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Document 62010CC0301

    Conclusões do advogado‑geral P. Mengozzi apresentadas em 26 de janeiro de 2012.
    Comissão Europeia contra Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte.
    Incumprimento de Estado ― Poluição e efeitos nocivos ― Tratamento das águas residuais urbanas ― Diretiva 91/271/CEE ― Artigos 3.°, 4.° e 10.° ― Anexo I, pontos A e B.
    Processo C‑301/10.

    Court reports – general

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2012:36

    CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

    PAOLO MENGOZZI

    apresentadas em 26 de janeiro de 2012 ( 1 )

    Processo C-301/10

    Comissão Europeia

    contra

    Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte

    «Diretiva 91/271/CEE — Redes coletoras — Tratamento das águas residuais urbanas — Conceitos de ‘funcionamento suficientemente eficaz’ e de ‘melhores conhecimentos técnicos que não acarretem custos excessivos’»

    1. 

    O presente processo tem origem numa ação intentada pela Comissão contra o Reino Unido, devido a uma alegada violação da Diretiva 91/271/CEE ( 2 ), relativa à recolha e tratamento de águas residuais urbanas (a seguir, também, «diretiva»). Esta ação faz parte de uma série de ações análogas, propostas pela Comissão contra vários Estados-Membros e relativas a diversas partes da diretiva; contudo, distingue-se da maior parte delas, por o cerne do litígio não dizer respeito à apreciação de circunstâncias de facto, mas à interpretação de alguns conceitos presentes no texto normativo, mas sem uma definição precisa. Como se verá, a determinação das obrigações que a diretiva impõe aos Estados-Membros e, em consequência, a procedência da ação da Comissão dependem do significado que deve ser atribuído a esses conceitos.

    I — Contexto normativo

    2.

    As normas da diretiva relevantes no presente processo são, em especial, os seus artigos 3.°, 4.° e 10.°, bem como o seu anexo I.

    3.

    O artigo 3.o estabelece o princípio geral segundo o qual os Estados-Membros devem garantir que todas as aglomerações acima de uma determinada dimensão mínima ( 3 ) disponham de sistemas coletores. No que diz respeito às localidades em causa na presente ação, a data-limite prevista na diretiva para dar cumprimento ao artigo 3.o era 31 de dezembro de 2000.

    4.

    O artigo 4.o prevê, em condições e prazos em boa parte análogos aos do artigo 3.o, a obrigação de «as águas residuais urbanas lançadas nos sistemas coletores se[rem] sujeitas, antes da descarga, a um tratamento secundário ou processo equivalente».

    5.

    Não é contestado o facto de todas as localidades objeto da presente ação estarem sujeitas às obrigações tanto do artigo 3.o como do artigo 4.o

    6.

    O artigo 10.o descreve as características que as estações de tratamento previstas no artigo 4.o devem possuir e está redigido nos seguintes termos:

    «Os Estados-Membros devem garantir que as estações de tratamento de águas residuais urbanas a instalar para cumprimento das exigências previstas nos artigos 4.°, 5.°, 6.° e 7.° sejam concebidas, construídas, exploradas e mantidas de forma a garantir um funcionamento suficientemente eficaz em todas as condições climáticas locais normais. Na conceção das estações de tratamento devem ser tomadas em consideração as variações sazonais de carga.»

    7.

    O anexo I da diretiva contém algumas indicações técnicas suplementares. Em particular, o seu ponto A é dedicado aos sistemas coletores e prevê o seguinte:

    «Os sistemas coletores devem ter em conta os requisitos de tratamento das águas residuais urbanas.

    A conceção, construção e manutenção dos sistemas coletores deve obedecer aos melhores conhecimentos técnicos que não acarretem custos excessivos, nomeadamente quanto:

    ao volume e características das águas residuais urbanas,

    à prevenção de fugas,

    à limitação da poluição das águas recetoras, no caso de inundações provocadas por tempestades.»

    8.

    O ponto A acima referido vem, além disso, acompanhado de uma nota com o seguinte teor:

    «Visto não ser possível, na prática, construir sistemas coletores e estações de tratamento capazes de tratar todas as águas residuais em situações como, por exemplo, queda de chuvas torrenciais excecionais, os Estados-Membros tomarão uma decisão relativamente às medidas destinadas a limitar a poluição resultante de inundações provocadas por tempestades. Essas medidas poderão basear-se em taxas de diluição, na capacidade relativamente ao débito em tempo seco ou especificar um determinado número de inundações admissíveis por ano.»

    9.

    A mesma nota é aplicável também ao ponto B do anexo, que indica alguns requisitos que as estações de tratamento devem necessariamente possuir.

    II — Matéria de facto e procedimento pré-contencioso

    10.

    A ação da Comissão diz respeito a quatro localidades: Whitburn, Beckton, Crossness e Mogden.

    11.

    A primeira (Whitburn) situa-se no nordeste de Inglaterra. Em relação a esta, a Comissão alega unicamente uma violação do artigo 3.o da diretiva, relativo aos sistemas coletores.

    12.

    As outras três localidades, em contrapartida, estão situadas na região de Londres e integram o sistema de recolha e tratamento das águas residuais da capital. No caso de Beckton e de Crossness, a Comissão alega uma violação tanto do artigo 3.o, em matéria de sistemas coletores, como dos artigos 4.° e 10.°, relativos às estações de tratamento. Quanto a Mogden, pelo contrário, é alegada unicamente uma violação dos artigos 4.° e 10.°

    13.

    A fase pré-contenciosa relativa à presente ação foi particularmente longa e complexa e não é necessário descrevê-la em pormenor. Em síntese, esta pode ser resumida nos seguintes termos.

    14.

    Em 3 de abril de 2003, a Comissão, agindo com base numa denúncia recebida ainda no decurso do ano 2000, e na sequência de debates infrutíferos com as autoridades britânicas, enviou ao Reino Unido uma primeira notificação para cumprir, relativa à situação de Whitburn.

    15.

    Posteriormente, tendo recebido denúncias relativas a descargas de esgotos escoadas em grandes quantidades para o Tamisa, em 2004-2005, a Comissão contactou as autoridades britânicas a esse respeito e, em 21 de março de 2005, enviou uma notificação para cumprir, relativa à situação da região de Londres.

    16.

    Em 10 de abril de 2006, a Comissão, não satisfeita com as respostas dadas pelas autoridades do Reino Unido, emitiu um primeiro parecer fundamentado, em que alegava, relativamente a Whitburn, uma violação do artigo 3.o e do anexo I da diretiva e, relativamente a Londres, uma violação dos artigos 3.°, 4.° e 10.°, bem como do anexo I.

    17.

    Com base nas informações posteriormente recebidas das autoridades britânicas, a Comissão emitiu, em 1 de dezembro de 2008, um parecer fundamentado complementar, no qual, em especial, reduziu o objeto das acusações no que diz respeito à região de Londres, limitando-o às áreas de Beckton, Crossness e Mogden.

    18.

    Posteriormente, houve mais troca de correspondência e debates entre a Comissão e as autoridades do Reino Unido, sem, contudo, se chegar a uma solução. Não estando, portanto, satisfeita com as respostas fornecidas pelo Reino Unido aos pareceres fundamentados, a Comissão propôs a presente ação.

    III — Tramitação processual no Tribunal de Justiça e pedidos das partes

    19.

    A ação deu entrada na Secretaria em 16 de junho de 2010. Após as habituais trocas de articulados, as partes foram ouvidas na audiência de 10 de novembro de 2011.

    20.

    A Comissão conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

    declarar que, não tendo garantido a instalação de sistemas coletores adequados, nos termos do artigo 3.o, n.os 1 e 2, e do anexo I, A, da diretiva, nos sistemas coletores de Whitburn, bem como nos setores londrinos de Beckton e de Crossness, nem tendo assegurado um tratamento apropriado das águas residuais procedentes das estações de tratamento de águas residuais urbanas de Beckton, Crossness e Mogden, em conformidade com os artigos 4.°, n.os 1 e 3, e 10.°, bem como com o anexo I, B, da diretiva, o Reino Unido não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dessas disposições;

    condenar o Reino Unido nas despesas.

    21.

    O Reino Unido conclui pedindo que o Tribunal de Justiça se digne:

    julgar improcedente a ação;

    condenar a Comissão nas despesas.

    IV — Quanto ao incumprimento

    A — Considerações preliminares

    22.

