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Document 62013CC0343

    Conclusões do advogado-geral M. Wathelet apresentadas em 12 de novembro de 2014.
    Modelo Continente Hipermercados SA contra Autoridade para as Condições de Trabalho - Centro Local do Lis (ACT).
    Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal do Trabalho de Leiria.
    Reenvio prejudicial — Regime das fusões das sociedades anónimas — Diretiva 78/855/CEE — Fusão mediante incorporação — Artigo 19.° — Efeitos — Transmissão universal do conjunto do património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante — Infração cometida pela sociedade incorporada antes da fusão — Constatação da infração por decisão administrativa depois da referida fusão — Direito nacional — Transferência da responsabilidade contraordenacional da sociedade incorporada — Admissibilidade.
    Processo C-343/13.

    Court reports – general

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2014:2366

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    MELCHIOR WATHELET

    apresentadas em 12 de novembro de 2014 ( 1 )

    Processo C‑343/13

    Modelo Continente Hipermercados SA

    contra

    Autoridade para as Condições de Trabalho — Centro Local do Lis (ACT)

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal do Trabalho de Leiria (Portugal)]

    «Regime das fusões das sociedades anónimas — Diretiva 2011/35/UE — Fusão por incorporação — Transferência do conjunto do património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante — Responsabilidade contraordenacional — Direito nacional que prevê a transferência dessa responsabilidade da sociedade incorporada no momento de uma fusão por incorporação»

    I – Introdução

    1.

    O presente pedido de decisão prejudicial foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Modelo Continente Hipermercardos, SA (a seguir «MCH»), à Autoridade para as Condições de Trabalho — Centro Local do Lis (ACT) (a seguir «ACT»), a respeito da decisão desta última de condenar a MCH por infrações ao Código do Trabalho cometidas pela Good and Cheap — Comércio Retalhista, SA (a seguir «Good and Cheap»), antes da sua fusão por incorporação na MCH.

    2.

    Neste contexto, coloca‑se no presente processo a questão de saber se a fusão por incorporação da Good and Cheap na MCH implica a transmissão das dívidas da Good and Cheap à MCH, quando o credor não apresentou o seu pedido à Good and Cheap antes da fusão, apesar de os factos geradores da dívida em causa terem ocorrido antes desta.

    3.

    O presente processo dá ao Tribunal de Justiça a oportunidade de, pela primeira vez, interpretar uma disposição da Terceira Diretiva 78/855/CEE do Conselho, de 9 de outubro de 1978, fundada na alínea g) do n.o 3 do artigo 54.o do Tratado CEE e relativa à fusão das sociedades anónimas ( 2 ), conforme alterada, pela última vez, pela Diretiva 2009/109/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009 ( 3 ) (a seguir «Terceira Diretiva»), e pela Diretiva 2011/35/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativa às fusões das sociedades anónimas ( 4 ).

    II – Quadro jurídico

    A – Direito da União

    4.

    O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 19.o, n.o 1, da Terceira Diretiva, que ainda estava em vigor à data da fusão em causa no processo principal.

    5.

    A Terceira Diretiva foi codificada pela Diretiva 2011/35. Os considerandos e disposições da Diretiva 2011/35 pertinentes para efeitos do presente processo são, em substância, idênticos aos correspondentes considerandos e disposições da Terceira Diretiva. Por esta razão, ainda que a fusão em causa no processo principal se tenha realizado ao abrigo do regime da Terceira Diretiva, referir‑me‑ei à Diretiva 2011/35, à semelhança do órgão jurisdicional de reenvio e das partes.

    6.

    Os considerandos 4 e 7 da Diretiva 2011/35 enunciam:

    «(4)

    A proteção dos interesses dos sócios e de terceiros requer uma coordenação da legislação dos Estados‑Membros a respeito da fusão das sociedades anónimas, e é conveniente introduzir na legislação de todos os Estados‑Membros o instituto da fusão.

    […]

    (7)

    Os credores, incluindo os obrigacionistas, e os portadores de outros títulos das sociedades participantes na fusão deverão ser protegidos de modo a evitar que a realização da fusão prejudique os seus interesses.»

    7.

    Nos termos do artigo 3.o, n.o 1, do capítulo II, intitulado «Regime da fusão mediante incorporação de uma ou várias sociedades noutra sociedade e da fusão mediante a constituição de uma nova sociedade», da Diretiva 2011/35:

    «Para efeitos da presente diretiva, entende‑se por ‘fusão mediante incorporação’ a operação pela qual uma ou várias sociedades, por meio de uma dissolução sem liquidação, transferem para outra todo o seu património ativo e passivo, mediante a atribuição aos acionistas da sociedade ou sociedades incorporadas de ações da sociedade incorporante e, eventualmente, de uma quantia em dinheiro não superior a 10% do valor nominal das ações assim atribuídas ou, na falta de valor nominal, do seu valor contabilístico.»

    8.

    O capítulo III desta diretiva, intitulado «Fusão mediante incorporação», comporta, nomeadamente, as seguintes disposições:

    «Artigo 6.o

    O projeto de fusão deve ser objeto de publicidade, segundo os modos previstos pela legislação de cada Estado‑Membro, nos termos do artigo 3.o da Diretiva 2009/101/CE, relativamente a cada uma das sociedades participantes, com uma antecedência mínima de um mês sobre a data da reunião da assembleia geral convocada para se pronunciar sobre o projeto de fusão.

