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Document 62010CC0300

Conclusões da advogada-geral Trstenjak apresentadas em 5 de Julho de 2012.
Vítor Hugo Marques Almeida contra Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial SA e outros.
Pedido de decisão prejudicial: Tribunal da Relação de Guimarães - Portugal.
Seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis - Diretiva 72/166/CEE - Artigo 3.º, n.º 1 - Diretiva 84/5/CEE - Artigo 2.º, n.º 1 - Diretiva 90/232/CEE - Artigo 1.º - Direito a indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis - Responsabilidade civil do segurado - Contribuição do lesado para o dano - Limitação do direito a indemnização.
Processo C-300/10.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2012:414

CONCLUSÕES DA ADVOGADA-GERAL

VERICA TRSTENJAK

apresentadas em 5 de julho de 2012 ( 1 )

Processo C-300/10

Vítor Hugo Marques Almeida

contra

Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial SA

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal da Relação de Guimarães (Portugal)]

«Diretivas 72/166/CEE, 84/5/CEE e 90/232/CEE — Seguro de responsabilidade civil automóvel — Colisão entre dois veículos automóveis, não havendo culpa imputável aos condutores — Pessoa transportada num dos veículos que contribuiu para a produção dos seus próprios danos — Responsabilidade objetiva — Recusa ou limitação do direito a indemnização»

I — Introdução

1.

A ideia da reparação de danos nasce do desejo de justiça concebido como ideal já na filosofia da antiga Grécia. Encontra-se assim, por exemplo, em Platão ( 2 ), a reflexão acerca de uma reparação de todos os danos causados, para além do direito penal. A par dos diferentes graus de imputação da responsabilidade, a filosofia antiga conhecia também a possibilidade da exoneração da responsabilidade, quando fosse óbvio que, em todo o caso, um dano não era apenas imputável ao causador dos danos, por exemplo, devido à contribuição do próprio lesado. O conceito decisivamente marcado por Antifonte ( 3 ) desenvolveu-se ao longo da história do direito romano e da história do direito moderno europeu até ao que hoje em dia é geralmente conhecido nos Códigos de Processo Civil de vários Estados-Membros pelo termo de «corresponsabilidade» ( 4 ). No presente processo, o Tribunal de Justiça terá de dar uma resposta à questão de saber se este conceito, que também é conhecido pelo direito da responsabilidade português, é compatível com o direito dos seguros de responsabilidade civil automóvel da União.

2.

Através do seu pedido de decisão prejudicial apresentado nos termos do artigo 267.o TFUE, o Tribunal da Relação de Guimarães (a seguir «órgão jurisdicional de reenvio») submete ao Tribunal de Justiça uma questão sobre a interpretação das Diretivas 72/166/CEE ( 5 ), 84/5/CEE ( 6 ) e 90/232/CEE ( 7 ), adotadas com o objetivo da aproximação das legislações dos Estados-Membros no âmbito do seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis. Através deste pedido, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, ser esclarecido sobre se estas diretivas se opõem a uma legislação nacional sobre a responsabilidade civil que permite a um órgão jurisdicional chamado a pronunciar-se sobre direitos de indemnização decorrentes de um acidente de viação, consoante a situação, limitar ou até recusar esses direitos, quando uma conduta danosa do lesado tenha contribuído para a produção ou o agravamento dos danos.

3.

Esta questão foi submetida no âmbito de um litígio a propósito de direitos indemnizatórios de uma pessoa lesada em consequência de um acidente de viação que, no momento do acidente de viação, viajava como passageiro num dos dois veículos envolvidos. O lesado, que, em infração ao disposto na lei, não tinha posto o cinto de segurança ( 8 ), sofreu lesões graves. A ação de indemnização proposta em seguida contra os condutores de ambos os veículos, contra a companhia de seguros do condutor do veículo automóvel no qual viajava como passageiro, bem como contra o Fundo de Garantia foi julgada improcedente pelo órgão jurisdicional de primeira instância competente, com base na legislação de responsabilidade civil suprarreferida, com o fundamento de que o dano era devido a culpa própria, uma vez que o lesado não respeitou a obrigação legal de uso do cinto de segurança.

4.

O presente processo enquadra-se numa longa série de pedidos de decisão prejudicial apresentados por órgãos jurisdicionais portugueses, os quais, no fundo, abordam a questão da compatibilidade de disposições nacionais sobre a responsabilidade civil em caso de acidentes de viação com o direito da União, mais precisamente, com as diretivas relativas à harmonização do seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis. Tendo em conta que, a este respeito, nos últimos tempos, foram proferidos vários acórdãos pelo Tribunal de Justiça, nos quais a resposta a esta questão foi afirmativa, sobretudo os acórdãos decisivos de 17 de março de 2011, Carvalho Ferreira Santos ( 9 ), e de 9 de junho de 2011, Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio ( 10 ), o presente processo oferece a oportunidade de confirmar esta jurisprudência através de uma decisão da Grande Secção — e de, assim, consolidar as bases da jurisprudência — ou, sendo o caso, precisá-la.

II — Quadro jurídico

A — Direito da União

5.

A partir de 1972, o legislador da União iniciou — através de diretivas — o processo de aproximação das legislações dos Estados-Membros relativas ao seguro de responsabilidade civil automóvel ( 11 ).

6.

A Primeira Diretiva previa a eliminação do controlo da carta verde nas fronteiras e a introdução de um regime de seguro de responsabilidade civil em todos os Estados-Membros, que cobrisse os danos ocorridos no território da Comunidade.

7.

Partindo do princípio de que a vítima de um acidente de viação deve ser indemnizada por um devedor solvente, quando a responsabilidade tiver sido apurada, o artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva dispõe o seguinte:

«Cada Estado-Membro […] adota todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro. Essas medidas devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.»

8.

Além disso, o artigo 3.o, n.o 2, da Primeira Diretiva determina, designadamente, o seguinte:

«Cada Estado-Membro adota todas as medidas adequadas para que o contrato de seguro abranja igualmente: — os prejuízos causados no território de um outro Estado-Membro, de acordo com a respetiva legislação nacional em vigor […]»

9.

Com a Segunda Diretiva, o legislador da União pretendeu harmonizar os diferentes aspetos materiais deste seguro obrigatório, de forma a garantir às vítimas de acidentes de viação uma proteção mínima e a reduzir as diferenças subsistentes na União no que diz respeito ao âmbito da cobertura deste seguro.

10.

O artigo 2.o, n.o 1, da Segunda Diretiva determina:

«Cada Estado-Membro tomará as medidas adequadas para que qualquer disposição legal ou cláusula contratual contida numa apólice de seguro, emitida em conformidade com o n.o 1 do artigo 3.o da Diretiva 72/166/CEE, que exclua do seguro a utilização ou a condução de veículos por:

pessoas que não estejam expressa ou implicitamente autorizadas para o fazer; ou

pessoas que não sejam titulares de uma carta de condução que lhes permita conduzir o veículo em causa; ou

pessoas que não cumpram as obrigações legais de caráter técnico relativamente ao estado e condições de segurança do veículo em causa,

seja, por aplicação do n.o 1 do artigo 3.o da Diretiva 72/166/CEE, considerada sem efeito no que se refere ao recurso de terceiros vítimas de um sinistro.

Todavia, a disposição ou a cláusula a que se refere o primeiro travessão do n.o 1 pode ser oponível às pessoas que, por sua livre vontade, se encontrassem no veículo causador do sinistro, sempre que a seguradora possa provar que elas tinham conhecimento de que o veículo tinha sido roubado. […]»

11.

A Terceira Diretiva foi aprovada para esclarecer algumas disposições relativas ao seguro de responsabilidade civil, pois subsistiam ainda disparidades consideráveis no âmbito da cobertura garantida pelo seguro.

12.

