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Document 62014CC0483

Conclusões do advogado-geral Y. Bot apresentadas em 12 de novembro de 2015.
KA Finanz AG contra Sparkassen Versicherung AG Vienna Insurance Group.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberster Gerichtshof.
Reenvio prejudicial — Convenção de Roma — Lei aplicável — Fusão transfronteiriça — Diretiva 78/855/CEE — Diretiva 2005/56/CE — Fusão por incorporação — Proteção dos credores — Transferência da totalidade do património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante.
Processo C-483/14.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2015:757

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

YVES BOT

apresentadas em 12 de novembro de 2015 ( 1 )

Processo C‑483/14

KA Finanz AG

contra

Sparkassen Versicherung AG Vienna Insurance Group

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria)]

«Reenvio prejudicial — Direito das sociedades — Conceito de ‘direito das sociedades’ — Fusão transfronteiriça de sociedades — Proteção dos credores — Lei aplicável e regras de conflito no caso de fusão transfronteiriça de sociedades — Direitos dos portadores de títulos que não sejam ações, dotados de direitos especiais»

1. 

No presente processo, o Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal, Áustria) pretende saber qual é a lei aplicável a um litígio que opõe a sociedade incorporante a um credor da sociedade incorporada e se, em caso de fusão transfronteiriça, a sociedade incorporante pode fazer cessar unilateralmente a relação jurídica que a vincula ao subscritor de obrigações subordinadas e reembolsá‑lo integralmente dos seus créditos.

2. 

Nestas conclusões, explicaremos as razões por que consideramos que, quando, numa fusão, a sociedade incorporada tenha recorrido à emissão de obrigações subordinadas, da natureza das analisadas no processo principal, estas só são transmitidas para a sociedade incorporante se, na data da fusão, os fundos próprios complementares assim constituídos ainda existirem, o que compete ao órgão jurisdicional nacional verificar. Se for esse o caso, explicaremos porque pensamos que o artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2005/56/CE ( 2 ) deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito de uma fusão transfronteiriça, os contratos como os que estão em causa no processo principal, celebrados pela sociedade incorporada, são transferidos para a sociedade incorporante, desencadeando assim a aplicação da lei escolhida pelas partes no momento da celebração desses contratos. Em seguida, indicaremos as razões pelas quais consideramos que o artigo 4.o, n.os 1 e 2, desta diretiva, conjugado com o artigo 13.o, n.o 1, da Terceira Diretiva 78/855/CEE ( 3 ), deve ser interpretado no sentido de que os créditos resultantes de instrumentos financeiros, como as obrigações subordinadas em causa no processo principal, só podem beneficiar, tendo em conta a sua natureza, de uma proteção equivalente àquela de que beneficiavam antes da fusão transfronteiriça.

I – Quadro jurídico

A – Convenção de Roma

3.

O artigo 1.o da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, aberta a assinatura em Roma, em 19 de junho de 1980 ( 4 ), enuncia o seguinte:

«1.   O disposto na presente Convenção é aplicável às obrigações contratuais nas situações que impliquem um conflito de leis.

2.   Não se aplica:

[...]

e)

Às questões respeitantes ao direito das sociedades, associações e pessoas coletivas, tais como a constituição, a capacidade jurídica, o funcionamento interno e a dissolução das sociedades, associações e pessoas coletivas, bem como a responsabilidade pessoal legal dos associados e dos órgãos relativamente às dívidas da sociedade, associação ou pessoa coletiva;

[...]»

4.

A Convenção de Roma foi substituída pelo Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) ( 5 ).

B – Direito da União

1. Terceira Diretiva 78/855

5.

A Terceira Diretiva 78/855 procurava garantir, em todos os Estados‑Membros, uma proteção mínima dos interesses dos sócios e de terceiros em caso de fusão de sociedades anónimas ( 6 ). Nomeadamente, procurava assegurar que a concretização da fusão não causasse prejuízo aos credores, obrigacionistas ou não, e aos portadores de outros títulos das sociedades participantes na fusão ( 7 ).

6.

Assim, a Terceira Diretiva 78/855 previa o seguinte:

«Artigo 13.o

1.   As legislações dos Estados‑Membros devem prever um adequa[do] sistema de proteção dos interesses dos credores das sociedades participantes na fusão, relativamente aos créditos anteriores à publicação do projeto de fusão e ainda não vencidos no momento desta publicação.

2.   Para este efeito, as legislações dos Estados‑Membros devem estabelecer, pelo menos, que estes credores terão o direito de obter garantias adequadas sempre que a situação financeira das sociedades participantes na fusão torne essa proteção necessária e estes credores não disponham já de tais garantias.

