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Document 62011CJ0022

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 4 de outubro de 2012.
Finnair Oyj contra Timy Lassooy.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Korkein oikeus.
Transportes aéreos ― Regulamento (CE) n.° 261/2004 ― Indemnização dos passageiros em caso de recusa de embarque ― Conceito de ‘recusa de embarque’ ― Exclusão da qualificação de ‘recusa de embarque’ ― Cancelamento de um voo devido a uma greve no aeroporto de partida ― Reorganização de voos posteriores ao voo cancelado ― Direito dos passageiros desses voos a uma indemnização.
Processo C‑22/11.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2012:604

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

4 de outubro de 2012 ( *1 )

«Transportes aéreos — Regulamento (CE) n.o 261/2004 — Indemnização dos passageiros em caso de recusa de embarque — Conceito de ‘recusa de embarque’ — Exclusão da qualificação de ‘recusa de embarque’ — Cancelamento de um voo devido a uma greve no aeroporto de partida — Reorganização de voos posteriores ao voo cancelado — Direito dos passageiros desses voos a uma indemnização»

No processo C-22/11,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.o TFUE, apresentado pelo Korkein oikeus (Finlândia), por decisão de 13 de janeiro de 2011, entrado no Tribunal de Justiça em 17 de janeiro de 2011, no processo

Finnair Oyj

contra

Timy Lassooy,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, J. Malenovský, E. Juhász, T. von Danwitz e D. Šváby (relator), juízes,

advogado-geral: Y. Bot,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 1 de março de 2012,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Finnair Oyj, por T. Väätäinen, asianajaja,

em representação de T. Lassooy, por M. Wilska, kuluttaja-asiamies, P. Hannula e J. Suurla, lakimiehet,

em representação do Governo finlandês, por H. Leppo, na qualidade de agente,

em representação do Governo francês, por G. de Bergues e M. Perrot, na qualidade de agentes,

em representação do Governo italiano, por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por G. Aiello, avvocato dello Stato,

em representação do Governo austríaco, por A. Posch, na qualidade de agente,

em representação do Governo polaco, por M. Szpunar, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por I. Koskinen e K. Simonsson, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 19 de abril de 2012,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 2.°, alínea j), 4.° e 5.° do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91 (JO L 46, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a companhia aérea Finnair Oyj (a seguir «Finnair») a T. Lassooy na sequência da recusa da referida companhia aérea de o indemnizar pelo facto de, em 30 de julho de 2006, ter recusado o seu embarque num voo entre Barcelona (Espanha) e Helsínquia (Finlândia).

Quadro jurídico

Regulamento (CEE) n.o 295/91

3

O Regulamento (CEE) n.o 295/91 do Conselho, de 4 de fevereiro de 1991, que estabelece regras comuns relativas a um sistema de compensação por recusa de embarque de passageiros nos transportes aéreos regulares (JO L 36, p. 5), em vigor até 16 de fevereiro de 2005, dispunha no seu artigo 1.o:

«O presente regulamento estabelece as regras mínimas comuns aplicáveis aos passageiros recusados num voo regular sobrerreservado, para o qual dispunham de um bilhete válido e com reserva confirmada, com partida de um aeroporto situado no território de um Estado-Membro e sujeito às disposições do Tratado [CE], qualquer que seja o Estado em que a transportadora aérea se encontre estabelecida, a nacionalidade do passageiro e o local de destino.»

Regulamento n.o 261/2004

4

Os considerandos 1, 3, 4, 9, 10, 14 e 15 do Regulamento n.o 261/2004 enunciam:

«(1)

A ação da Comunidade no domínio do transporte aéreo deve ter, entre outros, o objetivo de garantir um elevado nível de proteção dos passageiros. Além disso, devem ser tidas plenamente em conta as exigências de proteção dos consumidores em geral.

[…]

(3)

Embora o [Regulamento n.o 295/91] estabeleça um nível básico de proteção para os passageiros, o número de passageiros a quem é recusado o embarque contra sua vontade continua a ser demasiado elevado, tal como o de passageiros vítimas de cancelamentos sem aviso prévio e de atrasos consideráveis.

