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Document 62010CJ0244

Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 22 de Septembro de 2011.
Mesopotamia Broadcast A/S METV (C-244/10) e Roj TV A/S (C-245/10) contra Bundesrepublik Deutschland.
Pedidos de decisão prejudicial: Bundesverwaltungsgericht - Alemanha.
Directiva 89/552/CEE - Actividades de radiodifusão televisiva - Faculdade de um Estado-Membro proibir no seu território a actividade de um organismo de radiodifusão televisiva estabelecido noutro Estado-Membro - Fundamento baseado na violação do entendimento entre os povos.
Processos apensos C-244/10 e C-245/10.

Colectânea de Jurisprudência 2011 I-08777

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2011:607

Processos apensos C‑244/10 e C‑245/10

Mesopotamia Broadcast A/S METV

e

Roj TV A/S

contra

Bundesrepublik Deutschland

(pedidos de decisão prejudicial apresentados pelo Bundesverwaltungsgericht)

«Directiva 89/552/CEE – Actividades de radiodifusão televisiva – Faculdade de um Estado‑Membro proibir no seu território a actividade de um organismo de radiodifusão televisiva estabelecido noutro Estado‑Membro – Fundamento baseado na violação do entendimento entre os povos»

Sumário do acórdão

Livre prestação de serviços – Actividades de radiodifusão televisiva – Directiva 89/552 – Fiscalização da observância das disposições da directivaFiscalização a cargo do Estado‑Membro de origem das emissões – Derrogações – Incitamento ao ódio por razões de raça, sexo, religião ou nacionalidade – Conceito – Violação do entendimento entre os povos – Inclusão

(Directiva 89/552 do Conselho, conforme alterada pela Directiva 97/36 do Parlamento Europeu e do Conselho, artigo 22.°‑A)

O artigo 22.°‑A da Directiva 89/552, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas ao exercício de actividades de radiodifusão televisiva, conforme alterada pela Directiva 97/36, deve ser interpretado no sentido de que factos que estejam abrangidos por uma norma de direito nacional que proíbe uma violação do entendimento entre os povos, devem ser considerados incluídos no conceito de «incitamento ao ódio por razões de raça, sexo, religião ou nacionalidade».

Esse artigo não se opõe a que um Estado‑Membro, em aplicação de legislação geral, como uma Lei das associações, aplique medidas a um organismo de radiodifusão televisiva estabelecido noutro Estado‑Membro, pelo facto de as actividades e objectivos desse organismo infringirem a proibição de violação do entendimento entre os povos, desde que essas medidas não impeçam, o que deve ser verificado pelo juiz nacional, a retransmissão propriamente dita no território do Estado‑Membro de recepção das emissões de radiodifusão televisiva realizadas por esse organismo a partir do outro Estado‑Membro.

(cf. n.os 46, 54 e disp.)







ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

22 de Setembro de 2011 (*)

«Directiva 89/552/CEE – Actividades de radiodifusão televisiva – Faculdade de um Estado‑Membro proibir no seu território a actividade de um organismo de radiodifusão televisiva estabelecido noutro Estado‑Membro – Fundamento baseado na violação do entendimento entre os povos»

Nos processos apensos C‑244/10 e C‑245/10,

que têm por objecto pedidos de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentados pelo Bundesverwaltungsgericht (Alemanha), por decisões de 24 de Fevereiro de 2010, entrados no Tribunal de Justiça em 19 de Maio de 2010, no processo

Mesopotamia Broadcast A/S METV (C‑244/10),

Roj TV A/S (C‑245/10)

contra

Bundesrepublik Deutschland,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta (relatora), G. Arestis, J. Malenovský e T. von Danwitz, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: A. Impellizzeri, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 13 de Abril de 2011,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Mesopotamia Broadcast A/S METV e da Roj TV A/S, por R. Marx, Rechtsanwalt,

–        em representação do Governo alemão, por T. Henze e N. Graf Vitzthum, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo francês, por G. de Bergues e S. Menez, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por C. Vrignon, S. La Pergola e G. von Rintelen, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 5 de Maio de 2011,

profere o presente

Acórdão

1        Os pedidos de decisão prejudicial têm por objecto a interpretação da Directiva 89/552/CEE do Conselho, de 3 de Outubro de 1989, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas ao exercício de actividades de radiodifusão televisiva (JO L 298, p. 23), conforme alterada pela Directiva 97/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de Junho de 1997 (JO L 202, p. 60, a seguir «directiva»).