3.   A proteção pode ser diferente para os credores da sociedade incorporante e para os da sociedade incorporada.

Artigo 14.o

Sem prejuízo das regras relativas ao exercício coletivo dos seus direitos, o artigo 13.o é aplicável aos obrigacionistas das sociedades participantes na fusão, salvo se a fusão tiver sido aprovada por uma assembleia dos obrigacionistas, quando a lei nacional preveja uma tal assembleia, ou pelos obrigacionistas individualmente.

Artigo 15.o

Os portadores de títulos, que não sejam ações, dotados de direitos especiais devem beneficiar, na sociedade incorporante, de direitos, pelo menos, equivalentes àqueles de que beneficiavam na sociedade incorporada, salvo se a modificação destes direitos tiver sido aprovada por uma assembleia dos portadores desses títulos, quando a lei nacional preveja uma tal assembleia, ou pelos portadores dos títulos individualmente, ou ainda se esses portadores tiverem o direito de obter da sociedade incorporante o resgate dos seus títulos.

[...]

Artigo 19.o

1.   A fusão produz ipso iure e simultaneamente os seguintes efeitos:

a)

A transmissão universal do conjunto do património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, tanto no que a estas respeita, como relativamente a terceiros;

b)

Os acionistas da sociedade incorporada tornam‑se acionistas da sociedade incorporante;

c)

A sociedade incorporada extingue‑se.

2.   Nenhuma ação da sociedade incorporante é dada em troca de ações da sociedade incorporada que sejam possuídas:

a)

Quer pela própria sociedade incorporante, quer por uma pessoa que atue em nome próprio, mas por conta da sociedade;

b)

Quer pela própria sociedade incorporada, quer por pessoa que atue em nome próprio, mas por conta da sociedade.

3.   Não são afetadas as disposições legislativas dos Estados‑Membros que exijam formalidades particulares para a oponibilidade a terceiros da transmissão de certos bens, direitos e obrigações provindos da sociedade incorporada. A sociedade incorporante pode efetuar ela própria estas formalidades; contudo, a legislação dos Estados‑Membros pode permitir que a sociedade incorporada continue a efetuar essas formalidades durante um período limitado, que não pode ser fixad[o], salvo casos excecionais, em mais de seis meses a contar da data em que a fusão se tornou eficaz.

[...]»

7.

A Terceira Diretiva 78/855 foi substituída pela Diretiva 2011/35/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativa à fusão das sociedades anónimas ( 8 ).

2. Diretiva 2005/56

8.

A Diretiva 2005/56 tem por objetivo facilitar as fusões transfronteiriças de sociedades de responsabilidade limitada de diferentes tipos, regidas por legislações de diferentes Estados‑Membros ( 9 ).

9.

O considerando 3 da referida diretiva enuncia:

«A fim de facilitar as operações de fusão transfronteiriças, é oportuno prever, salvo disposição em contrário da presente diretiva, que cada sociedade que participe na fusão transfronteiriça, bem como qualquer terceiro envolvido, continuem a estar submetidos às disposições e formalidades de direito interno aplicáveis em caso de fusão nacional. Nenhuma das disposições e formalidades de direito interno a que faz referência a presente diretiva deverá introduzir restrições à liberdade de estabelecimento ou de circulação de capitais, exceto se estas puderem ser justificadas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça e, em especial, por requisitos de interesse geral e se forem necessárias e proporcionadas relativamente a esses requisitos fundamentais.»

10.

O artigo 4.o da Diretiva 2005/56 tem a seguinte redação:

«1.   Salvo disposição em contrário da presente diretiva:

a)

As fusões transfronteiriças só são possíveis entre tipos de sociedades que se possam fundir nos termos da legislação nacional dos Estados‑Membros pertinentes; e

b)

Uma sociedade que participe numa fusão transfronteiriça rege‑se pelas disposições e formalidades do direito nacional a que está sujeita. [...]

2.   As disposições e formalidades a que se refere a alínea b) do n.o 1 dizem respeito, em particular, ao processo de tomada de decisão relativo à fusão e, tendo em conta o seu carácter transfronteiriço, à proteção dos credores das sociedades objeto de fusão, dos obrigacionistas e dos detentores de títulos ou ações, bem como dos trabalhadores no que diz respeito aos direitos que não sejam os regulados pelo artigo 16.o Os Estados‑Membros podem, relativamente às sociedades participantes numa fusão transfronteiriça e que se rejam pela sua legislação, adotar disposições destinadas a assegurar uma proteção adequada dos seus sócios minoritários que se tenham pronunciado contra a fusão transfronteiriça.»