    Como já acima observei e como as próprias partes sublinharam por diversas vezes, os factos que deram origem ao processo são quase inteiramente pacíficos, à exceção de alguns aspetos secundários. O núcleo do litígio é, portanto, essencialmente jurídico e gira em torno da necessidade de definir alguns conceitos-chave presentes na diretiva.

    23.

    O que a Comissão critica ao Reino Unido é a descarga, nas quatro localidades em causa, de uma quantidade excessiva de águas residuais, sem terem sido objeto de tratamento prévio. Em particular, na origem desta situação está um uso excessivo, no entender da Comissão, dos chamados «descarregadores de tempestade» (em inglês «combined sewer overflows», a seguir «CSO»). Trata-se de dispositivos que permitem escoar diretamente para o ambiente (habitualmente, para o mar ou para um rio), quando um sistema coletor está sobrecarregado, águas que não foram previamente tratadas.

    24.

    Como o seu próprio nome indica, os CSO são uma componente essencial, em especial, dos chamados «sistemas mistos», nos quais um único sistema coletor recolhe quer as águas residuais domésticas e/ou industriais, produzidas pelas residências privadas e pelas atividades industriais, quer as águas pluviais, originadas pelas precipitações atmosféricas. Como facilmente se percebe, um sistema coletor deste tipo está particularmente sujeito a variações de carga, em consequência das precipitações: nos períodos de pluviosidade, de facto, a quantidade de águas que passam no sistema coletor aumenta consideravelmente. Muitas vezes, os sistemas coletores de construção recente recolhem separadamente as águas pluviais, mas, no caso das instalações mistas já existentes, é frequentemente impossível uma alteração nesse sentido, uma vez que exige obras de adaptação complexas e a custos proibitivos. A maior parte dos sistemas coletores em causa no presente processo é de tipo misto.

    B — Quanto à interpretação da diretiva

    25.

    Antes de passar ao exame de cada tipo de incumprimento alegado pela Comissão, é necessário examinar alguns aspetos fundamentais da diretiva.

    26.

    Antes de mais, deve recordar-se que, como o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de indicar, o objetivo da diretiva é amplo: não está limitada à proteção dos ecossistemas aquáticos, mas visa proteger, em geral, «o homem, a fauna, a flora, o solo, a água, o ar e a paisagem» de influências negativas. A interpretação do texto normativo deve ter, portanto, sempre presente este seu amplo objetivo ( 4 ).

    27.

    Em alguns domínios, a diretiva impõe aos Estados-Membros obrigações numericamente determinadas, cujo cumprimento pode ser verificado com relativa facilidade: pense-se, por exemplo, na definição de «tratamento primário», no n.o 7 do artigo 2.o, ou nos requisitos previstos no quadro 1 do anexo I, para as estações de tratamento.

    28.

    Sob outros aspetos, pelo contrário, as disposições da diretiva não apresentam referências numérico-quantitativas precisas, sendo suscetíveis, portanto, de interpretações divergentes; compete, em última análise, aos órgãos jurisdicionais da União indicar qual dessas interpretações é a correta. Como é fácil de perceber, no presente caso, estamos, exatamente, perante uma situação deste segundo tipo. Naturalmente, o Tribunal de Justiça não pode criar arbitrariamente referências numéricas que o legislador quis evitar. O que pode fazer, no entanto, é fornecer definições que, precisando, dentro do possível, o que o texto normativo prevê, constituam indicações interpretativas razoáveis.

    29.

    A este propósito, devo observar, aliás, que, no domínio objeto do presente processo, a inexistência de pontos de referência precisos é particularmente problemática. Não só a diretiva contém alguns conceitos genéricos e imprecisos, para mais, em domínios muito técnicos, como a própria Comissão não elaborou orientações a este respeito, ainda que unilaterais, que permitam apreender com clareza a interpretação que os seus serviços dão às normas. Em minha opinião, seria bastante oportuna uma intervenção esclarecedora nesse sentido, se não do legislador, pelo menos da Comissão, através da elaboração e da publicação de elementos de interpretação adequados.

    30.

    Dito isto, passarei a expor agora os principais conceitos que deverão ser interpretados no presente processo.

    1. «Funcionamento suficientemente eficaz» das estações de tratamento

    31.

    O conceito de «funcionamento suficientemente eficaz» consta do artigo 10.o da diretiva e refere-se unicamente às estações de tratamento, não aos sistemas coletores. Trata-se de um conceito que esteve presente desde a primeira proposta de diretiva, apresentada pela Comissão em 1989 ( 5 ), e que permaneceu essencialmente inalterado até ao texto definitivo. Mais precisamente, como se viu quando acima se referiu o texto do artigo 10.o, a diretiva fala de «funcionamento suficientemente eficaz em todas as condições climáticas locais normais».

    32.

    É, em meu entender, indiscutível que a norma acima referida deve ser interpretada no sentido de impor que, em geral, as estações de tratamento sejam capazes de tratar a totalidade das águas residuais produzidas, em condições normais, numa determinada localidade. Isto foi confirmado também pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. O Tribunal de Justiça declarou a existência de incumprimento em casos em que a recolha e/ou o tratamento abrangiam 80% ou 90% das águas residuais produzidas numa aglomeração ( 6 ). Uma abordagem rigorosa deste tipo é, de resto, coerente com o objetivo particularmente amplo da diretiva, que acima recordei. Além disso, como a própria norma indica, na conceção das estações de tratamento, devem ser tomadas em consideração as variações sazonais. Noutros termos, as variações climáticas sazonais que são previsíveis não justificam a falta de tratamento das águas residuais. O facto de a diretiva falar de variações «sazonais» implica que se trata, em princípio, de variações regulares, que se repetem ciclicamente, todos os anos. Pelo contrário, uma variação de carga totalmente irregular e imprevisível pode, nos termos do artigo 10.o, justificar uma falta de tratamento.

    33.

    As observações feitas no número anterior não devem, todavia, ser interpretadas de modo excessivamente rígido, concluindo que uma falta de tratamento das águas residuais apenas pode ser justificada em caso de acontecimentos que se produzem, em média, menos de uma vez por ano (em relação aos quais, como é evidente, já não se pode falar de caráter «sazonal»). O artigo 10.o deve, na verdade, ser conjugado com a nota 1 do anexo I, que examinarei em breve, a qual permite que os Estados-Membros possam fixar um número máximo anual aceitável de inundações.

    34.

    Noutros termos, de acordo com o artigo 10.o da diretiva, o não tratamento das águas residuais é apenas admissível em presença de condições fora do comum. Não é possível definir com mais precisão tal situação, uma vez que o legislador evitou intencionalmente clarificá-la em termos numericamente mais precisos. O que é, contudo, indiscutível é que estações de tratamento concebidas para libertar regularmente no ambiente águas residuais não tratadas são incompatíveis com a diretiva.

    35.

    Neste contexto, dada a existência de uma obrigação de princípio clara e a falta de uma quantificação exata das possíveis exceções a essa obrigação, na minha opinião, é totalmente legítimo que a Comissão, no exercício das suas funções de fiscalização do cumprimento do direito da União, adote orientações internas que traduzam as indicações do legislador em números determinados e verificáveis, com base nos quais ela possa avaliar, em cada caso concreto, a oportunidade de intentar uma ação por incumprimento contra um Estado. É evidente que, em cada caso, a avaliação final compete ao Tribunal de Justiça, na sua qualidade de juiz do incumprimento: nesta sede, todas as circunstâncias de uma situação específica podem e devem ser tomadas em consideração.

    36.

    O problema do presente processo, como já assinalei antes, está, todavia, em a Comissão não só não ter dado a conhecer nenhuma indicação nesse sentido como também não parecer ter, internamente, uma prática bem definida a esse respeito. O que, como é evidente, torna mais difícil quer a tarefa da Comissão quer a do órgão jurisdicional da União.

    2. «Queda de chuvas torrenciais excecionais» e «tempestades»

    37.

    Estes dois conceitos são utilizados pelo legislador no anexo I da diretiva, em particular na nota 1 do mesmo. É oportuno referir aqui, a seguir, uma vez mais, parte do texto dessa nota (o sublinhado é meu):

    «Visto não ser possível, na prática, construir sistemas coletores e estações de tratamento capazes de tratar todas as águas residuais em situações como, por exemplo, queda de chuvas torrenciais excecionais, os Estados-Membros tomarão uma decisão relativamente às medidas destinadas a limitar a poluição resultante de inundações provocadas por tempestades.»

    38.

