Choose the experimental features you want to try

This document is an excerpt from the EUR-Lex website

Document 62013CC0242

    Conclusões do advogado-geral Wathelet apresentadas em 8 de Maio de 2014.
    Commerz Nederland NV contra Havenbedrijf Rotterdam NV.
    Pedido de decisão prejudicial: Hoge Raad der Nederlanden - Países Baixos.
    Reenvio prejudicial - Concorrência - Auxílios de Estado - Artigo 107.º, n.º 1, TFUE - Conceito de auxílio - Garantias prestadas por uma empresa pública a um banco para efeitos de concessão de crédito a um cliente - Garantias prestadas deliberadamente pelo diretor da empresa pública em violação das disposições estatutárias da empresa - Presunção de oposição da entidade pública proprietária da referida empresa - Imputabilidade das garantias ao Estado.
    Processo C-242/13.

    Court reports – general

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2014:308

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL

    MELCHIOR WATHELET

    apresentadas em 8 de maio de 2014 ( 1 )

    Processo C‑242/13

    Commerz Nederland NV

    contra

    Havenbedrijf Rotterdam NV

    [pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hoge Raad der Nederlanden (Países Baixos)]

    «Auxílios concedidos pelos Estados — Conceito — Auxílios concedidos por uma empresa pública sob a forma de garantia a um banco — Decisão adotada pelo diretor da empresa pública — Violação das disposições estatutárias da empresa pública»

    I – Introdução

    1.

    O presente processo respeita, para eventualmente as qualificar como auxílios estatais na aceção dos artigos 107.° TFUE e 108.° TFUE, à imputabilidade ao Estado de garantias prestadas a um banco por uma empresa pública em violação das suas regras internas. No caso em apreço, estas garantias foram prestadas por W. K. Scholten, administrador único da Havenbedrijf Rotterdam NV (a seguir «HbR»), empresa portuária de Roterdão (Países Baixos), a favor de sociedades que pertencem ao grupo neerlandês RDM (a seguir «grupo RDM»). Verifica‑se que ao prestar estas garantias, W. K. Scholten agiu de forma arbitrária, deliberadamente manteve segredo sobre a prestação dessas garantias e violou os estatutos da empresa pública ao não solicitar a aprovação do seu Conselho Fiscal.

    2.

    Até esse momento «nihil sub sole novum» ( 2 ), em contrapartida, é surpreendente que o Estado‑Membro em questão defenda a ideia de que as medidas em causa lhe são imputáveis e constituem auxílios estatais na aceção do Tratado FUE, ao passo que o beneficiário das garantias, que evidentemente pretende ser pago, considera que as garantias não são auxílios estatais uma vez que foram concedidas ultra vires.

    3.

    Uma garantia muito semelhante que reunia, exceto o mutuante, os mesmos parceiros foi objeto do acórdão Residex Capital IV ( 3 ). Conforme observa a advogada‑geral J. Kokott, no n.o 2 das conclusões que apresentou no referido processo ( 4 ), esta garantia tinha sido prestada «em circunstâncias misteriosas» pelo órgão do município de Roterdão (a seguir «Município») e antecessor da HbR, Gemeentelijk Havenbedrijf Rotterdam (empresa portuária municipal de Roterdão, a seguir «GHR»), a favor de uma sociedade que também pertence ao grupo neerlandês RDM. Uma vez que a questão da imputabilidade não foi colocada neste processo, o Tribunal de Justiça apenas apreciou a questão de saber se o artigo 108.o, n.o 3, terceiro parágrafo, do TFUE, obriga um órgão jurisdicional nacional a considerar nula uma garantia municipal não notificada à Comissão Europeia e não aprovada por esta.

    II – Quadro jurídico

    4.

    O litígio no processo principal coloca questões de interpretação dos artigos 107.° TFUE e 108.° TFUE, assim como dos n.os 50 a 58, do acórdão França/Comissão ( 5 ), relativo à questão da imputação ao Estado de uma medida de auxílio na aceção destes artigos.

    5.

    De forma simplificada, o Tribunal de Justiça declarou, neste acórdão, que a imputabilidade de uma medida de auxílio ao Estado não pode ser deduzida «da mera circunstância de a medida ter sido adotada por uma empresa pública» (n.o 51), uma vez que esta «pode agir com maior ou menor independência, em função do grau de autonomia que lhe é deixado pelo Estado» (n.o 52). O Tribunal de Justiça excluiu igualmente que «a mera circunstância de uma empresa pública [ter] sido constituída sob a forma de sociedade de capitais de direito comum [é] — dada a autonomia que aquela forma jurídica é suscetível de conferir — considerada suficiente para se excluir que uma medida de auxílio adotada por essa sociedade possa ser imputável ao Estado» (n.o 57).

    6.

    No n.o 52, desse mesmo acórdão, o Tribunal de Justiça decidiu também que para imputar uma medida de auxílio ao Estado havia «ainda que examinar se as autoridades públicas [deviam] ser consideradas implicadas, de uma forma ou de outra, na adoção dessas medidas».

    7.

    Todavia, considerou no referido acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294) que «não pode exigir‑se que seja demonstrado, com base em instruções precisas, que as autoridades públicas incitaram concretamente a empresa pública a adotar as medidas de auxílio em causa» (n.o 53), uma vez que tal prova seria «muito difícil» para terceiros (n.o 54). Por este motivo, admitiu que «a imputabilidade ao Estado de uma medida de auxílio adotada por uma empresa pública [podia] ser deduzida de um conjunto de indícios resultante das circunstâncias do caso concreto e do contexto no qual essa medida ocorreu» (n.o 55).

    8.

    A este propósito, o Tribunal de Justiça recordou que «já em diversas ocasiões tomou em consideração o facto de que o organismo em questão não podia tomar a decisão contestada sem ter em conta as exigências dos poderes públicos […] ou que, além dos elementos de natureza orgânica que as ligavam ao Estado, as empresas públicas, por intermédio das quais tinham sido concedidos os auxílios, deviam ter em conta as orientações emanadas [do Estado]» (acórdão França/Comissão, EU:C:2002:294, n.o 55).

    9.

    Em seu entender «[o]utros indícios podem, eventualmente, ser pertinentes para se concluir pela imputabilidade ao Estado de uma medida de auxílio adotada por uma empresa pública, tais como, nomeadamente, a sua integração nas estruturas da Administração Pública, a natureza das suas atividades e o exercício destas no mercado em condições normais de concorrência com operadores privados, o estatuto jurídico da empresa, regulado pelo direito público ou pelo direito comum das sociedades, a intensidade da tutela exercida pelas autoridades públicas sobre a gestão da empresa ou qualquer outro indício, no caso concreto, de uma implicação ou da improbabilidade da não implicação das autoridades públicas na adoção de uma medida, atendendo igualmente ao alcance desta, ao seu conteúdo e às condições de que se reveste» (acórdão França/Comissão, EU:C:2002:294, n.o 56).