(4)

Por conseguinte, a Comunidade deverá elevar os níveis de proteção estabelecidos naquele regulamento, quer para reforçar os direitos dos passageiros, quer para garantir que as transportadoras aéreas operem em condições harmonizadas num mercado liberalizado.

[…]

(9)

O número de passageiros a quem é recusado o embarque contra a sua vontade deverá ser reduzido mediante exigência às transportadoras aéreas de que apelem a voluntários que aceitem ceder as suas reservas a troco de benefícios, em vez de recusarem o embarque aos passageiros, e mediante indemnização integral àqueles a quem o embarque acabe por ser recusado.

(10)

Os passageiros a quem seja recusado o embarque contra sua vontade deverão poder cancelar os seus voos, com reembolso dos seus bilhetes, ou prossegui-los em condições satisfatórias e deverão receber assistência adequada enquanto aguardam um voo posterior.

[…]

(14)

Tal como ao abrigo da Convenção de Montreal, as obrigações a que estão sujeitas as transportadoras aéreas operadoras deverão ser limitadas ou eliminadas nos casos em que a ocorrência tenha sido causada por circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis. Essas circunstâncias podem sobrevir, em especial, em caso de instabilidade política, condições meteorológicas incompatíveis com a realização do voo em causa, riscos de segurança, falhas inesperadas para a segurança do voo e greves que afetem o funcionamento da transportadora aérea.

(15)

Considerar-se-á que existem circunstâncias extraordinárias sempre que o impacto de uma decisão de gestão do tráfego aéreo, relativa a uma determinada aeronave num determinado dia, provoque um atraso considerável, um atraso de uma noite ou o cancelamento de um ou mais voos dessa aeronave, não obstante a transportadora aérea em questão ter efetuado todos os esforços razoáveis para evitar atrasos ou cancelamentos.»

5

O artigo 2.o do Regulamento n.o 261/2004, intitulado «Definições», dispõe:

«Para efeitos do presente regulamento, entende-se por:

[…]

j)

‘Recusa de embarque’, a recusa de transporte de passageiros num voo, apesar de estes se terem apresentado no embarque nas condições estabelecidas no n.o 2 do artigo 3.o, exceto quando haja motivos razoáveis para recusar o embarque, tais como razões de saúde, de segurança ou a falta da necessária documentação de viagem;

[…]»

6

O artigo 3.o do referido regulamento, intitulado «Âmbito», prevê no seu n.o 2:

«O disposto no n.o 1 aplica-se aos passageiros que:

a)

Tenham uma reserva confirmada para o voo em questão e, salvo no caso do cancelamento a que se refere o artigo 5.o, se apresentarem para o registo:

tal como estabelecido e com a antecedência que tenha sido indicada e escrita (incluindo por meios eletrónicos) pela transportadora aérea, pelo operador turístico ou pelo agente de viagens autorizado,

ou, não sendo indicada qualquer hora,

até 45 minutos antes da hora de partida publicada; ou

[…]»

7

O artigo 4.o do mesmo regulamento, intitulado «Recusa de embarque», tem a seguinte redação:

«1.   Quando tiver motivos razoáveis para prever que vai recusar o embarque para [um] voo, uma transportadora aérea operadora deve, em primeiro lugar, apelar a voluntários que aceitem ceder as suas reservas a troco de benefícios, em condições a acordar entre o passageiro em causa e a transportadora aérea operadora. Acrescendo aos benefícios a que se refere o presente número, os voluntários devem receber assistência nos termos do artigo 8.o

2.   Se o número de voluntários for insuficiente para permitir que os restantes passageiros com reservas possam embarcar, a transportadora aérea operadora pode então recusar o embarque a passageiros contra sua vontade.

