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Document 62014CJ0336

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 4 de fevereiro de 2016.
    Processo penal contra Sebat Ince.
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Amtsgericht Sonthofen.
    Livre prestação de serviços — Artigo 56.° TFUE — Jogos de fortuna e azar — Monopólio público das apostas em competições desportivas — Autorização administrativa prévia — Exclusão dos operadores privados — Recolha de apostas por conta de um operador estabelecido noutro Estado‑Membro — Sanções penais — Disposição nacional contrária ao direito da União — Exclusão — Transição para um regime que prevê a atribuição de um número limitado de concessões a operadores privados — Princípios da transparência e da imparcialidade — Diretiva 98/34/CE — Artigo 8.° — Regras técnicas — Regras relativas aos serviços — Obrigação de notificação.
    Processo C-336/14.

    Court reports – general

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2016:72

    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

    4 de fevereiro de 2016 ( *1 )

    «Livre prestação de serviços — Artigo 56.o TFUE — Jogos de fortuna e azar — Monopólio público das apostas em competições desportivas — Autorização administrativa prévia — Exclusão dos operadores privados — Recolha de apostas por conta de um operador estabelecido noutro Estado‑Membro — Sanções penais — Disposição nacional contrária ao direito da União — Exclusão — Transição para um regime que prevê a atribuição de um número limitado de concessões a operadores privados — Princípios da transparência e da imparcialidade — Diretiva 98/34/CE — Artigo 8.o — Regras técnicas — Regras relativas aos serviços — Obrigação de notificação»

    No processo C‑336/14,

    que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Amtsgericht Sonthofen (Tribunal Cantonal de Sonthofen, Alemanha), por decisão de 7 de maio de 2013, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 11 de julho de 2014, no processo penal contra

    Sebat Ince,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

    composto por: A. Tizzano, vice‑presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de presidente da Primeira Secção, A. Borg Barthet, E. Levits, M. Berger e S. Rodin (relator), juízes,

    advogado‑geral: M. Szpunar,

    secretário: M. Aleksejev, administrador,

    vistos os autos e após a audiência de 10 de junho de 2015,

    vistas as observações apresentadas:

    em representação de Sebat Ince, por M. Arendts, R. Karpenstein e R. Reichert, Rechtsanwälte,

    em representação do Governo alemão, por T. Henze e J. Möller, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo belga, por P. Vlaemminck, B. Van Vooren, R. Verbeke, advocaten, M. Jacobs, L. Van den Broeck e J. Van Holm, na qualidade de agentes,

    em representação do Governo helénico, por E.‑M. Mamouna e M. Tassopoulou, na qualidade de agentes,

    em representação da Comissão Europeia, por G. Braun e H. Tserepa‑Lacombe, na qualidade de agentes,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 22 de outubro de 2015,

    profere o presente

    Acórdão

    1

    O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 56.o TFUE e do artigo 8.o da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (JO L 204, p. 37), conforme alterada pela Diretiva 98/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de julho de 1998 (JO L 217, p. 18, a seguir «Diretiva 98/34»).

    2

    Este pedido foi apresentado no âmbito de dois processos penais instaurados contra S. Ince, acusada de ter procedido, sem autorização da autoridade competente, à intermediação de apostas desportivas no território do Land da Baviera.

    Quadro jurídico

    Direito da União

    3

    Os considerandos 5 a 7 da Diretiva 98/34 têm a seguinte redação:

    «(5)

    Considerando que é indispensável que a Comissão disponha das informações necessárias antes da adoção das disposições técnicas; que os Estados‑Membros que, por força do artigo 5.o do Tratado, são obrigados a facilitar o cumprimento da sua missão, devem notificá‑la dos seus projetos no domínio das regulamentações técnicas;

    (6)

    Considerando que todos os Estados‑Membros devem ser igualmente informados das regulamentações técnicas previstas por um deles;

    (7)

    Considerando que o mercado interno tem por objetivo garantir um ambiente favorável à competitividade das empresas; que uma melhor exploração das vantagens deste mercado pelas empresas passa, nomeadamente, por uma maior informação; que, por conseguinte, é conveniente prever a possibilidade de os operadores económicos poderem expressar a sua opinião sobre o impacto das regulamentações nacionais técnicas projetadas por outros Estados‑Membros, mediante a publicação regular dos títulos dos projetos notificados e da alteração das disposições relativas a confidencialidade destes.»

    4

    O artigo 1.o da diretiva dispõe:

    «Para efeitos da presente diretiva entende‑se por:

    1)

    ‘Produto’: qualquer produto de fabrico industrial e qualquer produto agrícola, incluindo produtos da pesca.

    2)

    ‘Serviço’: qualquer serviço da sociedade da informação, isto é, qualquer serviço prestado normalmente mediante remuneração, à distância, por via eletrónica e mediante pedido individual de um destinatário de serviços.

    [...]

    3)

    ‘Especificação técnica’: a especificação que consta de um documento que define as características exigidas de um produto, tais como os níveis de qualidade ou de propriedade de utilização, a segurança, as dimensões, incluindo as prescrições aplicáveis ao produto no que respeita à denominação de venda, à terminologia, aos símbolos, aos ensaios e métodos de ensaio, à embalagem, à marcação e à rotulagem, bem como aos processos de avaliação da conformidade.

    [...]

    4)

    ‘Outra exigência’: uma exigência, distinta de uma especificação técnica, imposta a um produto por motivos de defesa, nomeadamente dos consumidores, ou do ambiente, e que vise o seu ciclo de vida após a colocação no mercado, como sejam condições de utilização, de reciclagem, de reutilização ou de eliminação, sempre que essas condições possam influenciar significativamente a composição ou a natureza do produto ou a sua comercialização.

    5)

    ‘Regra relativa aos serviços’: um requisito de natureza geral relativo ao acesso às atividades de serviços referidas no n.o 2 do presente artigo e ao seu exercício, nomeadamente as disposições relativas ao prestador de serviços, aos serviços e ao destinatário de serviços, com exclusão das regras que não visem especificamente os serviços definidos nessa mesma disposição.

    [...]

    11)

    ‘Regra técnica’: uma especificação técnica, outro requisito ou uma regra relativa aos serviços, incluindo as disposições administrativas que lhes são aplicáveis e cujo cumprimento seja obrigatório de jure ou de facto, para a comercialização, a prestação de serviços, o estabelecimento de um operador de serviços ou a utilização num Estado‑Membro ou numa parte importante desse Estado, assim como, sob reserva das disposições referidas no artigo 10.o, qualquer disposição legislativa, regulamentar ou administrativa dos Estados‑Membros que proíba o fabrico, a importação, a comercialização, ou a utilização de um produto ou a prestação ou utilização de um serviço ou o estabelecimento como prestador de serviços.

    [...]»

    5

    O artigo 8.o, n.o 1, da mesma diretiva dispõe:

    «Sob reserva do disposto no artigo 10.o, os Estados‑Membros comunicarão imediatamente a Comissão qualquer projeto de regra técnica, exceto se se tratar da mera transposição integral de uma norma internacional ou europeia, bastando neste caso uma simples informação relativa a essa norma. Enviarão igualmente à Comissão uma notificação referindo as razões da necessidade do estabelecimento dessa regra técnica, salvo se as mesmas já transparecerem do projeto.

    Se necessário, e salvo se tiver sido apresentado com uma comunicação anterior, os Estados‑Membros comunicarão simultaneamente o texto das disposições legislativas e regulamentares de base, principal e diretamente em causa, caso o conhecimento deste texto seja necessário para apreciar o alcance do projeto de regra técnica.

    Os Estados‑Membros farão uma nova comunicação nas mesmas condições, caso introduzam alterações significativas no projeto de regra técnica que tenham por efeito modificar o âmbito de aplicação, reduzir o calendário de aplicação inicialmente previsto, aditar especificações ou exigências ou torna‑las mais rigorosas.

    [...]»

    Direito alemão

    Direito federal

    6

    O § 284 do Strafgesetzbuch (Código Penal) enuncia:

    «(1)   Quem organizar ou mantiver publicamente jogos de fortuna e azar sem autorização administrativa ou facultar as instalações necessárias para o efeito é punido com pena de prisão até dois anos ou multa.

    [...]

    (3)   Quem, nos casos previstos no n.o 1, atuar:

    1.

    no âmbito profissional ou

    2.

    como membro de uma organização criminosa cujo objetivo seja a prática continuada desses crimes,

    é punido com pena de prisão de três meses a cinco anos.

    [...]»

