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Document 62015CC0046

Conclusões do advogado-geral M. Wathelet apresentadas em 3 de março de 2016.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2016:137

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

MELCHIOR WATHELET

apresentadas em 3 de março de 2016 ( *1 )

Processo C‑46/15

Ambisig — Ambiente e Sistemas de Informação Geográfica, SA,

contra

AICP — Associação de Industriais do Concelho de Pombal

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Central Administrativo Sul (Portugal)]

«Reenvio prejudicial — Contratos públicos — Diretiva 2004/18/CE — Artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii) — Efeito direto — Procedimentos de adjudicação — Operadores económicos — Capacidade técnica e/ou profissional — Prova»

I – Introdução

1.

O pedido de decisão prejudicial insere‑se no âmbito de uma ação que opõe a Ambisig — Ambiente e Sistemas de Informação Geográfica, SA (a seguir «Ambisig»), à AICP — Associação de Industriais do Concelho de Pombal (a seguir «AICP»).

2.

Este pedido tem por objeto a interpretação do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços ( *2 ).

3.

Esta disposição diz respeito à prova da capacidade técnica e/ou profissional dos operadores interessados no contrato público em causa. Com as suas questões prejudiciais, o Tribunal Central Administrativo Sul (Portugal) interroga o Tribunal de Justiça, por um lado, quanto ao seu eventual efeito direto e, por outro, quanto à gestão dos meios de prova que a mesma prevê.

II – Quadro jurídico

A – Direito da União

4.

O título II da Diretiva 2004/18 fixa as regras aplicáveis aos contratos públicos. Os critérios de seleção qualitativa são desenvolvidos na secção 2 do capítulo VII que compreende, nomeadamente, os artigos 45.° e 48.°

5.

O artigo 45.o, n.o 2, alínea g), da Diretiva 2004/18 dispõe que pode ser excluído do procedimento de contratação em causa qualquer operador económico que «tenha prestado, com culpa grave, falsas declarações ao fornecer as informações que possam ser exigidas nos termos da presente secção ou não tenha prestado essas informações».

6.

A redação do artigo 48.o da Diretiva 2004/18, sob a epígrafe «Capacidade técnica e/ou profissional», é a seguinte:

«1.   A capacidade técnica e/ou profissional dos operadores económicos será avaliada e verificada de acordo com os n.os 2 e 3.

2.   A capacidade técnica dos operadores económicos pode ser comprovada por um ou mais dos meios a seguir indicados, de acordo com a natureza, a quantidade ou a importância e a finalidade das obras, dos produtos ou dos serviços:

[...]

ii)

Lista dos principais fornecimentos ou serviços efetuados durante os três últimos anos, com indicação dos montantes, datas e destinatários, públicos ou privados. Os fornecimentos e as prestações de serviços serão provados:

quando o destinatário tiver sido uma entidade adjudicante, por meio de certificados emitidos ou visados pela entidade competente,

quando o destinatário tiver sido um adquirente privado, por declaração reconhecida do adquirente ou, na sua falta, por simples declaração do operador económico.

[...]»

B – Direito português

1. Código dos Contratos Públicos

7.

A Diretiva 2004/18 foi transposta para o ordenamento jurídico português pelo Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto‑Lei n.o 18/2008, de 29 de janeiro de 2008, alterado e republicado em anexo ao Decreto‑Lei n.o 278/2009, de 2 de outubro de 2009 (Diário da República, 1.a série, n.o 192, de 2 de outubro de 2009, a seguir «Código dos Contratos Públicos»).

8.

O artigo 165.o do Código dos Contratos Públicos tem a seguinte redação:

«1.   Os requisitos mínimos de capacidade técnica a que se refere a alínea h) do n.o 1 do artigo anterior devem ser adequados à natureza das prestações objeto do contrato a celebrar, descrevendo situações, qualidades, características ou outros elementos de facto relativos, designadamente:

a)

À experiência curricular dos candidatos;

b)

Aos recursos humanos, tecnológicos, de equipamento ou outros utilizados, a qualquer título, pelos candidatos;

c)

Ao modelo e à capacidade organizacionais dos candidatos, designadamente no que respeita à direção e integração de valências especializadas, aos sistemas de informação de suporte e aos sistemas de controlo de qualidade;

d)

À capacidade dos candidatos adotarem medidas de gestão ambiental no âmbito da execução do contrato a celebrar;

e)

À informação constante da base de dados do Instituto da Construção e do Imobiliário, I. P., relativa a empreiteiros, quando se tratar da formação de um contrato de empreitadas ou de concessão de obras públicas.

[...]

5.   Os requisitos mínimos de capacidade técnica referidos no n.o 1 e o fator ‘f’ referido na alínea i) do n.o 1 do artigo anterior não devem ser fixados de forma discriminatória.»

2. Programa do Procedimento

9.

