EUR-Lex Access to European Union law

Back to EUR-Lex homepage

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62014CJ0410

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção) de 2 de junho de 2016.
Dr. Falk Pharma GmbH contra DAK-Gesundheit.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberlandesgericht Düsseldorf.
Reenvio prejudicial — Contratos públicos — Diretiva 2004/18/CE — Artigo 1.°, n.° 2, alínea a) — Conceito de ‘contrato público’ — Sistema de aquisição de bens que consiste em admitir como fornecedor qualquer operador económico que preencha os requisitos previamente estabelecidos — Fornecimento de medicamentos reembolsáveis no âmbito de um regime geral de segurança social — Acordos celebrados entre uma caixa de seguro de doença e todos os fornecedores de medicamentos baseados num determinado princípio ativo que aceitem conceder um desconto de uma quantia predeterminada sobre o preço de venda — Legislação que prevê, em princípio, a substituição de um medicamento reembolsável comercializado por um operador que não celebrou o referido acordo por um medicamento do mesmo tipo comercializado por um operador que celebrou esse acordo.
Processo C-410/14.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2016:399

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)

2 de junho de 2016 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Contratos públicos — Diretiva 2004/18/CE — Artigo 1.o, n.o 2, alínea a) — Conceito de ‘contrato público’ — Sistema de aquisição de bens que consiste em admitir como fornecedor qualquer operador económico que preencha os requisitos previamente estabelecidos — Fornecimento de medicamentos reembolsáveis no âmbito de um regime geral de segurança social — Acordos celebrados entre uma caixa de seguro de doença e todos os fornecedores de medicamentos baseados num determinado princípio ativo que aceitem conceder um desconto de uma quantia predeterminada sobre o preço de venda — Legislação que prevê, em princípio, a substituição de um medicamento reembolsável comercializado por um operador que não celebrou o referido acordo por um medicamento do mesmo tipo comercializado por um operador que celebrou esse acordo»

No processo C‑410/14,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Dusseldorf, Alemanha), por decisão de 13 de agosto de 2014, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 29 de agosto de 2014, no processo

Dr. Falk Pharma GmbH

contra

DAK‑Gesundheit,

sendo interveniente:

Kohlpharma GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),

composto por: T. von Danwitz, presidente da Quarta Secção, exercendo funções de presidente da Quinta Secção, D. Šváby (relator), A. Rosas, E. Juhász e C. Vajda, juízes,

advogado‑geral: P. Cruz Villalón,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Dr. Falk Pharma GmbH, por M. Ulshöfer, Rechtsanwalt,

em representação da DAK‑Gesundheit, por A. Csaki, Rechtsanwalt,

em representação da Kohlpharma GmbH, por C. Stumpf, Rechtsanwalt,

em representação do Governo alemão, por T. Henze e A. Lippstreu, na qualidade de agentes,

em representação do Governo helénico, por K. Nasopoulou e S. Lekkou, na qualidade de agentes,

em representação do Governo sueco, por A. Falk, C. Meyer‑Seitz, U. Persson, N. Otte Widgren, E. Karlsson, L. Swedenborg e F. Sjövall, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por C. Hermes e A. Tokár, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO 2004, L 134, p. 114, e retificação no JO 2004, L 351, p. 44).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Dr. Falk Pharma GmbH (a seguir «Falk») à DAK‑Gesundheit (a seguir «DAK»), uma caixa de seguro de doença, em que é interveniente a Kohlpharma GmbH, relativo a um processo iniciado pela DAK com vista à celebração de acordos de desconto de preços com empresas que comercializam um medicamento cujo princípio ativo é o aminosalicilato e que acabou por celebrar um acordo desse tipo com a Kohlpharma.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 2 e 3 da Diretiva 2004/18 têm a seguinte redação:

«(2)

A adjudicação de contratos celebrados nos Estados‑Membros por conta do Estado, das autarquias locais e regionais e de outros organismos de direito público deve respeitar os princípios do Tratado, nomeadamente os princípios da livre circulação de mercadorias, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços, assim como os princípios deles resultantes, tais como os princípios da igualdade de tratamento, da não discriminação, do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da transparência. Todavia, no que se refere aos contratos públicos que ultrapassem um determinado valor, é aconselhável estabelecer disposições que instituam uma coordenação comunitária dos procedimentos nacionais para a adjudicação dos contratos públicos que se baseiem nesses princípios por forma a garantir os seus efeitos e a abertura à concorrência dos contratos públicos. Por conseguinte, tais disposições de coordenação devem ser interpretadas em conformidade com as regras e princípios atrás referidos, bem como com as restantes regras do Tratado.