3.   Se for recusado o embarque a passageiros contra sua vontade, a transportadora aérea operadora deve indemnizá-los imediatamente nos termos do artigo 7.o e prestar-lhes assistência nos termos dos artigos 8.° e 9.°»

8

O artigo 5.o do Regulamento n.o 261/2004, intitulado «Cancelamento», dispõe no seu n.o 3:

«A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização nos termos do artigo 7.o, se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis.»

9

O artigo 7.o do Regulamento n.o 261/2004, intitulado «Direito a indemnização», enuncia no seu n.o 1:

«Em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de:

[…]

b)

400 euros para todos os voos intracomunitários com mais de 1500 quilómetros e para todos os outros voos entre 1500 e 3500 quilómetros;

[…]»

10

Os artigos 8.° e 9.° do referido regulamento, lidos em conjugação com o artigo 4.o do mesmo regulamento, preveem um direito a reembolso ou a reencaminhamento, bem como um direito a assistência para os passageiros aos quais foi recusado o embarque.

11

O artigo 13.o do mesmo regulamento, intitulado «Direito de recurso», dispõe:

«Se a transportadora aérea operadora tiver pago uma indemnização ou tiver cumprido outras obrigações que por força do presente regulamento lhe incumbam, nenhuma disposição do presente regulamento pode ser interpretada como limitando o seu direito de exigir indemnização, incluindo a terceiros, nos termos do direito aplicável. Em especial, o presente regulamento em nada limita o direito de uma transportadora aérea operante de pedir o seu ressarcimento a um operador turístico, ou qualquer outra pessoa, com quem tenha contrato. Do mesmo modo, nenhuma disposição do presente regulamento pode ser interpretada como limitando o direito de um operador turístico ou de um terceiro, que não seja um passageiro, com quem uma transportadora aérea operadora tenha um contrato, de pedir o seu ressarcimento ou uma indemnização à transportadora aérea operadora nos termos do direito relevante aplicável.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

12

Na sequência de uma greve do pessoal do aeroporto de Barcelona em 28 de julho de 2006, o voo regular entre Barcelona e Helsínquia das 11 h 40 m, operado pela Finnair, teve de ser cancelado. Para que os passageiros desse voo não tivessem um tempo de espera demasiado longo, a Finnair decidiu reorganizar os voos posteriores a esse voo.

13

Assim, os passageiros do referido voo foram encaminhados para Helsínquia no voo do dia seguinte, 29 de julho de 2006, à mesma hora e noutro voo do mesmo dia, com partida às 21 h 40 m, especialmente fretado para o efeito. Esta reorganização teve como consequência que uma parte dos passageiros com bilhete para o voo de 29 de julho de 2006 das 11 h 40 m teve de esperar pelo dia 30 de julho de 2006 para viajar para Helsínquia no voo regular das 11 h 40 m ou no voo das 21 h 40 m, especialmente fretado dadas as circunstâncias. Do mesmo modo, alguns passageiros, como T. Lassooy, que tinham bilhete para o voo das 11 h 40 m de 30 de julho de 2006, e que se tinham apresentado regularmente no embarque, foram transportados para Helsínquia no voo especial do mesmo dia das 21 h 40 m.

14

Por considerar que a Finnair lhe tinha recusado sem razão válida o embarque, na aceção do artigo 4.o do Regulamento n.o 261/2004, T. Lassooy intentou uma ação no Helsingin käräjäoikeus (Tribunal de Primeira Instância de Helsínquia) na qual pedia a condenação da Finnair a pagar-lhe a indemnização prevista no artigo 7.o, n.o 1, alínea b), deste regulamento. Por sentença de 19 de dezembro de 2008, esse órgão jurisdicional julgou improcedente o pedido de indemnização por considerar que o referido regulamento apenas abrangia a indemnização por recusa de embarque em situações relacionadas com excesso de reservas por razões comerciais. O referido órgão jurisdicional considerou que esse artigo 4.o não era aplicável ao caso em apreço na medida em que a companhia aérea tinha procedido a uma reorganização dos voos na sequência da greve ocorrida no aeroporto de Barcelona, constituindo essa greve uma circunstância extraordinária relativamente à qual a Finnair tinha tomado as medidas exigíveis.