O artigo 12.o do Programa do Procedimento prevê:

«Para a qualificação dos candidatos é necessário apresentar os seguintes documentos de candidatura:

[...]

c)

Declaração do cliente, em papel timbrado e carimbado, a comprovar a implementação do sistema de gestão ambiental e/ou da qualidade [exigido pelo artigo 8.o do Programa do Procedimento] pelo concorrente, de acordo com o modelo de declaração constante do Anexo VIII ao presente programa. A declaração deverá conter o reconhecimento da assinatura e da qualidade em que assina, feita por notário, advogado ou outra entidade com competência;

[...]

f)

Declaração do cliente em papel timbrado e carimbado a comprovar a implementação de sistemas de gestão, desenvolvimento e implementação de plataforma tecnológica em rede, software de sistemas de gestão e as ações de coordenação [exigida pelo artigo 8.o do Programa do Procedimento] pelo concorrente, indicando o respetivo valor, de acordo com o modelo de declaração constante do Anexo IX ao presente programa. A declaração deverá conter o reconhecimento da assinatura e da qualidade em que assina, feita por notário, advogado ou outra entidade com competência; [...]».

III – Factos do litígio no processo principal

10.

Segundo a decisão de reenvio, a AICP decidiu proceder, em 23 de abril de 2013, à abertura de concurso limitado por prévia qualificação para adjudicação de um contrato de prestação de serviços para implementação de Sistemas de Gestão do Ambiente, Qualidade e Plataforma Tecnológica.

11.

Nos termos do artigo 8.o, n.o 1, alíneas a) a c), do Programa do Procedimento, os candidatos deviam satisfazer diversos requisitos cumulativos, relativos à sua capacidade técnica.

12.

O artigo 12.o, n.o 1, alíneas c) e f), do mesmo Programa do Procedimento previa que, para serem selecionados, os candidatos deveriam atestar estes requisitos através de declarações de clientes em papel timbrado e carimbado. Estas declarações deveriam conter também uma assinatura certificada por notário, advogado ou outra entidade competente, indicando a qualidade do signatário.

13.

No âmbito deste concurso público, a AICP aprovou, em 30 de agosto de 2013, o relatório final da qualificação elaborado pelo júri. Este relatório qualificava a sociedade Índice — ICT & Management, Lda, e excluía as outras duas candidatas, uma das quais a Ambisig.

14.

Por motivos que não são mencionados na decisão de reenvio, esta decisão foi anulada, em 14 de novembro de 2013, por sentença do Tribunal Central Administrativo Sul. Além, disso, esse tribunal condenou a AICP a aprovar, no prazo de 20 dias, uma nova decisão de escolha do procedimento, um novo Programa do Procedimento, expurgado das ilegalidades constatadas, e a praticar todos os atos e diligências subsequentes.

15.

Em conformidade com esta sentença, a AICP decidiu, em 10 de dezembro de 2013, proceder à abertura de novo procedimento de concurso limitado por prévia qualificação tendente à celebração de contrato de prestação de serviços de Implementação de Sistemas de Gestão do Ambiente, Qualidade e Plataforma Tecnológica em treze empresas.

16.

No final desse novo processo de seleção, a direção da AICP decidiu aprovar, em 27 de março de 2014, o relatório final da qualificação elaborado pelo júri, que qualificou a candidatura da Índice — ICT & Management, Lda, e excluiu a candidatura da Ambisig.

17.

A Ambisig interpôs recurso desta decisão no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que decidiu pela sua anulação em 11 de junho de 2014. No entanto, a Ambisig reclamou para a conferência do referido tribunal, por considerar terem sido erroneamente julgados improcedentes os fundamentos do recurso relativos, nomeadamente, à incompatibilidade do artigo 12.o, n.o 1, alíneas c) e f), do programa do procedimento com as exigências de prova referidas no artigo 48.o da Diretiva 2004/18, bem como com os princípios da concorrência, da imparcialidade e da proporcionalidade que resultam do Código dos Contratos Públicos.

18.

Por acórdão de 6 de agosto de 2014, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria indeferiu a reclamação da Ambisig e, por consequência, confirmou a sua decisão de 11 de junho de 2014. A Ambisig decidiu impugnar esse acórdão no Tribunal Central Administrativo Sul.

19.

É no âmbito deste recurso que é formulado o presente pedido de decisão prejudicial. Com efeito, o Tribunal Central Administrativo Sul exprime certas dúvidas quanto ao alcance das exigências probatórias previstas no artigo 48.o da Diretiva 2004/18 e à conformidade, com este artigo, das exigências do procedimento do concurso.

IV – Pedido de decisão prejudicial e processo no Tribunal de Justiça

20.

Por decisão de 29 de janeiro de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 5 de fevereiro de 2015, o Tribunal Central Administrativo Sul decidiu, assim, suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Não regulando a legislação portuguesa a matéria contida no artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo [travessão], da Diretiva 2004/18[…], é tal normativo diretamente aplicável na ordem jurídica portuguesa no sentido de que confere aos particulares um direito que estes podem fazer valer contra as entidades adjudicantes?

2)

O disposto no [artigo] 48.°, n.o 2, alínea a), ii), segundo [travessão], da Diretiva 2004/18[…] deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de normas, estabelecidas por entidade adjudicante, que não permitem ao operador económico provar as prestações de serviço através de declaração assinada pelo próprio, exceto se este comprovar impossibilidade ou séria dificuldade na obtenção de declaração do adquirente privado?

3)

O disposto no artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo [travessão], da Diretiva 2004/18[…] deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de normas, estabelecidas por entidade adjudicante, que, sob pena de exclusão, exigem que a declaração do adquirente privado contenha o reconhecimento da assinatura por notário, advogado ou outra entidade com competência?»

21.