O artigo 1.o da Terceira Diretiva prevê o seguinte:

«Sem prejuízo do n.o 1, segundo parágrafo, do artigo 2.o da Diretiva 84/5/CEE, o seguro referido no n.o 1 do artigo 3.o da Diretiva 72/166/CEE cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, exceto o condutor, resultantes da circulação de um veículo. […]»

13.

O artigo 1.o-A desta diretiva tem a seguinte redação:

«O seguro referido no n.o 1 do artigo 3.o da Diretiva 72/166/CEE assegura a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor, têm direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. O presente artigo não prejudica nem a responsabilidade civil nem o montante das indemnizações.»

14.

A Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade ( 12 ), que entrou em vigor a 8 de outubro de 2009, veio consolidar as diretivas suprarreferidas, que, desta forma, deixam de vigorar. Uma vez que os acontecimentos que deram origem ao processo principal ocorreram muito antes da data de entrada em vigor da Diretiva 2009/103, apenas aquelas diretivas são aplicáveis ao processo principal.

15.

O artigo 12.o da Diretiva 2009/103 dispõe o seguinte:

«1.   Sem prejuízo do segundo parágrafo do n.o 1 do artigo 13.o, o seguro referido no artigo 3.o cobre a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, exceto o condutor, resultantes da circulação de um veículo.

[…]

3.   O seguro referido no artigo 3.o assegura a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor, têm direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. […]»

B — Direito nacional

16.

As disposições relevantes do Código Civil para o processo principal dispõem o seguinte:

17.

Artigo 503.o, n.o 1: «Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação».

18.

Artigo 504.o, n.o 1: «A responsabilidade pelos danos causados por veículos aproveita a terceiros, bem como às pessoas transportadas».

19.

O artigo 505.o do Código Civil, sob a epígrafe «Exclusão da responsabilidade», dispõe: «Sem prejuízo do disposto no artigo 570.o, a responsabilidade, fixada pelo n.o 1 do artigo 503.o só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo».

20.

O artigo 570.o do Código Civil prevê, sob o título «Culpa do lesado»:

«1.   Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

2.   Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.»

III — Factos, processo principal e questão prejudicial

21.

No dia 12 de junho de 2004, numa estrada municipal, ocorreu uma colisão frontal entre dois veículos. Um dos veículos não tinha seguro válido e eficaz. V. H. Marques Almeida viajava como passageiro num dos veículos. Quando do acidente, bateu com a cabeça no para-brisas, partindo-o, o que lhe provocou cortes profundos na cabeça e no rosto.

22.

V. H. Marques Almeida propôs no tribunal cível de primeira instância competente uma ação de indemnização contra a companhia de seguros para a qual foi transferida a responsabilidade civil obrigatória do proprietário de um dos veículos, contra o condutor e contra o proprietário do veículo sem seguro e ainda contra o Fundo de Garantia Automóvel (a seguir «Fundo de Garantia»). A ação foi julgada improcedente, com o fundamento de que não foi possível apurar a culpa de nenhum dos condutores na produção do sinistro. O órgão jurisdicional decidiu a favor da recorrida, uma vez que entendeu que o dano sofrido por V. H. Marques Almeida lhe era imputável, por não ter posto o cinto de segurança, em infração ao disposto no artigo 82.o, n.o 1, do Código da Estrada. Assim sendo, estaria excluído um dever de indemnização nos termos do artigo 505.o do Código Civil.

23.

V. H. Marques Almeida recorreu deste acórdão. O órgão jurisdicional de reenvio chamado a pronunciar-se sobre o recurso manifestou dúvidas quanto à compatibilidade das disposições portuguesas do direito da responsabilidade civil com o direito da União, uma vez que estas disposições preveem uma redução ou até uma exclusão do direito a indemnização do lesado, quando este contribuiu para a produção do dano. Remete, a este propósito, para o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Farrell ( 13 ), no qual o Tribunal de Justiça declarou que «[…] só em circunstâncias excecionais é possível, com base numa apreciação individual e no respeito do direito comunitário, limitar a extensão de tal indemnização» ( 14 ).

24.

O órgão jurisdicional de reenvio considera necessária uma interpretação das disposições pertinentes das diretivas relativas ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis. Nestas circunstâncias, decidiu suspender a instância e submeter a seguinte questão a título prejudicial:

 

«As normas dos artigos 3.°, n.o 1, da [Primeira Diretiva], 2.°, n.o 1, da [Segunda Diretiva] e 1.° e 1.°-A da [Terceira Diretiva], devem ser interpretad[as] no sentido de que se opõem a que o direito civil nacional, designadamente através das normas constantes dos artigos 503.°, n.o 1, 504.°, 505.° e 570.° do Código Civil, imponha que em caso de colisão de dois veículos, não sendo o evento imputável a qualquer dos condutores a título de culpa, e da qual resultaram danos corporais para o passageiro de uma dessas viaturas (o lesado que exige indemnização), a indemnização a que este se mostrar com direito lhe seja recusada ou limitada com o fundamento de que o referido passageiro contribuiu para a produção dos danos, uma vez que o mesmo seguia na viatura, sentado no lugar ao lado do condutor, sem que tivesse colocado o cinto de segurança, como é obrigatório nos termos da legislação nacional?

 

Sendo que se apurou que aquando da colisão entre as duas viaturas envolvidas, por causa desta e pelo facto de não ter colocado o cinto de segurança, o aludido passageiro embateu violentamente com a respetiva cabeça no vidro para-brisas, partindo-o, o que lhe provocou cortes profundos na cabeça e na cara?

 

E tendo ainda em conta que, não dispondo uma das viaturas envolvidas de seguro válido e eficaz transferido para qualquer entidade seguradora à data do sinistro, são demandados na ação, para além da Seguradora do outro veículo interveniente, o proprietário do veículo sem seguro, o seu condutor e o Fundo de Garantia Automóvel, os quais, por estar em causa a responsabilidade objetiva, poderão responder solidariamente pelo pagamento da dita indemnização?»

IV — Processo no Tribunal de Justiça

25.

A decisão de reenvio, datada de 22 de abril de 2010, deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 17 de junho de 2010.

26.

V. H. Marques Almeida, os Governos português e alemão e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas dentro do prazo previsto no artigo 23.o do Estatuto do Tribunal de Justiça.

27.

Na audiência de 22 de maio de 2012, compareceram os representantes dos Governos português e alemão e a Comissão, para apresentar alegações orais.

V — Principais argumentos das partes

28.

V. H. Marques Almeida entende que as diretivas em causa se opõem a uma disposição nacional que permite uma recusa ou uma limitação do direito a indemnização do lesado. Remete, a este propósito, para a jurisprudência do Tribunal de Justiça que visa conceder aos passageiros de veículos uma proteção efetiva. Além disso, remete para o objetivo das diretivas em causa que, no seu entender, consiste em harmonizar o direito dos Estados-Membros e proteger os direitos de indemnização das vítimas de acidentes de viação. Em seu entender, a legislação nacional controvertida é, nesta medida, incompatível com o direito da União, uma vez que restringe os referidos direitos de indemnização.

29.

Além disso, V. H. Marques Almeida esclarece que não contribuiu para o acidente de viação. Independentemente disso, também não foi provado que as suas lesões poderiam ter sido evitadas se tivesse posto o cinto de segurança. Chama a atenção para a circunstância de que o condutor do outro veículo não sofreu nenhuma lesão, embora não tivesse posto o cinto de segurança. Neste contexto, as lesões que sofreu não lhe são imputáveis. Consequentemente, não há razão para lhe ser negado o direito de indemnização.

30.