15

Por acórdão de 31 de agosto de 2009, o Helsingin hovioikeus (Tribunal de Recurso de Helsínquia) anulou a sentença do Helsingin käräjäoikeus e condenou a Finnair a pagar a T. Lassooy a quantia de 400 euros. A este respeito, o órgão jurisdicional de recurso considerou que o Regulamento n.o 261/2004 é aplicável não só aos casos de excesso de reservas mas também em determinadas situações de recusa de embarque por razões operacionais e não permite assim que a transportadora aérea possa ser exonerada da sua obrigação de indemnizar por razões relacionadas com uma greve.

16

No âmbito do recurso interposto pela Finnair no Korkein oikeus (Tribunal Supremo), esse órgão jurisdicional revelou ter dúvidas quanto ao âmbito da obrigação de indemnização dos passageiros que tenham sido objeto de «recusa de embarque», conforme prevista no artigo 4.o do Regulamento n.o 261/2004, às razões suscetíveis de justificar uma «recusa de embarque» na aceção do artigo 2.o, alínea j), deste regulamento e à possibilidade de uma transportadora aérea invocar as circunstâncias extraordinárias previstas no artigo 5.o, n.o 3, do mesmo regulamento, relativamente a voos posteriores ao que foi cancelado devido a essas circunstâncias.

17

Neste contexto, o Korkein oikeus decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o Regulamento n.o 261/2004, em especial o seu artigo 4.o, ser interpretado no sentido de que o seu âmbito de aplicação está limitado a uma recusa de embarque causada por excesso de reservas pela transportadora aérea operadora por razões comerciais, ou o regulamento também se aplica à recusa de embarque causada por outros motivos, como, por exemplo, problemas operacionais?

2)

Deve o artigo 2.o, alínea j), do [Regulamento n.o 261/2004] ser interpretado no sentido de que os motivos razoáveis aí referidos se limitam a fatores relacionados com os próprios passageiros ou a recusa de embarque também pode ser considerada razoável por outros motivos? Caso o regulamento deva ser interpretado no sentido de o embarque também poder ser recusado por motivos diferentes dos que se relacionam com os próprios passageiros, é possível interpretá-lo no sentido de também ser razoável a recusa de embarque no caso de uma reorganização dos voos em virtude da ocorrência de circunstâncias extraordinárias, na aceção [dos considerandos 14 e 15 do regulamento]?

3)

Deve o [Regulamento n.o 261/2004] ser interpretado no sentido de que a transportadora aérea pode ser isenta de responsabilidade, nos termos do artigo 5.o, n.o 3, não apenas em relação aos passageiros que deviam ter embarcado no voo que foi cancelado em virtude da ocorrência das circunstâncias extraordinárias[…] mas também em relação a passageiros que deviam embarcar em voos posteriores, na medida em que tenha tentado distribuir as consequências negativas de uma circunstância extraordinária — por exemplo, uma greve — que a afetou[…] pelo conjunto dos passageiros mais numeroso do que o grupo de passageiros do voo cancelado, distribuição essa que consistiu na reorganização dos voos posteriores de modo a que nenhum dos passageiros tivesse de esperar excessivamente? Por outras palavras, a transportadora aérea também pode invocar as circunstâncias extraordinárias em relação a passageiros que deviam embarcar em voos posteriores que não foram diretamente afetados pela ocorrência em causa? Nesta medida, há alguma diferença relevante consoante a posição assumida pelo passageiro e a respetiva pretensão indemnizatória assentem no artigo 4.o do regulamento, que tem por objeto a recusa de embarque, ou no artigo 5.o do mesmo, relativo ao cancelamento de um voo?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

18

Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o conceito de «recusa de embarque», na aceção dos artigos 2.°, alínea j), e 4.° do Regulamento n.o 261/2004, deve ser interpretado no sentido de que abarca exclusivamente as recusas de embarque devidas a situações de excesso de reservas ou também se aplica a recusas de embarque determinadas por outras razões, como as operacionais.