    Tratado sobre os jogos de fortuna e azar

    7

    Através do Staatsvertrag zum Lotteriewesen in Deutschland (Tratado estatal relativo às lotarias na Alemanha, a seguir «tratado relativo às lotarias»), que entrou em vigor em 1 de julho de 2004, os Länder criaram um quadro regulamentar uniforme para a organização, a exploração e a colocação, a título comercial, de jogos de fortuna e azar, com exceção dos casinos.

    8

    Num acórdão de 28 de março de 2006, o Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal) declarou, a propósito da regulamentação que transpõe o tratado relativo às lotarias no Land da Baviera, que o monopólio público de apostas em competições desportivas existente nesse Land violava o artigo 12.o, n.o 1, da Grundgesetz (Constituição), que garante a liberdade profissional. Esse tribunal considerou, nomeadamente, que, uma vez que excluía a atividade de organização de apostas privadas, sem, no entanto, ser acompanhado de um quadro regulamentar adequado a garantir estrutural e substancialmente, quer de direito quer de facto, que os objetivos de redução da paixão pelo jogo e de luta contra a sua dependência fossem efetivamente prosseguidos, esse monopólio gerava uma violação desproporcionada da liberdade profissional assim garantida.

    9

    O Staatsvertrag zum Glücksspielwesen (Tratado estatal sobre os jogos de fortuna e azar, a seguir «tratado sobre os jogos de fortuna e azar»), que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2008, instituiu um novo quadro regulamentar uniforme para a organização, a exploração e a intermediação de jogos de fortuna e azar, destinado a cumprir as exigências impostas pelo Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal) no referido acórdão de 28 de março de 2006. O tratado sobre os jogos de fortuna e azar tinha sido notificado à Comissão na fase de projeto, nos termos do artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 98/34.

    10

    Nos termos do § 1 do tratado sobre os jogos de fortuna e azar, os respetivos objetivos eram os seguintes:

    «1.

    evitar a dependência dos jogos de fortuna e azar e das apostas e criar as condições para lutar eficazmente contra a dependência,

    2.

    limitar a oferta de jogos de fortuna e azar e canalizar de forma organizada e controlada o instinto de jogo da população, prevenindo, nomeadamente, uma deriva para os jogos de fortuna e azar não autorizados,

    3.

    garantir a proteção dos menores e dos jogadores,

    4.

    assegurar o bom desenrolar dos jogos de fortuna e azar, a proteção dos jogadores contra as manobras fraudulentas e prevenir a criminalidade associada aos jogos de fortuna e azar e decorrentes deles.»

    11

    O § 4 desse tratado dispunha:

    «(1)   A organização ou a intermediação de jogos públicos de fortuna e azar só podem ser exercidas com autorização da autoridade competente do Land em causa. Qualquer organização ou intermediação desses jogos é proibida sem essa autorização (jogo de fortuna e azar ilícito).

    (2)   A autorização não será concedida se a organização ou a intermediação do jogo de fortuna e azar forem contrárias aos objetivos do § 1. Não será concedida autorização para a intermediação de jogos de fortuna e azar ilícitos nos termos do presente tratado. Não existe nenhum direito adquirido à obtenção de uma autorização.

    [...]

    (4)   São proibidas a organização e a intermediação de jogos públicos de fortuna e azar na Internet.»

    12

    Por força do § 5, n.o 3, do referido tratado:

    «É proibida a publicidade aos jogos públicos de fortuna e azar na televisão […], na Internet e através de equipamentos de telecomunicações.»

    13

    O § 10 deste mesmo tratado tinha a seguinte redação:

    «(1)   Para a prossecução dos objetivos enunciados no § 1, os Länder têm a obrigação regulamentar de garantir uma oferta de jogos de fortuna e azar suficiente. São assistidos por um comité técnico constituído por peritos especializados na luta contra a dependência dos jogos de fortuna e azar.

    (2)   Nos termos da lei, os Länder podem assumir essa função por si próprios ou por intermédio de pessoas coletivas de direito público ou de sociedades de direito privado em que exista uma participação, direta ou indireta determinante detida por pessoas coletivas de direito público.

    [...]

    (5)   Só a organização de lotarias e de jogos em conformidade com as disposições da terceira secção pode ser autorizada a pessoas diferentes das referidas no n.o 2.»

    14

    O § 21, n.o 2, do tratado sobre os jogos de fortuna e azar proibia, nomeadamente, que a organização e a intermediação de apostas desportivas ou a publicidade relativa a essas apostas estivessem associadas à retransmissão de eventos desportivos por serviços de radiodifusão e de telecomunicações.

    15

    O § 25, n.o 6, desse tratado enunciava as condições em que os Länder estavam autorizados, em derrogação do § 4, n.o 4, do referido tratado, a permitir a organização e a intermediação de lotarias na Internet.

    16

    O § 28, n.o 1, desse mesmo tratado previa a possibilidade de os Länder prorrogarem o seu termo até 31 de dezembro de 2011. Os Länder não exerceram essa faculdade. Contudo, cada um deles, com exceção do Land de Schleswig‑Holstein, adotou disposições que previam que, no termo do tratado sobre os jogos de fortuna e azar, as suas regras continuariam a ser aplicadas como legislação do Land até à entrada em vigor de um novo tratado entre os Länder. Na Baviera, a disposição para o referido efeito figurava no artigo 10.o, n.o 2, da Bayerisches Gesetz zur Ausführung des Staatsvertrages zum Glücksspielwesen in Deutschland (Lei bávara de execução do tratado sobre os jogos de fortuna e azar), de 20 de dezembro de 2007 (GVBl S. 922, BayRS 2187‑3‑I; a seguir «lei de execução do tratado sobre os jogos de fortuna e azar»). Nem esta lei nem as disposições correspondentes adotadas pelos outros Länder foram notificadas à Comissão na fase de projeto, nos termos do artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 98/34.

    Tratado modificativo em matéria de jogos de fortuna ou azar

    17

    O Glücksspieländerungsvertrag (Tratado modificativo em matéria de jogos de fortuna e azar, a seguir «tratado modificativo»), celebrado entre os Länder, entrou em vigor na Baviera, em 1 de julho de 2012.

    18

    Os §§ 1 e 4 do tratado modificativo são, em substância, idênticos aos §§ 1 e 4 do tratado sobre os jogos de fortuna e azar.

    19

    O § 10 do tratado modificativo dispõe:

    «(1)   Para a prossecução dos objetivos enunciados no § 1, os Länder têm a obrigação regulamentar de garantir uma oferta de jogos de fortuna e azar suficiente. São assistidos por um comité técnico. O referido comité é constituído por pessoas que, tendo em conta os objetivos previstos no § 1, dispõem de experiência científica ou prática especial.

    (2)   Nos termos da lei, os Länder podem assumir essa função quer por si próprios, quer por intermédio de um organismo público gerido conjuntamente por todos Länder partes no tratado [modificativo], quer por intermédio de pessoas coletivas de direito público ou de sociedades de direito privado em que exista uma participação direta ou indireta, determinante por pessoas coletivas de direito público.

    [...]

    (6)   Só a organização de lotarias e de jogos em conformidade com as disposições da terceira secção pode ser autorizada a pessoas diferentes das referidas nos n.os 2 e 3.»

    20

    Segundo o § 10a do tratado modificativo, intitulado «Cláusula experimental relativa a apostas desportivas»:

    «(1)   Para prosseguir da melhor forma os objetivos enunciados no § 1, nomeadamente no âmbito da luta contra o mercado negro cuja existência foi constatada quando da avaliação, o § 10, n.o 6, não se aplicará à organização de apostas desportivas durante um período de sete anos a contar da entrada em vigor do primeiro tratado modificativo sobre os jogos de fortuna e azar.

    (2)   Durante esse período, as apostas desportivas só podem ser organizadas mediante uma concessão (§§ 4a a 4e).

    (3)   O número máximo de concessões é fixado em 20.

    (4)   A concessão confere ao concessionário, segundo as disposições essenciais e as disposições acessórias fixadas em conformidade com o § 4c, n.o 2, o direito de organizar e de proceder à intermediação de apostas desportivas na Internet, em derrogação da proibição prevista no § 4, n.o 4. O § 4, n.os 5 e 6, é aplicável por analogia. O âmbito de aplicação da concessão está limitado ao território da República Federal da Alemanha e ao dos Estados‑Membros que reconhecem a validade da autorização alemã no seu território nacional.

    (5)   Os Länder limitarão o número de organismos de intermediação de apostas, de modo a alcançar os objetivos previstos no § 1. A intermediação de apostas desportivas nesses organismos necessita da autorização prevista no § 4, n.o 1, primeira frase. O § 29, n.o 2, segunda frase, é aplicável por analogia.»