11.

O artigo 14.o desta diretiva prevê o seguinte:

«1.   A fusão transfronteiriça realizada nos termos das alíneas a) e c) do ponto 2) do artigo 2.o implica, a partir da data fixada no artigo 12.o, os seguintes efeitos:

a)

Todo o património ativo e passivo da sociedade incorporada será transferido para a sociedade incorporante;

b)

Os sócios da sociedade incorporada tornam‑se sócios da sociedade incorporante;

c)

A sociedade incorporada extingue‑se.

[...]»

C – Direito austríaco

12.

O § 226, n.o 1, da Lei relativa às sociedades anónimas (Aktiengesetz), de 31 de março de 1965 ( 10 ), na sua versão aplicável aos factos do processo principal (a seguir «AktG»), prevê que, desde que se manifestem num prazo de seis meses a contar da publicação do registo da fusão, os credores das sociedades visadas devem obter garantias se não puderem pedir o reembolso dos seus créditos. Todavia, este direito só é concedido aos credores que demonstrarem, de forma credível, que a fusão constitui um risco para o pagamento do seu crédito. Os credores devem ser informados deste direito no âmbito da publicação do registo.

13.

O § 226, n.o 2, da AktG esclarece que o direito de exigir garantias não é reconhecido aos credores que, no processo de insolvência, disponham de um direito ao reembolso preferencial a partir de um capital constituído de acordo com as disposições legais para efeitos da sua proteção e colocado sob supervisão da autoridade competente.

14.

Nos termos do § 226, n.o 3, da AktG, deve‑se conferir direitos equivalentes aos titulares de obrigações e de títulos de participação ou pagar‑lhes uma compensação adequada pela modificação dos direitos ou pelo próprio direito.

15.

O órgão jurisdicional de reenvio esclarece que esta disposição visa transpor o artigo 15.o da Diretiva 78/855.

II – Litígio no processo principal

16.

Durante 2005, a Sparkassen Versicherung AG Vienna Insurance Group (a seguir «Sparkassen Versicherung»), com sede na Áustria, subscreveu obrigações no âmbito de dois empréstimos subordinados emitidos pelo Kommunalkredit International Bank Ltd (a seguir «sociedade emitente»), com sede em Chipre.

17.

Nos termos dos §§ 3, n.o 1, das condições de emissão dos dois empréstimos, os títulos vencem juros às taxas, respetivamente, de 4,01% e de 3,84%. Por outro lado, em conformidade com os §§ 2 dessas condições, os créditos decorrentes desses títulos constituem créditos não garantidos e subordinados sobre a sociedade emitente, que são considerados equivalentes entre si e em relação aos restantes créditos subordinados sobre essa sociedade. Em caso de dissolução, de liquidação ou de falência da referida sociedade, os créditos decorrentes desses títulos só podem ser reembolsados após terem sido satisfeitos os direitos dos credores não subordinados. Por conseguinte, nenhum montante pode ser pago ao abrigo dos títulos enquanto os direitos de todos os credores não subordinados da sociedade emitente não forem integralmente pagos ou não tiverem sido constituídas provisões suficientes para os referidos montantes. Além disso, os titulares das obrigações não podem compensar os créditos decorrentes dos seus títulos com créditos da sociedade emitente. Estes §§ 2 preveem também que, em momento algum no futuro, poderá ser ou será dada por essa sociedade ou por terceiros uma garantia contratual para assegurar os direitos do portador relativamente a esses títulos. O caráter subordinado descrito nos referidos §§ 2 não pode ser restringido por qualquer acordo posterior, nem este pode antecipar a data de vencimento dos títulos ou reduzir o prazo de pré‑aviso aplicável.

18.

Os §§ 4, n.o 1, alíneas b), das condições de emissão dos dois empréstimos, relativos ao pagamento de juros, preveem que o valor nominal só pode ser reembolsado e que os juros só podem ser pagos se os capitais próprios da sociedade emitente a ter em consideração não descerem, em virtude desse pagamento, abaixo dos limites mínimos fixados pelas orientações sobre o cálculo dos fundos próprios dos bancos adotadas pelo Banco Central de Chipre.

19.