    […]

    Artigo 11.o

    1.   Os acionistas têm o direito de consultar na sede social, com uma antecedência mínima de um mês relativamente à data da reunião da assembleia geral convocada para se pronunciar sobre o projeto de fusão, pelo menos os seguintes documentos:

    a)

    O projeto de fusão;

    b)

    As contas anuais e os relatórios de gestão dos três últimos exercícios das sociedades participantes na fusão;

    c)

    Se for esse o caso, um balanço contabilístico reportado a uma data que não deve ser anterior ao primeiro dia do terceiro mês anterior à data do projeto de fusão, no caso de as últimas contas anuais se reportarem a um exercício cujo termo é anterior em mais de seis meses a essa data;

    [...]

    Artigo 12.o

    A proteção dos direitos dos trabalhadores de cada uma das sociedades participantes na fusão é regulada nos termos da Diretiva 2001/23/CE.

    Artigo 13.o

    1.   A legislação dos Estados‑Membros deve prever um sistema adequado de proteção dos interesses dos credores das sociedades participantes na fusão relativamente aos créditos anteriores à publicação do projeto de fusão e ainda não vencidos no momento desta publicação.

    2.   Para esse efeito, a legislação dos Estados‑Membros deve prever, pelo menos, que os credores em causa tenham o direito de obter garantias adequadas caso a situação financeira das sociedades participantes numa fusão torne essa proteção necessária e esses credores não disponham já de tais garantias.

    Os Estados‑Membros devem estabelecer as condições de proteção previstas no n.o 1 e no primeiro parágrafo do presente número. Em qualquer caso, os Estados‑Membros devem assegurar que os credores sejam autorizados a recorrer à autoridade administrativa ou judicial competente para obter garantias adequadas, desde que possam demonstrar, de maneira credível, que a fusão compromete o exercício dos seus direitos e que a sociedade não lhes forneceu garantias adequadas.

    3.   A proteção pode ser diferente para os credores da sociedade incorporante e para os da sociedade incorporada.

    […]

    Artigo 18.o

    1.   A fusão deve ser objeto de publicidade efetuada segundo os modos previstos pela legislação de cada Estado‑Membro, nos termos do artigo 3.o da Diretiva 2009/101/CE, para cada uma das sociedades participantes.

    2.   A sociedade incorporante pode proceder ela própria às formalidades de publicidade respeitantes à sociedade ou sociedades incorporadas.

    Artigo 19.o

    1.   A fusão produz ipso iure e simultaneamente os seguintes efeitos:

    a)

    A transmissão universal do conjunto do património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, tanto no que a estas respeita como relativamente a terceiros;

    b)

    Os acionistas da sociedade incorporada tornam‑se acionistas da sociedade incorporante;

    c)

    A sociedade incorporada extingue‑se.

    […]»

    B – Direito português

    9.

    O Código das Sociedades Comerciais transpõe as disposições da Diretiva 2011/35 para o direito português.

    10.

    O seu artigo 98.o, com a epígrafe «Projeto de fusão», dispõe:

    «1 —   As administrações das sociedades que pretendam fundir‑se elaboram, em conjunto, um projeto de fusão donde constem, além de outros elementos necessários ou convenientes para o perfeito conhecimento da operação visada, tanto no aspeto jurídico como no aspeto económico, os seguintes elementos:

    […]

    d)

    O balanço de cada uma das sociedades intervenientes, donde conste designadamente o valor dos elementos do ativo e do passivo a transferir para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade;

    […]

    h)

    As modalidades de proteção dos direitos dos credores;

    […]

    2 —   O balanço referido na alínea d) do número anterior pode ser:

    a)

    O balanço do último exercício, desde que tenha sido encerrado nos seis meses anteriores à data do projeto de fusão; ou

    b)

    Um balanço reportado a uma data que não anteceda o trimestre anterior à data do projeto de fusão.»

    11.

    O artigo 100.o deste código, com a epígrafe «Registo e publicação do projeto e convocação da assembleia», estabelece o seguinte:

    «1 —   O projeto de fusão deve ser registado.

    2 —   O projeto de fusão deve ser submetido a deliberação dos sócios de cada uma das sociedades participantes, em assembleia geral, seja qual for o tipo de sociedade, sendo as assembleias convocadas, depois de efetuado o registo, para se reunirem decorrido, pelo menos, um mês sobre a data da publicação da convocatória.

    3 —   A convocatória deve mencionar que o projeto e a documentação anexa podem ser consultados, na sede de cada sociedade, pelos respetivos sócios e credores sociais e qual a data designada para a assembleia.

    […]

    5 —   A publicação do registo do projeto é promovida de forma oficiosa e automática pelo serviço de registo e contém a indicação de que os credores se podem opor à fusão nos termos do artigo 101.o‑A.

    […]»

    12.

    O artigo 101.o‑A deste mesmo código, com a epígrafe «Oposição dos credores», tem a seguinte redação:

    «No prazo de um mês após a publicação do registo do projeto, os credores das sociedades participantes cujos créditos sejam anteriores a essa publicação podem deduzir oposição judicial à fusão, com fundamento no prejuízo que dela derive para a realização dos seus direitos, desde que tenham solicitado à sociedade a satisfação do seu crédito ou a prestação de garantia adequada, há pelo menos 15 dias, sem que o seu pedido tenha sido atendido.»

    13.

    Segundo o artigo 101.o‑B do referido código, com a epígrafe «Efeitos da oposição»:

    «1 —   A oposição judicial deduzida por qualquer credor impede a inscrição definitiva da fusão no registo comercial até que se verifique algum dos seguintes factos:

    a)

    Haver sido julgada improcedente, por decisão com trânsito em julgado, ou, no caso de absolvição da instância, não ter o oponente intentado nova ação no prazo de 30 dias;

    b)

    Ter havido desistência do oponente;

    c)

    Ter a sociedade satisfeito o oponente ou prestado a caução fixada por acordo ou por decisão judicial;

    d)

    Haver o oponente consentido na inscrição;

    e)

    Ter sido consignada em depósito a importância devida ao oponente.