    Antes de mais, deve observar-se que os dois conceitos são relevantes tanto para os sistemas coletores como para as estações de tratamento. Em ambos os casos, o legislador tomou, aqui, em consideração a circunstância de poder ser concretamente impossível realizar sistemas perfeitos, capazes de canalizar e de tratar todas as águas residuais sem exceção. Em consequência, os Estados-Membros são chamados a prever modos de limitar os danos que, inevitavelmente, se produzem nos casos em que nem todas as águas residuais são recolhidas e/ou tratadas.

    39.

    Nas suas observações, o Reino Unido sustentou que as situações em que a diretiva admite que as águas residuais possam não ser captadas ou tratadas não são apenas situações de tipo excecional: a nota 1 do anexo I tem caráter exemplificativo e não impede que os Estados-Membros, também com base numa avaliação da relação custo/benefício, permitam tais possibilidades, mesmo fora de circunstâncias excecionais. Em contrapartida, segundo a Comissão, a falta de recolha ou de tratamento das águas apenas poderia ser admitida de forma absolutamente extraordinária, na presença de situações excecionais.

    40.

    Embora o texto a interpretar não seja absolutamente claro, considero que a posição da Comissão está correta e que a referida nota 1, longe de apoiar a interpretação proposta pelo Reino Unido, deve ser entendida no sentido de que a não recolha ou o não tratamento das águas nunca podem ser consideradas situações «comuns» e compatíveis com a diretiva, a não ser em circunstâncias excecionais.

    41.

    É verdade que a diretiva, nas diversas versões linguísticas, indica a situação de «queda de chuvas torrenciais excecionais» a título exemplificativo («em situações como, por exemplo»). Portanto, admite implicitamente que também em outras situações possa ser admissível uma falta de recolha ou de tratamento das águas. Porém, não indica quais são essas outras situações.

    42.

    Ao contrário do Reino Unido, considero que se deve tratar, em todo o caso, de situações caracterizadas, dentro da sua variedade possível, por uma natureza excecional. Não se pode admitir de modo algum que o escoamento, para o ambiente, de águas residuais não tratadas possa ocorrer em situações «comuns». Nesse sentido, apresento, em especial, os seguintes argumentos.

    43.

    Em primeiro lugar, a nota 1 deve ser lida à luz do objetivo geral da diretiva, que é o de garantir um elevado nível de proteção do ambiente. Seria absurdo admitir que águas residuais não tratadas possam ser descarregadas regularmente no ambiente, fora de circunstâncias excecionais, simplesmente porque um sistema coletor ou uma estação de tratamento foram concebidos com uma capacidade reduzida.

    44.

    Em segundo lugar, o facto de a queda de chuvas torrenciais excecionais ser apenas uma das situações em que são admitidas exceções ao princípio da recolha/tratamento integral não significa que, nas outras hipóteses em que isso pode ser admitido, não deva, de qualquer modo, persistir o caráter excecional. Pelo contrário, esse caráter é imposto pelo contexto e pelo objetivo da norma.

    45.

    Em terceiro lugar, a passagem a interpretar prossegue indicando que os Estados-Membros devem prever medidas destinadas a limitar a poluição resultante de «inundações provocadas por tempestades». Ainda que o Reino Unido sustente que esta expressão deve ser compreendida como se referindo a qualquer tipo de inundação, a leitura da diretiva mostra que essa não era a vontade do legislador. Embora algumas versões linguísticas desta última frase sejam mais neutras e façam referência, em geral, às inundações provocadas pelas chuvas ( 7 ), isso não acontece na maior parte das outras versões, e a natureza excecional da causa das inundações é posta em evidência ( 8 ). Dado, portanto, por adquirido que a obrigação de limitar os danos ambientais das inundações diz respeito apenas às relacionadas com circunstâncias excecionais, se fosse admissível que os Estados, em geral, efetuassem descargas de águas não tratadas, mesmo em condições «comuns», estaríamos numa situação em que a diretiva imporia a limitação dos danos causados por inundações relacionadas com circunstâncias excecionais, mas não a dos causados por inundações desprovidas de tal justificação. Tratar-se-ia de uma situação absurda e certamente contrária ao objetivo da diretiva. É, por isso, evidente que a ideia subjacente à nota 1 é a de que apenas em circunstâncias excecionais é que as águas residuais podem ser escoadas para o ambiente, sem terem sido previamente recolhidas e tratadas.

    46.

    Observo, aliás, que, tanto quanto sei, há pelo menos uma versão linguística que corrobora o raciocínio que acabo de desenvolver ( 9 ): refiro-me à versão alemã, que afirma que a impossibilidade de recolher e tratar as águas se verifica em «situações extremas, como, por exemplo, queda de chuvas torrenciais excecionais» ( 10 ). A inserção do adjetivo «extremas» confirma que, dentro da sua variedade possível, as situações admissíveis nos termos da nota 1 devem, porém, ser de natureza excecional.

    47.

    Esclarecido este ponto, restam, no entanto, duas questões. Em primeiro lugar, quando pode ser considerado que se está na presença de «queda de chuvas torrenciais excecionais»? Em segundo lugar, que outros casos de situações excecionais, além dos eventos atmosféricos, podem justificar a falta de recolha ou de tratamento das águas?

    48.

    Quanto à primeira questão, apenas posso repetir aqui, como acima fiz, a constatação óbvia de que o Tribunal de Justiça não pode fixar valores numéricos que o legislador considerou conveniente não determinar. Na mesma ótica, é perfeitamente razoável que seja a Comissão a elaborar orientações de tipo quantitativo em que baseie a sua própria ação de fiscalização: o Tribunal de Justiça continua, naturalmente, a ser o juiz de última instância da razoabilidade dessas orientações. No nosso caso, no entanto, não parece que a Comissão tenha estabelecido orientações perfeitamente claras. Por várias vezes, tanto na fase pré-contenciosa como no decurso do processo no Tribunal de Justiça, a Comissão indicou, todavia, que, em geral, a ultrapassagem do limite de 20 descargas por ano constituía um sinal de alarme da existência de um possível incumprimento. Tal referência numérica, apesar de todas as suas limitações e sem prejuízo da obrigação de uma avaliação caso a caso, pode ser razoável e aceitável, sendo o resultado de uma reflexão baseada numa comparação das práticas existentes em vários Estados-Membros.

    49.

    O problema, contudo, reside no facto de que a própria Comissão não parece muito segura do papel a atribuir ao limite das 20 descargas. Não só nunca forneceu uma indicação oficial nesse sentido como também, no presente processo, pareceu vacilar, até ao fim, entre uma conceção desse limite como limiar a nunca ultrapassar, por princípio, salvo circunstâncias excecionais, e uma conceção muito menos estrita, segundo a qual seria apenas uma indicação desprovida de efeitos imediatos.

    50.

    A consequência é que, embora, por um lado, não se possa censurar o Reino Unido por ter desenvolvido grande parte do seu raciocínio com base na regra das 20 descargas, a única indicada com uma certa clareza pela Comissão na fase pré-contenciosa e, em especial, no seu parecer fundamentado complementar, por outro lado, o Tribunal de Justiça é obrigado a avaliar o alegado incumprimento, diretamente, à luz da diretiva e das suas indicações genéricas. A posição da Comissão é demasiado vaga, para que se possa considerar que intentou a sua ação com base numa prática interna bem definida, baseada na regra das 20 descargas, regra essa que, nesse caso, se tornaria, ela própria, objeto de apreciação pelo Tribunal de Justiça.

    51.

    Em qualquer caso, penso que uma interpretação mais precisa do conceito de «queda de chuvas torrenciais excecionais» deve necessariamente passar pelo conceito que examinarei a seguir, ou seja, o de «melhores conhecimentos técnicos que não acarretem custos excessivos» (ou, usando a expressão inglesa, «best technical knowledge not entailing excessive costs», cujo acrónimo é BTKNEEC). Trata-se, evidentemente, de um conceito totalmente distinto, que se refere não a fenómenos atmosféricos mas a realizações humanas. Considero, no entanto, que, em concreto, a única maneira razoável de interpretar as obrigações da diretiva é desenvolver, em cada caso concreto, um exame global das circunstâncias, reunindo, numa única avaliação, a fiscalização da natureza extraordinária do acontecimento e o custo que seria necessário para realizar sistemas coletores e estações de tratamento suficientes para evitar, também naquele caso, qualquer inundação. Noutros termos, considero que o conceito de «queda de chuvas torrenciais excecionais» não é estático, mas pode variar também em função de parâmetros adicionais.