    III – Litígio no processo principal e questões prejudiciais

    10.

    O porto de Roterdão é gerido pela HbR, sociedade anónima, cujo capital social pertence ao Município (cerca de 70%) e ao Estado neerlandês (cerca de 30%). À época dos factos, o Município era o único acionista da HbR, tendo o Estado neerlandês adquirido a sua participação em 2006.

    11.

    No passado, o porto de Roterdão foi gerido pela Havenbedrijf der Gemeente Rotterdam (empresa portuária do Município de Roterdão), serviço municipal sem personalidade jurídica instituído em 1932 e que se tornou a GHR durante os anos 1980. Em 1 de janeiro de 2004, a GHR deu lugar à HbR.

    12.

    A administração da HbR foi confiada a um Conselho de Administração supervisionado por um Conselho Fiscal. Em 1992, W. K. Scholten foi nomeado administrador único da GHR/HbR. À época da prestação das garantias em causa, o vereador do Município encarregue do porto era presidente do Conselho Fiscal.

    13.

    O grupo RDM era constituído por um conjunto de sociedades pertencentes a J. van den Nieuwenhuyzen. Este grupo operava na produção e no fornecimento de material militar. Declarou falência e as suas atividades não foram retomadas por outra empresa. O grupo RDM não tinha qualquer ligação à HbR.

    14.

    Em 28 de dezembro de 2002, a RDM Holding NV (a seguir «RDM Holding») obrigou‑se contratualmente perante a GHR (a seguir «contrato sobre os submarinos») a não disponibilizar a Taiwan qualquer informação nem material de interesse para a construção ou a utilização de submarinos. Em contrapartida, a GHR obrigou‑se a garantir junto dos credores da RDM Holding e/ou das suas filiais um montante superior a 100 000 000 euros, por um período não superior a três anos.

    15.

    A GHR e a RDM Holding também se obrigaram a não dar a conhecer a terceiros a existência e o conteúdo do contrato sobre os submarinos.

    16.

    No preâmbulo deste contrato, a GHR e a RDM Holding indicaram, em primeiro lugar, que a RDM Holding tinha, em cooperação com as autoridades americanas, examinado a possibilidade de transferir a Taiwan a tecnologia sobre a construção de submarinos através de outras sociedades do grupo RDM, em segundo lugar, que a GHR estava ao corrente de negociações a este propósito entre os advogados do RDM Holding e do Estado neerlandês, em terceiro lugar, que a República Popular da China tinha declarado que se a RDM Holding fornecesse essa tecnologia a Taiwan, aplicaria sanções aos Países Baixos, incluindo a transferência dos seus transportes marítimos para um porto diferente do de Roterdão, em quarto lugar, que a GHR pretendia evitar a todo custo essa eventualidade e, em quinto lugar, que a RDM Holding estava disposta a renunciar transferir a Taiwan essa tecnologia nas condições estipuladas no contrato.

    17.

    Por contrato de 5 de novembro de 2003, o banco Commerz Nederland NV (a seguir, «Commerz») disponibilizou à RDM Vehicles BV (a seguir «RDM Vehicles») uma linha de crédito de 25 milhões de euros (a seguir «crédito Vehicles») destinada a financiar a produção de uma viatura blindada. No mesmo dia, W. K. Scholten assinou um contrato de garantia pelo qual a GHR se obrigava perante o Commerz a garantir o cumprimento das obrigações que incumbiam à RDM Vehicles por força do crédito Vehicles.

    18.

    Tendo a HbR sucedido à GHR em 1 de janeiro de 2004, W. K. Scholten prestou, em 4 de junho de 2004, a mesma garantia em benefício do Commerz relativamente ao crédito Vehicles, desta vez em nome da HbR e o Commerz renunciou aos direitos da garantia concedida pela GHR. Esta garantia foi aprovada pelo Conselho Fiscal da HbR em 22 de junho de 2004.

    19.

    O escritório de advogados Spigthoff elaborou, a pedido do Commerz, pareceres jurídicos datados, respetivamente, de 10 de novembro de 2003 e de 4 de junho de 2004, segundo os quais as garantias assinadas em nome da GHR e da HbR relativas ao crédito Vehicles constituíam «obrigações válidas, vinculativas e exequíveis» para a garante. Por acórdão de 17 de abril de 2013, o Gerechtshof te ’s‑Gravenhage (Países Baixos) declarou que estes pareceres jurídicos foram intencionalmente elaborados de forma incorreta.

    20.

    Por contratos de 27 de fevereiro de 2004, o Commerz disponibilizou à RDM Finance I BV (a seguir «RDM I») e à RDM Finance II BV (a seguir «RDM II») linhas de crédito de, respetivamente, 7,2 milhões de euros e de 6,4 milhões de euros (a seguir, respetivamente, «crédito RDM I» e «crédito RDM II»). Estes créditos destinaram‑se ao financiamento de encomendas de material de guerra à RDM Technology B. V.

    21.

    Em 2 de março de 2004, W. K. Scholten assinou contratos de garantia através dos quais a HbR se comprometeu a garantir ao Commerz o cumprimento das obrigações da RDM I e da RDM II por força destes créditos. Em 3 de março de 2004, o Spigthoff apresentou a pedido do Commerz um parecer jurídico semelhante aos pareceres referidos no n.o 19 das presentes conclusões.

    22.

    Por acórdão de 15 de outubro de 2010 ( 6 ), o Rechtbank Rotterdam declarou que W. K. Scholten tinha aceitado as doações de J. van den Nieuwenhuyzen, proprietário e diretor‑geral do grupo RDM, por meio das quais este pretendia obter um tratamento favorável para a sua empresa por parte de W. K. Scholten. Por este mesmo acórdão, o Rechtbank Rotterdam concluiu que W. K. Scholten tinha deliberadamente emitido certificados que não correspondiam à verdade, nos quais afirmava que a aprovação das garantias pelo Conselho Fiscal não era necessária e que este omitiu deliberadamente a referência às garantias em causa nas contas da HbR relativas aos anos 2002 e 2003. Por último, o Rechtbank Rotterdam constatou que W. K. Scholten manteve deliberadamente em segredo as garantias prestadas porque sabia que o Conselho Fiscal não as aprovaria se tivesse sido informado. O Rechtbank Rotterdam condenou W. K. Scholten a doze meses de prisão por corrupção passiva, falsificação e fraude da HbR.