2        Estes pedidos foram apresentados no âmbito de litígios que opõem a Mesopotamia Broadcast A/S METV (a seguir «Mesopotamia Broadcast»), por um lado, e a Roj TV A/S (a seguir «Roj TV»), por outro, duas sociedades dinamarquesas, à República Federal da Alemanha, a respeito de uma decisão de proibição de actividade devido à natureza das emissões de radiodifusão produzidas por essas sociedades.

 Quadro jurídico

 Regulamentação da União

3        Nos termos do artigo 1.°, alínea b), da directiva, define‑se «organismo de radiodifusão televisiva» como «a pessoa singular ou colectiva que assume a responsabilidade editorial pela composição de grelhas de programas de televisão [...] e que os transmite ou faz transmitir por terceiros».

4        O artigo 2.° da directiva dispõe:

«1.      Cada Estado‑Membro velará por que todas as emissões de radiodifusão televisiva transmitidas por organismos de radiodifusão televisiva sob a sua jurisdição respeitem as normas da ordem jurídica aplicável às emissões destinadas ao público nesse Estado‑Membro.

2.      Para efeitos da presente directiva, os organismos de radiodifusão televisiva sob a jurisdição de um Estado‑Membro são:

–        os estabelecidos nesse Estado‑Membro, nos termos do n.° 3;

[...]

3.      Para efeitos da presente directiva, considera‑se que um organismo de radiodifusão televisiva se encontra estabelecido num Estado‑Membro nos seguintes casos:

a)      O organismo de radiodifusão televisiva tem a sua sede social efectiva nesse Estado‑Membro e as decisões editoriais relativas à programação são tomadas nesse Estado‑Membro;

[...]»

5        O artigo 2.°‑A da directiva prevê:

«1.      Os Estados‑Membros assegurarão a liberdade de recepção e não colocarão entraves à retransmissão nos seus territórios de emissões de radiodifusão televisiva provenientes de outros Estados‑Membros por razões que caiam dentro dos domínios coordenados pela presente directiva.

2.      Os Estados‑Membros podem derrogar, provisoriamente, as disposições do n.° 1, caso se encontrem reunidas as seguintes condições:

a)       Uma emissão televisiva proveniente de outro Estado‑Membro infrinja manifesta, séria e gravemente os n.os 1 e 2 do artigo 22.° e/ou o artigo 22.°‑A;

b)       O organismo de radiodifusão televisiva tenha infringido a(s) disposição(ões) prevista(s) na alínea a), pelo menos duas vezes no decurso dos doze meses precedentes;

c)       O Estado‑Membro em causa tenha notificado por escrito o organismo de radiodifusão televisiva e a Comissão das alegadas violações e das medidas que tenciona tomar no caso de tal violação voltar a verificar‑se;

d)       As consultas entre o Estado‑Membro de transmissão e a Comissão não tenham conduzido a uma resolução amigável, no prazo de quinze dias a contar da notificação prevista na alínea c), persistindo a alegada violação.

A Comissão tomará posição mediante decisão, no prazo de dois meses a contar da notificação das medidas tomadas pelo Estado‑Membro, sobre a sua compatibilidade com o direito comunitário. Em caso de decisão negativa, será solicitado ao Estado‑Membro que ponha urgentemente termo à medida em causa.

3.      O disposto no n.° 2 não prejudica a aplicação de qualquer procedimento, medida ou sanção contra as referidas violações no Estado‑Membro sob cuja jurisdição se encontre o organismo de radiodifusão televisiva em causa.»

6        O artigo 3.°, n.os 1 e 2, da directiva dispõe:

«1.      No que respeita aos organismos de radiodifusão televisiva sob a sua jurisdição, os Estados‑Membros terão a faculdade de prever normas mais rigorosas ou mais pormenorizadas nos domínios abrangidos pela presente directiva.

2.      Os Estados‑Membros assegurarão, através dos meios apropriados e no âmbito das respectivas legislações, a efectiva observância das disposições da presente directiva por parte dos organismos de radiodifusão televisiva sob a sua jurisdição.»