    52.

    Neste contexto, o conceito de BTKNEEC, embora formalmente se refira, no anexo I, apenas aos sistemas coletores, deve, no meu entender, ser tomado em consideração também no que diz respeito às estações de tratamento. Este conceito parece, na realidade, o mais adequado para garantir a prossecução dos ambiciosos objetivos da diretiva, sem perder de vista o realismo necessário relativamente às possibilidades económicas e técnicas.

    53.

    Finalmente, quanto à segunda questão, referente às outras possíveis situações excecionais além dos fenómenos meteorológicos, deve destacar-se, também aqui, a necessidade de deixar em aberto margens suficientemente amplas para tomar em consideração situações não só excecionais mas também imprevisíveis. Apenas a título de exemplo, poder-se-ia pensar em situações de corte geral de energia elétrica, que pudessem interromper o funcionamento das estações de tratamento, ou em catástrofes naturais que, embora não relacionadas com precipitações (por exemplo, terramotos), pudessem, no entanto, danificar ou deixar temporariamente inoperantes as estações de tratamento ou os sistemas coletores. Em tais casos, não há dúvida de que não estaríamos em presença de uma violação da diretiva. No entanto, também é verdade que, em tais casos, os Estados teriam a obrigação de adotar medidas para limitar a poluição, nos termos da nota 1 do anexo I, apesar de as águas descarregadas sem tratamento não serem necessariamente provenientes de precipitações. Qualquer interpretação diferente colidiria com a obrigação de garantir um efeito útil à diretiva e de respeitar os seus objetivos.

    3. «Melhores conhecimentos técnicos que não acarretem custos excessivos» (BTKNEEC)

    54.

    A definição do conceito de BTKNEEC é um dos aspetos do presente processo que as partes debateram durante mais tempo e mais intensamente, tanto nas observações escritas como na audiência. Trata-se de um conceito constante do ponto A do anexo I: refere-se, portanto, do ponto de vista formal, unicamente aos sistemas coletores, e não às estações de tratamento. No entanto, como procurei explicar nos números anteriores, considero que o conceito de BTKNEEC pode ser considerado um dos aspetos-chave da diretiva, útil para a interpretação de todas as suas disposições, incluindo as que se referem às estações de tratamento. Permite, na realidade, conciliar de modo adequado a necessidade de garantir o efeito útil da diretiva com a de não impor aos Estados obrigações impossíveis de realizar. Embora expresso em termos diferentes, o conceito de «funcionamento suficientemente eficaz» das estações de tratamento, previsto no artigo 10.o, corresponde à mesma lógica e pode, também ele, ser considerado uma expressão da cláusula BTKNEEC.

    55.

    Na interpretação do Reino Unido, o conceito de BTKNEEC é o eixo central de uma regra que, em linhas gerais, autoriza os Estados-Membros a decidir com uma ampla margem de discricionariedade, essencialmente com base numa avaliação da relação custo/benefício, qual deve ser o nível adequado de recolha e de tratamento das águas residuais. Em especial, no âmbito dessa avaliação, o Reino Unido considera essencial ter sempre em consideração o impacto das descargas de águas não tratadas nas águas recetoras: noutros termos, os princípios da diretiva seriam sempre respeitados, e não haveria infração, nos casos em que, embora as águas recolhidas e/ou tratadas fossem apenas uma parte das águas residuais produzidas, não se produzissem danos ambientais significativos como consequência das descargas.

    56.

    Na interpretação da Comissão, pelo contrário, o conceito de BTKNEEC teria como única consequência, na prática, reconhecer aos Estados-Membros liberdade de escolha entre os sistemas possíveis para alcançar um objetivo que, salvo casos excecionais, é imutável: o de garantir a recolha e o tratamento de 100% das águas residuais produzidas. Noutros termos, segundo a Comissão, a norma em questão significaria simplesmente que os Estados podem, entre as alternativas tecnicamente possíveis para obter o resultado necessário, escolher a menos onerosa.

    57.

    Parece-me, em conclusão, que quer a interpretação do Reino Unido quer a da Comissão devem ser rejeitadas. De facto, embora diferentes, ambas se caracterizam por uma leitura levada ao extremo da norma a interpretar. Por um lado, seguindo a posição defendida pelo Reino Unido, acabar-se-ia por reconhecer aos Estados-Membros uma margem de discricionariedade tão ampla que privaria — ou quase que privaria — de efeito útil a diretiva no seu conjunto, em especial quando impõe que os Estados-Membros dotem de sistemas coletores e de estações de tratamento todas as aglomerações acima de uma determinada dimensão mínima. Por outro lado, a interpretação da Comissão, apesar de estar provavelmente mais próxima do espírito da norma como pretendida pelo legislador, cria o risco de privar de efeito útil, se não a diretiva no seu conjunto, certamente a cláusula BTKNEEC ( 11 ). De facto, não é razoável considerar que, ao indicar explicitamente a necessidade de utilizar os melhores conhecimentos técnicos que não acarretem custos excessivos, o autor da diretiva tenha apenas reconhecido aos Estados-Membros a liberdade de escolher, de entre os possíveis sistemas técnicos para chegar a um único resultado final, o sistema menos oneroso. Pelo contrário, é evidente que, com esta cláusula, o legislador pretendeu atenuar os eventuais efeitos «excessivos» de uma aplicação demasiado rígida da diretiva e previu a possibilidade de, em certos casos, deverem ser aceites alguns efeitos negativos para o ambiente.

    58.

    Na minha opinião, a interpretação correta da cláusula BTKNEEC está a meio caminho entre as duas posições extremas que acabo de referir.

    59.

    Em especial, a cláusula BTKNEEC deve ser considerada uma espécie de «válvula de segurança» que permite evitar impor aos Estados-Membros obrigações irrealistas ou custos de realização totalmente desproporcionados. A este respeito, no entanto, convém esclarecer alguns pontos.

    60.

    Em primeiro lugar, a cláusula constitui um mecanismo de natureza excecional, que não pode ser usado para pôr em causa o princípio, afirmado na própria jurisprudência do Tribunal de Justiça, de que a recolha e o tratamento devem abranger, em geral, a totalidade das águas residuais. Essa natureza excecional é ainda mais de destacar à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual, precisamente com referência à Diretiva 91/271, o custo das obras necessárias à adaptação é, em si, irrelevante ( 12 ).

    61.

    Em segundo lugar, como é evidente, o recurso a essa cláusula não pode estar relacionado, em abstrato, com a ocorrência de algumas circunstâncias predeterminadas. Não se pode, pois, por exemplo, determinar, a priori, um nível de custos para além do qual a obrigação de recolher e tratar 100% das águas residuais se extingue automaticamente. Pelo contrário, a cláusula BTKNEEC exige, sempre e em qualquer caso, uma avaliação completa de todas as circunstâncias de cada caso concreto, às quais deve ser necessariamente adaptada.

    62.

    Em terceiro lugar, neste contexto, podem ser igualmente tomados em consideração, como o Reino Unido firmemente defendeu nas suas observações escritas e na audiência, os efeitos, no ambiente, das descargas de águas não tratadas. A natureza desproporcionada do custo de algumas obras, e, por isso, a falta de necessidade de as realizar em concreto, pode ser avaliada com maior segurança, ponderando também as consequências ambientais da referida não realização. É evidente que não realizar algumas obras, e, portanto, permitir algumas descargas de águas não tratadas no ambiente, poderá ser tanto mais aceitável quanto menores forem os danos potenciais que as águas não tratadas possam produzir.

    63.

    O facto de o critério dos efeitos nocivos das águas não tratadas no ambiente poder ser tomado em consideração não significa, no entanto, como sustenta o Reino Unido, que este seja o único critério em função do qual deve ser avaliada a conformidade com a diretiva. Como foi corretamente assinalado pela Comissão na audiência, a diretiva não indica limiares de poluição aceitáveis, mas prevê a obrigação fundamental de dotar as aglomerações urbanas de sistemas coletores e de estações de tratamento. Nos acórdãos recentes que atrás referi ( 13 ), uma vez constatado que a taxa de cobertura dos sistemas coletores de algumas aglomerações não atingia os 100%, o Tribunal de Justiça não foi verificar se isso produzia efeitos nocivos no ambiente; pelo contrário, declarou, automaticamente, a existência de uma infração por parte dos Estados-Membros em causa.

    64.