Os §§ 9, n.o 1, dessas condições referem que, em caso de liquidação ou dissolução da sociedade emitente (salvo para efeitos ou em consequência de uma fusão, de uma reestruturação ou de um saneamento, desde que continue solvente, no âmbito dos quais a empresa daí resultante assume, no essencial, todos os ativos e passivos da sociedade emitente), os titulares das obrigações têm o direito de declarar vencidos os seus títulos e exigir o seu reembolso imediato no valor do reembolso antecipado, acrescido dos juros eventualmente vencidos na data de reembolso.

20.

Em conformidade com os §§ 12, n.o 1, das referidas condições, a forma e o conteúdo dos títulos, bem como todos os direitos e obrigações dos titulares e da sociedade emitente são regulados pela lei alemã.

21.

No final de 2008, a sociedade emitente deixou de cumprir os requisitos mínimos em matéria de fundos próprios definidos nas orientações do Banco Central de Chipre. Consequentemente, deixou de pagar os juros previstos nas condições de emissão.

22.

Em 18 de setembro de 2010, a fusão da sociedade emitente (sociedade incorporada) com a KA Finanz AG (a seguir «KA Finanz») (sociedade incorporante), com sede na Áustria, foi inscrita no registo comercial. O órgão jurisdicional de reenvio e a Sparkassen Versicherung esclarecem também que a KA Finanz fez cessar unilateralmente os dois empréstimos subordinados subscritos pela Sparkassen Versicherung. Esta última esclarece, mais especificamente, que, no projeto comum de fusão, de 27 de abril de 2010, é referido que estes empréstimos são considerados direitos especiais, não são detidos pelo KA Finanz, foram objeto de avaliação e, em resultado desta avaliação, o seu valor foi fixado em zero. Assim, nesse projeto, está inscrito que os referidos direitos cessam na data da produção de efeitos da fusão transfronteiriça e que não é concedida nenhuma indemnização em contrapartida.

23.

Na medida em que a sociedade emitente deixou de pagar os juros, a Sparkassen Versicherung interpôs um recurso nos órgãos jurisdicionais austríacos para obrigar a KA Finanz a pagar a quantia de 1,57 milhões de euros a título de juros vencidos, nos anos de 2009 e de 2010, sobre os dois empréstimos subordinados. Com efeito, a Sparkassen Versicherung considera que a KA Finanz, enquanto sociedade incorporante da sociedade emitente, é o seu sucessor universal. A título subsidiário, pede que seja reconhecida a obrigação da KA Finanz de lhe atribuir direitos equivalentes, na aceção do § 226, n.o 3, da AktG, e de responder na íntegra pelo prejuízo resultante da omissão correspondente. Por seu turno, a KA Finanz considera que não assumiu as obrigações da sociedade emitente e que, bem pelo contrário, a fusão teve por efeito pôr termo a essas obrigações. Em sua opinião, na medida em que o pagamento dos juros e o reembolso do capital dependiam da dotação da sociedade emitente em fundos próprios, as obrigações em causa tinham natureza de fundos próprios, o que implicava o risco de uma perda total. Tratava‑se, portanto, de títulos de participação, na aceção daquela disposição. Por conseguinte, a KA Finanz pediu que fosse declarado, no âmbito da incorporação da sociedade emitente, que os dois empréstimos subordinados haviam cessado, e, a título subsidiário, que as obrigações dessa sociedade não lhe tinham sido transmitidas.

24.

Em primeira instância, por decisão interlocutória de 26 de junho de 2012, o Handelsgericht Wien (Tribunal de Comércio de Viena, Áustria), julgou improcedentes o pedido de declaração prévia e o pedido subsidiário apresentados pelo KA Finanz. Esse tribunal declarou que as obrigações em causa não eram títulos de participação nem outros títulos equivalentes a ações, dado que não tinham o caráter de capitais próprios e também não dependiam dos lucros da sociedade. Portanto, de acordo com o Handelsgericht Wien, a KA Finanz não tinha legitimidade para pôr termo às obrigações em causa, no âmbito da fusão. Pelo contrário, considerou que os empréstimos tinham sido transferidos para a KA Finanz no âmbito da transmissão universal do património. O órgão jurisdicional de reenvio esclarece que o Handelsgericht Wien não se pronunciou sobre a questão de saber qual era a lei aplicável ao litígio que lhe foi submetido.

25.

Por decisão de 26 de abril de 2013, o Oberlandesgericht Wien (Tribunal Regional Superior de Viena, Áustria) confirmou, em sede de recurso, a decisão do Handelsgericht Wien. Designadamente, considerou que os efeitos jurídicos de uma fusão faziam parte do estatuto pessoal e que a transmissão do património no âmbito da fusão devia, consequentemente, ser apreciada à luz da lei que rege o estatuto da KA Finanz, sociedade incorporante, isto é, a lei austríaca.