(3)

Tais disposições em matéria de coordenação devem respeitar, tanto quanto possível, os processos e as práticas administrativas em vigor em cada Estado‑Membro.»

4

O considerando 11 desta diretiva enuncia:

«Deve prever‑se uma definição comunitária de acordo‑quadro, bem como regras específicas para os acordos‑quadro celebrados em relação a contratos abrangidos pelo âmbito de aplicação da presente diretiva. De acordo com essas regras, quando uma entidade adjudicante celebra, nos termos do disposto na presente diretiva, um acordo‑quadro relativo, nomeadamente, à publicidade, aos prazos e às condições para a apresentação de propostas, pode celebrar, durante o período de vigência desse acordo‑quadro, contratos nele baseados, quer aplicando os termos do acordo‑quadro quer, se nem todos os termos tiverem sido fixados de antemão nesse acordo‑quadro, reabrindo concurso entre as partes no acordo‑quadro sobre os termos não fixados. [...]»

5

O artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18 dispõe que, para os seus efeitos, os «‘[c]ontratos públicos’ são contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre um ou mais operadores económicos e uma ou mais entidades adjudicantes, que têm por objeto a execução de obras, o fornecimento de produtos ou a prestação de serviços na aceção [desta] diretiva».

6

O referido artigo 1.o define, no seu n.o 5, o conceito de «acordo‑quadro» nos seguintes termos:

«‘Acordo‑quadro’ é um acordo entre uma ou mais entidades adjudicantes e um ou mais operadores económicos, que tem por objeto fixar os termos dos contratos a celebrar durante um determinado período, nomeadamente em matéria de preços e, se necessário, de quantidades previstas.»

7

O artigo 2.o da referida diretiva tem a seguinte redação:

«As entidades adjudicantes tratam os operadores económicos de acordo com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação e agem de forma transparente.»

8

O artigo 32.o da Diretiva 2004/18 dispõe:

«[...]

2.   Para efeitos de celebração de um acordo‑quadro, as entidades adjudicantes seguirão as normas processuais referidas na presente diretiva em todas as fases até à adjudicação dos contratos baseados nesse acordo‑quadro. A escolha das partes no acordo‑quadro é feita mediante a aplicação dos critérios de adjudicação estabelecidos nos termos do artigo 53.o

Os contratos baseados num acordo‑quadro serão adjudicados segundo os procedimentos previstos nos n.os 3 e 4. Esses procedimentos só são aplicáveis entre as entidades adjudicantes e os operadores económicos que sejam parte no acordo‑quadro desde o início.

[...]

4.   Quando um acordo‑quadro é celebrado com vários operadores económicos, o seu número deve ser, no mínimo, de três, desde que exista um número suficiente de operadores económicos que cumpram os critérios de seleção e/ou de propostas admissíveis que satisfaçam os critérios de adjudicação.

A atribuição dos contratos baseados em acordos‑quadro celebrados com vários operadores económicos pode ser feita:

quer nos termos estipulados no acordo‑quadro, sem reabertura de concurso,

quer, quando nem todos os termos se encontrem estipulados no acordo‑quadro, após reabertura de concurso entre as partes com base nos mesmos termos, se necessário precisando‑os, e, se for caso disso, noutros termos indicados no caderno de encargos do acordo‑quadro, recorrendo ao seguinte procedimento:

[...]»

9

Nos termos do artigo 43.o, primeiro parágrafo, desta diretiva:

«Em relação a cada contrato, a cada acordo‑quadro e a cada criação de um sistema de aquisição dinâmico, as entidades adjudicantes elaborarão por escrito um relatório que inclua, pelo menos, o seguinte:

[...]

e)

O nome do adjudicatário e a justificação da escolha da sua proposta, bem como, se for conhecida, a parte do contrato ou do acordo‑quadro que o adjudicatário tenciona subcontratar com terceiros;

[...]»