Foram apresentadas observações escritas pela Ambisig, pelo Governo português e pela Comissão Europeia. Além disso, o Governo português e a Comissão Europeia usaram da palavra na audiência que se realizou em 28 de janeiro de 2016.

V – Análise

A – Quanto à primeira questão prejudicial

22.

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que é suscetível, na falta de transposição para o direito interno, de conferir direitos aos particulares que possam ser invocados contra as entidades adjudicantes no âmbito de processos instaurados nos órgãos jurisdicionais nacionais. Importa, assim, determinar o eventual efeito direto desta disposição.

1. Determinação do efeito direto do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18

23.

As condições e os limites do reconhecimento do efeito direto das disposições de uma diretiva são conhecidos. Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, quando se verifique que as disposições de uma diretiva são, do ponto de vista do seu conteúdo, incondicionais e suficientemente precisas, os particulares podem invocá‑las nos órgãos jurisdicionais nacionais contra o Estado, seja quando este não tenha transposto dentro do prazo a diretiva para o direito nacional, seja quando dela tenha feito uma transposição incorreta ( *3 ).

24.

Uma disposição de direito da União é considerada incondicional quando prevê uma obrigação que não está sujeita a nenhuma condição nem depende, quanto à sua execução ou aos seus efeitos, da intervenção de qualquer ato das instituições da União Europeia ou dos Estados‑Membros ( *4 ).

25.

Afigura‑se‑me que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 cumpre as condições de incondicionalidade e precisão supracitadas. Com efeito, esta disposição não requer nenhuma medida complementar para a sua aplicação, na medida em que, por um lado, prevê que a capacidade técnica dos operadores económicos pode ser justificada pela apresentação de uma lista dos principais fornecimentos ou serviços efetuados durante os últimos três anos, de que constem os montantes, datas e os destinatários, público ou privados, em causa, e, por outro, especifica que, quando o destinatário tiver sido um adquirente privado, a prestação do serviço será provada por uma declaração reconhecida do comprador ou, na sua falta, por simples declaração do operador económico.

26.

Além disso, o Tribunal de Justiça já teve ocasião de decidir que o artigo 26.o da Diretiva 71/305/CEE do Conselho, de 26 de julho de 1971, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas ( *5 ), podia ser invocado por um particular nos órgãos jurisdicionais nacionais, «[uma vez que] [n]ão [era] necessária nenhuma medida particular de execução para o respeito [das] exigências [que aí estão fixadas]» ( *6 ). Ora, mesmo se este artigo da Diretiva 71/305 diz unicamente respeito aos contratos de empreitada e não aos de prestação de serviços, as regras da prova da capacidade técnica, previstas naquela disposição, podem ser consideradas análogas, do ponto de vista da sua incondicionalidade e precisão, às do artigo 48.o da Diretiva 2004/18.

27.

Por último, saliento que o Tribunal de Justiça também considerou que, regra geral, as disposições do título VI da Diretiva 92/50CEE do Conselho, de 18 de junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços ( *7 ), podem ser invocadas por um particular num órgão jurisdicional nacional «quando resulte da análise individual da sua redação que são incondicionais e suficientemente claras e precisas» ( *8 ). Ora, entre estas disposições figurava o artigo 32.o, o qual já previa, no seu n.o 2, que a prova da capacidade técnica dos prestadores de serviços podia ser fornecida pela apresentação de «uma lista dos principais serviços prestados nos últimos três anos, com indicação do montante, datas e destinatários públicos ou privados dos serviços executados [e que], quando se trat[asse] de destinatários privados, a prova da prestação dev[ia] revestir a forma de uma declaração do comprador ou, na sua falta, de uma simples declaração do prestador de serviços».

28.

Ora, não se pode deixar de observar que o artigo 48.o, n.o 2, da Diretiva 2004/18 reproduz esta disposição em termos quase idênticos. Afigura‑se‑me, assim, que esta disposição é incondicional e suficientemente precisa para ser invocada nos órgãos jurisdicionais nacionais.

2. Necessidade de qualificar a entidade adjudicante de «Estado»

29.

No entanto, para que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 possa ser invocado pela Ambisig perante o juiz nacional, incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio assegurar que a entidade adjudicante em causa no processo principal não é um «particular».

30.

Com efeito, segundo jurisprudência constante, uma diretiva não pode, por si mesma, criar obrigações para um particular. Por conseguinte, não pode ser invocada, enquanto tal, contra aquele num órgão jurisdicional nacional ( *9 ).

31.

Todavia, embora as disposições de uma diretiva revestida de efeito direto só possam, consequentemente, ser invocadas contra o Estado, é irrelevante a qualidade em que este agiu ( *10 ).

32.

Assim, segundo jurisprudência constante, «entre as entidades contra as quais podem ser invocadas as disposições de uma diretiva suscetíveis de produzir efeitos diretos conta‑se um organismo que, seja qual for a sua natureza jurídica, tenha sido encarregado, por um ato da autoridade pública, de prestar, sob o controlo desta, um serviço de interesse público e que disponha, para esse efeito, de poderes que ultrapassam os que resultam das regras aplicáveis às relações entre particulares» ( *11 ).

33.

Parece resultar do nome da entidade adjudicante em causa no processo principal que se trata de uma associação de empresas puramente privada que não presta um serviço de interesse público, nem dispõe, em todo o caso, de poderes especiais para realizar as suas missões.