    […]»

    14.

    O artigo 111.o do Código das Sociedades Comerciais, com a epígrafe «Registo de fusão», dispõe:

    «Deliberada a fusão por todas as sociedades participantes sem que tenha sido deduzida oposição no prazo previsto no artigo 101.o‑A ou, tendo esta sido deduzida, se tenha verificado algum dos factos referidos no n.o 1 do artigo 101.o‑B, deve ser requerida a inscrição da fusão no registo comercial por qualquer dos administradores das sociedades participantes na fusão ou da nova sociedade.»

    15.

    O artigo 112.o deste código dispõe:

    «Com a inscrição da fusão no registo comercial:

    a)

    Extinguem‑se as sociedades incorporadas ou, no caso de constituição de nova sociedade, todas as sociedades fundidas, transmitindo‑se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade;

    b)

    Os sócios das sociedades extintas tornam‑se sócios da sociedade incorporante ou da nova sociedade.»

    III – Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    16.

    A Good and Cheap era uma sociedade de direito português que se dedicava ao comércio a retalho em supermercados e em hipermercados.

    17.

    A MCH é uma sociedade comercial de direito português que se dedica, entre outras atividades, ao comércio a retalho no setor da alimentação. Detém e explora cerca de 180 estabelecimentos comerciais em Portugal.

    18.

    Em 15 de fevereiro de 2011, a ACT realizou nas instalações da Good and Cheap, situada em Pombal (Portugal), uma inspeção ao registo das horas de trabalho prestadas pelos trabalhadores da Good and Cheap nos meses de dezembro de 2010 e janeiro de 2011.

    19.

    Em 22 de fevereiro de 2011, a Good and Cheap e a MCH registaram o projeto de fusão, previamente aprovado pelos conselhos de administração respetivos, no serviço competente do registo comercial. Este projeto de fusão foi publicado no sítio Internet das publicações do Ministério da Justiça (https://publicacoes.mj.pt/Index.aspx).

    20.

    Em 7 de março de 2011, uma inspetora do trabalho da ACT lavrou dois autos de notícia dirigidos à Good and Cheap, imputando‑lhe uma violação das disposições do direito do trabalho português nos termos das quais os trabalhadores não podem prestar mais de cinco horas de trabalho consecutivas e têm direito a um período de descanso de pelo menos onze horas seguidas entre dois períodos de trabalho consecutivos.

    21.

    A fusão por incorporação do património da Good and Cheap na MCH foi registada no registo comercial em 31 de março de 2011. A Good and Cheap extinguiu‑se a partir dessa data.

    22.

    Em 4 de abril de 2011, a ACT notificou à Good and Cheap os autos de notícia de 7 de março de 2011, aplicando‑lhe duas coimas: uma, de 459 euros (a pagar até 12 de abril de 2011), pela violação da proibição de os trabalhadores prestarem mais de cinco horas de trabalho consecutivas (auto de notícia n.o 161100188), e a outra (cujo montante e data‑limite de pagamento não decorrem dos autos apresentados ao Tribunal de Justiça), pela violação do direito dos trabalhadores a um período de descanso de pelo menos onze horas seguidas entre dois períodos de trabalho (auto de notícia n.o 161100190).

    23.

    Na sua resposta escrita, a MCH contestou a legalidade desta decisão, invocando, entre outros argumentos, o registo da fusão por incorporação da Good and Cheap na MCH, que ocorrera em 31 de março de 2011.

    24.

    Nas propostas de decisão de 18 e 21 de setembro de 2012, a instrutora propôs à diretora da ACT que confirmasse os dois autos de notícia de 7 de março de 2011 e que aplicasse à MCH uma coima de 714 euros por cada uma das infrações em causa.

    25.

    Na sua decisão de cúmulo jurídico de 24 de setembro de 2012, a diretora da ACT adotou as referidas propostas de decisão e aplicou à MCH uma coima única pelos dois autos, no valor de 1250 euros. A decisão foi notificada à MCH em 26 de setembro de 2012.

    26.

    A MCH interpôs recurso de impugnação judicial no Tribunal do Trabalho de Leiria (Portugal), no qual contestava a legalidade desta última decisão. Alega, entre outros argumentos, que uma interpretação do artigo 112.o do Código das Sociedades Comerciais que permita a aplicação de uma coima à MCH por infrações ao direito do trabalho cometidas pela Good and Cheap é contrária ao artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35.

    27.

    Nestas circunstâncias, o Tribunal do Trabalho de Leiria decidiu suspender a instância e submeter as seguintes questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça:

    «1)

    à luz do Direito [da União], nomeadamente [do artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35/UE], a fusão de sociedades implica um regime de transmissão da responsabilidade contraordenacional para a sociedade incorporante por factos cometidos pela sociedade incorporada anteriormente ao registo da fusão?

    2)

    poderá uma sanção de natureza contraordenacional ser considerada crédito de terceiros (neste caso o Estado por infração a normas do regime das contraordenações) para efeitos de aplicação da Diretiva [2011/35] transferindo‑se o alegado crédito (coima) por sanção contraordenacional e de que será credor o Estado para a sociedade incorporante?

    3)

    não será o entendimento de que o art. 112.° do CSC não implica a extinção do procedimento por contraordenação praticada anteriormente à fusão nem a coima que lhe tenha/venha a ser aplicada contrária à [Diretiva 2011/35] que estabelece os efeitos da fusão de sociedades estabelecendo‑se assim uma interpretação extensiva do preceito contrária aos princípios do regime comunitário, nomeadamente o art. 19.° da Diretiva?