10

A Diretiva 2014/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos e que revoga a Diretiva 2004/18 (JO 2014, L 94, p. 65), cujos atos de transposição devem, por força do seu artigo 90.o, n.o 1, entrar em vigor o mais tardar até 18 de abril de 2016, define, no seu artigo 1.o, n.o 2, a contratação pública nos seguintes termos:

«Na aceção da presente diretiva, entende‑se por ‘contratação pública’ a aquisição, mediante contrato público, de obras, fornecimentos ou serviços por uma ou mais autoridades adjudicantes a operadores económicos selecionados pelas mesmas, independentemente de as obras, os fornecimentos ou os serviços se destinarem ou não a uma finalidade de interesse público.»

Direito nacional

11

Nos termos do § 129, n.o 1, do Sozialgesetzbuch, Fünftes Buch — Gesetzliche Krankenversicherung (Código da Segurança Social, livro V — Regime legal do seguro de doença, a seguir «SGB V»), no que se refere ao fornecimento de um medicamento que foi prescrito indicando o seu princípio ativo, sem que o médico que o receitou tenha excluído a sua substituição por um medicamento com um princípio ativo equivalente, os farmacêuticos devem substituir o medicamento prescrito por outro com o mesmo princípio ativo relativamente ao qual foi celebrado um acordo de desconto de preços, na aceção do § 130a, n.o 8, do SGB V.

12

Em conformidade com esta última disposição, as caixas de seguro de doença ou os seus agrupamentos podem celebrar com as empresas farmacêuticas acordos de desconto sobre o preço de venda dos medicamentos que são fornecidos a cargo dessas caixas, por um período de dois anos.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13

Em 28 de agosto de 2013, a DAK publicou no Suplemento do Jornal Oficial da União Europeia um anúncio relativo a um «procedimento de admissão» com vista à celebração de acordos de desconto, em conformidade com o § 130a, n.o 8, do SGB V, que têm por objeto medicamentos cujo princípio ativo é equivalente ao aminosalicilato. O montante do desconto foi fixado em 15% do preço «na fábrica» e o período abrangido situava‑se entre 1 de outubro de 2013 e 30 de setembro de 2015.

14

Este procedimento previa a participação de todas as empresas interessadas que cumprissem os critérios de admissão e a celebração com cada uma dessas empresas de contratos idênticos, cujos termos estavam preestabelecidos e não eram negociáveis. Além disso, qualquer outra empresa que preenchesse esses critérios tinha ainda a possibilidade de aderir, nas mesmas condições, ao sistema de acordos de desconto durante o respetivo período de vigência.

15

O anúncio de 28 de agosto de 2013 indicava que o referido procedimento não estava sujeito ao direito dos contratos públicos.

16

A Kohlpharma foi a única empresa que manifestou o seu interesse na sequência do referido anúncio. Em 5 de dezembro de 2013 foi celebrado um contrato com essa empresa. O mecanismo de substituição previsto no § 129, n.o 1, do SGB V foi posto em prática em 1 de janeiro de 2014 no sistema informático utilizado pelas farmácias. A celebração desse contrato foi objeto de comunicação no Jornal Oficial de 22 de fevereiro seguinte.

17

Em 17 de janeiro de 2014, a Falk interpôs um recurso na Vergabekammer des Bundes (Secção federal dos contratos públicos, Alemanha) para que fosse declarada a incompatibilidade com o direito dos contratos públicos do procedimento de admissão posto em prática pela DAK e do único acordo daí resultante. Da decisão da referida Secção foi interposto recurso para o Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Dusseldorf, Alemanha).

18

No referido recurso, a Falk alega que o direito dos contratos públicos é aplicável quando um organismo considerado entidade adjudicante adquire bens no mercado e o referido direito obriga a abrir um concurso, o que implica a celebração de contratos exclusivos.

19

Pelo contrário, a DAK considera que, para adquirir os bens e serviços de que necessita, uma entidade adjudicante pode recorrer não só aos contratos públicos como também a outros modelos diferentes destes, de modo que é livre para adjudicar um contrato com caráter exclusivo, na sequência de uma decisão de seleção, mas também para celebrar contratos com todas as empresas interessadas, sem proceder a uma seleção. Ora, segundo a DAK, a existência de uma decisão de seleção é um elemento constitutivo do conceito de «contrato público» na aceção da Diretiva 2004/18 e do direito da União nesta matéria, de modo que, na falta de seleção, contratos como o que está em causa no processo principal não são contratos públicos.