19

Deve observar-se que a redação do artigo 2.o, alínea j), do Regulamento n.o 261/2004, que define o conceito de «recusa de embarque», não associa essa recusa a uma situação de «excesso de reservas» do voo em questão provocada pela transportadora aérea em causa por razões comerciais.

20

Quanto ao contexto da referida disposição e aos objetivos prosseguidos pela regulamentação em que se integra, resulta não só dos considerandos 3, 4, 9 e 10 do Regulamento n.o 261/2004 mas também dos trabalhos preparatórios do referido regulamento, em especial da Proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos, apresentada pela Comissão das Comunidades Europeias em 21 de dezembro de 2001 [COM(2001) 784 final], que o legislador da União pretendeu, com a adoção deste regulamento, reduzir o número de passageiros a quem é recusado o embarque contra a sua vontade, que era então muito elevado, colmatando as lacunas do Regulamento n.o 295/91, que se limitava a estabelecer, nos termos do seu artigo 1.o, regras mínimas comuns aplicáveis aos passageiros a quem é recusado o embarque num voo regular por excesso de reservas.

21

Foi neste contexto que, através do artigo 2.o, alínea j), do Regulamento n.o 261/2004, o referido legislador suprimiu da definição de «recusa de embarque» qualquer referência à razão pela qual uma transportadora recusa transportar um passageiro.

22

Assim sendo, o legislador da União estendeu o alcance da referida definição para além do único caso de recusa de embarque devido a excesso de reservas previsto anteriormente no artigo 1.o do Regulamento n.o 295/91 e conferiu-lhe um sentido amplo que abrange todas as situações em que uma transportadora aérea recuse transportar um passageiro.

23

Esta interpretação é corroborada pela constatação de que a limitação do alcance do conceito de «recusa de embarque» apenas aos casos de excesso de reservas teria, na prática, por efeito reduzir significativamente a proteção concedida aos passageiros por força do Regulamento n.o 261/2004 e seria, portanto, contrária ao seu objetivo, previsto no considerando 1, que é garantir um elevado nível de proteção dos passageiros, o que justifica uma interpretação ampla dos direitos reconhecidos aos referidos passageiros (v., neste sentido, acórdãos de 10 de janeiro de 2006, IATA e ELFAA, C-344/04, Colet., p. I-403, n.o 69, e de 22 de dezembro de 2008, Wallentin-Hermann, C-549/07, Colet., p. I-11061, n.o 18).

24

Como salientou o advogado-geral no n.o 37 das suas conclusões, admitir que só os casos de excesso de reservas estão abrangidos pelo conceito de «recusa de embarque» teria como consequência privar de qualquer proteção os passageiros que, como o recorrente no processo principal, se encontrem numa situação que, à semelhança do excesso de reservas por razões comerciais, não lhes é imputável, privando-os da possibilidade de invocar o artigo 4.o do Regulamento n.o 261/2004, artigo que remete, no seu n.o 3, para as disposições deste regulamento relativas aos direitos à indemnização, ao reembolso ou ao reencaminhamento e à assistência, tal como previstos nos artigos 7.° a 9.° do mesmo regulamento.

25

Consequentemente, a recusa de embarque imposta por uma transportadora aérea a um passageiro que se apresenta no embarque nas condições estabelecidas no artigo 3.o, n.o 2, do Regulamento n.o 261/2004 e que é devida à reorganização de voos operados por essa transportadora deve ser qualificada de «recusa de embarque» na aceção do artigo 2.o, alínea j), deste regulamento.

26

Em face do exposto, há que responder à primeira questão que o conceito de «recusa de embarque», na aceção dos artigos 2.°, alínea j), e 4.° do Regulamento n.o 261/2004, deve ser interpretado no sentido de que inclui não só as recusas de embarque devido a situações de excesso de reservas mas também as recusas de embarque determinadas por outras razões, como razões operacionais.