    Por conseguinte, não pode ser acolhido o argumento do Reino Unido segundo o qual o que importa é que, nas datas-limite fixadas na diretiva para a instalação dos sistemas coletores e das estações de tratamento, as aglomerações urbanas disponham desse equipamento, independentemente da sua capacidade de funcionamento. Levando este raciocínio até às últimas consequências, ter instalado um sistema capaz de tratar, por exemplo, apenas 50% das águas residuais de uma cidade seria suficiente para dar cumprimento à diretiva, e a melhoria do funcionamento para chegar aos 100% deixaria de ser objeto da obrigação legal de dar cumprimento à diretiva nos termos previstos, constituindo apenas uma melhoria do desempenho do sistema, para a qual não estaria previsto nenhum prazo e, em suma, não seria admissível nenhuma fiscalização. É evidente que tal interpretação não corresponde nem à vontade do legislador nem à jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria.

    65.

    Além disso, para efeitos de preservar o efeito útil da diretiva, é indispensável que, caso a recolha ou o tratamento de 100% das águas residuais — salvo, é claro, em caso de eventos excecionais, para os quais também a Comissão admite a possibilidade de não tratamento — sejam impossíveis ou particularmente difíceis, seja o Estado-Membro em causa a fornecer prova da aplicabilidade da cláusula BTKNEEC. Com efeito, em situações deste tipo, existe uma nítida desigualdade de informação entre o Estado-Membro e a Comissão: a Comissão não dispõe de instrumentos autónomos para avaliar a situação concreta e deve basear-se nas informações que lhe são fornecidas, em especial, pelo Estado-Membro em causa. Esta situação é, aliás, conforme com a jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual, embora, nos processos por incumprimento, o ónus da prova recaia sobre a Comissão, uma vez que esta tenha apresentado um princípio de demonstração dos factos nos quais funda a sua ação, cabe ao Estado-Membro, com base nas informações mais abundantes de que dispõe, fornecer prova pormenorizada de que, na realidade, a infração não existe ( 14 ).

    4. Resumo

    66.

    Retomando as observações desenvolvidas até agora a propósito do alcance geral das obrigações previstas na diretiva, deve considerar-se, portanto, que esta impõe que os Estados-Membros, em geral, dotem as aglomerações urbanas de sistemas coletores e de estações de tratamento que sejam capazes, salvo em circunstâncias excecionais, de assegurar a recolha e o tratamento de todas as águas residuais produzidas. A obrigação de recolha e de tratamento integral não abrange os casos em que aqueles sejam impossíveis do ponto de vista tecnológico ou exijam custos totalmente desproporcionados, também à luz do carácter limitado do impacto dos efeitos nocivos no ambiente.

    67.

    Em concreto, o que proponho é um controlo articulado em duas fases, tanto para os sistemas coletores como para as estações de tratamento. Numa primeira fase, há que verificar se as descargas podem ser consideradas um acontecimento excecional ou, melhor, uma componente não «comum» do funcionamento do sistema coletor ou da estação de tratamento. Numa segunda fase, se a primeira tiver demonstrado a natureza não excecional dos episódios de descarga de águas não tratadas para o ambiente, deve proceder-se à verificação com base na cláusula BTKNEEC. Nesta fase, o ónus da prova, que, na primeira fase, está repartido, como habitualmente, entre a Comissão e o Estado-Membro, recai inteiramente sobre este. Com efeito, cabe ao Estado demonstrar que atingir um melhor nível de recolha ou de tratamento das águas seria tecnologicamente impossível ou implicaria custos totalmente desproporcionados aos benefícios para o ambiente.

    68.

    Tendo sido esclarecidas, a título preliminar, as obrigações impostas aos Estados-Membros, podemos agora passar ao exame individual das acusações formuladas pela Comissão contra o Reino Unido.

    C — Quanto à situação de Whitburn

    1. Matéria de facto e posições das partes

    69.

    O incumprimento alegado pela Comissão no que concerne a Whitburn diz respeito, como se viu, apenas ao artigo 3.o da diretiva, relativo aos sistemas coletores. Não são alegadas, pelo contrário, a inexistência ou a insuficiência das estações de tratamento.

    70.

    Whitburn faz parte da aglomeração de Sunderland, que é servida por um único sistema coletor principal de tipo misto, no qual são lançadas tanto as águas residuais urbanas como as águas pluviais. Em condições normais, as águas do sistema coletor de Whitburn são transferidas, através de algumas estações de bombagem (Seaburn, Roker e, depois, St Peters), para a estação de tratamento de Hendon, que procede à depuração das águas provenientes de toda a aglomeração.

    71.

    Quando o volume de águas recolhidas no sistema coletor de Whitburn excede em 4,5 vezes o caudal em tempo seco ( 15 ), a água excedentária é desviada para um túnel coletor, com uma capacidade operacional de 7000 m3. Quando o volume de água presente no sistema coletor diminui, a água armazenada no túnel é bombeada novamente para o sistema coletor e conduzida para a estação de Hendon, para ser finalmente depurada. No entanto, se a capacidade operacional do túnel for ultrapassada, a água excedentária é descarregada diretamente no mar, sem nenhum outro tratamento para além de uma filtragem mecânica através de uma rede com uma malha de 6 mm. Essa descarga realiza-se através de um emissário submarino de 1,2 km de comprimento.

    72.

    No decurso dos anos anteriores à data fixada no parecer fundamentado (1 de fevereiro de 2009), as descargas de águas não tratadas em Whitburn foram as indicadas no seguinte quadro. Os dados foram fornecidos pela Comissão, mas não são contestados pelo Reino Unido.

    Ano

    Número de descargas

    Volume descarregado (m3)

    2005

    27 (1)

    542 070

    2006

    25

    248 130

    2007

    28

    478 620

    2008

    47

    732 150

    73.

    Segundo a Comissão, estes dados indicam uma quantidade excessiva de descargas de águas não tratadas no ambiente, incompatível com as obrigações impostas pela diretiva aos Estados-Membros.

    74.

    Para fundamentar a sua posição, a Comissão apoia-se em grande medida num relatório apresentado, em 25 de fevereiro de 2002, por um inspetor independente nomeado pelo Ministério do Ambiente do Reino Unido (a seguir «inspetor»), na sequência do pedido, feito pela sociedade que gere o sistema de Whitburn, de algumas alterações na sua licença de exploração do sistema. Esse relatório contém algumas observações muito críticas, relativas ao sistema coletor de Whitburn, considerado insuficiente para limitar, de forma adequada, as descargas de águas não tratadas no ambiente ( 16 ). Segundo o inspetor, a insuficiência do sistema coletor de Whitburn teria por consequência descargas frequentes de águas não tratadas, mesmo em períodos de precipitação moderada ou inexistente. Nos anos seguintes ao relatório do inspetor, não houve nenhuma modificação física do sistema coletor de Whitburn. A única alteração que ocorreu diz respeito às modalidades de gestão do túnel coletor das águas em caso de sobrecarga: graças a essas novas modalidades, os episódios de descarga tornaram-se mais raros, mas o volume de águas não tratadas escoadas para o ambiente manteve-se substancialmente o mesmo entre 2001 e 2008, oscilando entre um máximo de 732150 m3 (em 2008) e um mínimo de 248130 m3 (em 2006).

    75.

    A Comissão salienta que estas quantidades de águas não tratadas correspondem às de uma aglomeração com um número de habitantes que varia entre mais de 3700 (atendendo às quantidades de 2006) e mais de 11000 (atendendo às quantidades de 2008), em qualquer caso, superior a um equivalente de população de 2000, acima do qual a diretiva prevê a obrigação de dotar as aglomerações de sistemas coletores e de estações de tratamento. Por outras palavras, é como se existisse uma aglomeração inteira com essas dimensões, que estivesse desprovida de qualquer forma de recolha e de tratamento das águas residuais.

    76.

    Segundo a Comissão, a violação da diretiva é ainda mais grave por causa da proximidade do emissário submarino com algumas praias, nas quais tinham sido frequentemente assinalados detritos oriundos, com toda a probabilidade, do sistema coletor de Whitburn.

    77.

    O Reino Unido não contesta a maior parte dos factos assinalados pela Comissão, salvo no que diz respeito aos detritos encontrados nas praias. Com efeito, esses detritos não podem vir do sistema de Whitburn, dado que o emissário submarino utilizado para a descarga está equipado com redes de filtragem: os detritos, cuja presença, aliás, tinha diminuído nos últimos anos, deviam ser, portanto, de outra proveniência. Todavia, quanto ao restante, os factos relativos a Whitburn são pacíficos e a defesa do Reino Unido baseia-se essencialmente na interpretação da diretiva.