7        Os artigos 22.° e 22.°‑A da directiva fazem parte do seu capítulo V, intitulado «Protecção dos menores e ordem pública». O artigo 22.°, n.os 1 e 2, da directiva enuncia:

«1.      Os Estados‑Membros tomarão as medidas apropriadas para assegurar que as emissões televisivas dos organismos de radiodifusão sob a sua jurisdição não incluam quaisquer programas susceptíveis de prejudicar gravemente o desenvolvimento físico, mental ou moral dos menores, nomeadamente programas que incluam cenas de pornografia ou de violência gratuita.

2.      As medidas referidas no n.° 1 são igualmente aplicáveis a todos os programas susceptíveis de prejudicar o desenvolvimento físico, mental ou moral dos menores, excepto se, pela escolha da hora de emissão ou por quaisquer medidas técnicas, se assegurar que, em princípio, os menores que se encontrem no respectivo campo de difusão não verão nem ouvirão essas emissões.»

8        O artigo 22.°‑A da directiva tem a seguinte redacção:

«Os Estados‑Membros assegurarão que as emissões não contenham qualquer incitamento ao ódio por razões de raça, sexo, religião ou nacionalidade.»

 Legislação nacional

9        O § 9 da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha (Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland, a seguir «Lei Fundamental») garante, no seu n.° 1, a liberdade de associação e define, no seu n.° 2, em que circunstâncias é proibida uma associação. Este último número tem a seguinte redacção:

«São proibidas as associações cujos fins ou actividades violem a lei penal, a ordem constitucional ou os princípios do entendimento entre os povos.»

10      A Lei das associações (Gesetz zur Regelung des öffentlichen Vereinsrechts, BGBl. I 1964, p. 593), de 5 de Agosto de 1964, conforme alterada pelo § 6 da Lei de 21 de Dezembro de 2007 (BGBl. I 2007, p. 3198, a seguir «Vereinsgesetz»), dispõe no seu § 1:

«1.      A constituição de associações é livre [...]

2.      As associações que abusarem da liberdade de associação não podem ser sujeitas a qualquer medida de preservação da segurança e da ordem públicas que não seja tomada nos termos da presente lei.»

11      No seu § 2, essa lei define da seguinte forma o conceito de associação:

«1.      Estão abrangidas pela presente lei todas as associações, independentemente da sua forma jurídica, às quais tenha aderido uma maioria de pessoas singulares ou colectivas a longo prazo, com um fim comum e sujeitas a um processo organizado de decisão.

2.      Não constituem associações na acepção da presente lei:

1.      Os partidos políticos [...]

2.      Os grupos políticos do Bundestag e dos parlamentos dos Länder,

3.      [...]»

12      O § 3 da dita lei rege nos seguintes termos as proibições que podem ser aplicadas às associações:

«1.      Uma associação só pode ser considerada proibida [...] se as autoridades competentes para o efeito tiverem determinado por decreto que os seus fins ou actividades violam a lei penal, a ordem constitucional ou os princípios do entendimento entre os povos; o decreto deve ordenar a dissolução da associação [...] Em princípio, a proibição implica a apreensão e a perda a favor do Estado:

1.      do património da associação,

2.      dos créditos sobre terceiros [...] e

3.      de bens de terceiros se o titular tiver deliberadamente favorecido os fins anticonstitucionais da associação entregando‑lhe os bens ou se os bens forem destinados a favorecer esses fins,

[...]

3.      Salvo limitação expressa, a proibição aplica‑se a todas as organizações integradas na associação a ponto de surgirem como secções suas em face do conjunto de relações efectivamente existentes (suborganizações). A proibição só é extensiva às suborganizações não territoriais com personalidade jurídica própria se forem expressamente indicadas no decreto de proibição.

[…]

5.      As autoridades competentes para decretar uma proibição podem também baseá‑la em actos de membros da associação se:

1.      existir uma ligação com a actividade na associação ou com o seu objecto,

2.      os actos procederem de uma decisão concertada e

3.      as circunstâncias permitirem considerar que são tolerados pela associação.»

13      O § 14 da Vereinsgesetz prevê:

«1.      As associações cujos membros ou dirigentes sejam na totalidade ou em grande maioria cidadãos estrangeiros podem ser proibidas […] sem prejuízo do n.° 2. As associações cujos membros ou dirigentes sejam na totalidade ou em grande maioria cidadãos de um Estado‑Membro da União Europeia não são consideradas associações de cidadãos estrangeiros. […]»

14      O § 15 da Vereinsgesetz tem a seguinte redacção:

«1.      O § 14 é aplicável por analogia às associações com sede no estrangeiro (associações estrangeiras) cuja organização ou actividade esteja abrangida pelo âmbito de aplicação territorial da presente lei. A responsabilidade da proibição pertence ao Ministro federal do Interior.