    23.

    Por carta de 20 de agosto de 2004, o Commerz rescindiu o crédito Vehicles e exigiu o pagamento do montante em dívida correspondente. Uma vez que não foi efetuado qualquer pagamento, o Commerz solicitou à HbR, ao abrigo da garantia prestada, o pagamento de 19843541,80 euros, com pedidos acessórios. A HbR não atendeu a esse pedido.

    24.

    Por cartas de 29 de abril de 2004, o Commerz rescindiu os créditos RDM I e RDM II e exigiu o pagamento dos montantes em dívida. Uma vez que não foi efetuado qualquer pagamento, o Commerz solicitou à HbR, ao abrigo das garantias prestadas, o pagamento de 4869,00 euros e de 14538,24 euros, respetivamente, com pedidos acessórios. A HbR também não pagou estes montantes.

    25.

    Na sequência da recusa da HbR de respeitar as obrigações decorrentes das garantias, o Commerz intentou uma ação contra esta no Rechtbank Rotterdam, em que reclamou o pagamento do montante devido, ao abrigo da garantia prestada pela HbR, em relação ao crédito Vehicles. Este órgão jurisdicional indeferiu tal pedido, considerando que a referida garantia constituía uma medida de auxílio na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE, que deveria ter sido notificada à Comissão nos termos do artigo 108.o, n.o 3, TFUE, o que não sucedeu, e que, consequentemente, a referida garantia era nula por força do artigo 3:40, n.o 2, do Código Civil neerlandês.

    26.

    O Commerz interpôs recurso desta decisão no Gerechtshof te ’s‑Gravenhage, no qual requereu igualmente a condenação da HbR no pagamento dos montantes devidos ao abrigo das garantias concedidas pela HbR, em relação aos créditos RDM I e RDM II. O Gerechtshof te ’s‑Gravenhage confirmou a sentença do Rechtbank Rotterdam e indeferiu os pedidos do Commerz.

    27.

    Segundo o Gerechtshof te ’s‑Gravenhage, o exame dos factos à luz dos critérios fixados pelo acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294) conduziu à conclusão de que a concessão das garantias em causa deve ser imputada aos Países Baixos.

    28.

    Para chegar a esta conclusão, o Gerechtshof te ’s‑Gravenhage baseou‑se nas seguintes circunstâncias que, em primeiro lugar, o Município detinha a totalidade das ações da HbR, em segundo lugar, os membros da direção e do Conselho Fiscal tinham sido designados pela assembleia geral de acionistas e, por conseguinte, pelo Município, em terceiro lugar, o vereador encarregue do porto presidia ao Conselho Fiscal, em quarto lugar, os estatutos da HbR exigiam a aprovação do Conselho Fiscal para a prestação de garantias como as do caso em apreço, e, em quinto lugar, a finalidade atribuída à HbR pelos seus estatutos não era comparável à de uma simples empresa comercial, tendo em conta o lugar preponderante atribuído ao interesse geral na gestão de um porto como o de Roterdão.

    29.

    O Commerz interpôs recurso deste acórdão no Hoge Raad der Nederlanden, que tem dúvidas sobre a questão da imputabilidade ao Estado neerlandês das garantias em questão.

    30.

    O órgão jurisdicional de reenvio declarou que embora W. K. Scholten tenha agido de forma totalmente arbitrária, excedendo os limites do seu poder de administrador único da HbR — ao manter deliberadamente em segredo a existência do contrato sobre os submarinos, bem como das garantias e ao não requerer a aprovação do Conselho Fiscal antes de prestar as garantias em questão —, as garantias prestadas em violação dos estatutos da HbR não deixam de vincular esta sociedade em aplicação do direito privado neerlandês.

    31.

    Neste contexto factual, o órgão jurisdicional de reenvio questiona se, para concluir ou não pela imputação das garantias em causa ao Estado neerlandês, é necessário adotar uma abordagem real e fatual ou, ao invés, uma abordagem jurídica. O órgão jurisdicional de reenvio entende que, se fosse seguida a primeira abordagem, seria necessário considerar que o Estado não estava efetivamente ao corrente da existência das garantias e muito menos que tinha aprovado a sua prestação. Pelo contrário, se fosse seguida a segunda abordagem, bastaria, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, demonstrar que, em regra, o Estado determina o processo decisório que deve ser prosseguido na empresa pública para tomar medidas, tais como a prestação de garantias ou, pelo menos, exerce uma influência forte e predominante sobre este processo.

    32.

    Tendo considerado que se trata de uma questão do direito da União, o Hoge Raad der Nederlanden decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

    «1)

    A concessão de uma garantia por uma empresa pública deixa necessariamente de poder ser imputada à autoridade pública — para efeitos de qualificação como auxílio estatal na aceção dos artigos 107.° e 108.° TFUE — pelo facto de essa garantia, como no caso em apreço, ser concedida pelo administrador (único) de uma empresa pública que, tendo embora competência para o efeito, no plano do direito civil, agiu sozinho, manteve deliberadamente secreta a concessão da garantia e ignorou as disposições estatutárias da empresa pública ao não solicitar a aprovação do Conselho Fiscal e, além disso, pelo facto de se dever presumir que o organismo público em questão (neste caso, o Município) não desejou conceder a garantia?

    2)

    Se não se opuserem necessariamente à imputação à autoridade pública, as referidas circunstâncias são irrelevantes para a resposta à questão de saber se a concessão da garantia pode ser imputada à autoridade pública, ou deve o órgão jurisdicional ainda assim fazer uma avaliação tendo em conta os restantes indícios que militam a favor ou contra a imputação à autoridade pública?»

    IV – Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

    33.

    O pedido de decisão prejudicial foi apresentado no Tribunal de Justiça em 29 de abril de 2013. O Commerz, a HbR, o Governo neerlandês e a Comissão apresentaram observações escritas.

    34.

    Nos termos do artigo 61.o, n.o 1, do seu Regulamento do Processo, em 20 de janeiro de 2014, o Tribunal de Justiça convidou as partes a responderem a várias questões na audiência mas, apesar da sua relevância e da sua importância — para dar resposta justa e eficaz ao órgão jurisdicional de reenvio —, o Governo neerlandês decidiu não participar na audiência de 13 de março de 2014.

    35.

    Esta colaboração para a resposta às questões do Tribunal de Justiça, num processo em vários aspetos «singular», teria sido valiosa. Lamento que o Governo neerlandês não se tenha apresentado no Tribunal de Justiça. Assim, apenas compareceram na audiência o Commerz, a HbR e a Comissão.

    V – Análise

    36.