    78.

    Em especial, o Reino Unido insiste no facto de a qualidade das águas onde são efetuadas as descargas não ter sofrido efeitos negativos por causa das mesmas descargas, como testemunha também o facto de as águas ao largo das praias locais terem respeitado sempre os limites fixados pelo direito da União para a prática balnear ( 17 ).

    79.

    Além disso, o Reino Unido invocou um estudo, realizado em 2010, destinado a examinar a situação de Whitburn à luz do parecer fundamentado e do parecer fundamentado complementar da Comissão. Em especial, esse estudo avaliou as possíveis consequências de uma redução do número de descargas abaixo do limiar de 20 por ano, como a Comissão parecia exigir, em particular, no parecer fundamentado complementar. Nesse estudo concluiu-se que, para manter o número de descargas inferior a 20 por ano, a única solução possível seria aumentar a capacidade do túnel coletor para 10800 m3. Contudo, tal modificação produziria uma melhoria mínima, equivalente a cerca de 0,31%, na qualidade das águas recetoras, calculada utilizando os parâmetros normalmente usados para avaliar as águas balneares. Por estas razões, o estudo não recomendou nenhuma modificação no sistema coletor de Whitburn.

    2. Apreciação

    80.

    Para determinar se o Reino Unido se encontra em incumprimento no que diz respeito à situação de Whitburn, procederei a uma verificação segundo o modelo articulado em duas fases, que acima propus.

    81.

    No que diz respeito, em primeiro lugar, à natureza não excecional das descargas de águas não tratadas, no meu entender, a Comissão demonstrou suficientemente essa circunstância. Como foi acima salientado e como, por outro lado, o Reino Unido não contestou, apesar de uma melhoria da situação nos últimos anos, o sistema coletor de Whitburn continua a descarregar regularmente no ambiente águas não tratadas. Como já observei, não é possível indicar um número de descargas que constitua um limite fixo entre acontecimentos excecionais e acontecimentos recorrentes: como se viu, a Comissão faz muitas vezes referência ao número de 20 descargas; até mesmo um relatório encomendado pelo Governo do Reino Unido relativamente à situação de Londres ( 18 ) considerou razoável um limite ainda mais restritivo de 12 descargas por ano. De qualquer modo, independentemente do modelo adotado, a situação de Whitburn caracterizava-se, sem dúvida, no termo do prazo fixado no parecer fundamentado, por descargas cujo número e cuja intensidade indicam uma realidade recorrente, certamente não ocasional. Como se vê no quadro apresentado no n.o 72, entre 2006 e 2008 realizaram-se, por ano, entre 25 e 47 descargas. Tal número não indica seguramente um acontecimento excecional e, aliás, nem mesmo o Reino Unido alegou a natureza excecional das descargas em Whitburn.

    82.

    No entanto, resta ver se, face a esta demonstração efetuada pela Comissão, o Reino Unido consegue provar a aplicabilidade da cláusula BTKNEEC ao caso em apreço: noutros termos, se reduzir o número de descargas pressupõe soluções tecnologicamente impossíveis ou custos absolutamente desproporcionados aos benefícios.

    83.

    O documento-chave sobre este assunto é, no meu entender, o estudo realizado em 2010, que recordei no n.o 79, supra. À luz do mesmo, é claro, antes de mais, que uma redução considerável das descargas de águas não tratadas em Whitburn não apresenta obstáculos particulares do ponto de vista tecnológico: com efeito, tal exige, no essencial, uma ampliação do túnel coletor existente, e o Reino Unido não indicou em nenhum ponto que tal solução seria impraticável.

    84.

    Paralelamente, o estudo calculou qual poderia ser, em concreto, a melhoria da qualidade das águas recetoras obtida com a ampliação do túnel e a consequente redução das descargas. O raciocínio foi desenvolvido tomando como referência um limiar de 20 descargas, seguindo, assim, as indicações fornecidas pela Comissão na fase pré-contenciosa. Nesse contexto, o estudo pôs como hipótese uma melhoria da qualidade das águas de apenas 0,3% e concluiu, portanto, que a relação custo/benefício não justificava uma intervenção suplementar em Whitburn.

    85.

    Neste contexto, recorda-se também que, de acordo com o que o Reino Unido observou, não tendo sido, neste ponto, contradito pela Comissão, a qualidade das águas marinhas ao largo de Whitburn é bastante elevada e sempre respeitou os parâmetros fixados pelas normas da União para as águas balneares. Embora a qualidade balnear das águas recetoras não seja diretamente relevante para apreciar a conformidade com a Diretiva 91/271, isso pode, como já anteriormente observei, ser tido em linha de conta, no âmbito de uma avaliação global, para efeitos de uma possível aplicação da cláusula BTKNEEC. Parece, pois, razoável que, em tal situação, as autoridades nacionais tenham decidido não impor obras de modificação dispendiosas, que resultariam apenas numa melhoria totalmente marginal da situação ambiental.

    86.

    À luz destas observações, considero que o raciocínio desenvolvido pelo Reino Unido é válido e que, no caso em apreço, a Comissão não conseguiu demonstrar a existência de um incumprimento no que diz respeito ao sistema coletor de Whitburn. De facto, embora as descargas de águas não tratadas nessa região tenham sido regulares, o Reino Unido demonstrou que eventuais obras de aumento da capacidade do sistema coletor, destinadas a dar cumprimento às indicações fornecidas pela Comissão na fase pré-contenciosa, teriam trazido benefícios mínimos, insuficientes para justificar a execução das obras. A primeira parte da ação da Comissão deve, por conseguinte, ser julgada improcedente.

    D — Quanto à situação de Beckton, Crossness e Mogden

    1. Matéria de facto e posições das partes

    87.

    Relativamente a Londres, a ação da Comissão visa as três áreas de Beckton, Crossness e Mogden. Mais precisamente, a ação diz respeito às estações de tratamento destas três localidades, consideradas insuficientes para assegurar o cumprimento da diretiva, e, por isso, a Comissão entende que violam os artigos 4.° e 10.° desta. Além disso, em relação a Beckton e a Crossness, a Comissão alega igualmente uma violação do artigo 3.o da diretiva, considerando, portanto, também insuficientes os respetivos sistemas coletores.

    88.

    As três localidades referidas fazem parte do sistema de recolha e tratamento de águas de Londres, que serve, no total, um equivalente de população de mais de 9 milhões. Trata-se de um sistema, em grande parte, de tipo misto, concebido durante o século XIX e que foi progressivamente ampliado e modificado para acompanhar o crescimento da aglomeração urbana.

    89.

    Os problemas que foram identificados em Londres são de dois tipos. Em primeiro lugar, quando a capacidade dos sistemas coletores é ultrapassada, intervêm, como em Whitburn, os descarregadores de tempestade. O sistema de Londres tem 57 destes descarregadores, que descarregam quase todos no Tamisa e, ao que parece, estão ainda desprovidos de sistemas de filtragem, mesmo que apenas rudimentares, das águas descarregadas. Em segundo lugar, algumas das estações de tratamento para as quais são conduzidas as águas recolhidas pelos sistemas coletores não conseguem, em algumas ocasiões, tratar todo o volume que recebem: nesses casos, uma parte das águas é descarregada depois de ter sofrido apenas um tratamento mínimo.

    90.

    No que diz respeito a Londres, o principal elemento de prova em que a Comissão baseia os seus argumentos é um relatório elaborado, em fevereiro de 2005, por um grupo de trabalho no âmbito do Thames Tideway Strategic Study (a seguir «TTSS»). O TTSS foi criado no ano 2000, pelo Governo do Reino Unido, com a missão de avaliar a situação ambiental do Tamisa.

    91.

    O relatório do TTSS assinala, em especial, que 36 dos 57 descarregadores de tempestade do sistema de Londres produzem efeitos negativos no ambiente. Em média, dão-se cerca de 60 descargas de águas não tratadas no sistema, por ano, mesmo em períodos de precipitação moderada. Todos os anos são despejados no ambiente vários milhões de toneladas de águas não tratadas, o que corresponde à produção de águas residuais de uma aglomeração de centenas de milhares de habitantes. O problema é agravado pelo facto de as águas do Tamisa correrem muito lentamente para o mar, pelo que as águas poluídas descarregadas só se diluem ao fim de muito tempo.

    92.