[...]»

15      O § 18 da Vereinsgesetz dispõe o seguinte:

«As proibições que abrangem associações com sede fora do âmbito de aplicação geográfica da presente lei, mas nele têm suborganizações, apenas abrangem as suborganizações neste âmbito de aplicação. Caso a associação não disponha de uma organização no âmbito de aplicação geográfica desta lei, a proibição abrange […] a sua actividade neste âmbito de aplicação.»

 Litígios nos processos principais e questão prejudicial

16      A Mesopotamia Broadcast, uma sociedade holding de direito dinamarquês com sede na Dinamarca, é titular de várias licenças de televisão dinamarquesas. Explora, nomeadamente, o canal de televisão Roj TV que é igualmente uma sociedade dinamarquesa. Este difunde por satélite essencialmente programas em língua curda para toda a Europa e para o Próximo Oriente. Manda produzir emissões, entre outras, por uma sociedade estabelecida na Alemanha.

17      Em 2006 e 2007, entidades do Estado turco pediram a intervenção do comité dinamarquês da rádio e da televisão que garante, nesse Estado‑Membro, a aplicação da regulamentação nacional de transposição das disposições da directiva. Essas entidades acusavam a Roj TV de favorecer, nas suas emissões, os objectivos do «Partido do Trabalho do Curdistão» (a seguir «PKK»), qualificado de organização terrorista pela União Europeia.

18      O comité dinamarquês da rádio e da televisão decidiu sobre essas denúncias por decisões de 3 de Maio de 2007 e 23 de Abril de 2008. Considerou que a Roj TV não tinha violado a regulamentação dinamarquesa de transposição dos artigos 22.° e 22.°‑A da directiva. Referiu nomeadamente que os programas da Roj TV não incitavam ao ódio por razões de raça, sexo, religião ou nacionalidade. Considerou que os programas dessa sociedade se limitavam a transmitir informações e opiniões e que as imagens violentas difundidas reflectiam a violência existente na Turquia e nos territórios curdos.

19      Por decisão de 13 de Junho de 2008, dirigida à Mesopotamia Broadcast e à Roj TV, o Ministério federal do Interior alemão, considerando que a exploração do canal de televisão Roj TV pela Mesopotamia Broadcast colidia com a «ideia de entendimento entre os povos» na acepção da Vereinsgesetz, conjugada com a Lei Fundamental, proibiu a Mesopotamia Broadcast de exercer, por intermédio da Roj TV, qualquer actividade abrangida pelo âmbito de aplicação da Vereinsgesetz. Aplicou igualmente à Roj TV uma proibição de actividade.

20      Em 9 de Julho de 2008, a Mesopotamia Broadcast e a Roj TV recorreram para o Bundesverwaltungsgericht para efeitos de anulação desta decisão.

21      Nesse órgão jurisdicional, as recorrentes alegaram que as suas actividades no domínio da televisão transfronteiriça estavam abrangidas pelas disposições da directiva. Nos termos dessas disposições, só o Reino da Dinamarca, enquanto Estado‑Membro no qual estão estabelecidas a Mesopotamia Broadcast e a Roj TV, pode exercer um controlo sobre essas actividades. Qualquer outro controlo é proibido, em princípio. É certo que a directiva permite, por medidas excepcionais, proceder a um duplo controlo. Contudo, as condições de aplicação dessas medidas não estão preenchidas nos processos principais.

22      O Governo federal alemão alega, no Bundesverwaltungsgericht, que as actividades de radiodifusão televisiva da Mesopotamia Broadcast e da Roj TV entram no âmbito de aplicação da Vereinsgesetz. Entende que, pelas suas actividades, essas duas sociedades promovem o PKK na Alemanha.

23      O Governo federal alemão alega ainda que o fundamento da proibição em causa nas lides principais, baseado na violação da «ideia de entendimento entre os povos», assenta no facto de os programas da Roj TV incitarem à solução das divergências entre curdos e turcos pela violência, incluindo na Alemanha, e apoiarem os esforços do PKK para o recrutamento dos jovens curdos na guerrilha contra a República da Turquia.