    4)

    não será este entendimento uma violação do princípio de que não pode existir contraordenação sem responsabilidade objetiva (mitigada) ou culposa da entidade incorporante?»

    IV – Tramitação no Tribunal de Justiça

    28.

    O presente pedido de decisão prejudicial foi apresentado no Tribunal de Justiça em 24 de junho de 2013. Apresentaram observações escritas a MCH, os Governos português, alemão, húngaro e austríaco, bem como a Comissão Europeia.

    29.

    Em 20 de junho de 2014, o Tribunal enviou uma lista de questões à MCH e ao Governo português, para resposta escrita antes da audiência. As respostas do Governo português e da MCH deram entrada no Tribunal em 15 e 28 de julho de 2014, respetivamente.

    30.

    Realizou‑se uma audiência em 3 de setembro de 2014, na qual a MCH, os Governos português e alemão e a Comissão apresentaram alegações orais.

    V – Análise

    A – Quanto à admissibilidade

    31.

    Os Governos alemão e austríaco expressaram dúvidas quanto à admissibilidade de algumas questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio. O Governo alemão considera que a terceira e quarta questões visam a interpretação do direito nacional. O Governo austríaco sustenta, por sua vez, que a segunda questão tem por objeto uma situação em que, contrariamente aos factos no processo principal, a coima já foi aplicada antes da fusão e que, por conseguinte, a referida questão é hipotética. Além disso, a questão da responsabilidade penal evocada na quarta questão não é regulada pela Diretiva 2011/35 e, portanto, não tem o nexo com o direito da União Europeia, exigido pelo artigo 51.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

    32.

    Não partilho da posição do Governo austríaco sobre a segunda questão, através da qual o órgão jurisdicional de reenvio pergunta ao Tribunal de Justiça se uma sanção de natureza contraordenacional, como a coima em causa no processo principal, pode ser qualificada de crédito, sendo o Estado português credor na aceção da Diretiva 2011/35 ( 5 ). Entendida desta forma, a segunda questão tem por objeto não só a qualificação de uma coima aplicada antes da fusão mas também uma coima aplicada depois da fusão. Neste sentido, a segunda questão não é hipotética.

    33.

    Por outro lado, não considero que a terceira questão seja relativa à interpretação do direito nacional. Através da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio questiona o Tribunal sobre a interpretação a dar ao artigo 19.o da Terceira Diretiva, para se poder pronunciar acerca da compatibilidade com esta disposição do artigo 112.o do Código das Sociedades Comerciais, como interpretado em Portugal, concretamente, que uma fusão não implica a extinção do processo relativo a uma contraordenação praticada antes da fusão nem da coima aplicada ou a aplicar. A terceira questão é, portanto, admissível.

    34.

    Em contrapartida, partilho da posição dos Governos alemão e austríaco, segundo a qual a quarta questão não é admissível. Com efeito, esta questão visa a interpretação de um princípio do direito português, o que, de acordo com jurisprudência constante, não é da competência do Tribunal de Justiça ( 6 ).

    B – Quanto ao mérito

    35.

    Da mesma maneira que o Governo húngaro, penso que, com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se o artigo 19.o, n.o 1, da Diretiva 2011/35 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que, como o artigo 112.o do Código das Sociedades Comerciais português, conforme aplicado em Portugal, prevê que uma fusão de sociedades por incorporação implica a transmissão à sociedade incorporante da obrigação de pagar uma coima por infrações ao direito do trabalho cometidas pela sociedade incorporada, quando as referidas infrações tenham sido cometidas antes desta fusão, mas a coima só tenha sido aplicada por decisão definitiva, após a referida fusão. Por conseguinte, analisarei em conjunto as questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio.

    1. Argumentos apresentados ao Tribunal de Justiça

    36.

    A MCH e o Governo alemão alegam que a transmissão universal, no momento de uma fusão por incorporação, do conjunto do património ativo e passivo da sociedade incorporada à sociedade incorporante, como previsto pelo artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35, inclui a transmissão das dívidas da sociedade incorporada. Contudo, uma coima contraordenacional aplicada a esta última só pode ser considerada um crédito do Estado — e, por conseguinte, uma dívida da sociedade incorporada — a partir do momento em que o Estado dispõe de uma decisão, administrativa ou judicial, definitiva, no sentido de que tem força executória. Ora, no caso vertente, a fusão ocorreu antes da adoção desta decisão e, por conseguinte, a responsabilidade contraordenacional da Good and Cheap pelas infrações ao direito do trabalho em causa não se transmitiu à MCH.

    37.

    Além disso, segundo a MCH, caso se admitisse a transmissão da responsabilidade contraordenacional nessas circunstâncias, os acionistas e os credores das sociedades participantes na fusão não poderiam avaliar as consequências económicas desta última. Por esta razão, o Governo alemão considera que a data de referência para a determinação do montante do património ativo e passivo a transmitir é a data em que a fusão se torna efetiva.

    38.

    O Governo austríaco considera que a Diretiva 2011/35 não prevê a responsabilidade civil da sociedade incorporante perante os credores ou os portadores de outros títulos. A referida diretiva não contém disposições relativas à responsabilidade contraordenacional das sociedades participantes na fusão, que, segundo este governo, constitui uma responsabilidade administrativa de natureza penal. Daqui decorre que os factos na origem do presente pedido de decisão prejudicial não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da referida diretiva.

    39.

    O Governo austríaco considera, contudo, que a Diretiva 2011/35 também não exclui que a sociedade incorporante assuma uma responsabilidade contraordenacional por atos imputáveis à sociedade incorporada. Por conseguinte, uma regulamentação nacional nos termos da qual podem ser aplicadas à sociedade incorporante sanções administrativas de natureza penal não é contrária ao artigo 19.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva.