Quanto à segunda e terceira questões

27

Com a segunda e terceira questões, que devem ser analisadas conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se a ocorrência de «circunstâncias extraordinárias», que levem uma transportadora aérea a reorganizar voos posteriormente a essas circunstâncias, é suscetível de justificar a «recusa de embarque» de um passageiro num desses voos posteriores e de exonerar essa transportadora da sua obrigação de indemnizar, nos termos do artigo 4.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, relativamente ao passageiro a quem recusa o embarque num desses voos fretados após as referidas circunstâncias.

28

Em primeiro lugar, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se a qualificação de «recusa de embarque», na aceção do artigo 2.o, alínea j), do Regulamento n.o 261/2004, só pode afastada por razões relacionadas com os passageiros enquanto tais ou se razões alheias a estes últimos e, em especial, relativas à reorganização dos seus voos por uma transportadora na sequência de «circunstâncias extraordinárias» que a afetaram também podem impedir essa qualificação.

29

A este respeito, cumpre recordar que esse artigo 2.o, alínea j), exclui a qualificação de «recusa de embarque» em duas situações. A primeira devido ao não cumprimento pelo passageiro da obrigação de se apresentar para embarque nas condições estabelecidas no artigo 3.o, n.o 2, desse regulamento. A segunda prende-se com os casos em que haja motivos razoáveis para recusar o embarque, «tais como razões de saúde, de segurança ou a falta da necessária documentação de viagem».

30

A primeira situação não está em causa no processo principal. Quanto à segunda, importa observar que nenhuma das razões expressamente mencionadas no dito artigo 2.o, alínea j), é pertinente no processo principal. Ora, recorrendo à expressão «tais como», o legislador da União pretendeu fornecer uma lista não exaustiva dos casos em que existem motivos razoáveis para recusar o embarque.

31

Portanto, não se pode inferir dessa formulação que uma razão operacional como a que está em causa no processo principal seja um motivo razoável para recusar o embarque.

32

Com efeito, a situação em causa no processo principal é comparável a uma recusa de embarque devido a um excesso de reservas «inicial», uma vez que a transportadora aérea tinha reatribuído o lugar do recorrente para transportar outros passageiros, e que, portanto, foi a própria transportadora que escolheu entre os diversos passageiros a transportar.

33

Na verdade, esta reatribuição foi efetuada para evitar que os passageiros abrangidos pelos voos cancelados devido a circunstâncias extraordinárias tivessem de esperar muito tempo. Contudo, a referida razão não é comparável às explicitamente mencionadas no artigo 2.o, alínea j), do Regulamento n.o 261/2004, na medida em que não é de modo algum imputável ao passageiro a quem o embarque foi recusado.

34

Não é admissível que uma transportadora aérea, invocando o interesse de outros passageiros em serem transportados num prazo razoável, possa ampliar significativamente as situações em que essa transportadora pode recusar justificadamente o embarque a um passageiro. Isso teria necessariamente como consequência privar esse passageiro de qualquer proteção, o que seria contrário ao objetivo do Regulamento n.o 261/2004 que visa garantir um elevado nível de proteção dos passageiros através de uma interpretação ampla dos direitos que lhes são reconhecidos.

35

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio questiona o Tribunal de Justiça quanto à possibilidade de uma transportadora aérea se eximir da obrigação de indemnizar por «recusa de embarque», prevista nos artigos 4.°, n.os 3 e 7, do Regulamento n.o 261/2004, pelo facto de a referida recusa decorrer da reorganização dos voos dessa transportadora na sequência da ocorrência de «circunstâncias extraordinárias».

36

A este respeito, importa salientar que, contrariamente ao artigo 5.o, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004, os seus artigos 2.°, alínea j), e 4.° não preveem que, em caso de «recusa de embarque» relacionada com «circunstâncias extraordinárias» que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido adotadas todas as medidas razoáveis, uma transportadora aérea fique isenta de indemnizar os passageiros cujo embarque foi recusado contra a sua vontade (v., por analogia, acórdão IATA e ELFAA, já referido, n.o 37). Daqui se conclui que o legislador da União não pretendeu que a referida indemnização pudesse ser afastada por motivos relacionados com a ocorrência de «circunstâncias extraordinárias».