34.

Em resposta às questões colocadas pelo Tribunal de Justiça na audiência de 28 de janeiro de 2016, o representante do Governo português confirmou que a AICP é uma associação de direito privado, que não prosseguia, nem foi incumbida de prosseguir, atribuições de interesse público. Segundo as suas explicações, só o financiamento maioritariamente público das atividades da AICP desencadeia a aplicação da legislação relativa aos contratos públicos ( *12 ).

35.

Isto dito, é ao Tribunal Central Administrativo Sul que incumbe verificar se, no momento dos factos em causa no processo principal, a AICP era um organismo encarregado de desempenhar, sob o controlo de uma autoridade pública, um serviço de interesse público, e se essa associação de empresas dispunha, para esse efeito, de poderes especiais ( *13 ).

36.

Se não for esse o caso, não lhe é oponível o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18. Nesta situação, cabe, ainda assim, ao órgão jurisdicional de reenvio fazer a aplicação do princípio da interpretação conforme e interpretar qualquer norma relevante do direito nacional, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da Diretiva 2004/18 para atingir o resultado por ela prosseguido e cumprir, assim, o disposto no artigo 288.o, terceiro parágrafo, TFUE ( *14 ).

B – Quanto à segunda decisão prejudicial

37.

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 se opõe à aplicação de regras, estabelecidas por uma entidade adjudicante, que não permitem ao operador económico provar a sua capacidade técnica através de declaração assinada pelo próprio, exceto se comprovar a impossibilidade ou séria dificuldade na obtenção de declaração do adquirente privado.

38.

O órgão jurisdicional de reenvio questiona, assim, o Tribunal de Justiça sobre a eventual hierarquia dos meios de prova autorizados pelo artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18.

39.

O 48.°, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 prevê que a capacidade técnica dos operadores económicos pode ser comprovada pela apresentação de uma lista dos principais fornecimentos ou serviços efetuados durante os três últimos anos. Se o destinatário tiver sido um adquirente privado, estão previstos dois meios de prova no segundo travessão desta disposição para demonstrar a realidade destas operações (fornecimentos ou serviços). A prova pode ser feita por «declaração reconhecida do adquirente ou, na sua falta, por simples declaração do operador económico» ( *15 ).

40.

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, na interpretação de uma disposição de direito da União há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte ( *16 ).

41.

Isto dito, como salientou a advogada‑geral V. Trstenjak no n.o 37 das suas conclusões no processo Agrana Zucker (C‑33/08, EU:C:2009:99), «a letra de uma disposição constitui sempre o ponto de partida e, ao mesmo tempo, o limite de qualquer interpretação» ( *17 ). Além disso, partilho a precisão trazida pelo advogado‑geral P. Léger, segundo a qual não são necessários outros meios de interpretação para além da letra de uma disposição, quando o texto em causa seja absolutamente claro e unívoco. «Neste caso, com efeito, as disposições do direito [da União] são suficientes por si mesmas» ( *18 ).

42.

Ora, no caso vertente, não se pode deixar de observar que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 apresenta a clareza e o caráter unívoco requeridos, e isto em todas as versões linguísticas.

43.

Com efeito, a expressão «na sua falta» utilizada nesta disposição significa «na sua ausência» ( *19 ), «em vez de» ou ainda «falta de qualquer coisa» ( *20 ). Consequentemente, não pode senão ser interpretada no sentido de uma hierarquização das ideias. Concretamente, o meio de prova que segue a expressão «na sua falta» — ou seja, a declaração do operador económico — é, assim, necessariamente subsidiário em relação ao que o precede, isto é, a declaração reconhecida do adquirente.

44.

Determinadas versões linguísticas são ainda mais expressas na medida em que não se contentam com uma expressão análoga a «na sua falta», mas só autorizam a simples declaração do operador através de uma referência expressa à inexistência de declaração reconhecida do adquirente mencionado anteriormente ( *21 ).

45.

Além disso, se o operador económico pudesse escolher livremente o meio de prova entre os autorizados pelo artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18, a expressão «na sua falta» não teria sentido. Com efeito, seria sempre mais fácil para o operador económico fazer ele próprio uma declaração do que solicitar uma declaração a um terceiro.

46.

A declaração de um operador económico constitui, assim, um meio de prova subsidiário, se não tiver sido possível obter a declaração de um adquirente. Nesse caso, cabe ao operador económico demonstrar que não lhe foi possível obter a referida declaração.

47.

Com efeito, uma vez que o artigo 45.o, n.o 2, alínea g), da Diretiva 2004/18 autoriza a exclusão do procedimento de contratação de qualquer operador económico que «tenha prestado, com culpa grave, falsas declarações ao fornecer as informações que possam ser exigidas nos termos da presente secção ou não tenha prestado essas informações», a entidade adjudicante deve estar em condições de verificar a veracidade destas informações ou a razão da sua inexistência.

48.

Esta possibilidade de verificação por parte da entidade adjudicante tanto mais se impõe quanto é certo que o Tribunal de Justiça já decidiu que, por força do princípio da igualdade de tratamento e da obrigação de transparência que daí decorre, e aos quais as entidades adjudicantes estão sujeitas por força do artigo 2.o da Diretiva 2004/18, as mesmas devem «observar estritamente os critérios que ela[s própria[s] fix[aram], pelo que estaria[m] obrigada[s] a excluir do concurso um operador económico que não tenha comunicado um documento ou uma informação, cuja apresentação fosse imposta pelos documentos desse concurso, sob pena de exclusão» ( *22 ).