20

Por seu turno, a Kohlpharma considera que a liberdade de escolha de uma entidade adjudicante no que se refere à natureza dos contratos necessários para dar cumprimento a uma obrigação de serviço público está consagrada na jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de concessões de serviços.

21

O órgão jurisdicional de reenvio observa que a admissibilidade do recurso interposto pela Falk depende da questão de saber se um contrato de adesão a um sistema de acordos de desconto na aceção do § 130a, n.o 8, do SGB V, celebrado, no âmbito de um procedimento de admissão, com todos os operadores económicos interessados, sem seleção, constitui um contrato público na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18. Por outras palavras, trata‑se de saber se um contrato público se caracteriza por uma escolha da entidade adjudicante, que implica que o operador selecionado disponha de exclusividade. Nesse caso, um procedimento de admissão que tenha por objeto a celebração de contratos com todos os operadores económicos interessados não constitui um processo de adjudicação de um contrato público.

22

O referido órgão jurisdicional indica que a jurisprudência nacional está dividida acerca desta questão. Para alguns órgãos jurisdicionais, um contrato público é um contrato que confere ao operador selecionado exclusividade, de modo que um contrato que é celebrado com todos os operadores que o solicitem não constitui um contrato público. Outros órgãos jurisdicionais consideram que qualquer contrato celebrado por uma entidade adjudicante é um contrato público e que a escolha de um dos proponentes e, consequentemente, a concessão de exclusividade é uma obrigação da entidade adjudicante.

23

O órgão jurisdicional de reenvio pende no sentido de que um sistema de acordos de desconto como o que está em causa no processo principal não constitui um contrato público. Com efeito, devido à admissão nesse sistema de todos operadores que preencham os requisitos estabelecidos e que solicitam a sua integração no mesmo, não existe seleção, portanto, não existe concessão de uma vantagem económica e, consequentemente, não existe risco de discriminação. Ora, como decorre do considerando 2 e do artigo 2.o da Diretiva 2004/18, o direito dos contratos públicos tem precisamente como objetivo evitar as consequências associadas a este tipo de riscos.

24

O mesmo órgão jurisdicional faz referência, em apoio destas considerações, por um lado, ao acórdão de 10 de setembro de 2009, Eurawasser (C‑206/08, EU:C:2009:540), do qual infere que um contrato não tem necessariamente de ser adjudicado sob a forma de um contrato público quando existir uma alternativa legal, que, no âmbito do processo principal que deu origem ao referido acórdão, consistia no recurso a uma concessão de serviços. Com efeito, na sua opinião, não parece que o direito primário ou o direito derivado impliquem que toda a aquisição deva obrigatoriamente ser objeto de um contrato público. Considera que, embora exista uma distinção entre contrato público e concessão de serviços, em função da natureza da contrapartida financeira prevista no contrato, nada impede que a existência ou não de uma seleção entre os operadores económicos interessados possa fundamentar outra distinção. Considera, a este respeito, que o acórdão de 15 de julho de 2010, Comissão/Alemanha (C‑271/08, EU:C:2010:426), pode confirmar indiretamente esta conclusão, na medida em que o Tribunal de Justiça declarou, no n.o 73 do referido acórdão, que o objetivo das diretivas em matéria de contratos públicos é excluir o risco de se dar preferência aos proponentes ou aos candidatos nacionais em toda e qualquer adjudicação efetuada pelas entidades adjudicantes.

25

Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio refere‑se à Diretiva 2014/24, especialmente à definição do conceito de «contratação pública» introduzido na referida diretiva, que faz expressamente referência à seleção de operadores económicos, e ao segundo parágrafo do considerando 4 desta diretiva, que exclui do conceito de contrato público as situações em que todos os operadores que preencham determinadas condições são autorizados a executar determinada tarefa, sem qualquer seletividade, parecendo que um dos exemplos dados remete para um sistema comparável ao que está em causa no processo principal. Considera que, apesar de a Diretiva 2014/24 não ser aplicável ratione temporis ao caso em apreço, a definição do conceito de «contratação pública» que esta contempla não muda nada, ao passo que a Diretiva 2004/18 não define o referido conceito. Com efeito, o direito da União em matéria de contratos públicos foi sempre caracterizado por um elemento de concorrência.