Ao invés, tanto o Governo português como o Governo alemão e a Comissão entendem que as diretivas em causa não se opõem a uma disposição nacional como a que está em causa no caso em apreço. A título de fundamentação, alegam que as diretivas em causa, de acordo com a sua letra e a sua finalidade, não visam harmonizar as disposições nacionais sobre a responsabilidade civil. Pelo contrário, visam, por um lado, incentivar a livre circulação quer dos veículos automóveis com estacionamento habitual no território da União quer dos respetivos passageiros. Por outro lado, visam garantir a igualdade de tratamento às vítimas de acidentes na União. Com este objetivo, as diretivas impõem que a responsabilidade civil relativa a veículos automóveis com estacionamento habitual no território da União esteja coberta por um seguro. Estas indicam qual o tipo de danos e quais as pessoas lesadas que deveriam ser cobertas por esse seguro.

31.

Por sua vez, esta regulamentação sobre a extensão da cobertura distingue-se do dever de indemnização que recai sobre o segurado em relação ao lesado, com base no direito de responsabilidade civil nacional. Este último é da competência legislativa dos Estados-Membros. Consequentemente, é apenas com base no direito da responsabilidade civil nacional que se aprecia a questão de saber se o direito de indemnização do lesado pode ser recusado ou limitado com o fundamento de que ele contribuiu para a produção do seu próprio dano. O Tribunal de Justiça já o confirmou nos acórdãos Carvalho Ferreira Santos ( 15 ) e Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio ( 16 ). Os factos na origem do presente processo também são quase idênticos aos factos que estavam em causa naqueles processos. Pelo contrário, os factos no processo principal distinguem-se dos dos processos Farrell ( 17 ) e Candolin e o. ( 18 ), na medida em que a limitação do dever de indemnização pelo seguro é uma consequência do direito de responsabilidade civil, e não, como naqueles processos, do direito do seguro de responsabilidade civil. Tendo em conta estas circunstâncias, tanto os Governos português e alemão como a Comissão não veem razão para se afastarem dos princípios da jurisprudência que o Tribunal de Justiça desenvolveu no acórdão Carvalho Ferreira Santos e no acórdão Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio.

VI — Apreciação jurídica

A — Considerações introdutórias

32.

O presente processo confere ao Tribunal de Justiça, como inicialmente foi referido, a oportunidade de se pronunciar novamente sobre a questão da relação entre as duas matérias jurídicas essenciais relativas ao exercício dos direitos de indemnização das vítimas de acidentes de viação — o direito do seguro de responsabilidade civil automóvel e o direito de responsabilidade civil em caso de acidentes de viação. Afigura-se necessária uma análise dos pontos de ligação existentes entre as duas matérias jurídicas, uma vez que não se pode excluir que as exigências impostas pelo direito da União no domínio harmonizado do seguro de responsabilidade civil automóvel também possam, em certas circunstâncias, ter influência no direito da responsabilidade civil nos Estados-Membros. A pertinência desta questão surge precisamente quando, como sugeriu o órgão jurisdicional de reenvio, haja a probabilidade de os objetivos prosseguidos pelo legislador da União com a adoção das diretivas sobre o seguro de responsabilidade civil automóvel serem frustrados, o que exige uma análise particular. A questão crucial que se coloca no presente processo é a de saber se estas exigências do direito da União se opõem a uma legislação nacional segundo a qual, no caso de colisão entre dois veículos automóveis, em que a culpa não é imputável a nenhum dos condutores, o direito de indemnização de um passageiro lesado pode ser recusado ou limitado, quando estiver assente que ele contribuiu para a produção dos seus próprios danos.

33.

Ao apreciar esta questão jurídica, o Tribunal de Justiça terá de examinar se a jurisprudência que adotou até à data neste domínio pode ser transposta para o processo principal ou, sendo caso disso, se necessita de ser precisada. Para fornecer ao Tribunal de Justiça uma base útil para a sua decisão, procederei à minha análise em três partes: primeiramente, farei um breve resumo da jurisprudência, no âmbito do qual apresentarei a problemática em termos gerais. A seguir, abordarei a questão de saber se essa jurisprudência pode ser transposta para o presente processo, sem deixar de parte as especificidades do processo principal. Por fim, dedicar-me-ei à questão de saber se, face às conclusões obtidas, é conveniente clarificar ou até alterar esta jurisprudência.

34.

Queria aqui antecipar que não estou convencida de que o presente processo justifique uma apreciação jurídica diferente da efetuada nos acórdãos Carvalho Ferreira Santos ( 19 ) e Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio ( 20 ). No meu entender, há que manter o princípio da distinção rigorosa entre as matérias jurídicas suprarreferidas ( 21 ). Tendo em conta o facto de que só o direito do seguro de responsabilidade civil automóvel foi objeto de harmonização pelo legislador da União, o direito da responsabilidade civil no caso de acidentes de viação deve, em princípio, permanecer intacto. Uma apreciação diferente seria dificilmente conciliável com a vontade do legislador da União. O direito dos Estados-Membros só poderá deixar de ser aplicado, através de uma interpretação extensiva do âmbito de aplicação das diretivas sobre a responsabilidade civil automóvel, se for evidente que os objetivos que o legislador pretendia alcançar com a adoção destas diretivas são postos em causa por disposições e práticas contrárias a estas diretivas. Tal não ocorre no caso em apreço como demonstram os paralelismos com o processo Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, no qual o Tribunal de Justiça considerou que as disposições do direito civil português ora em litígio eram compatíveis com o direito da União.

B — O quadro jurisprudencial

1. O acórdão Carvalho Ferreira Santos

a) A problemática do processo em linhas gerais

35.

O processo Carvalho Ferreira Santos ( 22 ) tinha por objeto um pedido de decisão prejudicial do Tribunal da Relação do Porto, no qual, no essencial, se colocou a questão de saber se as diretivas sobre o seguro de responsabilidade civil automóvel se opõem a uma legislação civil nacional que permite, no caso de uma corresponsabilidade do lesado na produção do dano, proceder à repartição da responsabilidade na proporção do risco com que cada um dos veículos automóveis contribuiu para os danos, com a consequência de que esta repartição conduziria à redução do montante da indemnização do lesado no acidente, invocada contra a companhia de seguro de responsabilidade civil automóvel.

36.

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opunha M. Carvalho Ferreira Santos a uma companhia de seguro de responsabilidade civil, a respeito da compensação total dos danos patrimoniais e morais que sofreu em consequência de um acidente de viação. M. Carvalho Ferreira Santos, que, no momento do acidente, conduzia um ciclomotor, sofreu um traumatismo craniano em consequência da colisão com um veículo automóvel. O órgão jurisdicional cível competente para a ação de indemnização concluiu que nenhum dos dois condutores teve culpa no acidente. Dado que persistiam dúvidas quanto à medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, o órgão jurisdicional cível aplicou o artigo 506.o, n.o 2, do Código Civil, que fixa em 50% a parte da responsabilidade de cada um dos condutores. O órgão jurisdicional cível decidiu que a responsabilidade do condutor do veículo que causou os danos devia ser reduzida na proporção da medida da contribuição do veículo da vítima para a produção dos danos. A limitação desta responsabilidade implicou uma limitação proporcional da indemnização devida ao lesado pela companhia de seguro de responsabilidade civil a título do seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis ( 23 ).

b) A argumentação nas conclusões

37.

Nas minhas conclusões de 7 de dezembro de 2010 — para o conteúdo das quais remeto neste âmbito — respondi pela afirmativa à questão da compatibilidade de tal regime de direito civil com o direito da União, essencialmente por não ser abrangido pelo âmbito de aplicação das diretivas em causa ( 24 ). Para chegar a esta conclusão, analisei o âmbito de aplicação das diretivas em causa, através de uma interpretação literal e teleológica das disposições pertinentes das diretivas. A este respeito, constatei que, embora as diretivas regulem várias áreas do direito do seguro de responsabilidade civil automóvel, não visam uma harmonização das regras da responsabilidade civil dos Estados-Membros ( 25 ). Daí concluí que nem os critérios materiais de imputação da responsabilidade pelos danos decorrentes de um acidente de viação nem o âmbito da responsabilidade estão abrangidos pelo campo de aplicação dessas diretivas ( 26 ). Tendo em conta que a disposição portuguesa controvertida devia ser classificada, do ponto de vista sistemático, no direito nacional da responsabilidade civil, também não podia ser considerada como abrangida pela diretiva ( 27 ).