    Com as suas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a prestação ultra vires das garantias em causa e, em particular, o facto de W. K. Scholten as ter prestado em violação dos estatutos da sua empresa e mesmo sem informar o seu Conselho Fiscal exclui a imputação destas garantias ao Estado neerlandês e, em caso contrário, se as circunstâncias em que as garantias foram prestadas podem ser tidas em conta para decidir da sua imputação ao Estado.

    A – Argumentos apresentados ao Tribunal de Justiça

    37.

    A posição do Commerz é de que as garantias em causa, tal como as que vinculam a HbR no direito privado, não são imputáveis ao Estado. Em apoio da sua tese, invoca a interpretação dos n.os 50 a 58 do acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294) que foi proposta ao Hoge Raad der Nederland pelo advogado‑geral Keus nas suas conclusões de 7 de dezembro de 2012.

    38.

    Segundo este advogado‑geral, a imputação de uma medida de auxílio ao Estado pressupõe uma implicação real e fatual das autoridades estaduais nas medidas em causa. Resultou deste acórdão que a imputabilidade ao Estado de uma medida adotada por uma empresa pública exige que o Estado tenha sido implicado, «[no] caso concreto», «na adoção [dessa] medida» e que tenha efetivamente exercido um controlo sobre esta (n.o 52). Na medida em que o Tribunal de Justiça esclareceu, nos n.os 55 a 57 do referido acórdão, que a imputabilidade ao Estado de uma medida adotada por uma empresa pública podia ser deduzida de um «conjunto de indícios» resultante das circunstâncias do caso em apreço e do contexto em que essa medida foi tomada, o advogado‑geral Keus afirmou que embora o Tribunal de Justiça tenha definido um princípio de prova e a maneira como esta prova podia ser produzida, não alterou o objeto da prova, ou seja, a implicação concreta dos poderes públicos na medida em causa.

    39.

    O Commerz considera que os órgãos jurisdicionais neerlandeses não se podiam apoiar, como fez o Gerechtshof te ’s‑Gravenhage, num conjunto de indícios relativos ao contexto geral em que as garantias foram prestadas, afastando assim as circunstâncias específicas do caso em apreço. Tendo em conta que W. K. Scholten agiu de forma autónoma, arbitrária e secreta, contra a vontade do Município e sem se preocupar com as exigências por este estabelecidas, o Commerz considera que o Município não estava implicado na prestação das garantias controvertidas. Por conseguinte, considera que as garantias não podem ser imputadas nem ao Município nem ao Estado e, a este título, não constituem medidas de auxílio na aceção dos artigos 107.° TFUE e 108.° TFUE, não devendo, assim, ser notificadas à Comissão.

    40.

    A HbR e o Governo neerlandês opõem‑se a esta interpretação do acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294).

    41.

    A HbR considera que a imputabilidade de uma medida de auxílio ao Estado deve ter por fundamento critérios objetivos e não a alegada vontade do Estado. Por conseguinte, segundo a HbR, importa determinar se o Estado estava ou deveria estar implicado e não se pretendia estar.

    42.

    A HbR salienta que uma vez que está vinculada pelas garantias em causa, apesar da sua prestação ultra vires, o Município estava implicado porque esta prestação não podia ocorrer sem a sua intervenção, quer este a pretendesse ou não. Por estes motivos, a HbR considera que as garantias em causa são imputáveis ao Estado e, por conseguinte, constituem medidas de auxílio na aceção dos artigos 107.° TFUE e 108.° TFUE que deveriam ter sido notificadas à Comissão.

    43.

    Segundo o Governo neerlandês, o facto de as garantias terem sido prestadas ultra vires não se opõe à sua imputação ao Estado. A este respeito, subscreve a posição do Gerechtshof te ’s‑Gravenhage conforme resumida no n.o 28 das presentes conclusões, segundo a qual a imputação das garantias em causa ao Estado neerlandês apoia‑se na posição predominante que o Município detém na sociedade.

    44.

    A HbR e o Governo neerlandês consideram também que a eficácia das regras em matéria de auxílios estatais poderia ser afetada de forma inaceitável se a aplicação destas regras fosse afastada com o fundamento de que um administrador estatutário de uma empresa pública, no âmbito da adoção de uma medida, teria excedido as regras estatutárias dessa empresa. Com efeito, na prática, nem sempre é possível verificar se a medida em causa foi adotada, ou não, contra a vontade da empresa pública e, assim, um Estado‑Membro poderia refugiar‑se nas «faltas» de um administrador para evitar que a medida lhe fosse imputada.

    45.

    A Comissão também se opõe à interpretação do acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294) proposta pelo Commerz e pelo advogado‑geral Keus. Com base nos n.os 55 e 56 deste acórdão, considera que para imputar uma medida de auxílio ao Estado, basta que este determine efetivamente o processo decisório prosseguido na empresa pública ou que exerça de facto uma influência forte e predominante sobre esse processo.

    46.

    Deste modo, a Comissão considera que não é necessário fazer prova de uma instrução precisa para concluir pela implicação concreta do Estado na adoção da medida de auxílio em causa. Recorda que se fosse esse o caso, a condição da imputabilidade apenas seria satisfeita muito excecionalmente na situação de uma medida de auxílio concedida por uma empresa pública.

    47.

    A Comissão conclui que o órgão jurisdicional nacional deve fazer o balanço dos indícios referidos nos n.os 55 a 57 do acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294) e aderir à análise efetuada pelo Gerechtshof te ’s‑Gravenhage, que resumi no n.o 28 das presentes conclusões.

    48.

    Quanto às circunstâncias específicas que envolvem a prestação das garantias que são objeto do litígio no processo principal, a Comissão considera que não tiveram qualquer incidência sobre a imputabilidade das garantias ao Município uma vez que, por um lado, foi o próprio Município que criou a situação na qual as garantias em causa foram prestadas pela HbR e, por outro, a sua prestação não está abrangida pelas atividades comerciais normais da HbR, mas afigura‑se antes ditada por considerações de interesse geral evocadas no preâmbulo do contrato sobre os submarinos.

    B – Apreciação

    1. Trata‑se de medidas de auxílio ou de decisões essencialmente comerciais?

    49.

    Antes de examinar estes argumentos, julgo ser necessário verificar se as garantias em causa constituem medidas de auxílio. Efetivamente, somente se uma garantia conferir uma vantagem a uma empresa é que pode constituir um auxílio ( 7 ).

    50.