    40.

    Os Governos português e húngaro e a Comissão consideram, em substância, que a transmissão da responsabilidade contraordenacional da sociedade incorporada à sociedade incorporante, no momento de uma fusão, é imposta pelo artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35. Realçam o caráter universal da transmissão do conjunto do ativo e do passivo, referida nesta disposição. Uma coima deve ser considerada um crédito do Estado, que esta diretiva visa proteger enquanto credor. A referida coima faz, portanto, parte do passivo de uma sociedade incorporada por fusão e, nesse sentido, é transmitida à sociedade incorporante.

    2. Apreciação

    a) Direito aplicável

    41.

    Antes de mais, importa determinar o direito aplicável à transmissão, a uma sociedade incorporante, da obrigação de pagamento de uma coima aplicada depois do registo da fusão, por infrações cometidas pela sociedade incorporada que, devido à fusão, se extinguiu. Trata‑se de uma questão regulada pela Diretiva 2011/35 ou apenas pelo direito nacional?

    42.

    O artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35 prevê que «[a] fusão produz ipso iure e simultaneamente […] [a] transmissão universal do conjunto do património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, tanto no que a estas respeita como relativamente a terceiros».

    43.

    A utilização da expressão «ipso iure» demonstra que a fusão implica, de pleno direito e sem outros requisitos de forma ou de fundo, a transmissão do conjunto do património ativo e passivo. A transmissão em caso de fusão é, portanto, regulada pelo direito da União ( 7 ). Contudo, há que determinar o âmbito de aplicação do artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35.

    b) Âmbito de aplicação ratione materiae do artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35: «conjunto do património ativo e passivo»

    44.

    O artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35 é aplicável quando está em causa uma obrigação de direito contraordenacional, neste caso, uma coima aplicada por uma infração ao direito do trabalho português, cujos factos geradores são anteriores à data da publicação do projeto de fusão, mas cuja notificação ao devedor ocorreu, pela primeira vez, depois do registo desta fusão?

    45.

    Há, pois, que determinar se a expressão «conjunto do património ativo e passivo», nomeadamente os termos «património […] passivo», são suficientemente amplos para abrangerem uma situação como a que está em causa no processo principal. Como observa o Governo alemão, trata‑se da interpretação de termos que, apesar de serem várias vezes utilizados na diretiva, não são aí definidos. Por conseguinte, importa interpretá‑los de forma autónoma e uniforme em toda a União Europeia ( 8 ), tendo em conta o contexto em que são utilizados e os objetivos prosseguidos pela Diretiva 2011/35 ( 9 ).

    i) As obrigações de direito contraordenacional fazem parte do património passivo da sociedade incorporada?

    46.

    Quanto à natureza do direito contraordenacional, o Governo austríaco considera, sem fundamentação particular, que o artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35 só se aplica à responsabilidade civil. A coima em causa, enquanto obrigação de direito contraordenacional, tem caráter penal, o que, segundo o Governo austríaco, faz com que não esteja abrangida pelo âmbito de aplicação deste artigo. Segundo este governo, uma disposição de direito nacional que permite a transmissão da responsabilidade contraordenacional não pode, portanto, ser contrária à referida diretiva.

    47.

    A Comissão também consagrou uma grande parte das suas observações escritas ao nascimento do direito contraordenacional («Ordnungsstrafrecht») na Alemanha, à sua história, à sua natureza quase penal e às diferenças com o direito penal clássico ou secundário.

    48.

    A meu ver, apesar do seu interesse teórico, estas considerações não têm o menor impacto no âmbito de aplicação da Diretiva 2011/35. O artigo 19.o, n.o 1, alínea a), desta diretiva refere‑se ao «património passivo», ou seja, ao conjunto das dívidas ( 10 ) que oneram o conjunto dos bens e das obrigações de uma mesma pessoa, entendido no sentido de que forma uma universalidade de direito ( 11 ).

    49.

    Ao usar estes termos amplos, o referido artigo visa, pois, claramente, abranger qualquer dívida possível, independentemente da sua origem e da natureza da responsabilidade civil, penal ou quase penal, desde que se trate da responsabilidade da própria sociedade incorporada ( 12 ) e que a mesma se possa traduzir num valor monetário.

    50.

    Tal decorre ainda mais claramente da versão inglesa da Diretiva 2011/35, que, embora não qualifique a transmissão de «universal», visa «all the assets and liabilities» ( 13 ). Uma dívida de natureza quase penal como a que está em causa no processo principal constitui indubitavelmente uma «liability» da sociedade incorporada.

    51.

    Partilho da posição da MCH e dos Governos português e alemão, segundo a qual uma coima como a que está em causa pode ser qualificada de «crédito» a favor do Estado e este último, de «credor», para efeitos do artigo 13.o da Diretiva 2011/35.

    52.

    Por conseguinte, todas as dívidas que oneram uma sociedade participante numa fusão, incluindo as dívidas a favor do Estado, fazem parte do seu património passivo e são, portanto, automaticamente e sem quaisquer outras condições, transmitidas à sociedade que resulta da fusão.

    ii) As dívidas que estão in statu nascendi no momento da fusão fazem parte do património passivo da sociedade incorporada?

    53.

    Importa ainda determinar se o conceito de património passivo também abrange uma dívida que está in statu nascendi no momento do registo da fusão, ou seja, uma dívida, como a que está em causa no processo principal, cujos factos geradores são anteriores ao registo da fusão, mas que só se tornou exigível e só foi notificada ao devedor, pela primeira vez, após o registo da fusão.