26.

A KA Finanz interpôs recurso de «Revista» para o órgão jurisdicional de reenvio. Esse órgão esclarece que o recurso tem por objeto questão de saber se o § 226, n.o 3, da AktG é aplicável às obrigações subordinadas subscritas pelo Sparkassen Versicherung.

III – Questões prejudiciais

27.

Por ter dúvidas quanto à interpretação que deve ser dada do direito da União, o Oberster Gerishtshof decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O artigo 1.o, n.o 2, alínea e), da Convenção de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (a seguir ‘Convenção de Roma’) deve ser interpretado no sentido de que a [cláusula que exclui o] ‘direito das sociedades’ [do âmbito de aplicação da referida convenção] abrange

a)

operações de [reestruturação,] como fusões e cisões e

b)

a [regra] de proteção dos credores [no âmbito dessas operações, enunciada] no artigo 15.o da [Terceira] Diretiva 78/855 [...]?

2)

[A resposta é a mesma] caso se aplique o artigo 15.o da Diretiva [2011/35]?

3)

Em caso de resposta afirmativa à primeira e […] segunda questões: a [exclusão no âmbito de aplicação do Regulamento de Roma I, enunciada] no artigo 1.o, n.o 2, alínea d), do referido regulamento — enquanto disposição que sucedeu ao artigo 1.o, n.o 2, alínea e), da Convenção de Roma — permite chegar à mesma conclusão ou deve ser interpretada de forma diferente? Em caso de resposta afirmativa, como?

4)

É possível retirar do direito primário [da União], como a liberdade de estabelecimento nos termos do artigo 49.o TFUE, a liberdade de prestação de serviços nos termos do artigo 56.o TFUE ou a livre circulação de capitais e de pagamentos nos termos do artigo 63.o TFUE, orientações quanto ao tratamento das fusões em matéria […] de conflitos, em particular no que respeita à questão de saber se se deve aplicar o direito nacional do Estado da sociedade incorporada ou o direito nacional da sociedade incorporante?

5)

Em caso de resposta negativa à quarta questão: é possível retirar [...] do direito derivado [da União], tal como a Diretiva [2005/56] ou a Diretiva [2011/35], [...] a Sexta Diretiva 82/891/CEE do Conselho, de 17 de dezembro de 1982, fundada no n.o 3, alínea g), do artigo 54.o do Tratado, relativa às cisões de sociedades anónimas [ ( 11 )], [princípios quanto às regras de conflito a aplicar,] em particular no que respeita à questão de saber se [a lei aplicável é] o direito nacional do Estado da sociedade incorporada ou o direito nacional da sociedade incorporante, ou [se cabe ao] direito [internacional privado] nacional [...] determinar [...] qual o direito material nacional a aplicar?

6)

[Deve] o artigo 15.o da Terceira Diretiva [78/855] ser interpretado no sentido de que, no caso de uma fusão transfronteiriça, o emitente tem o direito, em relação aos portadores de títulos que não sejam ações, dotados de direitos especiais, em particular [...] obrigações subordinadas, de [pôr termo à] relação jurídica e de [reembolsar os portadores]?

7)

[A resposta é a mesma caso se aplique] o artigo 15.o da Diretiva [2011/35]?»

IV – A nossa análise

28.

Por força dos artigos 28.° e 29.°, segundo parágrafo, do Regulamento Roma I, este é aplicável aos contratos celebrados após 17 de dezembro de 2009 e a partir desta data.

29.

Em conformidade com o seu artigo 33.o, a Diretiva 2011/35 entrou em vigor em 1 de julho de 2011.

30.

Portanto, estes dois diplomas são aplicáveis à situação em causa no processo principal.

31.

A Sexta Diretiva 82/891 regula as cisões das sociedades anónimas. Uma vez que o litígio do processo principal diz respeito à fusão desse tipo de sociedades, esta diretiva não tem relevância para a resolução deste litígio.

32.

Por conseguinte, consideramos que não é necessário responder à segunda, terceira e sétima questões, bem como à quinta questão na medida em que diz respeito à Sexta Diretiva 82/891 e à Diretiva 2011/35.

33.

Relativamente ao mérito do direito cuja interpretação é pedida ao Tribunal de Justiça, parece‑nos que a solução depende da verdadeira natureza desta forma particular de financiamento das empresas que constituem as obrigações subordinadas.

34.