26

Caso se deva considerar que a seleção é um elemento característico de um contrato público e que, deste modo, um procedimento de admissão num sistema de acordos de desconto, como o que está em causa no processo principal, não é, em princípio, um processo de adjudicação de um contrato público, o órgão jurisdicional de reenvio considera que é conveniente precisar os requisitos de regularidade que esse procedimento de admissão deve cumprir para que uma entidade adjudicante possa renunciar a recorrer a um processo de adjudicação de contratos públicos que implique a seleção de um ou vários operadores.

27

O referido órgão jurisdicional salienta que os princípios da não discriminação e da igualdade de tratamento, bem como a obrigação de transparência, que decorrem antes de mais do direito primário, comportam exigências processuais e materiais que se impõem também no âmbito do referido procedimento de admissão, para garantir que este está efetivamente isento de qualquer seletividade, sem atribuir vantagens concorrenciais a nenhum operador. Ora, as modalidades de organização de um procedimento de admissão podem criar discriminações e diferenças de tratamento.

28

Os requisitos de regularidade desse tipo de procedimento podem consistir numa publicidade à escala da União relativa à abertura desse procedimento e aos contratos que se vierem a celebrar no seu âmbito, à clareza das regras que regulam a admissão, à fixação prévia dos termos dos contratos de adesão ao sistema de acordos de desconto e à possibilidade de aderir aos mesmos a qualquer momento.

29

Esta possibilidade de adesão a qualquer momento distingue um procedimento de admissão como o que está em causa no processo principal de um processo de adjudicação de um acordo‑quadro regulado pelo artigo 32.o da Diretiva 2004/18. Com efeito, a exigência imposta no n.o 2, segundo parágrafo, deste artigo, segundo a qual os contratos baseados num acordo‑quadro só podem ser celebrados com os operadores económicos que sejam parte no acordo‑quadro, decorre do caráter seletivo deste tipo de acordo. Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, impor essa limitação no contexto do procedimento de admissão, fixando um prazo a partir do qual um operador já não pode aderir ao sistema de acordos de desconto, teria um efeito discriminatório, dado que proporcionaria uma vantagem concorrencial aos operadores que tivessem aderido ao referido sistema.

30

O mesmo órgão jurisdicional considera que o mecanismo de substituição de medicamentos previsto no § 129 do SGB V não origina essa vantagem concorrencial em caso de adesão a um sistema de acordos de desconto na aceção do § 130a, n.o 8, do mesmo texto. A este respeito, a situação seria diferente se o referido acordo de desconto fosse celebrado no âmbito de um processo de adjudicação de um contrato público. Neste último caso, a exclusividade de que beneficia o adjudicatário teria como consequência que este gozaria de uma posição concorrencial especial, na medida em que a adjudicação do contrato teria um efeito decisivo na concorrência. Em contrapartida, se esses acordos fossem celebrados com todos os operadores interessados, a substituição do medicamento produzir‑se‑ia com base numa escolha efetuada não pela entidade adjudicante, mas pelo farmacêutico ou pelo paciente em função das condições de compra propostas pelos operadores que tivessem aderido ao sistema de acordos de desconto. Assim, poderia suceder que o produto de alguns dos operadores aderentes fosse comprado muito raramente. O mesmo sucederia, como no caso em apreço, se só aderisse um operador. Com efeito, ao conceder a qualquer operador interessado o direito de aderir a qualquer momento, a entidade adjudicante renuncia a influenciar a situação concorrencial, na medida em que esta situação não depende da possibilidade de substituição dos medicamentos dos operadores aderentes, mas da decisão tomada por cada operador potencialmente interessado em participar ou não no sistema de acordos de desconto.

31

Nestas condições, o Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Dusseldorf) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deixa de se estar perante um ‘contrato público’, na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva [2004/18], quando a entidade adjudicante organiza um procedimento de admissão em que procede à adjudicação sem selecionar um ou mais operadores económicos?