    21

    O § 29 do tratado modificativo permite aos operadores públicos titulares de uma licença para organização de apostas desportivas, bem como aos seus intermediários, continuarem a oferecer essas apostas durante um ano a contar da emissão da primeira concessão, sem disporem eles mesmos de uma concessão.

    22

    Os §§ 4a a 4e do tratado modificativo estabelecem o regime de concessões. Em especial, o § 4a, n.o 4, desse tratado enuncia as condições a que a atribuição de uma concessão está sujeita e exige, nomeadamente, que seja demonstrada a origem lícita dos meios necessários à organização de jogos de fortuna e azar. O § 4b do referido tratado prevê as modalidades do processo de atribuição das concessões. Esse parágrafo enumera, nomeadamente no seu n.o 5, os critérios que permitem escolher vários candidatos aptos para obter a concessão.

    Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    23

    O órgão jurisdicional de reenvio é chamado a pronunciar‑se sobre as acusações formuladas pelo Staatsanwaltschaft Kempten, Land da Baviera (Ministério Público de Kempten), no âmbito de dois processos penais apensos instaurados, nos termos do § 284 do Código Penal, contra S. Ince, cidadã turca com domicílio na Alemanha.

    24

    O Ministério Público de Kempten acusa S. Ince de ter exercido atividades de intermediação de apostas desportivas, sem dispor de uma autorização emitida pela autoridade competente do Land em causa, através de uma máquina de apostas instalada num bar desportivo situado na Baviera. S. Ince recolheu essas apostas por conta de uma sociedade com sede na Áustria e titular de uma licença nesse Estado‑Membro que a autoriza a organizar apostas desportivas. Contudo, a referida sociedade não era titular de uma licença para organizar essas apostas na Alemanha.

    25

    As acusações que recaem sobre S. Ince dizem respeito, no que se refere ao primeiro processo penal, ao período compreendido entre 11 e 12 de janeiro de 2012, e, no que se refere ao segundo processo penal, ao período compreendido entre 13 de abril e 7 de novembro de 2012. Os referidos processos distinguem‑se, em substância, unicamente no que respeita ao regime jurídico alemão em vigor à data dos factos imputados.

    26

    Os factos na origem da primeira acusação, bem como da segunda acusação relativamente ao período compreendido entre 13 de abril e 30 de junho de 2012, estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da lei de execução do tratado sobre os jogos de fortuna e azar, que previa que, depois do termo desse tratado, as suas regras continuavam a ser aplicadas na Baviera como direito do Land. O referido tratado instituía um monopólio em matéria de organização e de intermediação de apostas desportivas, por um lado, proibindo, no seu § 4, n.o 1, a organização e a intermediação de apostas desportivas sem autorização emitida pela autoridade competente do Land da Baviera e, por outro, excluindo, no seu § 10, n.o 5, a concessão dessas autorizações a operadores privados.

    27

    Nos acórdãos Stoß e o. (C‑316/07, C‑358/07 a C‑360/07, C‑409/07 e C‑410/07, EU:C:2010:504) e Carmen Media Group (C‑46/08, EU:C:2010:505), o Tribunal de Justiça decidiu que os órgãos jurisdicionais alemães podiam legitimamente vir a considerar que o monopólio público resultante do tratado relativo às lotarias e do tratado sobre os jogos de fortuna e azar não é adequado a garantir a realização de objetivos de interesse geral invocados pelo legislador alemão de uma forma coerente e sistemática, pelo facto de, nomeadamente, os titulares desse monopólio público fazerem campanhas publicitárias intensivas e as autoridades competentes levarem a cabo políticas destinadas a encorajar a participação em certos jogos de fortuna e azar não abrangidos pelo referido monopólio e que provocam um risco de dependência especialmente elevado.

    28

    Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, todos os órgãos jurisdicionais alemães chamados a determinar, na sequência dos referidos acórdãos do Tribunal de Justiça, se o monopólio público das apostas desportivas respeitava o direito da União concluíram que isso não se verificava. Contudo, esses órgãos jurisdicionais não estão de acordo quanto às consequências que devem ser retiradas da ilegalidade do referido monopólio.

    29

    Por um lado, certos órgãos jurisdicionais alemães, entre os quais os tribunais administrativos superiores, tal como certas autoridades administrativas, consideram que só o § 10, n.o 5, do tratado sobre os jogos de fortuna e azar, que prevê a exclusão dos operadores privados, é incompatível com o direito da União, sendo a obrigação de autorização estipulada no § 4, n.o 1, desse tratado, em princípio, conforme com esse direito. Por conseguinte, esses órgãos jurisdicionais rejeitaram a aplicação da disposição que prevê a exclusão dos operadores privados por força do princípio do primado do direito da União. Consideraram que a esses operadores deviam ser aplicadas as condições materiais previstas no tratado sobre os jogos de fortuna e azar e que aos operadores públicos deviam ser aplicadas as leis de execução dos Länder relativas à concessão de autorizações. Assim, segundo os referidos órgãos jurisdicionais, há que examinar, caso a caso, se um operador privado pode obter, segundo um processo de autorização fictício, uma autorização nas condições previstas para os titulares do monopólio público e os seus intermediários (a seguir «processo de autorização fictício»).

    30

    O Bundesverwaltungsgericht (Tribunal Administrativo Federal) validou e, posteriormente, completou a jurisprudência proferida na sequência dos acórdãos Stoß e o. (C‑316/07, C‑358/07 a C‑360/07, C‑409/07 e C‑410/07, EU:C:2010:504) e Carmen Media Group (C‑46/08, EU:C:2010:505), mediante diversos acórdãos proferidos em 16 de maio de 2013, permitindo a proibição preventiva da organização e da intermediação de apostas desportivas por um operador privado sem autorização alemã, até à verificação, pelas autoridades competentes, da aptidão desse operador para beneficiar dessa autorização, a menos que seja manifesto que estão reunidas as condições materiais da concessão de uma autorização, previstas para os operadores públicos, com exceção das disposições potencialmente ilegais relativas ao regime de monopólio.

    31

    O órgão jurisdicional de reenvio salienta que nenhum operador privado obteve autorização para a organização ou a intermediação de apostas desportivas em território alemão no termo de um processo de autorização fictício.

    32

    Por outro lado, outros órgãos jurisdicionais alemães consideram que, uma vez que do efeito combinado da obrigação de autorização e da exclusão dos operadores privados, previstas pelo tratado sobre os jogos de fortuna e azar, e das leis de execução dos Länder resulta uma violação do direito da União, o facto de rejeitar a aplicação da referida exclusão e de a substituir pelo processo de autorização fictício não basta para suprir a ilegalidade constatada. Em apoio desta abordagem, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o processo e os critérios de autorização previstos pelo tratado sobre os jogos de fortuna e azar e pelas leis de execução deste tratado foram concebidos exclusivamente para os operadores públicos que organizam apostas desportivas e os seus intermediários.

    33

    Os factos que estão na origem da segunda acusação relativamente ao período compreendido entre 1 de julho e 7 de novembro de 2012 eram regulados pelo tratado modificativo. A cláusula experimental relativa a apostas desportivas, instituída pelo § 10a desse tratado, levantou, até 30 de junho de 2019, a proibição de conceder a operadores privados uma autorização para organizar jogos de fortuna e azar, ao abrigo do § 10, n.o 6, do referido tratado, no que se refere às apostas desportivas. Assim, teoricamente, os operadores privados podem obter essa autorização através da atribuição prévia de uma concessão para a organização de apostas desportivas.

    34

    Nos termos dessa nova regulamentação, cabe ao organizador de apostas desportivas obter essa concessão. Uma vez atribuída a concessão a esse organizador, os seus intermediários podem obter uma autorização para recolher as apostas por conta deste último. O referido § 10a prevê a atribuição de um número máximo de 20 concessões a operadores públicos e/ou privados, no termo de um processo organizado de forma centralizada para todo o território alemão. No entanto, por força do § 29 do tratado modificativo, a obrigação de ser titular de uma concessão só é aplicável aos organizadores públicos já em atividade e aos intermediários a partir do ano seguinte à atribuição da primeira concessão.

    35

    Em 8 de agosto de 2012, a autoridade responsável pela concessão publicou no Jornal Oficial da União Europeia um anúncio que submetia a concurso 20 concessões para o exercício de atividades de organização de apostas desportivas.

    36

    Num primeiro tempo, foi organizada uma fase de pré‑seleção para eliminar os candidatos que não cumpriam os requisitos mínimos para obter uma concessão. Seguiu‑se, num segundo tempo, uma fase de negociação durante a qual os candidatos admitidos no termo da primeira fase eram convidados a apresentar os seus projetos à autoridade concedente. No fim dessa segunda fase, foi realizada uma seleção comparativa com base em diversos critérios.