24      Além disso, o Governo federal alemão salienta que as disposições da directiva não visam as regras gerais dos Estados‑Membros em matéria penal ou de polícia nem o domínio do direito das associações, mesmo se essas regras forem susceptíveis de produzir efeitos nas actividades de radiodifusão televisiva.

25      O Bundesverwaltungsgericht, depois de ter decidido visionar uma selecção de sequências do programa televisivo da Roj TV, considerou que esse programa toma manifestamente partido pelo PKK, cuja abordagem militarista e violenta repercute muito amplamente, com o consentimento dos dirigentes da Mesopotamia Broadcast. Entende que essa sociedade faz a apologia, através do seu canal Roj TV, da luta armada levada a cabo pelo PKK. Esse canal não relata o conflito de forma neutra, antes apoia o recurso do PKK a unidades de guerrilha e a atentados, adoptando o seu ponto de vista e propagando um culto de heróis e mártires relativamente aos combatentes caídos. A Mesopotamia Broadcast e a Roj TV contribuem assim para incitar aos confrontos violentos entre as pessoas de etnia turca e curda na Turquia e para exacerbar as tensões entre os turcos e os curdos que vivem na Alemanha.

26      O Bundesverwaltungsgericht considerou que a proibição em causa nos processos principais se podia basear no fundamento relativo à violação do entendimento entre os povos na acepção do § 3, n.° 1, da Vereinsgesetz, conjugado com o § 9, n.° 2, da Lei Fundamental. Esse órgão jurisdicional interroga‑se, por isso, sobre a questão de saber se e, eventualmente, em que condições a aplicação desse fundamento de proibição faz parte dos domínios coordenados pela directiva.

27      Nestas condições, o Bundesverwaltungsgericht decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial, idêntica nos processos C‑244/10 e C‑245/10:

«[A] aplicação de uma norma de direito nacional relativa à proibição de uma associação por violação da ideia de entendimento entre os povos está abrangida [e, eventualmente, em que condições] pelo domínio coordenado pela [directiva] e [...], por conseguinte, está excluída por força do [seu] artigo 2.°‑A[?]».

 Quanto à questão prejudicial

28      Com a sua questão, o Bundesverwaltungsgericht pergunta, no essencial, se o artigo 22.°‑A da directiva deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado‑Membro, aplicando uma lei geral como a Vereinsgesetz, conjugada com a Lei Fundamental, aplique medidas a um organismo de radiodifusão televisiva estabelecido noutro Estado‑Membro pelo facto de as actividades e os objectivos desse organismo infringirem a proibição de violação do entendimento entre os povos.

 Observações preliminares

29      Resulta do seu título que a directiva visa a coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas ao exercício de actividades de radiodifusão televisiva com vista à supressão dos entraves à livre difusão na União.

30      De acordo com o primeiro considerando da Directiva 97/36, a Directiva 89/552 constitui o enquadramento legal da actividade de radiodifusão no mercado interno, enquadramento esse, que, de acordo com o quarto considerando desta primeira directiva, deve contribuir para garantir a livre circulação desses serviços na União.

31      Além disso, resulta do nono e décimo considerandos da Directiva 89/552 que os entraves que o legislador da União pretendeu eliminar são os que resultam das disparidades existentes entre as disposições dos Estados‑Membros no que respeita ao exercício da actividade de difusão e de distribuição de programas de televisão.

32      Daqui resulta que os domínios coordenados pela directiva apenas o são no que respeita à radiodifusão televisiva propriamente dita, tal como se encontra definida no artigo 1.°, alínea a) (v. acórdão de 9 de Julho de 1997, De Agostini e TV‑Shop, C‑34/95 a C‑36/95, Colect., p. I‑3843, n.° 26).

33      Por último, resulta do oitavo considerando da Directiva 89/552 que o direito aplicado à difusão e à distribuição de serviços de televisão constitui uma manifestação específica de um princípio mais geral, a saber, a liberdade de expressão, tal como está consagrada no n.° 1 do artigo 10.° da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma, em 4 de Novembro de 1950. Por outro lado, resulta da redacção do décimo quinto considerando da Directiva 97/36 que, nos termos do artigo F, n.° 2, do Tratado UE (actual artigo 6.°, n.° 2, UE), a União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, devendo qualquer medida que se destine a restringir a recepção e/ou a suspender a retransmissão de emissões televisivas ser compatível com esses princípios.