2)

Em caso de resposta à [primeira] questão no sentido de que a seleção de um ou mais operadores económicos constitui a característica do contrato público, [...] deve a característica da seleção dos operadores económicos [que implicaria, o conceito de ‘contrato público’ neste caso], na aceção do artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva [2004/18], à luz do artigo 2.o da [mesma diretiva], ser interpretada no sentido de que a entidade adjudicante só pode abster‑se de selecionar um ou mais operadores económicos, optando por um procedimento de admissão, caso se verifiquem as seguintes condições:

publicitação do procedimento de admissão a nível [da União];

estabelecimento de regras inequívocas acerca da celebração do contrato e da adesão ao mesmo;

estabelecimento antecipado das condições contratuais, em termos tais que nenhum operador económico possa influenciar o conteúdo do contrato;

atribuição aos operadores económicos do direito de aderir ao contrato a qualquer momento; e

publicitação das celebrações de contratos a nível [da União]?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

32

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 1.o, n.o 2, alínea a) da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que, para efeitos da referida diretiva, se deve qualificar de contrato público um sistema de acordos, como o que está em causa no processo principal, mediante o qual uma entidade pública pretende adquirir bens no mercado contratando, durante toda a vigência desse sistema, com qualquer operador económico que se comprometa a fornecer os bens em causa em condições preestabelecidas, sem proceder a uma seleção entre os operadores interessados e permitindo que esses operadores adiram ao referido sistema durante toda a vigência do mesmo.

33

É certo que, como salientam alguns interessados que apresentaram observações escritas no Tribunal de Justiça, esse sistema dá lugar à celebração de contratos a título oneroso entre uma entidade pública, que poderia ser uma entidade adjudicante na aceção da Diretiva 2004/18, e operadores económicos, cujo objeto é o fornecimento de produtos, o que corresponde à definição do conceito de «contrato público» enunciado no artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da referida diretiva.

34

No entanto, há que salientar, por um lado, que, em conformidade com o considerando 2 da referida diretiva, as disposições de coordenação que esta institui devem ser interpretadas nos termos dos princípios do Tratado FUE, nomeadamente os princípios da livre circulação de mercadorias, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços, bem como dos princípios que daí resultam, como o princípio da igualdade de tratamento, da não discriminação, do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da transparência, aos quais estão sujeitas as adjudicações de contratos públicos levadas a cabo nos Estados‑Membros.

35

Por outro lado, uma vez que a coordenação ao nível da União dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços tem por objetivo proteger os interesses dos operadores económicos estabelecidos num Estado‑Membro que desejam propor bens ou serviços às entidades adjudicantes estabelecidas num outro Estado‑Membro, o objetivo da Diretiva 2004/18 é excluir o risco de que seja dada preferência aos proponentes ou candidatos nacionais em toda e qualquer adjudicação efetuada pelas entidades adjudicantes (v., neste sentido, no que se refere à diretiva relativa aos contratos públicos de serviços anteriormente em vigor, acórdão de 10 de novembro de 1998, BFI Holding, C‑360/96, EU:C:1998:525, n.os 41, 42 e jurisprudência referida).

36

Ora, essencialmente, o risco de favorecer os operadores económicos nacionais, que a referida diretiva pretende impedir, está estreitamente ligado à seleção que a entidade adjudicante tem intenção de efetuar entre as propostas admissíveis e à exclusividade que vai resultar da adjudicação do contrato em causa ao operador cuja proposta seja escolhida, ou aos operadores económicos cujas propostas tenham sido selecionadas no caso de um acordo‑quadro, o que constitui a finalidade de um processo de adjudicação de um contrato público.

37

Por conseguinte, quando uma entidade pública pretende celebrar contratos de fornecimento com todos os operadores económicos que desejam fornecer os produtos em causa nas condições indicadas por essa entidade, a falta de designação de um operador económico ao qual é concedida a exclusividade de um contrato tem como consequência não ser necessário delimitar mediante as regras precisas da Diretiva 2004/18 a ação dessa entidade adjudicante de modo a impedi‑la de adjudicar um contrato que favorece os operadores nacionais.

38

A escolha de uma proposta, e, consequentemente, de um adjudicatário, afigura‑se assim um elemento intrinsecamente ligado ao regime dos contratos públicos estabelecido por essa diretiva e, por conseguinte, ao conceito de «contrato público» na aceção do seu artigo 1.o, n.o 2, alínea a).