    37

    Alguns operadores privados expressaram dúvidas quanto à transparência e à imparcialidade desse processo.

    38

    O órgão jurisdicional de reenvio salientou que, à data da apresentação do pedido de decisão prejudicial, ainda não tinha sido atribuída nenhuma concessão ao abrigo do § 10a do tratado modificativo. Nas suas observações escritas, o Governo alemão indicou que, embora tivessem sido escolhidos 20 candidatos no termo da fase de seleção, a atribuição das concessões tinha sido suspensa por despachos proferidos no âmbito de providências cautelares intentadas por alguns dos candidatos excluídos. Na audiência de 10 de junho de 2015, esse governo precisou que as concessões ainda não tinham sido atribuídas até à data, devido a outros incidentes ocorridos no âmbito de processos judiciais nacionais.

    39

    O órgão jurisdicional de reenvio considera que os elementos objetivos da infração imputada a S. Ince nos termos do § 284 do Código Penal estão reunidos, uma vez que esta exerceu atividades de intermediação de apostas desportivas sem ter autorização para o efeito. Contudo, o referido órgão jurisdicional tem dúvidas quanto ao caráter punível dessas atividades à luz do direito da União.

    40

    Nestas condições, o Amtsgericht Sonthofen (Tribunal Cantonal de Sonthofen) decidiu suspender a instância e submeter as seguintes questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça:

    «[I.] Quanto à primeira acusação (janeiro de 2012) e quanto à segunda acusação [relativamente ao período decorrido] até ao final de junho de 2012:

    1)

    a)

    O artigo 56.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que as autoridades [repressivas] competentes estão proibidas de punir a intermediação de apostas desportivas, realizada sem autorização alemã, [por] organizadores de apostas autorizados noutro Estado‑Membro da União Europeia, quando a intermediação também pressupõe uma autorização alemã do organizador, estando as entidades nacionais, no entanto, proibidas de atribuir uma autorização a organizadores de apostas não estatais, por força de legislação contrária ao direito da União (‘monopólio das apostas desportivas’)?

    b)

    A resposta à questão [1, alínea a)] será diferente se, num dos 15 Länder alemães que criaram e [exploram] em conjunto o monopólio estatal [das] apostas desportivas, as entidades públicas [sustentarem], em processos penais e de interdição, que a proibição legal de concessão de autorizações a operadores privados não [se aplica] no caso de um eventual pedido de autorização de organização ou de intermediação […]?

    c)

    Os princípios consagrados no direito da União, em particular a livre prestação de serviços, bem como o acórdão do Tribunal de Justiça [Stanleybet International e o. (C‑186/11 e C‑209/11, EU:C:2013:33)] devem ser interpretados no sentido de que se opõem à proibição permanente, [caracterizada como preventiva, ou à punição] da intermediação transfronteiriça de apostas desportivas, […] quando tal é fundamentado com o facto de que, para a autoridade responsável pela proibição, à data da sua decisão, não era ‘manifesto, ou seja, não era possível concluir sem o recurso a uma investigação mais aprofundada,’ que a atividade de intermediação cumpr[ia] todos os requisitos materiais da autorização — com exceção da reserva do monopólio […] do Estado?

    2)

    A Diretiva 98/34 deve ser interpretada no sentido de que se opõe à punição da intermediação de apostas desportivas, realizada sem a autorização alemã e [através] de uma máquina de apostas, [por] um organizador de apostas autorizado noutro Estado‑Membro, quando as interferências estatais se baseiam numa lei de um único Land alemão, que não foi notificada à Comissão Europeia e [cujo teor corresponde ao] [tratado sobre os jogos de fortuna e azar], que já não está em vigor?

    II. Quanto à segunda acusação, [relativamente] ao período a partir de julho de 2012:

    3)

    O artigo 56.o TFUE, o princípio da transparência, o princípio da igualdade e a proibição de favoritismo previst[os] no direito da União devem ser interpretados no sentido de que se opõem à punição da intermediação de apostas desportivas, [realizada] sem uma autorização alemã, [por] um organizador de apostas autorizado noutro Estado‑Membro, numa situação caracterizada pelo [tratado modificativo] […], em vigor por nove anos, como ‘cláusula experimental relativa a apostas desportivas’, que prevê durante sete anos a possibilidade teórica de atribuir um máximo de 20 concessões também a organizadores de apostas não estatais, com efeitos de legalização em todos os Länder alemães como requisito necessário para uma autorização de intermediação, quando:

    a)

    o processo de concessão e os litígios suscitados neste contexto são [tratados] pela autoridade responsável pela concessão em conjunto com o escritório de advogados que presta regularmente serviços de aconselhamento jurídico à maioria dos Länder alemães e às suas empresas de lotaria, no contexto do monopólio das apostas desportivas contrário ao direito da União, e que os representou perante os órgãos jurisdicionais nacionais, nos litígios contra operadores de apostas privados, para além de ter sido mandatário das entidades estatais nos processos de decisão prejudicial Markus Stoß [e o.] [(C‑316/07, C‑358/07 a C‑360/07, C‑409/07 e C‑410/07, EU:C:2010:504)], Carmen Media [Group (C‑46/08, EU:C:2010:505)] e Winner Wetten [(C‑409/06, EU:C:2010:503)];

    b)

    do [anúncio de] concurso público relativo à concessão, publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 8 de agosto de 2012, não resulta[v]am quaisquer detalhes quanto aos requisitos mínimos a cumprir pelas propostas a apresentar, […] ao conteúdo das restantes declarações e provas exigidas, bem como quanto à seleção dos 20 concessionários, no máximo, tendo os detalhes, pelo contrário, apenas sido comunicados após o termo do prazo de candidatura, por via de um denominado ‘memorando informativo’ e de vários outros documentos, [aos] candidatos que se tivessem qualificado para uma ‘segunda fase’do processo de concessão;

    c)

    oito meses após o início do processo, a autoridade responsável pela concessão, contrariamente ao disposto no anúncio do concurso, apenas convidou [catorze] candidatos à concessão de autorizações para a apresentação pessoal das suas propostas em matéria social e de segurança, alegando que tinham cumprido a 100% os requisitos mínimos para uma concessão, mas, [quinze] meses após o início do processo, comunicou que nenhum dos candidatos tinha demonstrado cumprir os requisitos mínimos ‘de maneira comprovável’;

    d)

    o candidato à concessão controlado pelo Estado […], constituído por uma associação entre as sociedades de lotaria estatais, se inclui entre os [catorze] candidatos que foram convidados a apresentar as suas propostas à autoridade responsável pela concessão, mas não tem [condições] para obter a concessão devido às suas ligações com organizadores de eventos desportivos, porque a legislação […] exige uma separação rígida entre, [por um lado, as atividades desportivas] e as associações que [as] organizam [e, por outro, a] organização e [a] intermediação de apostas desportivas;

    e)

    para ser atribuída uma concessão é exigida, designadamente, a demonstração ‘da origem lícita dos meios necessários para a organização das […] ofertas em matéria de apostas desportivas’,

    f)

    a autoridade responsável pela concessão e o colégio que decide sobre a atribuição das concessões em matéria de jogos de fortuna e azar [(‘Glücksspielkollegium’)], composto por representantes dos Länder, não recorreram à possibilidade de [atribuir concessões] a organizadores de apostas privados, enquanto as empresas de lotaria estatais podem continuar a organizar, sem qualquer concessão, apostas desportivas, lotarias e outros jogos de fortuna e azar, bem como a vendê‑los e publicitá‑los através da sua rede nacional de agências de apostas, até um ano após a eventual [atribuição] da concessão?»

    Apreciação do Tribunal de Justiça

    Quanto à competência do Tribunal de Justiça

    41

    O Governo belga contesta, em substância, a competência do Tribunal de Justiça para responder às questões prejudiciais, uma vez que a situação em causa no processo principal não está abrangida pelo âmbito de aplicação da livre prestação de serviços, que, à luz da redação do artigo 56.o TFUE, só beneficia os nacionais dos Estados‑Membros, com exclusão dos nacionais de Estados terceiros, como S. Ince.

    42

    A este respeito, há que observar que, na medida em que S. Ince recolhia apostas desportivas por conta de uma sociedade estabelecida na Áustria, a situação em causa no processo principal decorre do exercício, por essa sociedade, da livre prestação de serviços garantida pelo artigo 56.o TFUE.

    43

    Com efeito, quando uma empresa estabelecida num Estado‑Membro exerce uma atividade de recolha de apostas por intermédio de um operador económico estabelecido noutro Estado‑Membro, as restrições impostas às atividades desse operador estão abrangidas pelo âmbito de aplicação da livre prestação de serviços (v., por analogia, acórdão Gambelli e o., C‑243/01, EU:C:2003:597, n.o 46).