    A advogada‑geral J. Kokott no n.o 17 das suas conclusões no processo Residex Capital IV (C‑275/10, EU:C:2011:354), concluiu que existia um auxílio em benefício da RDM Aerospace NV que, recordo, fazia parte do mesmo grupo das empresas beneficiárias das garantias no presente processo, uma vez que «sem esta garantia», a empresa «não teria obtido semelhante empréstimo de acordo com as informações dadas pelo órgão jurisdicional de reenvio».

    51.

    Mesmo que o órgão jurisdicional de reenvio não aborde este ponto no presente processo, é razoável esperar que as garantias que estão em causa conferiram uma vantagem às empresas do grupo RDM que, sem aquelas, não poderiam obter os créditos Vehicles, RDM I e RDM II.

    52.

    Todavia, importa examinar igualmente a questão de saber se ao conceder estas garantias, a HbR não atuou por razões essencialmente comerciais, como teria feito um investidor privado, tendo a vantagem recebida pelas empresas do grupo RDM representado assim a contrapartida de vantagens recíprocas que teriam consentido à HbR ( 8 ).

    53.

    Apenas em caso de resposta negativa a esta questão é que importa examinar se as garantias prestadas pela HbR mobilizam recursos públicos e são imputáveis ao Estado. Conforme o advogado‑geral F. G. Jacobs declarou no n.o 55 das suas conclusões no processo França/Comissão (EU:C:2002:685), as «decisões comerciais tomadas por uma cervejaria pública, sem qualquer interferência dos poderes públicos, deveriam ser consideradas como não abrangidas pelas regras sobre auxílios estatais».

    54.

    O mesmo princípio foi enunciado na página 250 das conclusões do advogado‑geral G. Slynn no processo Kwekerij van der Kooy e o./Comissão (67/85, 68/85 e 70/85, EU:C:1987:177) que, em relação à medida de auxílio em causa neste processo, nomeadamente, a fixação de uma tarifa preferencial, questionava «se a fixação desta tarifa preferencial, ainda que sob influência do Estado e causando‑lhe prejuízo, era necessária por razões comerciais, incompatíveis com a sua classificação como «ajuda»».

    55.

    A Comissão considera que, no caso em apreço, a concessão de garantias constitui uma medida ditada por imperativos de interesse geral e não por considerações comerciais. A sua conclusão tem por base os indícios suscitados pelo Gerechtshof te ’s‑Gravenhage para apoiar a sua conclusão de que HbR está sob controlo efetivo do Estado neerlandês ( 9 ), bem como sobre os objetivos de interesse geral que inspiram a ação da HbR, nomeadamente no que respeita à contribuição para o desenvolvimento urbano, o desenvolvimento dos portos urbanos e a melhoria do tecido urbano da cidade e da região de Roterdão.

    56.

    Embora estes indícios correspondam à realidade, julgo que apenas podem ser invocados a propósito da imputabilidade das garantias ao Estado — como aliás fez o Gerechtshof te ’s‑Gravenhage — e não como fez a Comissão para dividir a questão de saber se no caso concreto das garantias em causa, a sua prestação foi, ou não, ditada por considerações de ordem comercial.

    57.

    Sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, inclino‑me para uma resposta afirmativa.

    58.

    Conforme observei nos n.os 14 a 16 das presentes conclusões, o preâmbulo do contrato sobre os submarinos revela que o grupo RDM examinou, em cooperação com as autoridades americanas, a possibilidade de transferir a tecnologia de submarinos a Taiwan. O ponto A do preâmbulo refere negociações a este propósito entre os advogados do RDM Holding e do Estado neerlandês.

    59.

    O ponto B do preâmbulo refere a ameaça efetuada pela República Popular da China de aplicar sanções aos Países Baixos, incluindo o desvio dos seus transportes marítimos para um porto diferente do de Roterdão em caso de transferência a Taiwan de tecnologia relativa aos submarinos, assim como a vontade de a GHR tudo fazer para afastar essa eventualidade.

    60.

    É verdade que a validade e a autenticidade deste contrato foram contestadas. Tal como o Commerz informou o Tribunal de Justiça na audiência, o Rechtbank Rotterdam condenou W. K. Scholten por corrupção passiva sob a forma de receção de doações efetuadas por J. van den Nieuwenhuyzen. Todavia, o mesmo Rechtbank Rotterdam considerou que a falsificação não tinha sido provada de forma legal e convincente «niet wettig en overtuigend», tendo o Ministério Público interposto recurso desta parte do acórdão. Na audiência, a HbR indicou que este recurso ainda estava pendente nos órgãos jurisdicionais neerlandeses.

    61.

    Por este motivo, o Tribunal de Justiça colocou uma questão a este propósito ( 10 ), julgando que além do Commerz e da HbR, o Governo neerlandês estava certamente bem colocado para se pronunciar sobre a credibilidade das alegações fatuais retomadas no preâmbulo do contrato sobre os submarinos. Conforme referi, o Governo neerlandês não participou na audiência, o que lhe permite contestar que as garantias em causa tinham sido concedidas pelos motivos comerciais evocados no preâmbulo do contrato sobre os submarinos. Isso reforça a minha ideia de que a prestação das garantias foi essencialmente ditada por considerações de ordem comercial.

    62.

    Nestas condições, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio da autenticidade deste contrato (contestado pela HbR) e de uma eventual desproporção entre as garantias prestadas e o risco comercial resultante de um eventual desvio dos transportes provenientes da China ou de outros indícios factuais de que dispunha o órgão jurisdicional de reenvio, julgo que ao prestar, ainda que ultra vires, as garantias em questão, W. K. Scholten prosseguiu no interesse da GHR/HbR um objetivo comercial, nomeadamente, evitar as consequências de um embargo da China sobre o porto de Roterdão, para o qual necessitava de obter em contrapartida das garantias o compromisso do grupo RDM de não transferir a tecnologia no domínio dos submarinos a Taiwan.

    2. Se as garantias em causa forem qualificadas de vantagens ou de medidas de auxílio estão abrangidas pelo artigo 107.o, n.o 1, TFUE?

    63.

    Embora as vantagens conferidas pelas garantias em causa não prossigam um objetivo essencialmente comercial, apenas constituem auxílios estatais na aceção do artigo 107.o, n.o 1, TFUE se forem «concedidas direta ou indiretamente através de recursos estatais» e se forem «imputáveis ao Estado» ( 11 ).

    a) Recursos de Estado

    64.

    Não é contestado que se as garantias forem acionadas, haverá mobilização de recursos públicos, uma vez que a HbR, empresa que à época dos factos era detida a 100% pelo Município, deverá, com base nesses fundos, honrar os compromissos financeiros assumidos pelas empresas do grupo RDM em relação ao Commerz.

    b) Imputabilidade ao Estado

    65.