49.

Todavia, como sublinha a Comissão nas suas observações escritas, esta exigência suplementar deve ser conforme com o princípio da proporcionalidade.

50.

Isto significa, por um lado, que o recurso a uma declaração do operador económico não pode estar limitada à impossibilidade absoluta na obtenção da declaração do adquirente (como, por exemplo, na hipótese de insolvência). Pode ser suficiente um obstáculo à obtenção desta declaração, como a recusa não fundamentada do adquirente ou um pedido, por parte deste, de contrapartida financeira. Por outro lado, a prova dessa impossibilidade deve ser apreciada in concreto. Assim, embora possa ser exigida a apresentação de um documento oficial no caso de insolvência, uma simples troca de correspondência ou a falta de resposta (a provar através de uma ou várias insistências, por exemplo) pode ser suficiente para demonstrar a má vontade do adquirente.

51.

Em conclusão, considero que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 não se opõe à aplicação de regras, estabelecidas por uma entidade adjudicante, que só permitem ao operador económico provar a sua capacidade técnica através de declaração assinada pelo próprio se comprovar a impossibilidade ou séria dificuldade na obtenção de declaração do adquirente privado.

C – Quanto à terceira questão prejudicial

52.

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação de regras, estabelecidas por uma entidade adjudicante, que, sob pena de exclusão, exigem que a declaração do adquirente privado contenha o reconhecimento da assinatura por notário, advogado ou outra entidade com competência.

53.

A dúvida do órgão jurisdicional de reenvio provém da redação do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 na versão em língua portuguesa. Com efeito, nesta versão, é feita menção a uma «declaração reconhecida do adquirente» ( *23 ), ou seja, uma declaração «reconhecida» ou «certificada». Ora, nas outras versões linguísticas, esse adjetivo não consta da redação do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da mencionada diretiva.

54.

Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a formulação utilizada numa das versões linguísticas de uma disposição do direito da União não pode servir de ponto de partida único para a interpretação dessa disposição, nem ser‑lhe atribuído um caráter prioritário em relação a outras versões linguísticas. As disposições do direito da União devem, com efeito, ser interpretadas e aplicadas de maneira uniforme à luz das versões aprovadas em todas as línguas da União. Em caso de divergência entre as diferentes versões linguísticas de um texto da União, a disposição em questão deve ser interpretada em função da sistemática geral e da finalidade da regulamentação de que constitui um elemento ( *24 ).

55.

No entanto, este princípio da equivalência ou da igualdade linguística não vai ao ponto de impedir o Tribunal de Justiça de afastar a versão linguística de um texto que contradiz o sentido comum partilhado pelas outras versões linguísticas, tomando por base a interpretação contextual e/ou teleológica desse texto ( *25 ).

56.

No caso vertente, sem dúvida que o sentido comum do termo empregue nas outras versões linguísticas não permite, por si só, dar uma resposta segura à questão prejudicial submetida. Todavia, o contexto em que se inscreve o artigo 48.o da Diretiva 2004/18 e a sua evolução, bem como a sua interpretação teleológica, levam‑me a adotar a interpretação segundo a qual o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 não exige que a elaboração de uma declaração pelo adquirente privado contenha uma assinatura reconhecida por um notário, um advogado ou outra entidade competente.

1. Letra do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18

57.

Quando se compara as diferentes versões linguísticas do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18, verifica‑se que, embora o adjetivo «reconhecida» conste apenas da versão em língua portuguesa, trata‑se igualmente da única versão que utiliza o mesmo termo para os dois meios de prova previstos.

58.

Com efeito, nas outras versões linguísticas, a palavra «declaração» está reservada à segunda hipótese (a declaração do operador económico) enquanto a primeira se refere a uma «certificação» dos fornecimentos ou das prestações de serviço pelo adquirente. É assim que se encontram, nomeadamente, nas versões em línguas espanhola, alemã, inglesa ou francesa, os termos «certificado» e «declaración», «Bescheinigung» e «Erklärung», «certification» e «declaration», bem como «certification» e «déclaration» ( *26 ).

59.

A utilização de uma palavra diferente em cada uma das hipóteses previstas no artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 poderia querer traduzir a vontade do legislador da União em distinguir o ónus da prova que lhes está associado. A oposição entre os termos «certificação» e «declaração» evocaria, assim, a ideia de um formalismo acrescido na primeira hipótese. Esta interpretação será confirmada pela letra da disposição na versão em língua portuguesa, que utiliza o termo «declaração» nos dois casos, mas acrescenta o adjetivo «reconhecida» só no primeiro caso.

60.

Todavia, não posso abstrair totalmente de que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 autoriza a prova das prestações de serviços invocadas pelo operador económico através de uma declaração do adquirente, sem que seja feita referência a qualquer documento oficial nem à intervenção de um terceiro. Ora, não falta dessa especificação, o sentido comum da palavra «certificação» não significa mais do que a garantia de qualquer coisa por escrito ( *27 ).

61.

Concluo forçosamente, pois, que a análise literal da disposição em causa não permite, por si só, dar‑lhe uma interpretação com a certeza necessária.