    44

    Por conseguinte, o Tribunal de Justiça é competente para responder às questões prejudiciais.

    Quanto à primeira questão

    Quanto à admissibilidade

    45

    O Governo alemão invoca a inadmissibilidade da primeira questão, alínea a), por ter caráter hipotético, uma vez que, atendendo à prática de algumas autoridades administrativas e judiciárias da Baviera, que consiste em aplicar «ficticiamente» aos operadores privados os requisitos de autorização previstos para selecionar os titulares de direitos exclusivos ao abrigo do monopólio público declarado contrário ao direito da União, na realidade, esse monopólio deixou de existir.

    46

    Este argumento deve ser rejeitado na medida em que a compatibilidade dessa prática com o artigo 56.o TFUE constitui, precisamente, o objeto da segunda e da terceira parte da primeira questão. Assim, a resposta do Tribunal de Justiça à primeira parte desta questão continua a ser necessária para a resolução do litígio no processo principal, no caso de o Tribunal de Justiça considerar, em resposta à segunda e terceira partes da referida questão, que essa prática não permite garantir a conformidade com o artigo 56.o TFUE de um regime de monopólio público, como o resultante das disposições do tratado sobre os jogos de fortuna e azar e das suas leis regionais de execução, declaradas contrárias ao direito da União nos termos de constatações feitas pelos órgãos jurisdicionais nacionais.

    47

    Por outro lado, o Governo grego contesta a admissibilidade da primeira questão, alíneas b) e c), por ter caráter hipotético, devido ao facto de as autoridades alemãs não terem tido oportunidade de examinar a aptidão de S. Ince para obter uma autorização para a organização ou a intermediação de apostas desportivas.

    48

    A esse respeito, há que recordar que resulta da jurisprudência que um Estado‑Membro não pode aplicar uma sanção penal pelo não cumprimento de uma formalidade administrativa, quando o cumprimento dessa formalidade é recusado ou impossibilitado por esse Estado‑Membro, em violação do direito da União. Uma vez que a primeira questão prejudicial, alíneas b) e c), visa determinar se os requisitos a que a lei nacional sujeitava a atribuição de uma autorização eram contrários ao direito da União, a relevância dessa questão para a resolução do litígio pendente no órgão jurisdicional de reenvio não pode ser posta em causa (v., neste sentido, acórdão Costa e Cifone, C‑72/10 e C‑77/10, EU:C:2012:80, n.o 43).

    49

    Resulta das considerações precedentes que a primeira questão é admissível.

    Quanto ao mérito

    50

    Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 56.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades repressivas de um Estado‑Membro punam a intermediação de apostas desportivas, realizada sem autorização, por um operador privado por conta de outro operador privado que não dispõe de uma autorização para organizar apostas desportivas nesse Estado‑Membro, mas é titular de uma licença noutro Estado‑Membro, quando a obrigação de possuir uma autorização para a organização ou a intermediação de apostas desportivas se inscreva no âmbito de um monopólio público que os órgãos jurisdicionais nacionais declararam contrário ao direito da União. Além disso, o referido órgão jurisdicional pergunta se o artigo 56.o TFUE se opõe a essa punição, mesmo quando, teoricamente, um operador privado possa obter uma autorização para a organização ou a intermediação de apostas desportivas, na medida em que o conhecimento do processo de concessão dessa autorização não esteja garantido e que o regime de monopólio público das apostas desportivas, que os órgãos jurisdicionais nacionais declararam contrário ao direito da União, se tenha mantido apesar da adoção do referido processo.

    51

    Assim, o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça, essencialmente, sobre as consequências que as autoridades administrativas e judiciárias de um Estado‑Membro devem retirar da declaração de incompatibilidade, com o direito da União, das disposições de direito interno que instituem um monopólio público das apostas desportivas, como as que estão em causa no processo principal, enquanto se aguarda que uma reforma legislativa ou regulamentar sane essa violação do direito da União.

    52

    A este respeito, cabe recordar desde logo que, por força do princípio do primado do direito da União, as disposições do Tratado e os atos das instituições diretamente aplicáveis têm por efeito, nas suas relações com o direito interno dos Estados‑Membros, impedir de pleno direito, pelo simples facto da sua entrada em vigor, a aplicação de qualquer disposição contrária da legislação nacional (v. acórdãos Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 17; Factortame e o., C‑213/89, EU:C:1990:257, n.o 18; e Winner Wetten, C‑409/06, EU:C:2010:503, n.o 53).

    53

    O Tribunal de Justiça já precisou que, em razão do primado do direito da União diretamente aplicável, uma regulamentação nacional relativa a um monopólio público das apostas em competições desportivas, que, segundo o que apurou um órgão jurisdicional nacional, contém restrições incompatíveis com a livre prestação de serviços, pelo facto de essas restrições não contribuírem para limitar as atividades de apostas de maneira coerente e sistemática, não pode continuar a ser aplicada durante um período transitório (v. acórdãos Winner Wetten, C‑409/06, EU:C:2010:503, n.o 69, e Stanleybet International e o., C‑186/11 e C‑209/11, EU:C:2013:33, n.o 38).

    54

    Contudo, a recusa de concessão de um período transitório em caso de incompatibilidade da regulamentação nacional com o artigo 56.o TFUE não implica necessariamente a obrigação de o Estado‑Membro em causa liberalizar o mercado dos jogos de fortuna e azar, caso considere que essa liberalização não é compatível com o nível de proteção dos consumidores e da ordem social que esse Estado‑Membro pretende assegurar. Com efeito, no estado atual do direito da União, uma reforma do monopólio existente, destinada a torná‑lo compatível com as disposições do Tratado FUE, submetendo‑o, nomeadamente, a um controlo efetivo e rigoroso por parte das autoridades públicas, é deixado ao critério dos Estados‑Membros (v. acórdão Stanleybet International e o., C‑186/11 e C‑209/11, EU:C:2013:33, n.o 46).

    55

    De qualquer modo, se o Estado‑Membro em causa considerar que não é possível uma reforma do monopólio existente, para o tornar compatível com as disposições do Tratado, e que a liberalização do mercado dos jogos de fortuna e azar corresponde melhor ao nível de proteção dos consumidores e da ordem social que esse Estado‑Membro pretende assegurar, deverá respeitar as regras fundamentais dos Tratados, nomeadamente o artigo 56.o TFUE, os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação em razão da nacionalidade e o dever de transparência daí decorrente. Nesse caso, a introdução, nesse Estado‑Membro, de um regime de autorização administrativa prévia no que diz respeito à oferta de certos tipos de jogos de fortuna e azar deve basear‑se em critérios objetivos, não discriminatórios e conhecidos de antemão, de forma a enquadrar o exercício do poder de apreciação das autoridades nacionais, a fim de que este não possa ser utilizado de maneira arbitrária (v. acórdãos Carmen Media Group, C‑46/08, EU:C:2010:505, n.o 90, e Stanleybet International e o., C‑186/11 e C‑209/11, EU:C:2013:33, n.o 47).

    56

    Há que verificar, à luz desses princípios, se uma prática como a do processo de autorização fictício de organização e de intermediação de apostas desportivas, em causa no processo principal, obedece a critérios objetivos, não discriminatórios e conhecidos de antemão.

    57

    A este respeito, importa salientar que essa prática não está, por definição, codificada. Por outro lado, apesar da circunstância, invocada pelo Governo alemão, de que cerca de 70 pedidos de autorização, provenientes de operadores privados, foram submetidos à autoridade competente para conferir de forma centralizada as autorizações para a organização de apostas desportivas no Land da Baviera, não resulta da decisão de reenvio nem das observações apresentadas pelos interessados que essa prática tivesse sido publicitada com vista a ser levada ao conhecimento dos operadores privados suscetíveis de exercerem atividades de organização ou de recolha de apostas desportivas. Assim, sem prejuízo da verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, não se pode considerar que o conhecimento da referida prática por esses operadores foi garantido.

    58

    Além disso, resulta da decisão de reenvio que as autoridades competentes dos Länder não aplicam o referido processo de autorização fictício de maneira unânime e uniforme, dado que só algumas delas o utilizaram. Do mesmo modo, como exposto nos n.os 29 a 32 do presente acórdão, os órgãos jurisdicionais alemães não estão de acordo no que se refere à legalidade do referido processo.