O princípio do título subordinado em causa implica, para quem investe, colocar fundos à disposição do emitente durante um período particularmente longo, neste caso 25 anos ( 12 ). Uma remuneração de valor superior à de um empréstimo ordinário vem compensar, simultaneamente, o longo prazo de imobilização do capital investido e o risco que daí resulta quanto ao seu reembolso. Com efeito, o pagamento do capital só pode ter lugar depois de todos os outros credores, incluindo os quirografários, terem sido previamente reembolsados.

35.

A duração consentida da imobilização gera, evidentemente, um risco quanto à situação futura da sociedade no termo de períodos tão longos, ou até, por vezes, indefinidos.

36.

Daqui resultam, do nosso ponto de vista, duas consequências diferentes mas complementares, uma relativamente ao investidor, outra relativamente ao emitente. Em relação ao investidor, o contrato é incontestavelmente aleatório. Quem pode saber se, dentro de 25 anos, a sociedade continuará a existir e ainda estará in bonis? Em relação ao emitente, os fundos assim obtidos serão imobilizados por muito tempo e considerados como tal. Longe de serem dívidas de curto prazo, permitem ao emitente melhorar a sua estrutura de balanço, como fundos próprios, mesmo que não correspondam à definição jurídica destes últimos.

37.

Para reproduzir uma opinião geral, podemos considerar que as diversas observações da doutrina levam a concluir por uma falta de unidade conceptual num domínio que está longe de estar harmonizado.

38.

Por esta razão, consideramos que nos devemos basear na natureza, efetivamente sui generis, deste contrato particular e observar que a duração, por um lado, e o caráter aleatório do investimento, por outro, dão aos fundos considerados o caráter de fundos próprios, mesmo que, para ser exato, seja preferível qualificá‑los de «fundos próprios complementares», para reproduzir a qualificação estabelecida pelo Comité de Basileia ( 13 ).

39.

Com efeito, nas suas observações escritas, não contestadas nesta questão durante a audiência, a Sparkassen Versicherung refere que «da [cláusula relativa ao pagamento], bem como de outras disposições das condições de emissão, decorre que os títulos em causa são fundos próprios Lower Tier 2 na aceção da prática de supervisão bancária e das emissões por força dos acordos de Basileia I e II ( 14 ). Os títulos Lower Tier 2 são considerados fundos próprios complementares pelo Comité de Basileia sobre supervisão bancária ( 15 ).

40.

O caráter de fundos próprios é reforçado pela natureza aleatória do contrato de subscrição, na medida em que, no caso de cessação dos pagamentos e de liquidação, esses fundos próprios não devem ser reembolsados enquanto todos os outros credores não o tiverem sido, diminuindo assim em grande parte o capital das dívidas.

41.

Se a sociedade estiver numa situação tal que o reembolso dos referidos fundos próprios seja impossível, a sua perda constituirá, para o investidor, a concretização do risco inerente ao próprio contrato e, por definição, nada poderá reclamar. Com efeito, o desaparecimento dos fundos, eventual resultado do contrato aleatório celebrado, acarreta o desaparecimento do crédito e, em consequência, a questão da lei aplicável deixa de se colocar.

42.

Por conseguinte, a questão consiste em saber se, na data da fusão, ainda havia um crédito a favor da Sparkassen Versicherung resultante da subscrição das obrigações subordinadas e, para esse efeito, determinar se, na data dessa fusão, a situação da sociedade emitente revelava a existência dos fundos em causa. Com efeito, mesmo que, manifestamente, a fusão não acarrete a liquidação da sociedade incorporada, entretanto dissolvida, é necessário que, na data da fusão‑incorporação, o valor do ativo e do passivo assim transferido para a sociedade incorporante esteja estabelecido, o que, normalmente, deve ser objeto do exame aprofundado dos revisores oficiais de contas. Que as contas sejam efetuadas nesta data parece‑nos prudente, quanto mais não seja para evitar a contabilização de elementos sem valor, que constituiriam, na realidade, ativos fictícios.

43.

O desaparecimento do crédito, nada imprevisível na vida de uma sociedade, e cuja superveniência conduz, assim, a um resultado desfavorável, mesmo numa data antecipada relativamente ao termo inicialmente acordado, parece‑nos fazer parte do risco inerente a este tipo de contrato.

44.

Conforme salientado no n.o 22 das presentes conclusões, essa avaliação parece ter sido feita para concluir que o valor dos títulos que demonstram o investimento em causa era equivalente a zero.

45.