    A questão da imputabilidade não se coloca quando a medida do Estado é concedida por um órgão de Estado, independentemente da posição deste órgão na organização do Estado, quer pertença à administração central ou a uma entidade descentralizada ou desconcentrada do Estado. Foi o que sucedeu no acórdão Residex Capital IV (EU:C:2011:814), que era relativo às mesmas entidades — a GHR e o grupo RDM —, o mesmo tipo de garantia prestada pela mesma pessoa (W. K. Scholten), da mesma forma ultra vires e no qual a questão da imputabilidade nem sequer foi colocada, uma vez que as garantias tinham sido concedidas por um serviço administrativo do Município.

    66.

    Embora a medida de auxílio seja adotada por uma entidade que não é um órgão do Estado na aceção do número anterior, o Tribunal de Justiça declarou muito claramente, no n.o 51 do acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294), que a imputabilidade de uma medida de auxílio ao Estado não podia ser deduzida automaticamente «da mera circunstância de a medida [ter] sido adotada por uma empresa pública».

    67.

    É precisamente o caso do presente processo, uma vez que, mesmo inicialmente as garantias relativas ao crédito Vehicles foram prestadas pela GHR, serviço administrativo municipal, deixaram de ser efetivas em 4 de junho de 2004. É a HbR, sociedade anónima com capital inteiramente detido pelo Município que sucedeu à GHR em 1 de janeiro de 2004, que, no mesmo dia 4 de junho de 2004, prestou as mesmas garantias em benefício do Commerz. As garantias relativas aos créditos RDM I e RDM II foram prestadas desde o início pela HbR, empresa pública.

    68.

    Em tal caso, importa examinar se as medidas de auxílio em causa são, não obstante, imputáveis ao Estado na medida em que foram concedidas de tal forma que «as autoridades públicas devem ser consideradas implicadas, de uma forma ou de outra, na adoção dessas medidas» ( 12 ).

    69.

    Tal implicação do Estado é estabelecida quando as medidas de auxílio em causa são concedidas por uma entidade habilitada a exercer prerrogativas de poder público ou por uma entidade que atua sob o controlo efetivo do Estado.

    70.

    Quanto ao critério do exercício das prerrogativas do poder público, a Comissão alegou na audiência que a HbR não era uma sociedade privada comum. De acordo com a Comissão, os seus estatutos encarregam‑na de reforçar a posição do complexo portuário e industrial de Roterdão, de promover a segurança da navegação, de zelar pela ordem e a segurança náutica e marítima, bem como atuar enquanto autoridade portuária. Neste contexto, a Comissão afirmou que as garantias em causa podiam ser imputadas ao Estado neerlandês.

    71.

    Não partilho desta posição da Comissão. Em meu entender, uma medida de auxílio concedida por uma entidade habilitada a exercer prerrogativas de poder público não pode ser imputada ao Estado, visto que, no presente processo, esta medida foi adotada no exercício destas prerrogativas. No caso em apreço, nem a prestação das próprias garantias, nem o motivo pelo qual as garantias foram prestadas estão abrangidos pelo exercício das prerrogativas de poder público da HbR.

    72.

    Por conseguinte, importa examinar se as garantias em causa podem ser imputadas ao Estado neerlandês com base no controlo efetivo que este exerce sobre a HbR.

    73.

    Conforme declarou o Tribunal de Justiça, no n.o 52 do seu acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294) «embora o Estado possa controlar uma empresa pública e exercer uma influência dominante nas suas operações, o exercício efetivo deste controlo num caso concreto não deve ser automaticamente presumido. Uma empresa pública pode agir com maior ou menor independência, em função do grau de autonomia que lhe é deixado pelo Estado».

    74.

    Antes de examinar se o caráter ultra vires da prestação das garantias em causa impede a sua imputação ao Estado e recordando que, em meu entender, a decisão de prestar essas garantias não foi, no essencial, determinada por considerações comerciais, julgo — como o Gerechtshof te ’s‑Gravenhage —, que existem aqui indícios suficientes na aceção do acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294), para que esta decisão seja imputada ao Estado, o que, aliás, não é contestado pela HbR nem pelo Governo neerlandês.

    75.

    A imputação de uma medida de auxílio ao Estado com base no controlo efetivo não necessita da prova «com base em instruções precisas, que as autoridades públicas incitaram concretamente a empresa pública a adotar as medidas de auxílio em causa» ( 13 ). Como o Tribunal de Justiça constatou no n.o 54 do seu acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294) há o risco de tal prova, «precisamente em virtude das relações privilegiadas entre o Estado e uma empresa pública, [ser] muito difícil para terceiros».

    76.

    No caso em apreço, a HbR e o Governo neerlandês admitem que a HbR se encontra sob o controlo efetivo do Governo neerlandês. No entanto, atendendo ao facto de o Governo neerlandês não ter participado na audiência e, assim, não ter respondido às questões que diziam expressamente respeito a este ponto, é útil provar a existência de tal controlo independentemente desta simples afirmação do Governo neerlandês nas suas observações escritas.

    77.

    Conforme o Tribunal de Justiça referiu, no n.o 56 do seu acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294), é necessário ter em conta uma série de indícios tais como «[a] integração [da entidade que adotou a medida em causa] nas estruturas da Administração Pública, a natureza das suas atividades e o exercício destas no mercado em condições normais de concorrência com operadores privados, o estatuto jurídico da empresa, regulado pelo direito público ou pelo direito comum das sociedades, a intensidade da tutela exercida pelas autoridades públicas sobre a gestão da empresa ou qualquer outro indício, no caso concreto, de uma implicação ou da improbabilidade da não implicação das autoridades públicas na adoção de uma medida, atendendo igualmente ao alcance desta, ao seu conteúdo e às condições de que se reveste».

    78.

    Antes de mais, refiro os elementos de natureza orgânica. Os antecessores jurídicos da HbR integravam a administração do Município e tinham já prestado garantias do mesmo tipo (senão as mesmas!) a uma sociedade do mesmo grupo RDM ( 14 ). À época dos factos, o Município detinha todas as ações da HbR. Os membros da direção e do Conselho Fiscal tinham sido designados pela assembleia geral de acionistas e, deste modo, pelo Município. O vereador encarregue do porto presidia ao Conselho Fiscal. Os estatutos da HbR permitiam, mesmo que fosse necessária a aprovação do Conselho Fiscal, a prestação de garantias como as do caso em apreço. Estes indícios demonstram que a HbR possuía uma margem de independência limitada em relação ao Município enquanto acionista único.

    79.