    59

    Nestas condições, não se pode excluir que os operadores privados não estejam em condições de conhecer o processo a seguir para solicitar uma autorização para a organização e a intermediação de apostas desportivas nem as condições em que uma autorização lhes será conferida ou recusada. Tal indeterminação não permite aos operadores em causa conhecer o alcance dos seus direitos e das suas obrigações resultantes do artigo 56.o TFUE, pelo que tal regime deve ser considerado contrário ao princípio da segurança jurídica (v., por analogia, acórdãos Église de scientologie, C‑54/99, EU:C:2000:124, n.o 22; Comissão/França, C‑483/99, EU:C:2002:327, n.o 50; e Festersen, C‑370/05, EU:C:2007:59, n.o 43).

    60

    Em todo o caso, cabe salientar que, como resulta da decisão de reenvio, não foi emitida nenhuma autorização para a organização ou a intermediação de apostas desportivas a um operador privado, no termo do processo de autorização fictício em causa no processo principal.

    61

    A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio observou que, dado que as condições para a concessão de uma autorização para a organização de apostas desportivas aplicáveis aos operadores públicos por força do tratado sobre os jogos de fortuna e azar e das leis de execução dos Länder visam, precisamente, justificar a exclusão dos operadores privados, na prática, estes nunca podem preencher as referidas condições. O mesmo se passa, por maioria de razão, na sequência dos acórdãos do Bundesverwaltungsgericht (Tribunal Administrativo Federal) de 16 de maio de 2013, que permitem a proibição preventiva da organização e da intermediação de apostas desportivas por operadores privados, na falta de aptidão manifesta destes para obterem a referida autorização.

    62

    Decorre dessa constatação que, como alegam o órgão jurisdicional de reenvio, S. Ince e a Comissão, não se pode considerar que uma prática como o processo de autorização fictício em causa no processo principal sanou a incompatibilidade com o direito da União, declarada pelos órgãos jurisdicionais nacionais, de disposições de direito interno que instituíram um regime de monopólio público em matéria de organização e de intermediação de apostas desportivas.

    63

    No que se refere às consequências dessa incompatibilidade, há que recordar que um Estado‑Membro não pode aplicar uma sanção penal pelo não cumprimento de uma formalidade administrativa, quando o cumprimento dessa formalidade é recusado ou impossibilitado por esse Estado‑Membro, em violação do direito da União (v. acórdãos Placanica e o., C‑338/04, C‑359/04 e C‑360/04, EU:C:2007:133, n.o 69; Stoß e o., C‑316/07, C‑358/07 a C‑360/07, C‑409/07 e C‑410/07, EU:C:2010:504, n.o 115; e Costa e Cifone, C‑72/10 e C‑77/10, EU:C:2012:80, n.o 43).

    64

    Essa proibição, que decorre do princípio do primado do direito da União e do princípio da cooperação leal previsto no artigo 4.o, n.o 3, TUE, impõe‑se, no âmbito das suas competências, a todos os órgãos do Estado‑Membro em causa, entre os quais as autoridades repressivas (v., neste sentido, acórdão Wells, C‑201/02, EU:C:2004:12, n.o 64 e jurisprudência aí referida).

    65

    Face às considerações precedentes, há que responder à primeira questão, alíneas a) a c), que o artigo 56.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades repressivas de um Estado‑Membro punam a intermediação de apostas desportivas, realizada sem autorização, por um operador privado por conta de outro operador privado que não dispõe de uma autorização para organizar apostas desportivas nesse Estado‑Membro, mas é titular de uma licença noutro Estado‑Membro, quando a obrigação de possuir uma autorização para a organização ou a intermediação de apostas desportivas se inscreva no âmbito de um regime de monopólio público que os órgãos jurisdicionais nacionais declararam contrário ao direito da União. O artigo 56.o TFUE opõe‑se a essa punição, mesmo quando, teoricamente, um operador privado possa obter uma autorização para a organização ou a intermediação de apostas desportivas, na medida em que o conhecimento do processo de concessão dessa autorização não esteja garantido e que o regime de monopólio público das apostas desportivas, que os órgãos jurisdicionais nacionais declararam contrário ao direito da União, se tenha mantido apesar da adoção do referido processo.

    Quanto à segunda questão

    66

    Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 98/34 deve ser interpretado no sentido de que o projeto de uma legislação regional que mantém em vigor, à escala da região em causa, as disposições de uma legislação comum às diferentes regiões de um Estado‑Membro, cujo prazo de vigência expirou, está sujeito à obrigação de notificação prevista no referido artigo 8.o, n.o 1, na medida em que esse projeto contenha regras técnicas na aceção do artigo 1.o da diretiva, de forma que o incumprimento dessa obrigação determina a inoponibilidade das regras técnicas a um particular no âmbito de um processo penal, e isto mesmo que a referida legislação comum tivesse sido anteriormente notificada à Comissão, na fase de projeto, em conformidade com o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 98/34, e previsse expressamente a possibilidade de uma prorrogação, que, todavia, não foi utilizada.

    67

    A título preliminar, há que recordar que o não cumprimento da obrigação de notificação prevista no artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 98/34 constitui um vício processual na adoção das regras técnicas em causa e dá origem à inaplicabilidade dessas regras técnicas, de modo que não podem ser invocadas contra os particulares (v., nomeadamente, acórdão Ivansson e o., C‑307/13, EU:C:2014:2058, n.o 48 e jurisprudência aí referida).

    68

    A este respeito, importa salientar que, como observou o advogado‑geral no n.o 60 das suas conclusões, embora o artigo 8.o, n.o 1, dessa diretiva exija a comunicação integral à Comissão de um projeto de lei que contenha regras técnicas (v., neste sentido, acórdão Comissão/Itália, C‑279/94, EU:C:1997:396, n.os 40 e 41), a inaplicabilidade que resulta do incumprimento dessa obrigação não se estende a todas as disposições dessa lei, mas apenas às regras técnicas que nela figuram.

    69

    Consequentemente, para dar uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, cabe verificar, em primeiro lugar, se as disposições do tratado sobre os jogos de fortuna e azar, alegadamente violadas por S. Ince, que continuavam a ser aplicadas após a caducidade desse tratado como direito do Land da Baviera, nos termos da lei de execução do tratado sobre os jogos de fortuna e azar, constituem «regras técnicas» na aceção do artigo 1.o, ponto 11, da Diretiva 98/34.

    70

    Nos termos dessa disposição, o conceito de «regra técnica» abrange quatro categorias de medidas, a saber, em primeiro lugar, a «especificação técnica», na aceção do artigo 1.o, ponto 3, da Diretiva 98/34, em segundo lugar, a «outra exigência», tal como definida no artigo 1.o, ponto 4, desta diretiva, em terceiro lugar, a «regra relativa aos serviços», prevista no artigo 1.o, ponto 5, da referida diretiva, e, em quarto lugar, «qualquer disposição legislativa, regulamentar ou administrativa dos Estados‑Membros que proíba o fabrico, a importação, a comercialização, ou a utilização de um produto ou a prestação ou utilização de um serviço ou o estabelecimento como prestador de serviços».

    71

    Verifica‑se, antes de mais, que o tratado sobre os jogos de fortuna e azar não contém nenhuma disposição pertencente à primeira categoria de regras técnicas, a saber, o conceito de «especificação técnica» na aceção do artigo 1.o, ponto 3, da Diretiva 98/34. Com efeito, esse conceito visa apenas as medidas nacionais que se referem ao produto ou à sua embalagem, enquanto tais, e que fixam, por conseguinte, uma das características exigidas de um produto (v. acórdãos Fortuna e o., C‑213/11, C‑214/11 e C‑217/11, EU:C:2012:495, n.o 28, e Ivansson e o., C‑307/13, EU:C:2014:2058, n.o 19). Ora, o tratado sobre os jogos de fortuna e azar regula a organização e a intermediação de apostas desportivas, sem se referir aos produtos eventualmente envolvidos nessas atividades.

    72

    Por este mesmo motivo, o tratado sobre os jogos de fortuna e azar também não pode incluir disposições pertencentes à segunda categoria de regras técnicas, a saber, ao conceito de «outra exigência» na aceção do artigo 1.o, ponto 4, da referida diretiva, na medida em que o referido conceito visa o ciclo de vida de um produto após a sua colocação no mercado.

    73

    Por último, há que verificar se o tratado sobre os jogos de fortuna e azar contém regras pertencentes à terceira e/ou quarta categorias das «regras técnicas» enumeradas no artigo 1.o, ponto 11, da Diretiva 98/34, a saber, as «regra[s] relativa[s] aos serviços» ou as que «proí[bem] a prestação ou utilização de um serviço ou o estabelecimento como prestador de serviços».