2. Interpretação sistemática do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18

62.

Em primeiro lugar, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que o artigo 48.o da Diretiva 2004/18 estabelece um sistema fechado que limita os modos de avaliação e de verificação de que dispõem as entidades adjudicantes e, portanto, as suas possibilidades de formular requisitos ( *28 ).

63.

Além disso, o Tribunal de Justiça precisou que, mesmo no âmbito de um sistema aberto (como o previsto no artigo 47.o, n.o 4, da Diretiva 2004/18, relativamente às capacidades económicas e financeiras dos candidatos), a liberdade das entidades adjudicantes não era ilimitada e os elementos escolhidos deviam ser «objetivamente adequados a dar informação sobre esta capacidade […] sem, todavia, ir além do que é razoavelmente necessário para esse fim» ( *29 ).

64.

Não pode ser de outro modo, a fortiori, para as exigências previstas no sistema probatório fechado do artigo 48.o da Diretiva 2004/18. Ora, afigura‑se‑me que impor o reconhecimento da assinatura do adquirente privado que ateste a entrega de um bem ou a prestação de um serviço pelo operador económico candidato ao concurso vai além do necessário para provar a capacidade técnica do operador em causa e é exageradamente formalista em relação à simples declaração do operador económico, meio de prova subsidiário autorizado pelo artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18.

65.

Se a entidade adjudicante tiver dúvidas quanto à veracidade do documento que lhe é apresentado, pode igualmente, na minha opinião, pedir informações complementares que sejam suscetíveis de demonstrar a autenticidade da declaração comunicada. Com efeito, no âmbito da análise contextual, há que não esquecer que o artigo 45.o, n.o 2, alínea g), da Diretiva 2004/18 autoriza a exclusão do procedimento de contratação do operador que «tenha prestado, com culpa grave, falsas declarações ao fornecer as informações que possam ser exigidas».

66.

Em seguida, a evolução da legislação aplicável é também a favor de uma interpretação não formalista da declaração exigida.

67.

A ideia que subjaz ao artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 já estava presente na Diretiva 92/50, mas com uma redação ligeiramente diferente. Com efeito, segundo o artigo 32.o, n.o 2, alínea b), segundo travessão, da Diretiva 92/50, a prestação invocada pelo operador económico para a prova da sua capacidade técnica devia «revestir a forma de uma declaração do comprador» ( *30 ).

68.

Se a ideia de «declaração» advém do verbo «declarar», em contrapartida a inexistência de qualquer intervenção de um terceiro institucional aparecia com maior clareza, uma vez que a tónica era claramente colocada numa ação do comprador, devendo a prestação ser declarada pelo mesmo.

69.

Além disso, verifica‑se igualmente que a versão em língua portuguesa da Diretiva 92/50 já empregava o termo «declaração» para as duas hipóteses probatórias, mas sem lhe acrescentar qualquer adjetivo no primeiro dos casos.

70.

Ora, o texto do artigo 32.o, n.o 2, da Diretiva 92/50 não tinha, inicialmente, sofrido nenhuma alteração na Proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à coordenação dos processos de adjudicação de fornecimentos públicos, de prestação de serviços públicos e de empreitadas de obras públicas [COM(2000) 275 final] ( *31 ) que conduziu ao artigo 48.o, n.o 2, da Diretiva 2004/18.

71.

Foi só após a introdução das alterações do Parlamento Europeu relativas, por um lado, às participações dos operadores económicos em grupo e, por outro, às preocupações ligadas ao ambiente e à saúde, bem como à segurança dos trabalhadores, que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 passou a ter a redação atual ( *32 ).

72.

Não se pode, assim, usar o argumento da alteração da redação da disposição controvertida, uma vez que as considerações que levaram a essa alteração são estranhas a qualquer vontade do legislador em incrementar o formalismo probatório associado à declaração, pelo adquirente, das prestações de serviço realizadas pelo operador económico.

73.

Pelo contrário, a Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18 ( *33 ), vai mesmo mais longe no sentido de uma diminuição do formalismo probatório, ao suprimir qualquer referência a uma qualquer declaração do comprador.

74.

De ora em diante, o artigo 60.o, n.o 4, desta diretiva — que substitui o artigo 48.o, n.o 2, da Diretiva 2004/18 — prevê simplesmente que «a capacidade técnica dos operadores económicos pode ser comprovada por um ou mais dos meios enunciados no anexo XII, parte II, de acordo com a natureza, a quantidade ou a importância e a finalidade das obras, fornecimentos ou serviços».

75.

Ora, segundo esse anexo XII, parte II, alínea a), ii), da Diretiva 2014/24, os meios de prova que atestam a capacidade técnica dos operadores económicos são uma «lista dos principais fornecimentos ou serviços efetuados durante os três últimos anos, no máximo, com indicação dos montantes, datas e destinatários, públicos ou privados. Quando necessário para assegurar um nível adequado de concorrência, as autoridades adjudicantes podem indicar que serão tidas em conta provas de fornecimentos ou de serviços relevantes entregues ou prestados há mais de três anos». Desapareceu, portanto, a necessidade de fazer acompanhar essa lista de uma declaração do adquirente.

76.