34      Por último, há também que recordar que a directiva não procede a uma harmonização completa das normas relativas aos domínios que abrange e aprova normas mínimas para as emissões com origem na União e destinadas a ser captadas no seu interior (v. acórdão de 5 de Março de 2009, UTECA, C‑222/07, Colect., p. I‑1407, n.° 19 e jurisprudência aí referida).

35      A directiva consagra, portanto, o princípio do reconhecimento, pelo Estado‑Membro de recepção, da função de fiscalização do Estado‑Membro de origem das emissões televisivas dos organismos de radiodifusão abrangidos pela sua competência. Com efeito, o artigo 2.°‑A, n.° 1, da directiva dispõe que os Estados‑Membros garantem a liberdade de recepção e não podem entravar a retransmissão no seu território de emissões televisivas provenientes de outros Estados‑Membros por razões abrangidas pelos domínios coordenados pela directiva.

36      A este respeito, o Tribunal de Justiça já realçou que a fiscalização da aplicação do direito do Estado‑Membro de origem aplicável às emissões de radiodifusão televisiva e do respeito das disposições da directiva cabe unicamente ao Estado‑Membro do qual provêm as emissões e que o Estado‑Membro de recepção não pode exercer a sua própria fiscalização por razões abrangidas pelos domínios coordenados pela directiva (v., neste sentido, acórdãos de 10 de Setembro de 1996, Comissão/Bélgica, C‑11/95, Colect., p. I‑4115, n.os 34 e 86, e De Agostini e TV‑Shop, já referido, n.° 27).

37      Contudo, resulta do carácter não taxativo da directiva quanto aos domínios de ordem pública, bons costumes ou segurança pública que um Estado‑Membro conserva a liberdade de aplicar às actividades levadas a cabo no seu território por organismos de radiodifusão normas geralmente aplicáveis nesses domínios, desde que não entravem a retransmissão propriamente dita no seu território das emissões televisivas provenientes de outro Estado‑Membro nem instituam um controlo prévio dessas emissões.

 Quanto à interpretação do artigo 22.°‑A da directiva

38      Tendo em conta a questão submetida ao Tribunal de Justiça, no caso, a questão de saber se o fundamento de proibição, baseado na violação do entendimento entre os povos, deve ser considerado incluído no conceito de «incitamento ao ódio por razões de raça, sexo, religião ou nacionalidade» na acepção da directiva e, consequentemente, faz parte dos domínios por ela coordenados, há que observar primeiro que a directiva não contém qualquer definição dos termos a que se refere no seu artigo 22.°‑A.

39      Além disso, e como refere o advogado‑geral no n.° 63 das suas conclusões, os trabalhos preparatórios das Directivas 89/552 e 97/36 não contêm indicações pertinentes quanto ao sentido e ao alcance do conceito de «incitamento ao ódio», e confirmam que o legislador da União quis prever, no artigo 22.°‑A da directiva, um fundamento de proibição baseado em considerações de ordem pública distinto dos que se destinam especificamente à protecção dos menores.

40      Daqui resulta que o alcance do artigo 22.°‑A da directiva deve ser determinado de acordo com o sentido habitual dos termos utilizados nesse artigo na linguagem corrente, não deixando de ter em conta o contexto em que são utilizados e os objectivos prosseguidos pela directiva (v. acórdão de 10 de Março de 2005, easyCar, C‑336/03, Colect., p. I‑1947, n.° 21 e jurisprudência aí referida).

41      No que respeita aos termos «incitamento» e «ódio», refira‑se que se dirigem, por um lado, a uma acção destinada a orientar um comportamento determinado e, por outro, a um sentimento de animosidade ou de rejeição contra um conjunto de pessoas.

42      Assim, a directiva, pela utilização do conceito de «incitamento ao ódio», tem por objectivo prevenir qualquer ideologia que desrespeite os valores humanos, nomeadamente iniciativas que façam a apologia da violência por actos terroristas contra determinada comunidade de pessoas.

43      Quanto ao conceito de violação do «entendimento entre os povos», como se referiu no n.° 25 do presente acórdão, a Mesopotamia Broadcast e a Roj TV contribuem, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, para incitar aos confrontos violentos entre as pessoas de etnia turca e curda na Turquia e para exacerbar as tensões entre os turcos e os curdos que vivem na Alemanha, assim ofendendo o entendimento entre os povos.