    Segundo o relatório do TTSS, a situação das estações de tratamento não é melhor do que a dos sistemas coletores. A sua capacidade é suficiente em tempo seco, mas, em caso de precipitações, descarregam para o ambiente águas só parcialmente tratadas, agravando a carga de poluição, já considerável, produzida pelos descarregadores de tempestade dos sistemas coletores.

    93.

    Em novembro de 2005, o TTSS elaborou um relatório complementar para o governo, no qual indicou as possíveis soluções para o problema da poluição do Tamisa. Em especial, a solução que é considerada como sendo a melhor baseia-se na construção de um túnel subterrâneo, de cerca de 30 km de comprimento e com uma capacidade de 1,5 milhões de m3, capaz de armazenar as águas excedentárias em caso de ocorrência de chuvas, para posteriormente as reintroduzir no sistema, a fim de permitir o seu tratamento.

    94.

    Em abril de 2007, o Governo do Reino Unido anunciou a decisão de executar a proposta do TTSS, em particular, portanto, do novo túnel. Na carta enviada em 17 de abril de 2007 pelo Ministro do Ambiente à sociedade gestora do sistema de recolha e tratamento das águas de Londres, carta essa que foi apresentada em juízo pelo Reino Unido, refere-se que a escolha de proceder à construção do túnel visa «dar a Londres um rio adaptado ao século XXI e conseguir que o Reino Unido cumpra as obrigações decorrentes da diretiva [...]» ( 19 ). Soube-se na audiência que o atual Governo do Reino Unido também confirmou, recentemente, o seu apoio à construção do túnel subterrâneo, cuja conclusão está agora prevista para 2021-2023. Em especial, na declaração ministerial escrita enviada ao Parlamento em 3 de novembro de 2011 ( 20 ), foi afirmado que «se mantém válida a necessidade de reforçar o sistema coletor de Londres, que, em alguns pontos, está a esgotar a sua capacidade mesmo em condições de tempo seco, e de encontrar uma solução para os consequentes desafios ambientais [...]». Os trabalhos de construção deverão começar em 2016.

    95.

    O Reino Unido não contesta os factos tal como apresentados pela Comissão. Apenas sublinha que, para além do projeto de construção do novo grande túnel subterrâneo, estão em curso outros trabalhos para aumentar a capacidade das estações de tratamento de Beckton, Crossness e Mogden. Esses trabalhos deverão estar concluídos entre 2012 e 2014. Além disso, está prevista a construção de um segundo túnel, de dimensões inferiores, que deverá estar concluído já em 2014 e que deverá reduzir consideravelmente as descargas de águas não tratadas nas áreas de Beckton e de Crossness.

    96.

    A defesa do Reino Unido assenta, em especial, nas dimensões absolutamente excecionais do sistema de Londres e na inevitável complexidade de qualquer intervenção numa série de sistemas coletores concebidos durante o século XIX. Nessa ótica, não se pode considerar que haja incumprimento do Reino Unido, que, imediatamente depois da entrada em vigor da diretiva, começou a pôr em prática todas as atividades de estudo e planificação necessárias para alcançar a plena conformidade com o direito da União. A cláusula BTKNEEC impõe que não se considere que uma diretiva foi violada quando, na prática, um Estado-Membro empreendeu todas as ações necessárias para lhe dar execução, nos prazos, na realidade, mais breves possíveis.

    2. Apreciação

    97.

    No seu primeiro parecer fundamentado, a Comissão tinha criticado, de um modo geral, o funcionamento de todo o sistema de Londres. No parecer fundamentado complementar, decidiu, porém, depois de ter examinado os argumentos do Reino Unido em resposta ao parecer fundamentado, reduzir o objeto da ação aos termos atuais.

    98.

    Como já foi indicado, a Comissão critica, em especial, a insuficiência, para efeitos do cumprimento da diretiva, das estações de tratamento de Beckton, Crossness e Mogden, bem como dos sistemas coletores que confluem nas primeiras duas das três estações referidas.

    99.

    Há que questionar, a título preliminar, o tipo de demonstração que a Comissão deve produzir quanto ao incumprimento. Não me refiro aqui ao ónus da prova, dado que, quanto a este ponto, a jurisprudência é clara e constante: compete à Comissão demonstrar o incumprimento, não podendo basear-se numa qualquer presunção ( 21 ). Contudo, aquilo a que me refiro aqui é ao objeto da demonstração da Comissão.

    100.

    Com efeito, a leitura da petição mostra que a Comissão, apesar de ter decidido limitar as suas acusações a algumas partes específicas do sistema de recolha e tratamento das águas residuais de Londres, não indicou claramente quais são as especificidades dos setores objeto da ação. Pelo contrário, baseou toda a sua argumentação em provas — em particular, o relatório do TTSS — que se referem aos problemas do sistema em geral, e não aos específicos das partes do sistema (as áreas de Beckton, Crossness e Mogden) objeto da ação.

    101.

    Logo, deve verificar-se se o quadro probatório fornecido pela Comissão, que atesta uma situação problemática em Londres em geral, prova o papel específico que cada uma das realidades referidas desempenhou na criação da situação ambiental problemática ( 22 ).

    102.

    A esse respeito, parece determinante a documentação que a Comissão anexou à petição, em particular a resposta dada pelo Reino Unido, em 15 de junho de 2006, ao parecer fundamentado da Comissão. Nesse documento, ao responder a uma acusação que dizia respeito a todo o sistema de Londres, o Reino Unido, no essencial, reconduziu o problema às partes específicas do sistema às quais a Comissão, posteriormente, decidiu limitar a sua ação. Em especial, embora não admitindo formalmente a existência de um incumprimento, nas conclusões do documento foi afirmado que o Governo do Reino Unido «aceita que é necessário aumentar a capacidade das estações de tratamento de Beckton, Crossness e Mogden» e que «aceita que são necessárias medidas para reduzir a poluição proveniente de alguns descarregadores de tempestade que fazem parte dos sistemas coletores de Beckton e Crossness».

    103.

    À luz deste documento, entendo que os elementos fornecidos pela Comissão, apesar de se referirem ao sistema de Londres no seu conjunto, podem ser considerados pertinentes no que diz especificamente respeito às estações de tratamento de Beckton, Crossness e Mogden, bem como aos sistemas coletores de Beckton e Crossness. O Reino Unido, aliás, não formulou objeções a este respeito.

    104.

    Resta, agora, verificar se as provas fornecidas pela Comissão são suficientes para demonstrar o incumprimento. Também, neste caso, procederei ao exame adotando a abordagem em duas fases, que já utilizei relativamente à situação de Whitburn.

    105.

    No que diz respeito à existência do problema e à sua natureza não ocasional, o relatório do TTSS em que a Comissão baseou a parte essencial da sua ação constitui, em meu entender, uma indicação não só suficiente mas também muito dificilmente contestável, sobretudo tendo em consideração o facto de se tratar de um documento encomendado pelo próprio Governo do Reino Unido. Em especial, como se viu, esse relatório atesta a considerável frequência de descargas quer de águas não tratadas pelos sistemas coletores quer de águas apenas minimamente tratadas pelas estações de tratamento. E não só: essas ocorrências, longe de se limitarem a situações atmosféricas extraordinárias, verificam-se regularmente, mesmo em condições de chuva moderada.

    106.

    Por conseguinte, pode considerar-se que a Comissão demonstrou a natureza não excecional e não ocasional dos episódios de descarga de que acusa o Reino Unido: este Estado-Membro, aliás, não contesta a exatidão dos dados fornecidos pela Comissão.

    107.

    Finalmente, resta verificar se o Governo do Reino Unido demonstrou a impossibilidade técnica de dar cumprimento à diretiva ou a absoluta desproporção dos custos em relação aos benefícios, que poderiam justificar, com base na cláusula BTKNEEC, uma recolha e/ou um tratamento incompletos das águas residuais.

    108.

    A resposta, em meu entender, é negativa.

    109.

    Por um lado, com efeito, o Reino Unido informou que já foi decidida a realização de uma nova grande obra (um túnel coletor de águas) que será capaz, como a própria Comissão observou na fase pré-contenciosa, de realizar a conformidade total com a diretiva. As soluções técnicas para conseguir uma melhoria da situação existem, portanto, e o seu custo não pode ser considerado desproporcionado, dado que a decisão de as executar já foi tomada.

    110.