Mesmo que a Diretiva 2014/24 não seja aplicável ao processo principal, esta nova diretiva, que revoga a Diretiva 2004/18, é útil, na medida em que traduz a vontade contemporânea do legislador da União. Esta pode, assim, ajudar‑nos a dar o sentido atual de uma disposição anterior semelhante, desde que, porém, não se vá contra legem.

77.

No caso em apreço, parece‑me que não colide com a letra da disposição aplicável a confirmação, pelas Diretivas 92/50 e 2014/24, da vontade contínua do legislador da União em não associar a prova da capacidade técnica do operador económico a um formalismo particular.

78.

Dito de outro modo, colocado no seu contexto e numa perspetiva histórica, o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 não exige mais do que a garantia ou a confirmação, pelo adquirente, de que a prestação do serviço invocada pelo operador económico para obter a adjudicação do contrato público está conforme com a realidade.

3. Interpretação teleológica do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18

79.

Por último, tal interpretação é também conforme com a finalidade da Diretiva 2004/18, que é facilitar a livre circulação de mercadorias, a liberdade de estabelecimento e a livre prestação de serviços, bem como, de um modo mais geral, a abertura dos contratos públicos à concorrência ( *34 ).

80.

Ora, subordinar a aceitação de uma declaração do adquirente à sua autenticação por notário, advogado ou outra entidade competente parece‑me ir contra esse objetivo.

81.

Tal exigência seria, com efeito, suscetível de dissuadir determinados potenciais candidatos que, confrontados com a dificuldade prática (devido aos prazos fixados pelo anúncio de concurso, por exemplo) em cumprir este requisito suplementar, desistiriam de apresentar uma proposta.

4. Conclusão quanto à terceira questão prejudicial

82.

Em conclusão, considero que as interpretações contextual e teleológica do artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 confirmam o sentido comum associado ao termo «declaração», que dele consta, e que não há que tirar consequências específicas do aditamento da palavra «reconhecida» na versão em língua portuguesa.

83.

O contexto em que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 se insere e a sua evolução, bem como a sua interpretação teleológica, levam à interpretação de que a palavra «declaração», ou os termos «declaração reconhecida», utilizados na versão em língua portuguesa, não requerem nenhum formalismo particular.

84.

Por consequência, considero que o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 se opõe à aplicação de regras, estabelecidas por uma entidade adjudicante, que, sob pena de exclusão, exigem que a declaração do adquirente privado contenha o reconhecimento da assinatura por notário, advogado ou outra entidade com competência.

VI – Conclusão

85.

Tendo em consideração o exposto, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Tribunal Central Administrativo Sul do seguinte modo:

«1)

O artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, deve ser interpretado no sentido de que, na falta de transposição para o direito interno, é suscetível de conferir, aos particulares, direitos que aqueles poderão invocar contra as entidades adjudicantes no âmbito de processos instaurados nos órgãos jurisdicionais nacionais, desde que a entidade adjudicante em causa se enquadre no conceito de Estado na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça.

2)

O artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 não se opõe à aplicação de regras, estabelecidas por uma entidade adjudicante, que só permitem ao operador económico provar a sua capacidade técnica através de uma declaração assinada pelo próprio se comprovar a impossibilidade ou séria dificuldade na obtenção de uma declaração do adquirente privado.

3)

O artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), segundo travessão, da Diretiva 2004/18 opõe‑se à aplicação de regras, estabelecidas por uma entidade adjudicante, que, sob pena de exclusão, exigem que a declaração do adquirente privado contenha o reconhecimento da assinatura por notário, advogado ou outra entidade com competência.»


( *1 ) Língua original: francês.

( *2 ) JO L 134, p. 114.

( *3 ) V., neste sentido, entre numerosos acórdãos, acórdão Portgás (C‑425/12, EU:C:2013:829, n.o 18 e jurisprudência referida).

( *4 ) V., neste sentido, acórdãos Almos Agrárkülkereskedelmi (C‑337/13, EU:C:2014:328, n.o 32) e Larentia + Minerva e Marenave Schiffahrt (C‑108/14 e C‑109/14, EU:C:2015:496, n.o 49).

( *5 ) JO L 185, p. 5; EE 17 F3 p. 9.

( *6 ) Acórdão Beentjes (31/87, EU:C:1988:422, n.o 43).

( *7 ) JO L 209, p. 1.

( *8 ) Acórdão Tögel (C‑76/97, EU:C:1998:432, n.o 47).

( *9 ) V., neste sentido, acórdãos Marshall (152/84, EU:C:1986:84, n.o 48); Faccini Dori (C‑91/92, EU:C:1994:292, n.o 20); e Portgás (C‑425/12, EU:C:2013:829, n.o 22).

( *10 ) V., neste sentido, acórdão Portgás (C‑425/12, EU:C:2013:829, n.o 23).

( *11 ) Acórdão Portgás (C‑425/12, EU:C:2013:829, n.o 24 e jurisprudência referida).

( *12 ) Em conformidade com o artigo 1.o, n.o 9, da Diretiva 2004/18.

( *13 ) V., neste sentido, acórdão Portgás (C‑425/12, EU:C:2013:829, n.o 31).