    54.

    Penso que, pelas razões a seguir indicadas, as dívidas in statu nascendi como as que estão em causa no processo principal fazem parte do património passivo da sociedade incorporada e são, portanto, transferidas para a sociedade incorporante.

    55.

    Antes de mais, nada no texto da Diretiva 2011/35 obsta a esta interpretação do conceito de património passivo da sociedade incorporada. O mesmo se diga do conceito de passivo empregado, atendendo à época em que ocorreram os factos no processo principal, na Quarta Diretiva 78/660/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1978, baseada no artigo 54.o, n.o 3, alínea g), do Tratado e relativa às contas anuais de certas formas de sociedades ( 14 ) (a seguir «Diretiva 78/660»), nomeadamente nos pontos B, 3, e C, 8, do artigo 9.o, com a epígrafe «Passivo», aos quais as partes se referiram na audiência ( 15 ).

    56.

    Nas suas observações escritas, a Comissão defendeu a tese de que a dívida em causa no processo principal fazia parte do passivo da sociedade incorporante na aceção da Diretiva 78/660, mas que a correspondente provisão devia ser feita nas contas anuais desta. A Comissão fundamentava esta opinião no facto de a sociedade incorporada ter sido notificada dos autos de notícia, pela primeira vez, antes do registo da fusão, o que não decorre dos autos apresentados no Tribunal.

    57.

    Contudo, na audiência, a Comissão sustentou que as regras aplicáveis à elaboração das contas anuais não eram pertinentes no caso vertente. Partilho desta última posição, porque, caso contrário, uma dívida cuja existência fosse verificada pelo credor, pela primeira vez, depois da elaboração das contas utilizadas para a fusão já não poderia ser transmitida à sociedade incorporante, dado que as contas anuais só podem refletir as dívidas previsíveis e quantificáveis.

    58.

    Neste sentido, o facto de uma dívida in statu nascendi não estar abrangida pelo conceito de passivo na aceção da Diretiva 78/660, e, por conseguinte, não figurar no balanço junto ao projeto de fusão, não basta para a excluir do património passivo na aceção da Diretiva 2011/35.

    59.

    Se fosse esse o caso, a fusão funcionaria como uma causa de extinção das obrigações e poderia mesmo ser feita apenas com essa finalidade.

    60.

    Os seguintes exemplos ajudam a ilustrar este ponto:

    na véspera da fusão de duas sociedades petrolíferas, uma delas provoca uma catástrofe ambiental devido a um derramamento de petróleo no mar. Se aceitássemos a interpretação segundo a qual, para poder ser transferida para a sociedade incorporante, uma dívida da sociedade devedora deve existir, ser certa e exigível antes da fusão, a Administração não teria nenhum meio de aplicar as coimas previstas pelo seu direito do ambiente, e as partes lesadas não poderiam ser indemnizadas.

    na sequência de uma fusão como a que está em causa no processo principal, a Administração Fiscal descobre que a sociedade incorporada praticou durante vários anos um plano de otimização fiscal abusivo. Caso a mesma interpretação fosse aplicável, a Administração Fiscal não teria nenhum meio de cobrar o imposto não pago.

    61.

    Uma fusão por incorporação implica, pois, que a sociedade incorporante adquira a sociedade incorporada na íntegra, incluindo o seu passado. Como, de resto, se prevê no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 2011/35, a fusão por incorporação opera por meio de uma «dissolução sem liquidação» ( 16 ) das sociedades que se fundem, o que implica a transferência de toda a sociedade incorporada, sem extinção das obrigações que a liquidação teria provocado. É por esta razão, ou seja, o risco de que elementos do passivo da sociedade incorporada sejam desconhecidos da sociedade incorporante no momento da fusão, que, na prática, um acordo de fusão inclui normalmente uma cláusula de declarações e garantias («disclosure and warranties») a favor da sociedade incorporante.

    62.

    De resto, não há nada de inovador na ideia de que a sociedade incorporante sucede na responsabilidade da sociedade incorporada, na sequência da fusão. Refiro‑me a numerosos litígios na Europa e nos Estados Unidos, nos quais as sociedades incorporantes foram objeto de ações fundadas em responsabilidade, por vezes sob a forma de ações coletivas, pelo facto de, antes da fusão, a sociedade incorporada ter exposto os seus empregados ao amianto, os quais, por essa razão, sofriam de asbestose e de mesotelioma. Em todos esses casos, o facto de a sociedade incorporante não conhecer esta responsabilidade no momento da fusão não excluiu minimamente a transferência dessa responsabilidade da sociedade incorporada para a sociedade incorporante ( 17 ).

    63.

    Chegou mesmo a acontecer que o montante da indemnização ultrapassasse largamente o preço de aquisição da sociedade incorporada, a ponto de alguns legisladores terem atuado para limitar esta responsabilidade, como, por exemplo, no Texas, «ao justo valor comercial de todos os ativos brutos da sociedade cedente, calculado no momento da fusão ou da consolidação» ( 18 ).

    64.

    Na falta de tal disposição expressa, considero que o artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35 prevê a transferência das dívidas in statu nascendi da sociedade incorporada para a sociedade incorporante.

    65.

    Importa ainda sublinhar que nem sempre esta regra é desfavorável à sociedade incorporante, pois esta também adquire o conjunto do património ativo, isto é, não só os direitos que são exigíveis no momento da fusão mas igualmente as expectativas de um crédito futuro (spes debiturum iri) ( 19 ) e os direitos nascidos depois do registo da fusão.

    66.