38.

Além disso, nas minhas conclusões, comentei em pormenor a jurisprudência do Tribunal de Justiça nos processos Candolin e o. ( 28 ) e Farrell ( 29 ), assinalando as diferenças óbvias existentes entre estes processos e o processo Carvalho Ferreira Santos ( 30 ). Como expus pormenorizadamente, a situação material e de direito neste último processo distinguia-se em pontos fundamentais da dos processos Candolin e o. e Farrell, uma vez que naquele se tratava da compatibilidade de uma disposição do direito da responsabilidade civil — e não, como nos processos Candolin e o. e Farrell, de uma disposição do direito do seguro de responsabilidade civil automóvel ( 31 ). Nestas circunstâncias, ficava excluída, no meu entender, a possibilidade de transpor esta jurisprudência para o processo Carvalho Ferreira Santos ( 32 ).

39.

Tendo em conta as considerações aqui reproduzidas de forma sucinta, propus ao Tribunal de Justiça responder à questão prejudicial que as Diretivas 72/166, 84/5 e 90/232 não obstam a um regime nacional de direito civil que, numa situação como a do processo principal — em que está em causa uma colisão de veículos, na qual não se provou a culpa de nenhum dos condutores, tendo um deles sofrido danos corporais e materiais provocados no acidente —, leva a que o direito de indemnização do lesado com base na responsabilidade pelo risco seja reduzido, por efeitos de presunção legal, a metade dos prejuízos sofridos.

c) A decisão do Tribunal de Justiça

40.

O Tribunal de Justiça seguiu esta proposta no acórdão Carvalho Ferreira Santos ( 33 ). A este respeito, verifica-se também uma ampla correspondência na argumentação jurídica, como se mostrará a seguir.

41.

O ponto de partida desta argumentação foi a constatação de que se deve distinguir entre o dever de cobertura dos danos provocados a terceiros por veículos automóveis, pelo seguro de responsabilidade civil, por um lado, e a extensão da sua indemnização no âmbito da responsabilidade civil do segurado, por outro. Com efeito, enquanto a primeira é definida e garantida pela regulamentação da União, a segunda é regulada, essencialmente, pelo direito nacional ( 34 ). O Tribunal de Justiça declarou, referindo-se aos acórdãos Candolin e o. ( 35 ) e Farrell ( 36 ), que as diretivas relativas ao seguro de responsabilidade civil automóvel não visam harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados-Membros e que, no estado atual do direito da União, os Estados-Membros são livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos ( 37 ). Este último aspeto vale sobretudo para a determinação do tipo da responsabilidade civil — por culpa ou pelo risco — decorrente da circulação de veículos, que deve estar coberta pelo seguro obrigatório ( 38 ). No entanto, o Tribunal de Justiça esclareceu que, independentemente desta distinção entre os vários aspetos da regulamentação, existe mesmo assim uma ligação entre estes, uma vez que os Estados-Membros são obrigados, por força das diretivas, a garantir que a responsabilidade civil aplicável segundo o seu direito nacional esteja coberta por um seguro conforme com as disposições das três diretivas supramencionadas ( 39 ).

42.

No entanto, no que respeita ao entendimento dos critérios suprarreferidos da jurisprudência Candolin e, por seu turno, à sua eventual aplicabilidade ao processo principal, o Tribunal de Justiça adotou uma posição semelhante à das minhas conclusões. Com efeito, entendeu que a circunstância de uma disposição nacional de responsabilidade civil, como o artigo 506.o do Código Civil, prever uma repartição da responsabilidade civil pelos danos causados pela colisão entre dois veículos, quando nenhum dos condutores é culpado, não priva as diretivas do seu efeito útil, uma vez que esta disposição referente à responsabilidade civil não afeta a garantia, consagrada no direito da União, de que o regime de responsabilidade civil aplicável segundo o direito nacional esteja coberto por um seguro conforme com as disposições das três diretivas supramencionadas ( 40 ).

43.

Para alicerçar a sua argumentação por meio de uma interpretação sistemática, o Tribunal de Justiça baseou-se também nas mais recentes diretivas relativas ao seguro de responsabilidade civil automóvel, de cujas disposições resulta, no essencial, que, independentemente da cobertura de base de danos corporais e materiais pelo seguro de responsabilidade civil automóvel no caso de acidentes de viação, a responsabilidade e o próprio montante da indemnização decorrem das regulamentações da responsabilidade civil ( 41 ). Assim, por exemplo, o artigo 1.o-A da Terceira Diretiva, que foi introduzido pela Diretiva 2005/14 ( 42 ), prevê que o seguro referido no artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 72/166 cobre os danos corporais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utentes da estrada não motorizados, que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor, têm direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. Além disso, esta disposição da diretiva prevê expressamente que não são prejudicados nem a responsabilidade civil nem o montante da indemnização. O Tribunal de Justiça remete ainda para o artigo 12.o da Diretiva 2009/103, do qual resulta que a cobertura pelo seguro obrigatório dos danos causados a categorias específicas de vítimas de acidentes, sobretudo de utentes da estrada não motorizados e de passageiros, não prejudica a responsabilidade nem o montante da indemnização dos referidos danos.

44.

Face às considerações anteriores, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 3.o, n.o 1, da Primeira Diretiva, o artigo 2.o, n.o 1, da Segunda Diretiva e o artigo 1.o da Terceira Diretiva não obstam a uma legislação nacional como o artigo 506.o do Código Civil, que, num caso em que da colisão entre dois veículos resultem danos, sem que nenhum dos condutores seja culpado, prevê a repartição da responsabilidade pelos referidos danos na proporção da medida da contribuição de cada um dos veículos para a respetiva produção e, em caso de dúvida, considera igual essa medida de contribuição ( 43 ).

2. O processo Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio

a) A problemática do processo em linhas gerais

45.

O processo Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio teve por objeto um pedido de decisão prejudicial do Supremo Tribunal de Justiça, no qual este, em substância, solicitou ao Tribunal de Justiça um esclarecimento sobre a questão de saber se a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas deviam ser interpretadas no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que limita ou exclui o direito a indemnização da vítima de um acidente que envolve um veículo automóvel, pelo facto de a responsabilidade pela produção do dano caber, em parte ou exclusivamente, à vítima ( 44 ).

46.

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe J. M. Ambrósio Lavrador e M. C. Olival Ferreira Bonifácio a uma companhia de seguros de responsabilidade civil automóvel, a propósito da indemnização dos danos sofridos pelos recorrentes no processo principal, em consequência de um acidente de viação ocorrido entre o filho menor de ambos, que conduzia uma bicicleta, e um veículo cuja responsabilidade civil estava coberta pela companhia de seguros ( 45 ). Como decorre da decisão de reenvio, a ação de indemnização intentada pelos pais foi julgada improcedente tanto em primeira instância como na instância de recurso, com o fundamento de que o acidente, de que resultou a morte da criança, teria sido provocado pela própria, uma vez que circulava em contramão e não terá respeitado as regras de prioridade.

47.

O Supremo Tribunal de Justiça teve dúvidas quanto à compatibilidade do regime de responsabilidade civil aplicado com a jurisprudência Candolin e decidiu submeter ao Tribunal de Justiça a questão de saber se o artigo 1.o da Terceira Diretiva se opunha a que o direito civil português, sobretudo através dos artigos 503.°, n.o 1, 504.°, 505.° e 570.° do Código Civil, no caso de um acidente de viação, recuse ou limite o direito a indemnização da vítima do acidente, que é menor de idade, pelo simples facto de a mesma ser responsável, em parte ou exclusivamente, pela produção dos seus próprios danos.

b) A decisão do Tribunal de Justiça

48.