39

Esta constatação é corroborada pelo artigo 43.o, primeiro parágrafo, alínea e), da Diretiva 2004/18, nos termos do qual, em relação a cada contrato, a cada acordo‑quadro e a cada criação de um sistema de aquisição dinâmico, as entidades adjudicantes elaborarão por escrito um relatório que inclua o nome do adjudicatário e a justificação da escolha da sua proposta.

40

Por outro lado, há que salientar que este princípio é expressamente enunciado na definição do conceito de «contratação pública» estabelecido a partir de agora no artigo 1.o, n.o 2, da Diretiva 2014/24, de que um dos elementos é a seleção pela autoridade adjudicante do operador económico a quem vai adquirir, mediante um contrato público, as obras, fornecimentos ou serviços objeto desse contrato.

41

Por último, há que salientar que a particularidade de um sistema de acordos como o que está em causa no processo principal que reside na sua abertura permanente, durante toda a sua vigência, aos operadores interessados, sem que se limite, assim, a um período preliminar durante o qual as empresas são chamadas a manifestar o seu interesse junto da entidade pública em causa, basta para distinguir esse sistema de um acordo‑quadro. Com efeito, em conformidade com o artigo 32.o, n.o 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2004/18, os contratos baseados num acordo‑quadro só podem ser adjudicados aos operadores económicos que sejam parte no acordo‑quadro desde o início.

42

Por conseguinte, há que responder à primeira questão submetida que o artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que não constitui um contrato público, na aceção da referida diretiva, um sistema de acordos, como o que está em causa no processo principal, mediante o qual uma entidade pública pretende adquirir bens no mercado contratando, durante toda a vigência desse sistema, com qualquer operador económico que se comprometa a fornecer os bens em causa em condições preestabelecidas, sem proceder a uma seleção entre os operadores interessados e permitindo que esses operadores adiram ao referido sistema durante toda a vigência do mesmo.

Quanto à segunda questão

43

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, a que requisitos está sujeita a regularidade, à luz do direito da União, de um procedimento de admissão a um sistema de acordos como o que está em causa no processo principal.

44

Há que salientar que, na medida em que o seu objeto apresenta um interesse transfronteiriço certo, o referido procedimento está sujeito às regras fundamentais do Tratado FUE, em especial aos princípios da não discriminação e da igualdade de tratamento entre operadores económicos e à obrigação de transparência que daí decorre, que exige que se proceda a uma publicidade adequada. A este respeito, numa situação como a que está em causa no processo principal, os Estados‑Membros dispõem de uma certa margem de apreciação para adotar medidas destinadas a garantir o respeito do princípio da igualdade de tratamento e da obrigação de transparência.

45

Contudo, a exigência de transparência implica uma publicidade que permita aos operadores económicos potencialmente interessados ter pleno conhecimento do desenvolvimento e das características essenciais de um procedimento de admissão como o que está em causa no processo principal.

46

Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar se o procedimento de admissão em causa no processo principal satisfaz essas exigências.

47

Por conseguinte, há que responder à segunda questão submetida que, na medida em que o objeto de um procedimento de admissão a um sistema de acordos como o que está em causa no processo principal apresente um interesse transfronteiriço certo, o referido procedimento deve ser concebido e organizado em conformidade com as regras fundamentais do Tratado FUE, em especial com os princípios da não discriminação e da igualdade de tratamento entre operadores económicos e com a obrigação de transparência que daí decorre.

Quanto às despesas

48

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção), declara:

 

1)

O artigo 1.o, n.o 2, alínea a), da Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, deve ser interpretado no sentido de que não constitui um contrato público, na aceção da referida diretiva, um sistema de acordos, como o que está em causa no processo principal, mediante o qual uma entidade pública pretende adquirir bens no mercado contratando, durante toda a vigência desse sistema, com qualquer operador económico que se comprometa a fornecer os bens em causa em condições preestabelecidas, sem proceder a uma seleção entre os operadores interessados e permitindo que esses operadores adiram ao referido sistema durante toda a vigência do mesmo.

 

2)

Na medida em que o objeto de um procedimento de admissão a um sistema de acordos como o que está em causa no processo principal apresente um interesse transfronteiriço certo, o referido procedimento deve ser concebido e organizado em conformidade com as regras fundamentais do Tratado FUE, em especial com os princípios da não discriminação e da igualdade de tratamento entre operadores económicos e com a obrigação de transparência que daí decorre.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.

Top