    74

    Nos termos do artigo 1.o, ponto 5, da referida diretiva, constitui uma «regra relativa aos serviços» qualquer requisito de natureza geral relativo ao acesso às atividades de serviços referidas no artigo 1.o, ponto 2, da mesma diretiva, que designam «qualquer serviço da sociedade da informação, isto é, qualquer serviço prestado normalmente mediante remuneração, à distância, por via eletrónica e mediante pedido individual de um destinatário de serviços».

    75

    A este respeito, há que observar que, como a Comissão alegou na audiência, algumas disposições do tratado sobre os jogos de fortuna e azar são suscetíveis de ser qualificadas de «regras relativas aos serviços», na medida em que dizem respeito a um «serviço da sociedade de informação» na aceção do artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 98/34. Essas disposições incluem a proibição de oferecer jogos de fortuna e azar na Internet, prevista no § 4, n.o 4, do tratado sobre os jogos de fortuna e azar, as exceções a essa proibição, enumeradas no § 25, n.o 6, desse tratado, as limitações introduzidas à possibilidade de oferecer apostas desportivas através de meios de telecomunicação, nos termos do § 21, n.o 2, do referido tratado, bem como a proibição de fazer publicidade a jogos de fortuna e azar na Internet ou através de meios de telecomunicação, nos termos do § 5, n.o 3, do mesmo tratado.

    76

    Em contrapartida, no que se refere às disposições do tratado sobre os jogos de fortuna e azar diferentes das relativas a um «serviço da sociedade da informação» na aceção do artigo 1.o, ponto 2, da Diretiva 98/34, como as disposições que instituem a obrigação de obter uma autorização para a organização ou a recolha de apostas desportivas assim como a impossibilidade de conceder essa autorização a operadores privados, não constituem «regras técnicas» na aceção do artigo 1.o, ponto 11, dessa diretiva. Com efeito, as disposições nacionais que se limitam a prever condições para o estabelecimento ou a prestação de serviços por empresas, como as disposições que sujeitam o exercício de uma atividade profissional a uma autorização prévia, não constituem regras técnicas na aceção dessa disposição (v., neste sentido, acórdão Lindberg, C‑267/03, EU:C:2005:246, n.o 87).

    77

    Caberá ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se se pode acusar S. Ince, no âmbito dos processos penais apensos em causa no processo principal, de ter violado algumas das disposições enumeradas no n.o 75 do presente acórdão, que devem ser consideradas como instituindo regras relativas aos serviços, na aceção do artigo 1.o, ponto 5, da Diretiva 98/34.

    78

    Em segundo lugar, há que examinar se a lei de execução do tratado sobre os jogos de fortuna e azar, na medida em que tornou as disposições do tratado sobre os jogos de fortuna e azar aplicáveis como direito do Land da Baviera após o termo desse tratado, estava sujeita à obrigação de notificação à Comissão, nos termos do artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 98/34, de modo que, no caso de S. Ince ser acusada de ter violado uma ou várias das regras técnicas estabelecidas pelo tratado sobre os jogos de fortuna e azar, essas disposições não lhe seriam oponíveis por falta dessa notificação.

    79

    A este respeito, deve observar‑se, antes de mais, que, como a Comissão salientou, as disposições da lei de execução do tratado sobre os jogos de fortuna e azar não podem ser objeto da obrigação, que o artigo 8.o, n.o 1, terceiro parágrafo, da Diretiva 98/34 impõe aos Estados‑Membros, de se proceder a uma «nova comunicação» das alterações significativas introduzidas num projeto de regra técnica. Com efeito, esta obrigação apenas visa a hipótese, que não se verifica no caso em apreço, em que são introduzidas alterações significativas, no decurso do processo legislativo nacional, a um projeto de regra técnica, depois da notificação desse projeto à Comissão.

    80

    Em contrapartida, há que examinar se a lei de execução do tratado sobre os jogos de fortuna e azar deveria ter sido notificada à Comissão, antes da sua adoção, nos termos do artigo 8.o, n.o 1, primeiro parágrafo, da Diretiva 98/34, para além e independentemente da notificação do tratado sobre os jogos de fortuna e azar.

    81

    A este respeito, importa salientar que, embora as regras que regulam a organização e a intermediação de apostas desportivas ao abrigo da lei de execução do tratado sobre os jogos de fortuna e azar apresentem um conteúdo idêntico ao das regras do tratado sobre os jogos de fortuna e azar que foram anteriormente notificadas à Comissão, distinguem‑se delas no que se refere ao seu âmbito de aplicação territorial.

    82

    Assim, a realização dos objetivos prosseguidos pela Diretiva 98/34 requer que o projeto de uma legislação como a lei de execução do tratado sobre os jogos de fortuna e azar seja notificado à Comissão nos termos do artigo 8.o, n.o 1, primeiro parágrafo, dessa diretiva. Como resulta, nomeadamente, dos seus considerandos 5 e 6, a referida diretiva visa, em primeiro lugar, assegurar a fiscalização preventiva das regras técnicas projetadas por um Estado‑Membro, permitindo que a Comissão e os outros Estados‑Membros tomem conhecimento das mesmas, antes da sua adoção. Em segundo lugar, como referido no considerando 7 da mesma diretiva, esta visa permitir uma melhor exploração das vantagens do mercado interno pelos operadores económicos, assegurando a publicação regular das regulamentações técnicas projetadas pelos Estados‑Membros e colocando, assim, esses operadores em condições de exprimirem a sua opinião sobre o seu impacto.

    83

    Atendendo, em especial, ao segundo objetivo, é necessário que os operadores de um Estado‑Membro sejam informados dos projetos de regras técnicas adotados por outro Estado‑Membro e do seu âmbito de aplicação temporal e territorial, de modo a estarem em condições de conhecer o alcance das obrigações que lhes podem ser impostas e de antecipar a adoção desses diplomas, adaptando, se for caso disso, os seus produtos ou os seus serviços em tempo útil.

    84

    Consequentemente, há que responder à segunda questão que o artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 98/34 deve ser interpretado no sentido de que o projeto de uma legislação regional que mantém em vigor, à escala da região em causa, as disposições de uma legislação comum às diferentes regiões de um Estado‑Membro, cujo prazo de vigência expirou, está sujeito à obrigação de notificação prevista no referido artigo 8.o, n.o 1, na medida em que esse projeto contenha regras técnicas na aceção do artigo 1.o da diretiva, de forma que o incumprimento dessa obrigação determina a inoponibilidade das regras técnicas a um particular no âmbito de um processo penal. Essa obrigação não é posta em causa pela circunstância de a referida legislação comum ter sido anteriormente notificada à Comissão, na fase de projeto, em conformidade com o artigo 8.o, n.o 1, da referida diretiva, e prever expressamente a possibilidade de uma prorrogação, que, todavia, não foi utilizada.

    Quanto à terceira questão

    85

    Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 56.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado‑Membro puna a intermediação de apostas desportivas, realizada sem autorização no seu território, por conta de um operador económico titular de uma licença para a organização de apostas desportivas noutro Estado‑Membro:

    quando a emissão de uma autorização para a organização de apostas desportivas esteja sujeita à obtenção de uma concessão pelo referido operador, segundo um processo de atribuição de concessões, como o que está em causa no processo principal, se o órgão jurisdicional de reenvio constatar que esse processo não respeita os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação em razão da nacionalidade bem como o dever de transparência que deles decorre, e

    na medida em que, apesar da entrada em vigor de uma disposição nacional que permite a atribuição de concessões a operadores privados, a aplicação das disposições que instituem um regime de monopólio público em matéria de organização e de intermediação de apostas desportivas, que os órgãos jurisdicionais nacionais declararam contrárias ao direito da União, se tenha mantido na prática.

    86

    A título preliminar, há que recordar que as autoridades públicas que celebram contratos de concessão de serviços estão obrigadas a respeitar as regras fundamentais do Tratado em geral, nomeadamente o artigo 56.o TFUE, e, em especial, os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação em razão da nacionalidade, bem como o dever de transparência deles decorrente (v., neste sentido, acórdão Sporting Exchange, C‑203/08, EU:C:2010:307, n.o 39 e jurisprudência aí referida).

    87

    Este dever de transparência, que é um corolário do princípio da igualdade, tem, nesse contexto, essencialmente o objetivo de assegurar que qualquer operador interessado possa decidir apresentar propostas em concursos, com base em todas as informações pertinentes, e de garantir a inexistência do risco de favoritismo e de arbitrariedade da entidade adjudicante. Esse dever implica que todas as condições e modalidades do procedimento de adjudicação sejam formuladas de forma clara, precisa e unívoca, de modo, por um lado, a permitir que todos os proponentes razoavelmente informados e normalmente diligentes compreendam o seu alcance exato e as interpretem da mesma forma e, por outro, a enquadrar o poder discricionário da entidade adjudicante e permitir que esta verifique efetivamente se as propostas dos proponentes correspondem aos critérios que regem o procedimento em causa (v. acórdão Costa e Cifone, C‑72/10 e C‑77/10, EU:C:2012:80, n.o 73 e jurisprudência aí referida).