Tendo em conta que no processo Carvalho Ferreira Santos já tinham sido apresentadas conclusões e que o processo Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio não levantava nenhuma questão de direito nova, o Tribunal de Justiça decidiu, nos termos do artigo 20.o, quinto parágrafo, do seu Estatuto, ouvido o advogado-geral, julgar a causa sem apresentação de conclusões.

49.

No seu acórdão Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio ( 46 ), o Tribunal de Justiça decidiu que as diretivas relativas ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.

50.

O Tribunal de Justiça usou uma argumentação jurídica semelhante à do processo Carvalho Ferreira Santos. Em primeiro lugar, sublinhou a necessidade de distinguir a obrigação de cobertura, pelo seguro de responsabilidade civil, dos danos causados a terceiros por veículos automóveis da questão do âmbito da indemnização a pagar a estes a título da responsabilidade civil do segurado ( 47 ). Ao mesmo tempo, recordou que, na falta de uma regra de harmonização no direito da União, os Estados-Membros são livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos ( 48 ).

51.

Tal como no processo Carvalho Ferreira Santos, o Tribunal de Justiça referiu a diferença que existia entre o litígio no processo principal e as circunstâncias que deram origem aos processos Candolin e o. e Farrell. Contrariamente a estes dois últimos processos, o direito a indemnização da vítima do acidente não era afetado devido a uma limitação da cobertura da responsabilidade civil por disposições em matéria de seguro, mas sim devido a uma limitação da responsabilidade civil do condutor segurado, por força do regime de responsabilidade civil aplicável ( 49 ).

52.

Esta constatação baseava-se numa análise das disposições legais nacionais aplicáveis. Como o Tribunal de Justiça pôde deduzir da decisão de reenvio, embora os artigos 503.° e 504.° do Código Civil prevejam uma responsabilidade objetiva em caso de acidentes de viação, em conformidade com o artigo 505.o deste Código, a responsabilidade pelo risco prevista no artigo 503.o, n.o 1, do referido Código é, contudo, excluída quando o acidente for imputável à vítima. Além disso, quando um facto culposo da vítima tiver concorrido para a produção ou o agravamento dos danos, o artigo 570.o do Código Civil prevê que, com base na gravidade dessa culpa, a referida pessoa pode ser total ou parcialmente privada de indemnização ( 50 ). O Tribunal de Justiça entendeu estas disposições legais no sentido de que a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente apenas deveria ser afastada quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima. Caso a vítima, por facto que lhe seja imputável, tenha concorrido para a produção do dano ou para o seu agravamento, a indemnização desta é afetada na medida proporcional ao grau de gravidade desse facto ( 51 ).

53.

O Tribunal de Justiça defendeu a opinião de que, contrariamente aos contextos jurídicos nos processos Candolin e o. e Farrell, a dita legislação não tinha por efeito, no caso de a vítima ter contribuído para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar de maneira desproporcionada o seu direito — no caso concreto, o direito dos pais de um menor que faleceu em consequência de uma colisão com um veículo automóvel, quando circulava de bicicleta — de ser indemnizada pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil do condutor do veículo envolvido no acidente. O Tribunal de Justiça concluiu daí que as disposições controvertidas não afetavam, portanto, a garantia, prevista pelo direito da União, de que a responsabilidade civil, determinada segundo o direito nacional aplicável, seja coberta por um seguro conforme com as três diretivas acima mencionadas ( 52 ).

54.

Por outras palavras: o Tribunal de Justiça considerou que a circunstância de um regime nacional de responsabilidade civil recusar uma indemnização ao lesado, por este ter contribuído para a produção do dano, não priva ainda as diretivas do seu efeito útil, uma vez que o princípio da garantia — pretendida pelo direito da União — pelo seguro de responsabilidade civil automóvel do direito à reparação a título do direito civil permaneceria intacto.

C — Análise do presente processo

55.

Após a exposição das características principais da jurisprudência até à data, há que analisar se dela podem ser retiradas conclusões para o tratamento do presente processo.

1. Determinação do objeto da interpretação

56.

Contudo, antes de mais, há que fazer algumas observações quanto ao âmbito do objeto da interpretação. É reconhecido que faz também parte das competências do Tribunal de Justiça, caso seja necessário, precisar ou até reformular uma questão prejudicial, a fim de lhe permitir dar uma resposta tão completa e útil quanto possível ao órgão jurisdicional de reenvio, que contribua para a decisão do litígio ( 53 ). Em meu entender, é necessário precisar a questão prejudicial, uma vez que esta visa em parte também a interpretação de uma norma — a saber, o artigo 1.o-A da Terceira Diretiva — que, por motivos materiais e temporais, não é aplicável no processo principal.

57.

Não é materialmente aplicável porque o lesado no processo principal não pertence ao grupo relevante de pessoas protegidas. A disposição determina que o seguro de responsabilidade civil automóvel assegura a cobertura dos danos corporais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utentes da estrada não motorizados, que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor, têm direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. Porém, no litígio no processo principal, está em causa o direito a indemnização de um passageiro lesado no acidente.

58.

Esta disposição não é aplicável do ponto de vista temporal, porque a Diretiva 2005/14, que a introduziu na Terceira Diretiva, apenas foi adotada em 11 de maio de 2005. Nos termos do seu artigo 6.o, n.o 1, a Diretiva 2005/14 devia ser transposta até 11 de junho de 2007. Porém, em princípio, os particulares só podem invocar as disposições de uma diretiva num tribunal nacional após o decurso do prazo de transposição. Como o Tribunal de Justiça afirmou na sua jurisprudência, antes do termo do prazo de transposição de uma diretiva, não se pode criticar os Estados-Membros por ainda não terem adotado as medidas de transposição dessa diretiva para a sua ordem jurídica ( 54 ). Devido ao facto de o acidente em causa no processo principal ter ocorrido logo em 12 de junho de 2004, fica excluída a possibilidade de se recorrer a esta disposição da diretiva.

59.

Com base nesta constatação, afigura-se irrelevante para a decisão da causa a interpretação do artigo 1.o-A da Terceira Diretiva. Por esta razão, o Tribunal de Justiça também não tem de considerar esta disposição como fazendo parte do objeto de interpretação. Assim sendo, há que precisar a questão prejudicial no sentido de que o pedido de interpretação não se estende à disposição em causa da diretiva.

2. Transponibilidade da jurisprudência referida para o processo principal

60.

No meu entender, podem ser invocados uma série de argumentos, que serão a seguir abordados, a favor da transponibilidade, para o processo principal, da jurisprudência suprarreferida, relativa à relação entre o direito civil nacional e o direito do seguro automóvel, que é influenciado pelo direito da União.

61.

Em primeiro lugar, há que assinalar que, como o Governo português ( 55 ) e a Comissão ( 56 ) sublinham com razão, o Tribunal de Justiça já respondeu a uma questão prejudicial quase idêntica no processo Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio. Não é só por isso que este acórdão tem particular importância para a apreciação da questão jurídica suscitada no presente processo. Como já foi o caso naquele processo, também aqui se trata, afinal, da conformidade com as diretivas das regras portuguesas sobre a exclusão da responsabilidade pelo risco do proprietário de um veículo, devido a culpa própria do lesado. Resulta tanto da questão prejudicial como das disposições aplicáveis do Código Civil que estas regras de direito civil conferem a um órgão jurisdicional chamado a pronunciar-se sobre direitos de indemnização resultantes de um acidente de viação a faculdade de limitar ou até de recusar direitos, quando a conduta culposa do lesado tenha contribuído para a produção ou o agravamento dos danos. Esta faculdade decorre de um princípio do direito civil português segundo o qual uma conduta culposa do lesado pode influenciar o montante da indemnização. Consoante a gravidade da culpa, o direito de indemnização poderá mesmo vir a ser excluído na totalidade.

