreto, as enunciadas nos seus artigos 30.° e 31.°, a mesma não compreende, em contrapartida, disposições relativas às modalidades que regem os procedimentos administrativos e judiciais respeitantes a uma decisão que revoga uma autorização de residência de um cidadão da União.

24

A este respeito, há que recordar que, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, na falta de regras da União na matéria, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro estabelecer essas regras, por força do princípio da autonomia processual, desde que, no entanto, não sejam menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes sujeitas ao direito interno (princípio da equivalência) e não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade) (acórdão de 21 de janeiro de 2016, Eturas e o., C‑74/14, EU:C:2016:42, n.o 32 e jurisprudência referida).

25

Daqui decorre que devem estar reunidas duas condições cumulativas, a saber, o respeito pelos princípios da equivalência e da efetividade, para que um Estado‑Membro possa invocar o princípio da autonomia processual em situações regidas pelo direito da União.

26

No caso em apreço, e conforme o órgão jurisdicional de reenvio observa, o fundamento do recurso de cassação invocado por A. Bensada Benallal, relativo à violação do direito a ser ouvido pela autoridade nacional que adotou a decisão que lhe causa prejuízo, conforme garantido pelo direito da União, viola, no que respeita à sua admissibilidade, as regras de direito processual nacional relativas aos fundamentos suscetíveis de serem invocados pela primeira vez em sede de recurso de cassação.

27

Conforme resulta do n.o 24 do presente acórdão, o direito da União, em princípio, não se opõe a que os Estados‑Membros, em conformidade com o princípio da autonomia processual, limitem ou submetam a condições os fundamentos suscetíveis de serem invocados em sede de recursos de cassação, sem prejuízo do respeito pelos princípios da efetividade e da equivalência.

28

Como sublinhou o advogado‑geral nos n.os 41 e 42 das suas conclusões, não se coloca, no processo principal, a questão do respeito pelo princípio da efetividade, mas exclusivamente a questão do respeito pelo princípio da equivalência.

29

Importa recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o princípio da equivalência pressupõe que a regra nacional em causa seja aplicável indiferentemente aos recursos fundados nos direitos conferidos às pessoas pelo direito da União e aos fundados na violação do direito interno que tenham um objeto e uma causa semelhantes (acórdão de 27 de junho de 2013, Agrokonsulting‑04, C‑93/12, EU:C:2013:432, n.o 39). O respeito por este princípio implica assim um tratamento igual dos recursos fundados numa violação do direito nacional e dos recursos, semelhantes, fundados numa violação do direito da União (acórdão de 6 de outubro de 2015, Târșia,C‑69/14, EU:C:2015:662, n.o 34).

30

Aplicada a uma situação como a que está em causa no processo principal, a condição do respeito por este princípio da equivalência exige, assim, que, quando as disposições do direito interno relativas às modalidades processuais em matéria de recurso de cassação imponham a um órgão jurisdicional que se pronuncia nesta sede a obrigação de julgar admissível ou de invocar oficiosamente um fundamento relativo à violação do direito nacional, esta mesma obrigação deve aplicar‑se, do mesmo modo, a um fundamento de igual natureza, relativo à violação do direito da União.

31

Por conseguinte, na medida em que um órgão jurisdicional nacional que se pronuncia em sede de recurso de cassação considere que o fundamento relativo ao desrespeito do direito a ser ouvido constitui um fundamento de ordem pública interna que pode ser invocado pela primeira vez perante si no âmbito de um contencioso regido pelo direito interno, o princípio da equivalência exige que, no âmbito de um contencioso semelhante, um fundamento semelhante relativo à violação do direito da União também possa ser invocado pela primeira vez perante esse mesmo órgão jurisdicional, na fase do recurso de cassação.

32

No caso em apreço, não resulta claramente da decisão de reenvio se o direito a ser ouvido, conforme garantido pelo direito belga, constitui, em si, um princípio geral do direito belga decorrente, a este título, da ordem pública interna desse Estado‑Membro. No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio esclarece, a este respeito, que as regras de ordem pública são as que revestem uma importância fundamental na ordem jurídica belga, como as regras relativas à competência das autoridades administrativas, à competência dos tribunais, ao respeito pelos direitos de defesa, ou ainda as regras respeitantes a outros direitos fundamentais.

33

A este respeito, para permitir ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se o fundamento relativo à violação do direito a ser ouvido tem, no direito da União, a mesma natureza que um fundamento relativo à violação desse direito na ordem jurídica belga, há que recordar que, como o Tribunal de Justiça declarou no seu acórdão de 9 de junho de 2005, Espanha/Comissão (C‑287/02, EU:C:2005:368, n.o 37 e jurisprudência referida), o respeito pelos direitos de defesa em qualquer processo intentado contra uma pessoa e suscetível de conduzir a um ato que lhe cause prejuízo constitui um princípio fundamental do direito da União que deve ser assegurado inclusivamente quando não exista regulamentação relativa à tramitação processual. Esse princípio exige que os destinatários de decisões, que afetem de modo sensível os seus interesses, sejam colocados em condições de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista.

34

Cabe ao órgão jurisdicional nacional competente examinar se a condição respeitante ao princípio da equivalência se verifica no processo que lhe foi submetido. No que diz respeito, mais concretamente, ao processo principal, incumbe‑lhe determinar se o direito a ser ouvido, conforme garantido pelo direito interno, preenche as condições exigidas pelo direito nacional para ser qualificado de fundamento de ordem pública.

35

Por conseguinte, há que responder à questão submetida que o direito da União deve ser interpretado no sentido de que, nos casos em que, em conformidade com o direito nacional aplicável, um fundamento relativo à violação do direito interno invocado pela primeira vez perante o juiz nacional que se pronuncia em sede de recurso de cassação só é admissível se for de ordem pública, um fundamento relativo à violação do direito a ser ouvido, conforme garantido pelo direito da União, que seja invocado pela primeira vez perante este mesmo juiz, deve ser julgado admissível se esse direito, conforme garantido pelo direito interno, preencher as condições exigidas pelo referido direito para ser qualificado de fundamento de ordem pública, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Quanto às despesas

36

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

O direito da União deve ser interpretado no sentido de que, nos casos em que, em conformidade com o direito nacional aplicável, um fundamento relativo à violação do direito interno invocado pela primeira vez perante o juiz nacional que se pronuncia em sede de recurso de cassação só é admissível se for de ordem pública, um fundamento relativo à violação do direito a ser ouvido, conforme garantido pelo direito da União, que seja invocado pela primeira vez perante este mesmo juiz, deve ser julgado admissível se esse direito, conforme garantido pelo direito interno, preencher as condições exigidas pelo referido direito para ser qualificado de fundamento de ordem pública, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: francês.

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