Contudo, em relação à questão de facto, competirá ao órgão jurisdicional nacional estabelecer a questão de saber se os fundos próprios complementares assim constituídos estavam presentes na sociedade incorporada na data da fusão.

46.

No entanto, deve encarar‑se a hipótese de que a sociedade incorporada estar in bonis.

47.

Se fosse essa a situação, então colocar‑se‑ia efetivamente a questão da lei aplicável ao litígio do processo principal. Na medida em que, por força do artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2005/56, a fusão transfronteiriça implica, a partir da data em que produz efeitos, a transferência de todo o património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante ( 16 ), esta última sociedade torna‑se a sucessora universal da primeira, que assume, assim, todos os seus contratos celebrados antes da fusão, sem implicar novação. Por conseguinte, a lei escolhida pelas partes na data da celebração desses contratos permanece a lei aplicável ao litígio, neste caso a lei alemã.

48.

Consequentemente, esta disposição deve ser interpretada no sentido de que, no âmbito de uma fusão transfronteiriça, os contratos como os que estão em causa no processo principal celebrados pela sociedade incorporada são transferidos para a sociedade incorporante, desencadeando assim a aplicação da lei escolhida pelas partes no momento da celebração desses contratos.

49.

Por outro lado, se existirem montantes em dívida a título de juros vencidos e não pagos antes do desaparecimento dos fundos próprios complementares da sociedade emitente, o crédito daí resultante deve beneficiar de uma proteção equivalente à que resulta do contrato inicial e sujeita aos mesmos riscos. Por força do artigo 4.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2005/56, uma sociedade que participa numa fusão transfronteiriça rege‑se pelas disposições e formalidades do direito nacional a que está sujeita, dizendo essas disposições e formalidades respeito, nomeadamente, à proteção dos credores das sociedades objeto de fusão ( 17 ). Na medida em que os Estados‑Membros devem dar cumprimento aos artigos 13.° a 15.° da Terceira Diretiva 78/855, relativa à proteção dos credores no âmbito de uma fusão nacional, deduzimos daí que a Diretiva 2005/56 remete para aquelas disposições e que os credores, no âmbito de uma fusão transfronteiriça, devem usufruir da mesma proteção que os credores abrangidos por uma fusão nacional. Mais precisamente, entre as referidas disposições, só o artigo 13.o da Terceira Diretiva 78/855 nos parece aplicável ao tipo de obrigação em causa em razão da sua natureza inicial. Com efeito, o artigo 14.o desta diretiva estende aquele artigo 13.o aos casos dos simples obrigacionistas que não podem ser equiparados aos titulares de obrigações subordinadas.

50.

O artigo 15.o da referida diretiva diz respeito, por seu turno, aos títulos que não sejam ações, dotados de direitos especiais. Aos portadores destes títulos é reconhecido o direito a uma proteção, pelo menos, equivalente àquela de que beneficiavam antes da fusão, e, por conseguinte, potencialmente mais alargada. Em consequência da própria natureza dos títulos em causa, esta disposição não lhes pode ser aplicável. Com efeito, o tipo de obrigação em causa não pode, na nossa opinião, ser qualificado de «títulos dotados de direitos especiais», uma vez que a sua especificidade confere direitos especialmente favoráveis ao emissor e não ao subscritor. Inverter este desequilíbrio, mesmo que apenas em relação ao pagamento de juros cujas modalidades de recebimento dependem da própria estrutura do contrato, equivaleria aqui ainda a transformar este último.

51.

Ora, é indispensável que a natureza do contrato inicial do tipo dos presentemente analisados seja mantida nos seus termos exatos, caso contrário resultaria daí uma novação, por definição estranha à fusão, uma vez que é incompatível com a qualidade de sucessor universal da sociedade incorporante.

52.

Com efeito, sendo este contrato de natureza aleatória e recaindo o risco sobre o investidor, qualquer garantia que reforçasse o crédito diminuiria, ou até suprimiria, o risco e modificaria, portanto, a natureza do contrato inicial e, potencialmente, a dos fundos assim constituídos bem como dos direitos que lhe são inerentes.

53.

Assim, a título de exemplo, qualquer que seja a regra de conflito da lei aplicável, não pode levar a um resultado como o que resultaria do § 226, n.o 1, da AktG, que prevê, em certos casos, que o credor que não pôde ser reembolsado possa pedir garantias se demonstrar que a fusão constitui um risco para o seu reembolso.

54.