62.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça até à data demonstra que este princípio do direito civil nacional está, em substância, de acordo com o direito da União, uma vez que, nos dois acórdãos referidos, foi reconhecida a faculdade de os Estados-Membros preverem nos seus ordenamentos jurídicos tanto a redução dos direitos a indemnização para metade ( 57 ) como a sua exclusão na totalidade ( 58 ), quando isso se justifique. Tal deve-se, em primeiro lugar, à separação, reconhecida pelo Tribunal de Justiça, entre o direito do seguro de responsabilidade civil automóvel, sujeito às exigências do direito da União, e o direito da responsabilidade civil em caso de acidentes de viação, que é marcado por princípios do direito nacional. Devido ao facto de os Estados-Membros poderem, em particular, determinar o tipo de responsabilidade civil automóvel ( 59 ), estes também dispõem, consequentemente, da liberdade de determinar, ao configurarem o seu direito nacional, se a exclusão do direito a indemnização deve estar dependente de uma eventual culpa do lesado.

63.

A circunstância de os factos no processo principal apresentarem algumas especificidades não é, como o Governo alemão afirma ( 60 ) com razão, juridicamente importante para a resposta a dar à questão prejudicial. Estas especificidades também não podem servir de argumento a uma apreciação mais diferenciada. Quando muito, podem ter consequências na apreciação jurídica dos factos nos termos do direito civil nacional. Em concreto, trata-se do facto de, no processo principal, o passageiro lesado ter violado a obrigação legal do uso do cinto de segurança, o que, segundo o direito português, como resulta da decisão de reenvio, pode representar um aspeto jurídico relevante que justifica a acusação da corresponsabilidade do lesado. Esta última conclusão resulta especialmente da forma como a questão prejudicial está formulada.

64.

A este respeito, há que referir que o Tribunal de Justiça está, em definitivo, vinculado pela interpretação que o direito civil nacional encontrou na jurisprudência dos órgãos jurisdicionais portugueses, tanto mais que não dispõe da competência para interpretar o direito nacional ( 61 ) ou para apreciar questões de facto ( 62 ). No âmbito do processo previsto no artigo 267.o TFUE, compete exclusivamente ao órgão jurisdicional de reenvio interpretar a sua legislação nacional e apreciar os seus efeitos ( 63 ). Do ponto de vista do direito da União, uma apreciação jurídica dos factos no sentido suprarreferido é, em todo o caso, inatacável, porque as diretivas relativas aos veículos automóveis não visam, precisamente, a harmonização das regras da responsabilidade civil dos Estados-Membros. Por conseguinte, para efeitos do presente pedido de decisão prejudicial, apenas é determinante a apreciação jurídica vinculativa de uma conduta — seja em forma de ação seja de omissão — como corresponsabilidade, efetuada pelos órgãos jurisdicionais portugueses. Desta forma, o Tribunal de Justiça não precisa de apreciar as observações apresentadas por V. H. Marques Almeida a respeito da alegada inimputabilidade na produção do dano devido à violação da obrigação do uso do cinto de segurança ( 64 ).

65.

Também a circunstância de que V. H. Marques Almeida sofreu lesões graves não pode ser usada como argumento válido para uma apreciação diferente da situação jurídica. Há que recordar neste ponto que, nos factos que estiveram na origem do processo Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, a conduta considerada culposa levou mesmo à morte da vítima. Apesar da gravidade dos danos sofridos, o Tribunal de Justiça entendeu não haver motivos para se afastar da sua jurisprudência anterior. Nestas circunstâncias, as alegações de V. H. Marques Almeida devem ser rejeitadas por serem irrelevantes para efeitos do presente processo.

66.

A circunstância de que um dos veículos automóveis envolvidos não estava segurado no momento do acidente foi também referida como outra especificidade. No entanto, também não se percebe como é que esta circunstância pode ser relevante para a apreciação da situação jurídica, tanto mais que V. H. Marques Almeida dispõe da possibilidade de intentar uma ação não só contra a seguradora do outro veículo envolvido mas também contra o proprietário do veículo não segurado, o seu condutor e o Fundo de Garantia, os quais, uma vez que se trata da responsabilidade objetiva, poderiam responder solidariamente pelo pagamento da referida indemnização. O próprio órgão jurisdicional de reenvio remete para essa possibilidade na sua questão prejudicial.

67.

Além disso, convém precisar que a circunstância de que, no processo principal — diferentemente dos processos Carvalho Ferreira Santos e Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio —, não se trata da indemnização do condutor de um veículo automóvel, mas da de um passageiro, não se opõe a que esta jurisprudência seja transposta para o presente processo. Em primeiro lugar, há que salientar o facto de que o seguro de responsabilidade civil automóvel cobre, em princípio, os danos «de todos os passageiros do veículo», ou seja, inclusive os danos sofridos pelo passageiro que viajava ao lado do condutor, como decorre da letra do artigo 1.o da Terceira Diretiva. A proteção conferida pelo seguro a um passageiro é, consequentemente, comparável à de qualquer outro utente da estrada que conduza um veículo automóvel. Não obstante, esta regra do direito da União, que pretende garantir uma cobertura de seguro o mais completa possível a todos os utentes da estrada, não afeta, em definitivo, a questão da eventual redução, ou até da total exclusão, do direito a indemnização dos passageiros do veículo, ao abrigo do direito de responsabilidade civil. Assim sendo, daqui não resulta nenhuma especificidade para a determinação da extensão da indemnização. Como a Comissão alegou com razão ( 65 ), as considerações do Tribunal de Justiça quanto ao artigo 1.o-A da Diretiva 2005/14 e ao artigo 12.o da Diretiva 2009/103, no acórdão Carvalho Ferreira Santos — embora em relação à proteção de outras categorias de utentes da estrada não motorizados, também iam neste sentido. Há, assim, que constatar que a qualidade de passageiro da pessoa lesada não tem por si só consequências para a apreciação do presente processo.

68.

Caso se conclua, como no processo principal, que a supressão do direito de indemnização do lesado se deve, afinal, apenas a uma exclusão da responsabilidade civil, fica assim ao mesmo tempo excluída a possibilidade de estabelecer paralelismos com os processos Candolin e o. e Ferrell, para os quais o órgão jurisdicional de reenvio também remete para justificar o seu pedido de decisão prejudicial. Isto porque, contrariamente ao caso que esteve na origem dos acórdãos naqueles processos, o direito de indemnização de V. H. Marques Almeida, enquanto vítima de um acidente no processo principal, não é afetado por uma limitação da cobertura da responsabilidade civil através de disposições em matéria de seguros.

69.

Contrariamente ao respetivo quadro jurídico nos processos Candolin e o. e Farrell, as normas jurídicas portuguesas em causa não têm por consequência, no caso de o lesado contribuir para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar o seu direito a ser indemnizado pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil do condutor do veículo envolvido no acidente. Estas normas jurídicas não afetam a garantia, prevista no direito da União, de que a responsabilidade civil prevista no direito nacional aplicável deve estar coberta por um seguro conforme com as diretivas relativas aos veículos automóveis.

70.

Uma vez que o caso em apreço apresenta, quanto à problemática jurídica, paralelos evidentes tanto com o processo Carvalho Ferreira Santos como com o processo Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio, impõe-se a transposição desta jurisprudência. Logicamente, o Tribunal de Justiça deveria também declarar que as diretivas relativas aos veículos automóveis não se opõem a um regime nacional de responsabilidade civil segundo o qual, no caso de colisão entre dois veículos automóveis, em que a culpa não é imputável a nenhum dos condutores, o direito de indemnização do passageiro lesado de um dos veículos é recusado ou limitado por este ter contribuído para a produção dos seus próprios danos.

D — Inexistência da necessidade de alterar a jurisprudência

71.