44      Por conseguinte, há que considerar que esse comportamento está coberto pelo conceito de «incitamento ao ódio».

45      Assim, e como salientou o advogado‑geral nos n.os 88 e 89 das suas conclusões, o respeito da regra de ordem pública referida no artigo 22.°‑A da directiva deve ser verificado pelas autoridades do Estado‑Membro com competência sobre o organismo de radiotelevisão em causa, independentemente da presença das comunidades étnicas ou culturais em causa no território desse Estado. Com efeito, a aplicação da proibição enunciada nesse artigo não depende dos efeitos potenciais da emissão em causa no Estado‑Membro de origem ou num Estado‑Membro em especial, mas apenas da reunião das duas condições previstas nessa disposição, a saber, o incitamento ao ódio e razões de raça, de sexo, de religião ou de nacionalidade.

46      Resulta, pois, do exposto que o artigo 22.°‑A da directiva deve ser interpretado no sentido de que factos como os que estão em causa nos litígios nos processos principais, que estejam abrangidos por uma norma de direito nacional que proíbe uma violação do entendimento entre os povos, devem ser considerados incluídos no conceito de «incitamento ao ódio por razões de raça, sexo, religião ou nacionalidade» que consta desse artigo.

 Quanto à decisão em causa nos processos principais tendo em conta o acórdão De Agostini e TV‑Shop

47      A fim de dar ao órgão jurisdicional de reenvio as condições de decidir as causas que lhe estão submetidas à luz da interpretação do artigo 22.°‑A da directiva acima exposta, há que mencionar o acórdão De Agostini e TV‑Shop, já referido, no que respeita à relação entre as disposições desta directiva relativas à publicidade televisiva e ao patrocínio e as normas nacionais que não visem especificamente a difusão e a distribuição de programas.

48      Com efeito, nos n.os 33 e 34 do dito acórdão, o Tribunal de Justiça realçou que, embora a directiva preveja que os Estados‑Membros devem garantir a liberdade de recepção e não devem colocar entraves à transmissão no seu território de emissões de radiodifusão televisiva provenientes de outros Estados‑Membros por razões atinentes à publicidade televisiva e ao patrocínio, não tem como efeito excluir completa e automaticamente a aplicação dessas regras. Assim, a directiva não se opõe, em princípio, à aplicação de uma regulamentação nacional que, de modo genérico, prossiga um objectivo de protecção dos consumidores sem contudo instituir um segundo controlo das emissões de radiodifusão televisiva que se acrescente àquele que o Estado‑Membro de transmissão tem de efectuar.

49      O Tribunal de Justiça, no n.° 38 do mesmo acórdão, precisou igualmente que a directiva não obsta a que, em aplicação de uma regulamentação geral relativa à protecção dos consumidores contra a publicidade enganosa, um Estado‑Membro tome medidas contra um anunciante devido a publicidade televisiva transmitida a partir de outro Estado‑Membro, desde que tais medidas não impeçam a transmissão propriamente dita no seu território das emissões de radiodifusão televisiva provenientes desse outro Estado‑Membro.

50      Este raciocínio é igualmente aplicável a regulamentações de um Estado‑Membro não especificamente relativas à difusão e distribuição de programas e que, de uma forma geral, prossigam um objectivo de ordem pública, sem, contudo, impedir a retransmissão propriamente dita no seu território das emissões de radiodifusão televisiva provenientes de outro Estado‑Membro.

51      A esse respeito, resulta dos autos enviados pelo órgão jurisdicional de reenvio ao Tribunal de Justiça e das explicações dadas pelo Governo alemão na discussão oral no Tribunal de Justiça que a Vereinsgesetz não se dirige especialmente aos organismos de radiodifusão televisiva nem à difusão ou à distribuição de programas de televisão enquanto tais, mas, de forma geral, às actividades das associações. Além disso, o dispositivo da decisão do Ministério federal do Interior de 13 de Junho de 2008, que se baseia nessa lei em conjugação com a Lei Fundamental, contém onze elementos. Em particular, resulta dessa decisão que a exploração do emissor televisivo Roj TV pela Mesopotamia Broadcast violava a ideia de entendimento entre os povos, que a Mesopotamia Broadcast já não podia agir no âmbito de aplicação territorial da Vereinsgesetz através do emissor da Roj TV, que a actividade deste violava a ideia de entendimento entre os povos, que o emissor televisivo Roj TV já não podia agir no âmbito de aplicação territorial da Vereinsgesetz e que esse emissor estava proibido no âmbito de aplicação territorial dessa lei.