    Tendo em conta estas ligações estreitas entre a HbR e o Município, é difícil acreditar na «improbabilidade da não implicação» ( 15 ) por parte do Estado na adoção das garantias em causa, tanto mais que, no caso em apreço, se trata de garantias prestadas a favor de um grupo com atividades no domínio do armamento, já para não falar das complicações diplomáticas e políticas evocadas no preâmbulo do contrato sobre os submarinos que influenciaram esta prestação.

    80.

    Resta a questão de saber se o caráter ultra vires da prestação das garantias em causa impede a sua imputação ao Estado.

    3. O caráter ultra vires da prestação das garantias impede a sua imputação ao Estado?

    81.

    Antes de mais, resulta claramente do pedido de decisão prejudicial que, apesar do seu caráter ultra vires, as garantias em causa vinculam a HbR. Assim, coloca‑se a questão de saber se o facto de W. K. Sholten as ter prestado ultra vires impede a sua imputação ao Estado neerlandês.

    82.

    Em apoio da sua posição segundo a qual a imputação não é possível, o Commerz refere as conclusões do advogado‑geral Keus apresentadas no órgão jurisdicional de reenvio, de acordo com as quais este julga que no acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294), o Tribunal de Justiça aparentemente considerou que existiu uma implicação real e fatual do Estado na adoção das medidas em causa. Com base nesta interpretação do referido acórdão, o Commerz alega que semelhante implicação real e fatual do Estado na prestação das garantias em causa é impossível quando estas são prestadas ultra vires. Dito de outra forma, de que modo seria possível afirmar que no caso em apreço, «o organismo em questão não podia tomar a [medida] contestada sem ter em conta as exigências dos poderes públicos» ( 16 ), ainda que esteja provado que estes não estavam efetivamente ao corrente da prestação das garantias em causa?

    83.

    Ainda que considere, como o advogado‑geral Keus, que a implicação do Estado deve ser concreta, ou seja, deve ser relativa à medida de auxílio em causa ( 17 ) e não às atividades em geral da empresa pública, não julgo que esta constatação seja útil para responder à questão de imputabilidade de medidas adotadas por um administrador de uma empresa pública sem respeitar as regras estatutárias desta.

    84.

    Com efeito, conforme referiu o advogado‑geral Keus, os indícios fornecidos pelo Tribunal de Justiça nos n.os 55 a 57 no seu acórdão França/Comissão (EU: C:2002:294), referem‑se sobretudo ao princípio da prova da existência do controlo efetivo, isto é, à identificação dos indícios à partir dos quais a implicação do Estado pode ser deduzida, do que ao próprio objeto da prova, ou seja, à implicação do Estado na adoção das medidas em causa. Isto resulta claramente do n.o 53 deste acórdão, no qual o Tribunal de Justiça declarou que não era necessário demonstrar «com base em instruções precisas, que as autoridades públicas incitaram concretamente a empresa pública a adotar as medidas de auxílio em causa».

    85.

    Por último, pode ser útil referir os princípios de direito internacional público relativos à imputação de factos internacionalmente ilícitos ao Estado e, mais precisamente, o artigo 7.o dos artigos da Comissão de direito internacional sobre a responsabilidade dos Estados por atos contrários ao direito internacional (a seguir «artigos sobre a responsabilidade do Estado») ( 18 ), sob a epígrafe «Excesso de poder ou comportamento contrário às instruções».

    86.

    Este artigo dispõe que «[o] comportamento de um órgão do Estado, de uma pessoa ou entidade habilitada a exercer prerrogativas de poder público é considerado um facto do Estado de acordo com o direito internacional se este órgão, esta pessoa ou esta entidade atuar nessa qualidade, mesmo que exceda a sua competência ou viole as suas instruções» ( 19 ).

    87.

    Está é uma regra assente na jurisprudência internacional ( 20 ) e reconhecida pela Comissão de direito internacional no seu comentário relativo aos artigos sobre a responsabilidade do Estado ( 21 ).

    88.

    No caso em apreço, e mesmo não tendo em conta o facto de que em 22 de junho de 2004, o Conselho Fiscal da HbR aprovou ex post facto a garantia prestada para o crédito Vehicles, é evidente que W. K. Scholten atuou na sua qualidade de administrador único da HbR e que nem os estatutos nem o objeto social da HbR proibiam a prestação de garantias como as que estão em causa e a propósito das quais o Commerz podia perfeitamente confiar num compromisso da HbR enquanto tal. Tanto mais que o Commerz recebeu pareceres jurídicos que confirmaram a validade das garantias prestadas ( 22 ).

    89.

    É certo que o Gerechtshof te ’s‑Gravenhage declarou que estes pareceres jurídicos tinham sido intencionalmente elaborados de forma incorreta. Neste contexto, mesmo admitindo que o Commerz estava ou poderia estar ao corrente da invalidade das garantias em relação aos estatutos internos da GHR/HbR, isto não deveria ter qualquer incidência na imputabilidade das garantias ao Estado.

    90.

    Por último, tal como a HbR e o Governo neerlandês, considero que a eficácia das regras em matéria de auxílios estatais poderia estar em causa se a sua aplicação pudesse ser afastada unicamente por o administrador estatutário de uma empresa pública não ter, no âmbito da adoção de uma medida de auxílio, respeitado os estatutos dessa empresa ou por ter sido considerado culpado, como no presente processo, de corrupção.

    91.

    Com efeito, a imputação ao Estado de uma medida de auxílio tem um caráter puramente objetivo, no qual o conceito subjetivo de culpa por parte dos seus órgãos ou agentes ou os seus motivos não é pertinente. De outro modo, a eficácia e a uniformidade da aplicação do direito dos auxílios estatais seriam consideravelmente enfraquecidas.

    92.

    Por conseguinte, importa responder às questões prejudiciais que garantias como as que estão em causa são imputáveis ao Estado quando constituem medidas de auxílio e são prestadas pelo administrador único de uma empresa pública, mesmo que este, agindo nessa qualidade, tenha excedido a sua competência ou violado os estatutos dessa empresa.

    93.

    Além desta conclusão baseada em simples indícios retomados do acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294), gostaria igualmente de acrescentar que tenho sérias dúvidas de que a HbR, o Município e o Governo neerlandês não suspeitassem minimamente da existência das garantias prestadas por W. K. Scholten a favor de um grupo industrial que opera na produção e no fornecimento de material militar.

    94.