Da análise precedente resulta que as diretivas relativas à harmonização do seguro de responsabilidade civil automóvel cumprem o seu objetivo legal de garantir a cobertura da responsabilidade civil automóvel por meio de um seguro. Contudo, não têm influência alguma na extensão da responsabilidade civil, uma vez que não visam uma harmonização das normas jurídicas nacionais da responsabilidade civil. Nestas circunstâncias, as diferentes soluções que, em concreto, os vários ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros ( 66 ) dão quanto à questão do montante das indemnizações das vítimas de acidentes, como V. H. Marques Almeida, devem ser aceites de acordo com o estado atual de desenvolvimento do direito da União. Não parece que seja possível proceder a uma aproximação indireta destas disposições legais, através de uma interpretação extensiva das diretivas, sem com isso interferir nas competências do legislador da União, que, até à data, renunciou conscientemente a tal harmonização. Caso se entendesse ser necessária uma harmonização das normas jurídicas da responsabilidade civil, também não seria desejável tal procedimento, tanto mais que uma harmonização ponderada do direito civil ( 67 ) pelo próprio legislador da União parece inevitável, como demonstram alguns exemplos recentes ( 68 ).

VII — Conclusão

72.

Tendo em conta as considerações que precedem, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à questão colocada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, da seguinte forma:

«O artigo 3.o, n.o 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, o artigo 2.o, n.o 1, da Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e o artigo 1.o da Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a um regime nacional de responsabilidade civil que, no caso de colisão entre dois veículos automóveis, em que a culpa não é imputável a nenhum dos condutores, exclui ou limita o direito de indemnização do passageiro lesado de um dos veículos, pelo facto de ele ter contribuído para a produção dos seus danos.»


( 1 ) Língua original: esloveno.

Língua do processo: português.

( 2 ) Platão (em grego antigo: Πλάτων; cerca de 427/428 a. C. a 347/348 a. C.) deixou as suas reflexões sobre a reparação dos danos, na sua obra «Νόμοι» (As Leis).

( 3 ) Antifonte de Ramnunte (em grego antigo: Άντιφών, cerca de 480 a. C. a 411 a. C.) deixou vários discursos de defesa que se destinavam a processos em tribunal. Além disso, também legou três obras designadas Tetralogias, ou seja, exercícios sucintos para a resolução de casos jurídicos fictícios, com dois discursos de acusação e dois discursos de defesa, respetivamente. Nelas é também abordado o aspeto da culpa própria do lesado.

( 4 ) V., a este respeito, Barta, H. — «Die Entstehung der Rechtskategorie ‘Zufall’ — Zur Entwicklung des haftungsrechtlichen Zurechnungsinstrumentariums im antiken Griechenland und dessen Bedeutung für die europäische Rechtsentwicklung», Lebend(ig)e Rechtsgeschichte (ed. de Heinz Barta/Theo Mayer-Maly/Fritz Raber), e Platão, Werke — Übersetzung und Kommentar (ed. de Ernst Heitsch/Carl Werner Müller/Kurt Sier), Göttingen 2011.

( 5 ) Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (JO L 103, p. 1; EE 13 F2 p. 113; a seguir «Primeira Diretiva»).

( 6 ) Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis (JO L 8, p. 17; EE 13 F15 p. 244; a seguir «Segunda Diretiva»).

( 7 ) Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis (JO L 129, p. 33, a seguir «Terceira Diretiva»).

( 8 ) De um estudo encomendado pela Comissão resulta que a não utilização do cinto de segurança é, a seguir ao excesso de velocidade e à condução sob o efeito do álcool, a causa de morte mais frequente em acidentes de viação. A Comissão chega à conclusão de que medidas de reforço da obrigação do uso do cinto de segurança poderiam salvar até 7300 vidas por ano na União Europeia [Commission Staff Working Document - Respecting the rules, better road safety enforcement in the European Union, COM(2008) 151]. No seu «Livro Branco» de 12 de setembro de 2001 relativo à política europeia de transportes [COM(2001) 370 final], a Comissão tinha proposto que a União Europeia deveria fixar a meta de reduzir para metade, até 2010, o número de mortos na estrada. No âmbito deste programa, foram lançadas várias iniciativas legislativas, entre as quais diretivas sobre o equipamento de veículos automóveis com cintos de segurança e sobre o alargamento da obrigação do uso do cinto de segurança a todas as categorias de veículos e em todos os assentos com que estão equipados. A obrigação do uso do cinto de segurança foi inicialmente introduzida pela Diretiva 91/671/CEE do Conselho, de 16 de dezembro de 1991 (JO L 373, p. 26), alterada pela Diretiva 2003/20/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de abril de 2003 (JO L 115, p. 63). Inicialmente, apenas era aplicável a veículos automóveis com menos de 3,5 toneladas, equipados com sistemas de retenção, e não previa para certos outros veículos (automóveis de passageiros, veículos comerciais ligeiros) a obrigação do uso de cinto de segurança nos assentos traseiros. Desde 2006, o uso do cinto de segurança é obrigatório em todos os veículos automóveis.

( 9 ) C-484/09, Colet., p. I-1821.

( 10 ) C-409/09, Colet., p. I-4955.

( 11 ) V., quanto à história da harmonização no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel os n.os 45 e seg. das minhas conclusões de 7 de dezembro de 2010 no processo Carvalho Ferreira Santos (acórdão já referido na nota 9), bem como Reichert-Facilidades, F. — «Europäisches Versicherungsvertragsrecht?», Festschrift für Ulrich Drobnig zum siebzigsten Geburtstag (editores Jürgen Basedow/Klaus J. Hopt/Hein Kötz), Tübingen, 1998, p. 127, e Lemor, U. — Kommentar zur Kraftfahrtversicherung (editores Hans Feyock/Peter Jacobsen/Ulf Lemor), 3.a edição, Munique, 2009, 1.a parte, n.o 5.

( 12 ) JO L 263, p. 11.

( 13 ) Acórdão de 19 de abril de 2007 (C-356/05, Colet., p. I-3067).

( 14 ) Ibidem, n.o 35.

( 15 ) Já referido na nota 9.

( 16 ) Já referido na nota 10.

( 17 ) Já referido na nota 13.

( 18 ) Acórdão de 30 de junho de 2005 (C-537/03, Colet., p. I-5745).

( 19 ) Já referido na nota 9.

( 20 ) Já referido na nota 10.

( 21 ) V. Caradonna, G. — «Responsabilità civile da circolazione dei veicoli», Giurisprudenza italiana — Recentissime dalle Corti europee, 2011, p. 761; Michel, V. — «Assurance automobile obligatoire et responsabilité civile», Europe, maio de 2011, n.o 5, p. 44, e, do mesmo autor, «Indemnisation de la victime fautive», Europe, agosto de 2011, n.o 8, p. 43, que chamam a atenção para o facto de que o dever de cobertura de danos de terceiros devidos a acidentes de viação se deve distinguir da repartição da responsabilidade civil entre os condutores dos veículos envolvidos, embora esta última seja da exclusiva competência reguladora dos Estados-Membros. V., quanto ao designado princípio da separação na relação entre a responsabilidade civil e o seguro de responsabilidade civil: Baumann, H. — «Zur Überwindung des Trennungsprinzips im System von Haftpflicht und Haftpflichtversicherung», Festgabe Zivilrechtslehrer 1934/1935 (ed. de Walther Hadding), Berlim, 1999, p. 13, e Von Bar, C. — «Das Trennungsprinzip und die Geschichte des Wandels der Haftpflichtversicherung», Archiv für die civilistische Praxis, 1981, n.o 181, p. 289, que se opõe à transposição de especificidades do direito dos seguros para o direito da responsabilidade, o que indicia que, no direito nacional, há uma clara separação entre as duas matérias de direito. Jansen, N. — Die Struktur des Haftungsrechts, Tübingen, 2003, p. 115, embora remeta para o caráter acessório da ação direta em relação ao regime da responsabilidade civil, chama a atenção, no entanto, ao mesmo tempo, para as diferenças que caracterizam o direito da responsabilidade civil e o direito dos seguros. Enquanto o direito da responsabilidade civil visa a compensação do dano, o direito dos seguros pretende uma repartição dos encargos de indemnização entre as entidades coletivas que suportam os danos.