37

Por outro lado, resulta do considerando 15 do Regulamento n.o 261/2004 que as «circunstâncias extraordinárias» só podem ser relativas «a uma determinada aeronave num determinado dia», o que não é o caso de uma recusa de embarque imposta a um passageiro em razão da reorganização dos voos decorrente dessas circunstâncias que afetaram um voo anterior. Com efeito, o conceito de «circunstâncias extraordinárias» visa limitar as obrigações da transportadora aérea, ou mesmo exonerá-la dessas obrigações, quando o acontecimento em causa não poderia ter sido evitado mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis. Ora, como observou o advogado-geral no n.o 53 das suas conclusões, se essa transportadora é obrigada a cancelar um voo previsto para o dia de uma greve do pessoal de um aeroporto e decide depois reorganizar os seus voos posteriores, não se pode considerar que essa transportadora foi, de forma alguma, obrigada pela referida greve a recusar o embarque a um passageiro que se apresentou regularmente no embarque dois dias após o cancelamento do referido voo.

38

Consequentemente, devido à exigência de interpretação estrita das exceções às disposições que conferem direitos aos passageiros tal como decorre da jurisprudência assente do Tribunal de Justiça (v., neste sentido, acórdão Wallentin-Hermann, já referido, n.o 17 e jurisprudência referida), não se deve admitir que a transportadora aérea se possa eximir da sua obrigação de indemnização no caso de «recusa de embarque» pelo facto de essa recusa resultar da reorganização dos voos dessa transportadora na sequência de «circunstâncias extraordinárias».

39

Por outro lado, cabe recordar que o cumprimento das obrigações que incumbem às transportadoras aéreas por força do Regulamento n.o 261/2004 não prejudica o direito de essas transportadoras exigirem uma indemnização a qualquer pessoa que tenha causado a «recusa de embarque», incluindo terceiros, conforme está previsto no artigo 13.o desse regulamento. Esta indemnização é, pois, suscetível de atenuar, se não mesmo de eliminar, o encargo financeiro suportado pelas referidas transportadoras em consequência daquelas obrigações (acórdão IATA e ELFAA, já referido, n.o 90).

40

Em face do exposto, há que responder à segunda e terceira questões que os artigos 2.°, alínea j) e 4.°, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 devem ser interpretados no sentido de que a ocorrência de «circunstâncias extraordinárias» que levam uma transportadora aérea a reorganizar voos posteriormente a essas circunstâncias não é suscetível de justificar uma «recusa de embarque» nos referidos voos posteriores nem de exonerar essa transportadora da sua obrigação de indemnização, nos termos do artigo 4.o, n.o 3, do mesmo regulamento, relativamente ao passageiro a quem recusa o embarque num desses voos fretados após as referidas circunstâncias.

Quanto às despesas

41

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

 

1)

O conceito de «recusa de embarque», na aceção dos artigos 2.°, alínea j), e 4.° do Regulamento (CE) n.o 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.o 295/91, deve ser interpretado no sentido de que inclui não só as recusas de embarque devido a situações de excesso de reservas mas também as recusas de embarque determinadas por outras razões, como razões operacionais.

 

2)

Os artigos 2.°, alínea j), e 4.°, n.o 3, do Regulamento n.o 261/2004 devem ser interpretados no sentido de que a ocorrência de «circunstâncias extraordinárias» que levam uma transportadora aérea a reorganizar voos posteriormente a essas circunstâncias não é suscetível de justificar uma «recusa de embarque» nos referidos voos posteriores nem de exonerar essa transportadora da sua obrigação de indemnização, nos termos do artigo 4.o, n.o 3, do mesmo regulamento, relativamente ao passageiro a quem recusa o embarque num desses voos fretados após as referidas circunstâncias.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: finlandês.

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