52      O Governo alemão precisa nomeadamente, nas suas observações escritas e nas suas alegações no Tribunal de Justiça, que, embora, pela decisão do Ministério federal do Interior de 13 de Junho de 2008, todas as actividades do organismo de radiodifusão em causa nos processos principais estivessem proibidas na Alemanha, esse Estado‑Membro não teria a possibilidade de evitar as eventuais repercussões na Alemanha das emissões televisivas realizadas no estrangeiro. Assim, a recepção e o uso privado do programa da Roj TV não são proibidos e continuam efectivamente possíveis na prática. Em particular, esse Estado‑Membro indica que, se não proibir as retransmissões no seu território das emissões televisivas realizadas por esse organismo provenientes da Dinamarca, é ainda assim ilegal qualquer actividade organizada da Roj TV ou em seu benefício exercida no território da República Federal da Alemanha, devido à proibição de actividade decretada pela decisão do Ministério federal do Interior de 13 de Junho de 2008. São, portanto, proibidas na Alemanha a produção de emissões e a organização de manifestações que consistam em projecções de emissões da Roj TV em espaços públicos, nomeadamente em estádios, e ainda as actividades de apoio exercidas em território alemão.

53      As medidas como as mencionadas no número anterior não constituem, em princípio, um obstáculo à retransmissão propriamente dita, cabendo ao órgão jurisdicional de reenvio determinar os efeitos concretos que decorrem da decisão de proibição em causa nas lides principais para as emissões de radiodifusão televisiva realizadas pelas recorrentes nos processos principais a partir de outro Estado‑Membro, verificando se essa decisão não impede a retransmissão propriamente dita no território do Estado‑Membro de recepção dessas emissões.

54      Em face do exposto, há que responder à questão submetida que o artigo 22.°‑A da directiva deve ser interpretado no sentido de que factos como os que estão em causa nos litígios nos processos principais, que estejam abrangidos por uma norma de direito nacional que proíbe uma violação do entendimento entre os povos, devem ser considerados incluídos no conceito de «incitamento ao ódio por razões de raça, sexo, religião ou nacionalidade». Esse artigo não se opõe a que um Estado‑Membro, em aplicação de legislação geral, como a Vereinsgesetz, aplique medidas a um organismo de radiodifusão televisiva estabelecido noutro Estado‑Membro, pelo facto de as actividades e objectivos desse organismo infringirem a proibição de violação do entendimento entre os povos, desde que essas medidas não impeçam, o que deve ser verificado pelo juiz nacional, a retransmissão propriamente dita no território do Estado‑Membro de recepção das emissões de radiodifusão televisiva realizadas por esse organismo a partir do outro Estado‑Membro.

 Quanto às despesas

55      Revestindo o processo, quanto às partes nas causas principais, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

O artigo 22.°‑A da Directiva 89/552/CEE do Conselho, de 3 de Outubro de 1989, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados‑Membros relativas ao exercício de actividades de radiodifusão televisiva, conforme alterada pela Directiva 97/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de Junho de 1997, deve ser interpretado no sentido de que factos como os que estão em causa nos litígios nos processos principais, que estejam abrangidos por uma norma de direito nacional que proíbe uma violação do entendimento entre os povos, devem ser considerados incluídos no conceito de «incitamento ao ódio por razões de raça, sexo, religião ou nacionalidade». Esse artigo não se opõe a que um Estado‑Membro, em aplicação de legislação geral, como a Lei das associações (Gesetz zur Regelung des öffentlichen Vereinsrechts), de 5 de Agosto de 1964, conforme alterada pelo § 6 da Lei de 21 de Dezembro de 2007, aplique medidas a um organismo de radiodifusão televisiva estabelecido noutro Estado‑Membro, pelo facto de as actividades e objectivos desse organismo infringirem a proibição de violação do entendimento entre os povos, desde que essas medidas não impeçam, o que deve ser verificado pelo juiz nacional, a retransmissão propriamente dita no território do Estado‑Membro de recepção das emissões de radiodifusão televisiva realizadas por esse organismo a partir do outro Estado‑Membro.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.

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