    Neste sentido, uma sociedade incorporante como a MCH teria direito tanto ao reembolso do imposto indevidamente pago pela sociedade incorporada antes da fusão como ao reembolso de um imposto cobrado à sociedade incorporada antes da fusão, mas declarado contrário ao direito da União depois da fusão.

    67.

    Pode ainda colocar‑se a questão de saber se, em vez de impor a transferência das dívidas in statu nascendi para a sociedade incorporante, a Diretiva 2011/35 não se limita a permitir que os Estados‑Membros prevejam essa transferência no seu direito nacional. Não sou dessa opinião.

    68.

    O artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35, como, de resto, o artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da diretiva relativa às fusões transfronteiriças das sociedades de responsabilidade limitada ( 20 ), que contém uma disposição equivalente, impõem evidentemente uma definição comum dos conceitos de património passivo, sem que os Estados‑Membros possam restringir ou alargar esses conceitos. Na hipótese debatida na audiência, em que o direito aplicável à sociedade incorporada exigia a transferência da dívida em causa e o direito aplicável à sociedade incorporante a excluía, haveria um conflito entre os dois direitos, que a diretiva relativa às fusões transfronteiriças das sociedades de responsabilidade limitada não conseguiria resolver, o que seria contrário ao seu objetivo de facilitar as fusões transfronteiriças.

    69.

    Falta ainda determinar se a interpretação que proponho do artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35 também se deve aplicar a uma dívida in statu nascendi, quando o credor, que está ao corrente da fusão iminente, nada faz para assinalar a existência do seu crédito ou a possibilidade da sua existência, antes do registo da fusão.

    70.

    Nas suas observações escritas e na audiência, a MCH insistiu no facto de a ACT ter procedido à inspeção que deu lugar às coimas em causa no processo principal, antes da publicação do projeto de fusão. Na sua resposta escrita às questões do Tribunal, o Governo português admitiu que a publicação oficial do projeto de fusão no sítio Internet das publicações do Ministério da Justiça, efetuada em 22 de fevereiro de 2011, vale como informação dos potenciais credores, entre os quais a ACT, que, por conseguinte, devia ter alertado as sociedades que estavam a negociar a sua fusão.

    71.

    Embora reconheça que, neste contexto factual, um credor de boa‑fé não deve deixar de avisar o seu devedor do seu crédito, antes da fusão ( 21 ), considero que a fusão não implica a extinção deste crédito. Nada na Diretiva 2011/35 permite defender o contrário.

    72.

    Atendendo a todos os elementos acima expostos, considero que o artigo 19.o, n.o 1, da Diretiva 2011/35 deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional como o artigo 112.o do Código das Sociedades Comerciais português, conforme aplicado em Portugal, ao abrigo da qual uma fusão de sociedades por incorporação implica a transmissão à sociedade incorporante da obrigação de pagar uma coima por infrações ao direito do trabalho cometidas pela sociedade incorporada, quando as referidas infrações tenham sido cometidas antes desta fusão, mas a coima só tenha sido aplicada por decisão definitiva, após a referida fusão.

    VI – Conclusão

    73.

    Por conseguinte, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais do Tribunal do Trabalho de Leiria, da seguinte forma:

    O artigo 19.o, n.o 1, da Diretiva 2011/35/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativa à fusão das sociedades anónimas, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional como o artigo 112.o do Código das Sociedades Comerciais português, conforme aplicado em Portugal, ao abrigo da qual uma fusão de sociedades por incorporação implica a transmissão à sociedade incorporante da obrigação de pagar uma coima por infrações ao direito do trabalho cometidas pela sociedade incorporada, quando as referidas infrações tenham sido cometidas antes desta fusão, mas a coima só tenha sido aplicada por decisão definitiva, após a referida fusão.


    ( 1 ) Língua original: francês.

    ( 2 ) JO L 295, p. 36; EE 17 F1 p. 76.

    ( 3 ) JO L 259, p. 14.

    ( 4 ) JO L 110, p. 1.

    ( 5 ) Os termos «crédito» e «credor» figuram no artigo 13.o da diretiva, mas não são aí definidos.

    ( 6 ) V. acórdãos Auroux e o. (C‑220/05, EU:C:2007:31, n.o 25); dos Santos Palhota e o. (C‑515/08, EU:C:2010:589, n.o 18); Idryma Typou (C‑81/09, EU:C:2010:622, n.o 35); e Texdata Software (C‑418/11, EU:C:2013:588, n.o 28).

    ( 7 ) Observo que o artigo 14.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2005/56/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de outubro de 2005, relativa às fusões transfronteiriças das sociedades de responsabilidade limitada (JO L 310, p. 1), conforme alterada, prevê que «[a] fusão transfronteiriça […] implica […] os seguintes efeitos: a) Todo o património ativo e passivo da sociedade incorporada será transferido para a sociedade incorporante; […]». A meu ver, a omissão dos termos «ipso iure» não deve conduzir a uma interpretação diferente da interpretação da Diretiva 2011/35. Também no caso das sociedades de responsabilidade limitada, a fusão implica a transmissão de pleno direito do conjunto do património ativo e passivo, sem outros requisitos a não ser os previstos pela Diretiva 2005/56.

    ( 8 ) V., a este respeito, acórdãos Linster (C‑287/98, EU:C:2000:468, n.o 43); Brüstle (C‑34/10, EU:C:2011:669, n.o 25); e Ziolkowski e Szeja (C‑424/10 e C‑425/10, EU:C:2011:866, n.o 32).

    ( 9 ) V., neste sentido, acórdãos easyCar (C‑336/03, EU:C:2005:150, n.o 21); Wallentin‑Hermann (C‑549/07, EU:C:2008:771, n.o 17); e Ziolkowski e Szeja (EU:C:2011:866, n.o 34).