    O quadro fatual do presente processo é, efetivamente, muito especial. Observo, a este respeito:

    a tese bastante surpreendente de um Governo, segundo a qual a medida em causa não se justifica por considerações essencialmente comerciais e constitui um auxílio estatal que, por conseguinte, lhe é imputável (mesmo que esta tese permita não honrar as garantias);

    as alegações fatuais retomadas no preâmbulo do contrato sobre os submarinos que fazem referência a uma tentativa de fornecimento de tecnologia de submarinos a Taiwan, à ameaça da República Popular da China de impor sanções aos Países Baixos, incluindo o desvio dos seus transportes marítimos para um porto diferente do de Roterdão, à cooperação do grupo RDM com as autoridades americanas a fim de transferir o fornecimento da tecnologia de submarinos a Taiwan através de sociedades não neerlandesas do grupo RDM, bem como às negociações entre este grupo e o Governo neerlandês relativas a este fornecimento;

    a obtenção de pareceres jurídicos por parte do Commerz que atestam a legalidade das garantias em causa mas que os órgãos jurisdicionais nacionais neerlandeses consideraram ter sido intencionalmente elaborados de forma incorreta; e

    a aprovação ex post facto da garantia associada ao crédito Vehicles pelo Conselho Fiscal da HbR.

    95.

    Estas circunstâncias são excecionalmente bizarras. A advogada‑geral J. Kokott qualificou‑as de «misteriosas» ( 23 ).

    VI – Conclusão

    96.

    Por conseguinte, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões prejudiciais submetidas pelo Hoge Raad der Nederlanden do seguinte modo:

    «Garantias como as que estão em causa são imputáveis ao Estado quando constituem medidas de auxílio e são concedidas pelo administrador único de uma empresa pública, mesmo que este, agindo nessa qualidade, tenha excedido a sua competência ou violado os estatutos desta empresa.»


    ( 1 ) Língua original: francês.

    ( 2 ) Liber Ecclesiastes, capítulo 1, versículo 10.

    ( 3 ) C‑275/10, EU:C:2011:814.

    ( 4 ) C‑275/10, EU:C:2011:354.

    ( 5 ) C‑482/99, EU:C:2002:294.

    ( 6 ) ECLI:NL:RBROT:2010:BO0530.

    ( 7 ) V. Comunicação da Comissão relativa à aplicação dos artigos 87.° e 88.° do Tratado CE aos auxílios estatais sob forma de garantias (JO 2008 C 155, p. 10, n.o 3.1).

    ( 8 ) Esta questão não foi discutida no processo Residex Capital IV (EU:C:2011:814), tal como não foi a da imputabilidade ao Estado das garantias prestadas em benefício da RDM Aerospace NV, o que conduziu à sua qualificação como auxílios estatais.

    ( 9 ) V. n.o 28 das presentes conclusões.

    ( 10 ) Perguntando‑se se «resulta das observações escritas da HbR, por um lado, que o seu objeto social comporta nomeadamente o reforço «do complexo industrial de Roterdão», assim como «o desenvolvimento, a construção, a gestão a exploração do porto e da zona industrial de Roterdão, na aceção mais ampla do termo». Por outro lado, consta do n.o 17 das referidas observações que foi alegado no processo principal que a prestação das garantias era justificada tanto pelo objetivo de assegurar a utilização na importante indústria manufatureira do porto como por um contrato de 28 de dezembro de 2002, relativo à abstenção, pelo grupo RDM, de fornecer a tecnologia para submarinos a Taiwan, que é igualmente mencionada nos n.os 3.3 (II) e 3.4 do pedido de decisão prejudicial. O Commerz, a HbR e o Governo neerlandês devem especificar, na audiência, se existem, devido às referidas ou a outras circunstâncias, indícios de que a prestação das garantias controvertidas era no interesse da HbR e/ou do [Município] e/ou do Estado neerlandês? Em particular, devem comentar a exatidão das circunstâncias evocadas nos considerandos A a C do referido contrato».

    ( 11 ) Acórdãos França/Comissão (EU:C:2002:294, n.o 24) e Vent De Colère e o. (C‑262/12, EU:C:2013:851, n.o 17).

    ( 12 ) Acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294, n.o 52).

    ( 13 ) Acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294, n.o 53).

    ( 14 ) Estas garantias foram objeto de um acórdão no processo Residex Capital IV (EU:C:2011:814).

    ( 15 ) Acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294, n.o 56).

    ( 16 ) Acórdão França/Comissão (EU:C:2002:294, n.o 55).

    ( 17 ) V., neste sentido, acórdão Vent De Colère e o. (EU:C:2013:851, n.o 17).

    ( 18 ) UNGA A/CN.4/L.602/Rev.1. Os artigos sobre a responsabilidade do Estado eram recomendados para adoção aos Estados pela Assembleia Geral da ONU: v. UNGA A/RES/56/83; UNGA A/RES/59/35 e UNGA A/RES/62/61.

    ( 19 ) O sublinhado é meu.

    ( 20 ) V. Nações Unidas, Maal Case, Reports of International Arbitral Awards, vol. X (1903), pp. 732 e 733; La Masica Case (Great Britain, Honduras) de 7 de dezembro de 1916, Reports of International Arbitral Awards, vol. XI (1916), p. 560; Thomas H. Youmans (USA) v. United Mexican States de 23 de novembro de 1926, Reports of International Arbitral Awards, vol. IV (1926), p. 116; Francisco Mallén (United Mexican States) v. USA de 27 de abril de 1927, Reports of International Arbitral Awards, vol. IV (1927), p. 177; Charles S. Stephens and Bowman Stephens (USA) v. United Mexican States de 17 de julho de 1927, Reports of International Arbitral Awards, vol. IV (1927), pp. 267 e 268; William T. Way (USA) v. United Mexican States de 18 de outubro de 1928, Reports of International Arbitral Awards, vol. IV (1928), pp. 400 e 401, bem como Estate of Jean‑Baptiste Caire v. United Mexican States de 7 de junho de 1929, Reports of International Arbitral Awards, vol. V (1929), p. 531. Este princípio faz também parte da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (v. TEDH, acórdão Ilaşcu e o. c. Moldávia e Rússia de 8 de julho de 2004, Recueil des arrêts et décisions 2004‑VII, pp. 90 e 106), da Inter‑American Court of Human Rights [v. TEDH, acórdão Velásquez‑Rodríguez c. Honduras de 29 de julho de 1988, Série C, n.o 4 (1989), n.os 169 a 172], e do Tribunal das reclamações Estados‑Unidos‑Irão [v. Petrolane, Inc./República islâmica do Irão (1991) 27 Iran‑U. S. C. T. R. 64, p. 92].

    ( 21 ) N.os 4 a 6 do comentário sobre o artigo 7.o dos artigos sobre a responsabilidade do Estado.

    ( 22 ) V. n.os 19 e 21 das presentes conclusões.

    ( 23 ) V. suas conclusões no processo Residex Capital IV (EU:C:2011:354, n.o 2).

    Top