    Também não podem ser acolhidos os argumentos do Reino Unido relativos à complexidade e à longa duração das obras a realizar. Com efeito, é jurisprudência constante que o incumprimento deve ser apreciado à data fixada no parecer fundamentado (neste caso, 1 de fevereiro de 2009) e que um Estado-Membro não pode obter que a ação seja julgada improcedente pelo simples facto de estarem em curso trabalhos e atividades que conduzirão, no futuro, à eliminação do incumprimento ( 23 ). Aliás, convém também não esquecer que a diretiva remonta a mais de 20 anos: portanto, não se pode, certamente, considerar que é um texto com o qual os Estados-Membros não tiveram tempo de se familiarizar. Precisamente no que diz respeito à Diretiva 91/271, apesar de se tratar de um artigo diferente dos que estão em debate no presente processo, o Tribunal de Justiça considerou mais do que suficiente o prazo, fixado no parecer fundamentado, de 9 de setembro de 2004 ( 24 ).

    111.

    O Reino Unido pareceu sugerir, em especial na audiência, que a duração necessariamente longa das obras deveria ser considerada um elemento a favor da aplicação da cláusula BTKNEEC: sempre que um Estado-Membro tenha de realizar obras de grande envergadura para dar cumprimento ao direito da União, não pode ser alegado um incumprimento se essas obras estiverem em curso e a ser executadas dentro de prazos normais e razoáveis.

    112.

    Este raciocínio não pode ser acolhido. Como vimos, a cláusula BTKNEEC deve ser interpretada como referindo-se às soluções técnicas que, em geral, podem ser realizadas, e não ao momento em que essa realização pode ter lugar. O momento que deve ser tomado como referência para a apreciação da conformidade com um texto normativo comunitário é o fixado no parecer fundamentado da Comissão. A questão seria diferente se o Reino Unido tivesse demonstrado que a solução escolhida para resolver o problema, em particular, portanto, o túnel coletor de águas, não era tecnicamente possível no passado. Nesse caso, a cláusula BTKNEEC poderia ser legitimamente invocada. No entanto, tal não é aqui o caso: em nenhum momento o Reino Unido alegou que a construção do túnel ou o aumento da capacidade das estações de tratamento só recentemente se teriam tornado tecnicamente possíveis.

    113.

    Em conclusão, considero, por conseguinte, que a parte da ação que diz respeito à cidade de Londres deve ser julgada procedente.

    E — Quanto às despesas

    114.

    Como acima referi, tanto a Comissão como o Reino Unido requereram a condenação da outra parte nas despesas. Uma vez que proponho que o Tribunal de Justiça julgue procedente uma das duas partes da ação proposta pela Comissão e que declare improcedente a outra, considero que o Tribunal de Justiça deve aplicar o artigo 69.o, n.o 3, do Regulamento de Processo e, em consequência, repartir as despesas entre as partes.

    V — Conclusão

    115.

    Com base no exposto, proponho, por conseguinte, que o Tribunal de Justiça decida nos seguintes termos:

    «—

    Não tendo garantido a instalação de sistemas coletores adequados em Beckton e em Crossness, nos termos do artigo 3.o e do anexo I, A, da Diretiva 91/271/CEE, relativa à recolha e tratamento de águas residuais urbanas, e não tendo garantido que fosse efetuado um tratamento apropriado das águas residuais nas estações de tratamento de Beckton, Crossness e Mogden, em conformidade com os artigos 4.° e 10.° e com o anexo I, B, da referida diretiva, o Reino Unido não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força destas disposições;

    A ação é julgada improcedente quanto ao restante;

    Cada uma das partes suportará as suas próprias despesas.»


    ( 1 ) Língua original: italiano.

    ( 2 ) Diretiva 91/271/CEE do Conselho, de 21 de maio de 1991, relativa ao tratamento de águas residuais urbanas (JO L 135, p. 40).

    ( 3 ) Fixada num equivalente de população igual a 2000. O conceito de «equivalente de população» encontra-se definido no n.o 6 do artigo 2.o, mas não é relevante para o presente caso: de facto, é pacífico que as obrigações do artigo 3.o e do artigo 4.o da diretiva existiam para todas as localidades que a Comissão indica na sua ação.

    ( 4 ) Acórdão de 23 de setembro de 2004, Comissão/França (C-280/02, Colet., p. I-8573, n.os 16 e 17).

    ( 5 ) COM(89) 518 final (JO C 300, de 29 de novembro de 1989, p. 8; artigo 9.o).

    ( 6 ) Acórdãos de 7 de maio de 2009, Comissão/Portugal (C-530/07, n.os 28 e 53), e de 14 de abril de 2011, Comissão/Espanha (C-343/10, n.os 56 e 62).

    ( 7 ) V. versão alemã («Regenüberläufen») e neerlandesa («hemelwater»).

    ( 8 ) V., além da versão italiana («piogge violente»), a francesa («pluies d’orage»), a inglesa («storm»), a espanhola («aguas de tormenta»). Note-se que, em caso de uma versão linguística isolada se distinguir das outras, não pode, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, ser utilizada para estabelecer uma interpretação da norma que seja contrária à da maioria das outras versões linguísticas. V., por exemplo, acórdãos de 27 de março de 1990, Cricket St Thomas (C-372/88, Colet., p. I-1345, n.o 18); de 19 de abril de 2007, Velvet & Steel Immobilien (C-455/05, Colet., p. I-3225, n.o 19); e de 25 de março de 2010, Helmut Müller (C-451/08, Colet., p. I-2673, n.o 38).

    ( 9 ) Embora, evidentemente, não determinante. Como expus anteriormente, o texto de uma única versão linguística não pode, por si só, sustentar uma interpretação contrária às outras versões linguísticas.

    (

    10

    )

    «Extremsituationen, wie z.B. bei ungewöhnlich starken Niederschlägen».

    ( 11 ) Diga-se de passagem que esta cláusula não figurava na proposta original da Comissão e foi inserida apenas no texto final da diretiva aprovado pelo Conselho.

    ( 12 ) Acórdão de 30 de novembro de 2006, Comissão/Itália (C-293/05, n.o 35).

    ( 13 ) Na nota 6.

    ( 14 ) V., por exemplo, acórdão de 10 de dezembro de 2009, Comissão/Reino Unido (C-390/07, n.os 43 a 45). Para um exame, em termos gerais, do ónus da prova nas ações por incumprimento, v., também, os n.os 42 a 46 das conclusões apresentadas em 26 de março de 2009 pela advogada-geral J. Kokott nos processos Comissão/Finlândia (C-335/07) e Comissão/Suécia (C-438/07), em que foram proferidos os acórdãos de 6 de outubro de 2009 (respetivamente, Colet., p. I-9459 e p. I-9517).

    ( 15 ) O caudal em tempo seco de um sistema coletor é o volume de águas que são escoadas para o mesmo na ausência de chuvas.

    ( 16 ) V., em particular, os pontos 16.5.1.4 a 16.5.1.5, 16.5.1.7 a 16.5.1.9, 16.5.5.1, 16.5.11.2 a 16.5.11.3. No entanto, o relatório deu parecer favorável à alteração dos termos da licença existente, a fim de autorizar a sociedade gestora a proceder à descarga de águas residuais não tratadas, utilizando o emissário submarino de Whitburn, em situação de emergência. As críticas do inspetor concentraram-se, porém, como foi referido, na gestão das descargas em situações normais.

    ( 17 ) V., a este respeito, a Diretiva 76/160/CEE do Conselho, de 8 de dezembro de 1975, relativa à qualidade das águas balneares (JO L 31, p. 1; EE 15 F1 p. 133).

    ( 18 ) Trata-se do relatório TTSS, sobre o qual me debruçarei nos n.os 90 e segs., infra.

    ( 19 ) O sublinhado é meu.

    ( 20 ) Este documento, apresentado pelo Reino Unido muito próximo da audiência, foi aceite pelo Tribunal de Justiça e junto aos autos.

    ( 21 ) V., por exemplo, acórdão de 6 de outubro de 2009, Comissão/Suécia (C-438/07, Colet., p. I-9517, n.o 49 e jurisprudência aí referida).

    ( 22 ) V., por analogia, acórdão de 6 de outubro de 2009, Comissão/Finlândia (C-335/07, Colet., p. I-9459, n.o 88).

    ( 23 ) V., por exemplo, acórdãos de 24 de junho de 2004, Comissão/Grécia (C-119/02, n.os 52 a 54), e de 8 de julho de 2004, Comissão/Bélgica (C-27/03, n.os 39 e 40).

    ( 24 ) Acórdão Comissão/Itália, já referido na nota 12, n.os 25 a 28.

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