    88

    Cabe, em última instância, ao órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva para apreciar a matéria de facto e para interpretar a legislação nacional, apreciar, à luz destes princípios, se os fatores que enunciou, considerados isoladamente ou devido ao seu efeito combinado, são suscetíveis de pôr em causa a conformidade de um processo de atribuição de concessões para a organização de apostas desportivas, como o que está em causa no processo principal, com os princípios da igualdade de tratamento, da não discriminação em razão da nacionalidade e com o dever de transparência deles decorrente.

    89

    Há que salientar que, no caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio observou, no âmbito da terceira questão, alínea f), que a entidade adjudicante não recorreu à possibilidade de atribuir concessões a operadores privados nos termos do § 10a do tratado modificativo. Como referido no n.o 38 do presente acórdão, decorre das observações do Governo alemão que a atribuição de concessões aos candidatos escolhidos no termo do processo de seleção foi suspensa por diversos despachos de medidas provisórias proferidos por órgãos jurisdicionais alemães. Assim, à data dos factos imputados a S. Ince, nenhum operador privado estava autorizado a organizar ou a recolher apostas desportivas na Alemanha, pelo que a jurisprudência do Bundesverwaltungsgericht (Tribunal Administrativo Federal) referida nos n.os 29 e 30 deste acórdão continua a ser aplicada aos operadores privados.

    90

    Em contrapartida, como o Amtsgericht Sonthofen (Tribunal Cantonal de Sonthofen) também observou no âmbito da terceira questão, alínea f), os operadores públicos titulares de uma autorização para a organização ou a intermediação de apostas desportivas obtida em aplicação do tratado sobre os jogos de fortuna e azar ou das leis regionais que o executam podiam, ao abrigo da disposição transitória que figura no § 29 do tratado modificativo, continuar a exercer essas atividades por um período de um ano a contar da atribuição da primeira concessão, sem disporem, eles próprios, de uma concessão.

    91

    Nestas condições, o referido órgão jurisdicional considera que o regime de monopólio público em matéria de organização e de intermediação de apostas desportivas previsto pelo tratado sobre os jogos de fortuna e azar e as respetivas leis de execução, que os órgãos jurisdicionais alemães declararam contrário ao direito da União, se manteve na prática.

    92

    A este respeito, cabe salientar que, como recordado nos n.os 53 a 55 do presente acórdão, o Tribunal de Justiça declarou, no acórdão Stanleybet International e o. (C‑186/11 e C‑209/11, EU:C:2013:33, n.os 38, 46 e 47), que uma regulamentação nacional relativa a um monopólio público das apostas desportivas, que, segundo o que apurou um órgão jurisdicional nacional, contém restrições incompatíveis com a livre prestação de serviços, não pode continuar a ser aplicada durante um período transitório. A recusa de concessão de um período transitório não implica, porém, a obrigação de o Estado‑Membro em causa liberalizar o mercado dos jogos de fortuna e azar, podendo este também reformar o monopólio existente para o tornar compatível com o direito da União ou substituí‑lo por um regime de autorização administrativa prévia baseado em critérios objetivos, não discriminatórios e conhecidos de antemão.

    93

    Face às considerações precedentes e sem que seja necessário determinar também se cada um dos fatores enunciados no âmbito da terceira questão, alíneas a) a e), considerados isoladamente ou devido ao seu efeito combinado, é suscetível de pôr em causa a conformidade do processo de atribuição de concessões em causa no processo principal com o artigo 56.o TFUE, não se pode considerar que uma reforma legislativa como a que resulta da introdução da cláusula experimental das apostas desportivas prevista no § 10a do tratado modificativo sana a incompatibilidade, com o artigo 56.o TFUE, de um regime de monopólio público em matéria de organização e de intermediação de apostas desportivas, como o que resulta das disposições do tratado sobre os jogos de fortuna e azar e das suas leis de execução, na medida em que, tendo em conta as circunstâncias descritas no âmbito da terceira questão, alínea f), esse regime continuou a ser aplicado na prática, apesar da entrada em vigor dessa reforma.

    94

    Ora, como recordado no n.o 63 do presente acórdão, um Estado‑Membro não pode aplicar uma sanção penal pelo não cumprimento de uma formalidade administrativa, quando o cumprimento dessa formalidade é recusado ou impossibilitado por esse Estado‑Membro, em violação do direito da União.

    95

    Assim, há que responder à terceira questão que o artigo 56.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado‑Membro puna a intermediação, sem autorização, de apostas desportivas no seu território, por conta de um operador titular de uma licença para a organização de apostas desportivas noutro Estado‑Membro:

    quando a emissão de uma autorização para a organização de apostas desportivas esteja sujeita à obtenção de uma concessão pelo referido operador, segundo um processo de atribuição de concessões, como o que está em causa no processo principal, se o órgão jurisdicional de reenvio constatar que esse processo não respeita os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação em razão da nacionalidade bem como o dever de transparência que deles decorre, e

    na medida em que, apesar da entrada em vigor de uma disposição nacional que permite a atribuição de concessões a operadores privados, a aplicação das disposições que instituem um regime de monopólio público em matéria de organização e de intermediação de apostas desportivas, que os órgãos jurisdicionais nacionais declararam contrárias ao direito da União, se tenha mantido na prática.

    Quanto às despesas

    96

    Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

     

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

     

    1)

    O artigo 56.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades repressivas de um Estado‑Membro punam a intermediação, sem autorização, de apostas desportivas por um operador privado por conta de outro operador privado que não dispõe de uma autorização para organizar apostas desportivas nesse Estado‑Membro, mas é titular de uma licença noutro Estado‑Membro, quando a obrigação de possuir uma autorização para a organização ou a intermediação de apostas desportivas se inscreva no âmbito de um regime de monopólio público que os órgãos jurisdicionais nacionais declararam contrário ao direito da União. O artigo 56.o TFUE opõe‑se a essa punição, mesmo quando, teoricamente, um operador privado possa obter uma autorização para a organização ou a intermediação de apostas desportivas, na medida em que o conhecimento do processo de concessão dessa autorização não esteja garantido e que o regime de monopólio público das apostas desportivas, que os órgãos jurisdicionais nacionais declararam contrário ao direito da União, se tenha mantido apesar da adoção do referido processo.

     

    2)

    O artigo 8.o, n.o 1, da Diretiva 98/34/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de junho de 1998, relativa a um procedimento de informação no domínio das normas e regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação, conforme alterada pela Diretiva 98/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de julho de 1998, deve ser interpretado no sentido de que o projeto de uma legislação regional que mantém em vigor, à escala da região em causa, as disposições de uma legislação comum às diferentes regiões de um Estado‑Membro, cujo prazo de vigência expirou, está sujeito à obrigação de notificação prevista no referido artigo 8.o, n.o 1, na medida em que esse projeto contenha regras técnicas na aceção do artigo 1.o da diretiva, de forma que o incumprimento dessa obrigação determina a inoponibilidade das regras técnicas a um particular no âmbito de um processo penal. Essa obrigação não é posta em causa pela circunstância de a referida legislação comum ter sido anteriormente notificada à Comissão, na fase de projeto, em conformidade com o artigo 8.o, n.o 1, da referida diretiva, e prever expressamente a possibilidade de uma prorrogação, que, todavia, não foi utilizada.

     

    3)

    O artigo 56.o TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado‑Membro puna a intermediação, sem autorização, de apostas desportivas no seu território, por conta de um operador titular de uma licença para a organização de apostas desportivas noutro Estado‑Membro:

    quando a emissão de uma autorização para a organização de apostas desportivas esteja sujeita à obtenção de uma concessão pelo referido operador, segundo um processo de atribuição de concessões, como o que está em causa no processo principal, se o órgão jurisdicional de reenvio constatar que esse processo não respeita os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação em razão da nacionalidade bem como o dever de transparência que deles decorre, e

    na medida em que, apesar da entrada em vigor de uma disposição nacional que permite a atribuição de concessões a operadores privados, a aplicação das disposições que instituem um regime de monopólio público em matéria de organização e de intermediação de apostas desportivas, que os órgãos jurisdicionais nacionais declararam contrárias ao direito da União, se tenha mantido na prática.

     

    Assinaturas


    ( *1 )   Língua do processo: alemão.

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