    ( 10 ) Com o termo «dívida» refiro‑me à obrigação por força da qual uma pessoa, designada devedora, está obrigada perante outra, designada credora, a realizar uma prestação (dar, fazer ou não fazer algo): v. Cornu, G. — Vocabulaire juridique, 9.a ed., PUF, Paris, 2011, p. 340.

    ( 11 ) V. Cornu, G. — Vocabulaire juridique, 9.a ed., PUF, Paris, 2011, pp. 737 e 738.

    ( 12 ) É evidente que a responsabilidade penal dos dirigentes ou de outros órgãos da sociedade incorporada não é visada pelo artigo 19.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva 2011/35. Em contrapartida, uma sanção pecuniária de natureza penal aplicada à sociedade incorporada por um crime que a mesma tenha cometido é transmissível à sociedade incorporante.

    ( 13 ) O sublinhado é meu. O termo «liability» é definido como «uma coisa pela qual alguém é responsável, nomeadamente uma quantia em dinheiro» («a thing for which someone is responsible, especially an amount of money»). V. Oxford Dictionnary of English, Oxford University Press, Oxford, 2005, 2.a ed. revista, p. 1008.

    ( 14 ) JO L 222, p. 11; EE 17 F1 p. 55.

    ( 15 ) Este artigo prevê que o passivo, tal como figura nas contas anuais das sociedades, deve incluir, nomeadamente, as «[o]utras provisões» (ponto B, 3), ou seja, provisões diferentes das provisões para pensões e obrigações similares e das provisões para impostos, e as «[o]utras dívidas, entre as quais [as] dívidas fiscais e [as] dívidas a título de segurança social». Na minha opinião, é normal que este artigo não inclua na definição de passivo as dívidas in statu nascendi, na medida em que as contas anuais só podem revelar as dívidas certas e exigíveis ou, em qualquer caso, cujo nascimento seja provável ou previsível, desde que sejam quantificáveis.

    ( 16 ) O sublinhado é meu.

    ( 17 ) V., neste sentido, Havard‑Williams, V. — «Asbestos liability: Managing the risks» (disponível no sítio Internet da Practical Law, desde setembro de 2004, no endereço seguinte: http://uk.practicallaw.com/cs/Satellite?blobcol=urldata&blobheader=application%2Fpdf&blobkey=id&blobtable=MungoBlobs&blobwhere=1247476867411&ssbinary=true). V., igualmente, acórdão do Tribunal Supremo do Texas, no processo Barbara Robinson c. Crown Cork & Seal Co [335 S.W.3d 126, 129‑130 (2010)].

    ( 18 ) O artigo 149.003, alínea a), do Texas Civil Practice and Remedies Code, «[…] the cumulative successor asbestos‑related liabilities of a corporation are limited to the fair market value of the total gross assets of the transferor determined as of the time of the merger or consolidation», foi declarado incompatível com a proibição de leis retroativas constante do artigo I, n.o 16, da Constituição do Texas pelo Tribunal Supremo do Texas: v. Barbara Robinson c. Crown Cork & Seal Co [335 S.W.3d 126 (2010)].

    ( 19 ) Desde há muito que a expectativa de um crédito futuro é reconhecida como fazendo parte do património de uma pessoa. Cito, neste sentido, o livro III.15.4 das Institutas do Imperador Justiniano I («A estipulação condicional origina a expectativa de que a coisa será devida, transmitindo‑se essa expectativa ao herdeiro, em caso de morte antes da verificação da condição»: Hulot, H. — Les Institutes de l’Empereur Justinien, Behmer et Lamort éditeurs, Metz, 1806) e a passagem do livro L.16.54 do Digesto do mesmo Imperador, atribuído ao jurista romano Ulpiano («São credores condicionais aqueles a quem não foi ainda concedido o direito de agir, mas a quem o mesmo deverá vir a ser concedido, ou aqueles que têm a expectativa de obter esse direito uma vez verificada a condição a que o seu crédito estava sujeito»: Hulot, H.; Berthelot, J.‑F. — Les Cinquantes Livres du Digeste ou des Pandectes de l’Empereur Justinien, Behmer et Lamort éditeurs, Metz, 1803).

    ( 20 ) V. nota 7 das presentes conclusões.

    ( 21 ) Recordo que a Diretiva 2011/35 institui um sistema de transparência que visa garantir e proteger os interesses das sociedades participantes na fusão, bem como dos seus acionistas, empregados e credores. Segundo este sistema, os órgãos de administração das sociedades que se fundem elaboram um projeto escrito de fusão (artigo 5.o), que deve ser objeto de publicidade, segundo os modos previstos pela legislação de cada Estado‑Membro (artigo 6.o). A fusão deve ser aprovada, pelo menos, pela assembleia geral de cada uma das sociedades participantes (artigo 7.o). Para que os acionistas possam dar o seu acordo à fusão, têm o direito de consultar, com uma antecedência mínima de um mês relativamente à data da reunião da assembleia geral convocada para se pronunciar sobre o projeto de fusão, entre outros, o projeto de fusão, as contas anuais e os relatórios de gestão (artigo 11.o). A Diretiva 2011/35 obriga os Estados‑Membros a preverem um sistema adequado de proteção dos interesses dos credores das sociedades participantes na fusão relativamente aos créditos anteriores à publicação do projeto de fusão e ainda não vencidos no momento dessa publicação (artigo 13.o). Ao transpor este último artigo para o direito português, o artigo 101.o‑A do Código das Sociedades Comerciais permite que esta categoria de credores se oponha, em determinadas condições, à fusão, no prazo de um mês após a publicação do projeto de fusão.

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