( *14 ) V., neste sentido, acórdão Dominguez (C‑282/10, EU:C:2012:33, n.o 24 e jurisprudência referida). O Tribunal de Justiça confirmou expressamente a hierarquização das soluções aplicáveis num litígio entre particulares no processo que deu origem ao acórdão Fenoll (C‑316/13, EU:C:2015:200), afirmando que, «se o direito nacional não for suscetível de uma interpretação conforme com [a] diretiva [em causa] — o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar —, o artigo [relevante] desta não pode ser invocado num litígio entre particulares […] a fim de garantir o pleno efeito [do] direito [que consagra], deixando de [se] aplicar qualquer disposição nacional contrária. Por outro lado, em tal situação, a parte lesada pela não conformidade do direito nacional com o direito da União poderia, no entanto, invocar a jurisprudência [relativa à responsabilidade extracontratual dos Estados‑Membros por violação do direito da União] resultante do acórdão Francovich e o. (C‑6/90 e C‑9/90, EU:C:1991:428) para obter, sendo caso disso, a reparação do dano sofrido (v. acórdão Dominguez, C‑282/10, EU:C:2012:33, n.o 43)» (n.o 48). Por outras palavras, se num litígio entre particulares o juiz nacional não interpretar o direito nacional em conformidade com a diretiva aplicável, não poderá aplicar essa diretiva mas também não poderá afastar a aplicação do direito nacional contrário. Nessa hipótese, o único paliativo oferecido ao particular será pôr em causa a responsabilidade do Estado‑Membro por violação do direito da União.

( *15 ) O sublinhado é meu.

( *16 ) V., designadamente, acórdãos Yaesu Europe (C‑433/08, EU:C:2009:750, n.o 24); Brain Products (C‑219/11, EU:C:2012:742, n.o 13); Koushkaki (C‑84/12, EU:C:2013:862, n.o 34); e Lanigan (C‑237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.o 35).

( *17 ) O sublinhado é meu.

( *18 ) Conclusões do advogado‑geral P. Léger no processo Schulte (C‑350/03, EU:C:2004:568, n.o 88). V., também, numa leitura a contrario, acórdão Tecom Mican e Arias Domínguez (C‑223/14, EU:C:2015:744, n.o 35).

( *19 ) Segundo a definição do dicionário Le Petit Robert, 2014.

( *20 ) Segundo a definição do dicionário Larousse.fr.

( *21 ) V., designadamente, a versão em língua espanhola, na qual o artigo 48.o, n.o 2, alínea a), ii), da Diretiva 2004/18 tem a seguinte redação: «cuando el destinatario sea un comprador privado, mediante un certificado del comprador o, a falta de este certificado [na falta desta declaração reconhecida], simplesmente mediante una declaración del operador económico» (o sublinhado é meu). Na versão em língua italiana, diz‑se também «in mancanza di tale attestazione». Por último, na versão alemã, o legislador da União refere a situação em que «falls eine derartige Bescheinigung nicht erhältlich ist». A versão em língua grega é ainda mais clara no que se refere à «impossibilidade» de uma declaração reconhecida do adquirente: «εάν ο αποδέκτης είναι ιδιωτικός φορέας, με βεβαίωση του αγοραστή ή, εάν τούτο δεν είναι δυνατόν [se não for possível], με απλή δήλωση του οικονομικού φορέα» (o sublinhado é meu).

( *22 ) Acórdão Cartiera dell’Adda (C‑42/13, EU:C:2014:2345, n.o 42). V., também, n.o 43 deste acórdão para a referência aos princípios da igualdade e da transparência, bem como o artigo 2.o da Diretiva 2004/18.

( *23 ) O sublinhado é meu.

( *24 ) V., neste sentido, acórdão Léger (C‑528/13, EU:C:2015:288, n.o 35 e jurisprudência referida).

( *25 ) V., neste sentido, Lenaerts, K., e Guttiérrez‑Fons, J.A., «To say what the law of the EU is: Methods of interpretation and the European Court of Justice», Columbia Journal of European Law, 2014, 20th Anniversary Issue, pp. 3 a 61, especialmente p. 14 e autores referidos na nota de pé de página 78.

( *26 ) Note‑se que a versão em língua eslovaca utiliza os termos «potvrdením», o qual pode ser traduzido por «confirmação» em vez de «declaração», e «vyhlásením».

( *27 ) Segundo o dicionário Le Petit Robert (2014), a certificação é, em primeiro lugar, um termo jurídico que significa «segurança dada por escrito». Em língua espanhola, segundo o dicionário em linha da Real Academia Española, a palavra «certificado» remete para o termo «certificación», o qual pode ser definido como um documento em que a verdade de um facto é assegurada.

( *28 ) V., neste sentido, acórdão Édukövízig e Hochtief Construction (C‑218/11, EU:C:2012:643, n.o 28).

( *29 ) Acórdão Édukövízig e Hochtief Construction (C‑218/11, EU:C:2012:643, n.o 29).

( *30 ) O sublinhado é meu.

( *31 ) JO 2001, C 29 E, p. 11. V. artigo 49.o, n.o 3, da referida proposta de diretiva.

( *32 ) V. Proposta alterada de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à coordenação dos processos de adjudicação de fornecimentos públicos, de prestação de serviços públicos e de empreitadas de obras públicas [COM(2002) 236 final, JO 2002, C 203 E, p. 210, especialmente pp. 223 e 224].

( *33 ) JO L 94, p. 65.

( *34 ) V. considerando 2 da Diretiva 2004/18.

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