Do mesmo modo, em relação à incorporação de uma sociedade in bonis, a possibilidade de uma das partes do contrato de emissão lhe pôr termo em caso de fusão posterior só poderia resultar de uma cláusula expressa do referido contrato aquando da sua celebração, cláusula que, em todo o caso, não pode funcionar quando a situação de perda dos fundos próprios tenha verificado antes da fusão em causa.

55.

Consequentemente, tendo em atenção o que foi exposto, consideramos que o artigo 4.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2005/56, conjugado com o artigo 13.o, n.o 1, da Terceira Diretiva 78/855, deve ser interpretado no sentido de que os créditos resultantes de instrumentos financeiros como as obrigações subordinadas em causa no processo principal só podem beneficiar, tendo em conta a sua natureza, de uma proteção equivalente à proteção de que beneficiavam antes da fusão transfronteiriça.

V – Conclusão

56.

Tendo em atenção todas as considerações precedentes, propomos que o Tribunal de Justiça responda ao Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal) nos seguintes termos:

Quando, numa fusão, a sociedade incorporada tenha recorrido à emissão de obrigações subordinadas da natureza das analisadas no processo principal, estas só são transmitidas para a sociedade incorporante se, na data da fusão, os fundos próprios complementares assim constituídos ainda existirem, o que compete ao órgão jurisdicional nacional verificar.

Se for esse o caso, o artigo 14.o, n.o 1, da Diretiva 2005/56/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2005, relativa às fusões transfronteiriças das sociedades de responsabilidade limitada, deve ser interpretado no sentido de que, no âmbito de uma fusão transfronteiriça, os contratos como os que estão em causa no processo principal, celebrados pela sociedade incorporada, são transferidos para a sociedade incorporante, desencadeando assim a aplicação da lei escolhida pelas partes no momento da celebração desses contratos.

O artigo 4.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2005/56, conjugado com o artigo 13.o, n.o 1, da Terceira Diretiva 78/855/CEE do Conselho, de 9 de outubro de 1978, fundada na alínea g) do n.o 3, do artigo 54.o, do Tratado e relativa à fusão das sociedades anónimas, deve ser interpretado no sentido de que os créditos resultantes de instrumentos financeiros como as obrigações subordinadas em causa no processo principal só podem beneficiar, tendo em conta a sua natureza, de uma proteção equivalente à proteção de que beneficiavam antes da fusão transfronteiriça.


( 1 ) Língua original: francês.

( 2 ) Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2005, relativa às fusões transfronteiriças das sociedades de responsabilidade limitada (JO L 310, p. 1).

( 3 ) Diretiva do Conselho, de 9 de outubro de 1978, fundada na alínea g) do n.o 3, do artigo 54.o, do Tratado e relativa à fusão das sociedades anónimas (JO L 295, p. 36).

( 4 ) JO 1980, L 266, p. 1, a seguir «Convenção de Roma».

( 5 ) JO L 177, p. 6, e retificação JO 2009, L 309, p. 87, a seguir «Regulamento Roma I».

( 6 ) V. terceiro e quarto considerandos desta diretiva.

( 7 ) V. sexto considerando da referida diretiva.

( 8 ) JO L 110, p. 1.

( 9 ) V. considerando 1 desta diretiva.

( 10 ) BGBl. I, 98/1965, p. 1089.

( 11 ) JO L 378, p. 47.

( 12 ) V. anexos das observações escritas da Sparkassen Versicherung.

( 13 ) O Comité de Basileia foi criado em 1974. Está encarregado de reforçar a solidez do sistema financeiro mundial, bem como a eficácia da fiscalização prudencial e a cooperação entre reguladores bancários (https://acpr.banque‑france.fr/international/la‑cooperation‑au‑niveau‑international/les‑instances‑internationales/secteur‑banque/le‑comite‑de‑bale.html).

( 14 ) V. n.o 5 dessas observações.

( 15 ) V. p. 15 do documento do Comité de Basileia sobre supervisão bancária, intitulado «Convergência internacional das medidas e das normas relativas aos fundos próprios» disponível no endereço Internet http://www.bis.org/publ/bcbs128fre.pdf.

( 16 ) V., também, artigo 2.o, n.o 2, alínea a), desta diretiva, que refere, nomeadamente, que se entende por «fusão» a operação pela qual uma ou mais sociedades, sendo dissolvidas sem liquidação, transferem todos os seus ativos e passivos para outra sociedade já existente.

( 17 ) O considerando 3 desta diretiva refere que «cada sociedade que participe na fusão transfronteiriça, bem como qualquer terceiro envolvido, continu[am] a estar submetidos às disposições e formalidades de direito interno aplicáveis em caso de fusão nacional».

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