( 22 ) Acórdão já referido na nota 9.

( 23 ) V. acórdão Carvalho Ferreira Santos (já referido na nota 9, n.os 11 a 14).

( 24 ) V. n.o 73 das minhas conclusões.

( 25 ) V., desde logo, acórdão de 14 de setembro de 2000, Mendes Ferreira e Delgado Correia Ferreira (C-348/98, Colet., p. I-6711, n.os 23 e 29). V., ainda, quanto à interpretação da Primeira, Segunda e Terceira Diretivas com efeito para os Estados da EFTA/do EEE, a jurisprudência do Tribunal da EFTA (que corresponde à exigência da homogeneidade no direito EEE), designadamente, os acórdãos de 14 de junho de 2001, Helgadóttir (E-7/00, n.o 30), e de 20 de junho de 2008, Nguyen (E-8/07, n.o 24). As diretivas são igualmente aplicáveis, nos termos dos n.os 8, 9 e 19 do Anexo IX do Acordo EEE, também aos Estados da EFTA/do EEE. A jurisprudência no âmbito do direito dos seguros de responsabilidade civil automóvel no Espaço Económico Europeu foi consideravelmente marcada pelo intercâmbio, durante vários anos, entre o Tribunal de Justiça da União Europeia e o Tribunal da EFTA. V., a respeito das principais características deste diálogo único entre tribunais, Baudenbacher, C. — «Some thoughts on the EFTA Court’s phases of life», Judicial Protection in the European Economic Area, Estugarda, 2012, pp. 11 e seg., e «The EFTA Court, the ECJ, and the Latter’s Advocates General — a Tale of Judicial Dialogue», Continuity and Change in EU Law — Essays in Honour of Sir Francis Jacobs (ed. de Anthony Arnull/Takis Tridimas), Oxford, 2008, pp. 90 e seg.

( 26 ) V. n.o 59 das minhas conclusões.

( 27 ) Ibidem, n.o 60.

( 28 ) Acórdão já referido na nota 16.

( 29 ) Acórdão já referido na nota 13.

( 30 ) Conclusões no processo Carvalho Ferreira Santos, n.os 50 a 53, 61 e 70 e segs.

( 31 ) Ibidem, n.os 61 e 70. V. Micha, M. — Der Direktanspruch im europäischen Internationalen Privatrecht, Tübingen, 2010, pp. 72 e seg., que analisa o acórdão Farrell exclusivamente do ponto de vista do direito do seguro de responsabilidade civil.

( 32 ) Ibidem, n.o 74.

( 33 ) Já referido na nota 9.

( 34 ) Ibidem, n.o 31.

( 35 ) Já referido na nota 18.

( 36 ) Já referido na nota 13.

( 37 ) Ibidem, n.o 32.

( 38 ) Ibidem, n.o 33.

( 39 ) Ibidem, n.o 34.

( 40 ) Ibidem, n.o 44.

( 41 ) Ibidem, n.o 45.

( 42 ) Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, que altera as Diretivas 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE do Conselho e a Diretiva 2000/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis (JO L 149, p. 14).

( 43 ) Acórdão Carvalho Ferreira Santos, já referido na nota 9, n.o 46.

( 44 ) Acórdão Ambrósio Lavrador e Olival Ferreira Bonifácio (já referido na nota 10, n.o 22).

( 45 ) Ibidem, n.o 2.

( 46 ) já referido na nota 10.

( 47 ) Ibidem, n.o 25.

( 48 ) Ibidem, n.o 26.

( 49 ) Ibidem, n.o 31.

( 50 ) Ibidem, n.o 32.

( 51 ) Ibidem, n.o 33.

( 52 ) Ibidem, n.o 34.

( 53 ) Acórdãos de 11 de julho de 2002, Marks & Spencer (C-62/00, Colet., p. I-6325, n.o 32), e de 28 de novembro de 2000, Roquette Frères (C-88/99, Colet., p. I-10465, n.os 18 e 19). V. Lenaerts, K.; Arts, D.; Maselis, I. — Procedural Law of the European Union, 2.a edição, Londres, 2006, pp. 48 e seg., n.o 2-021.

( 54 ) Acórdão de 4 de julho de 2006, Adeneler e o. (C-212/04, Colet., p. I-6057, n.o 114).

( 55 ) V. n.o 35 das observações escritas do Governo português.

( 56 ) V. n.o 41 das observações escritas da Comissão.

( 57 ) V. n.o 44 das presentes conclusões.

( 58 ) V. n.o 49 das presentes conclusões.

( 59 ) V. n.o 41 das presentes conclusões.

( 60 ) V. n.o 4 das observações escritas do Governo alemão.

( 61 ) V., nomeadamente, acórdãos de 19 de março de 1964, Unger (75/63, Colet., p. 421), e de 18 de dezembro de 1997, Annibaldi (C-309/96, Colet., p. I-7493, n.o 13).

( 62 ) V. acórdãos de 22 de setembro de 2011, Interflora e Interflora British Unit (C-323/09, Colet., p. I-8625, n.o 46), e de 19 de abril de 2012, Wintersteiger (C-523/10, n.os 26 e 28).

( 63 ) V. acórdãos de 3 de fevereiro de 1977, Benedetti (52/76, Recueil, p. 163, n.o 25), de 21 de setembro de 1999, Kordel e o. (C-397/96, Colet., p. I-5959, n.o 25), de 17 de julho de 2008, Corporación Dermoestética (C-500/06, Colet., p. I-5785, n.o 21), e de 1 de dezembro de 2011, Churchill Insurance Company e Evans (C-442/10, Colet., p. I-12639, n.o 22).

( 64 ) V. n.o 23 das observações escritas de V. H. Marques Almeida.

( 65 ) V. n.os 47 a 51 das observações escritas da Comissão.

( 66 ) A maior parte dos Estados-Membros (por exemplo, a Alemanha, a Espanha, a Estónia, a França, a Itália, a Letónia, a Polónia, a Eslovénia, a Suécia) reconhecem um direito de indemnização da vítima de acidente, mesmo que não seja possível imputar a culpa a nenhum dos condutores. Em regra, isto assenta na ideia da responsabilidade pelo risco inerente à condução de um veículo automóvel na estrada. Estes ordenamentos jurídicos preveem também uma ação direta do interessado contra a companhia de seguros. No entanto, noutros Estados-Membros, não existe este tipo de responsabilidade independentemente da culpa. Pelo contrário, o interessado deve invocar uma violação do dever de vigilância por parte do condutor (por exemplo, a Irlanda e os Países Baixos). Quanto à extensão do direito a indemnização propriamente dita, alguns Estados-Membros (por exemplo, a Polónia e a Eslovénia) preveem a possibilidade de uma redução ou até de uma extinção desse direito, quando o interessado não tenha o cinto de segurança apertado no momento do acidente. Por sua vez, outros Estados-Membros (por exemplo, a França e a Suécia) reconhecem nos seus ordenamentos jurídicos, por princípio, um direito do interessado a uma indemnização na totalidade, estando previstas exceções apenas em situações particulares. Pelo contrário, noutros Estados-Membros (por exemplo, a Alemanha, a Espanha, a Grécia, a Itália, a Letónia), prevê-se, em princípio, a redução ou a extinção do direito a indemnização, quando o interessado não cumpra a sua obrigação de prevenir os danos. Contudo, tal não ocorre automaticamente, dependendo antes da questão de saber se era possível à contraparte provar que a vítima não teria ficado lesionada se tivesse respeitado a obrigação do uso do cinto de segurança.

( 67 ) Dos exemplos de uma aproximação progressiva das legislações no domínio do direito civil faz parte o Quadro Comum de Referência («Common Frame of Reference»), que também propõe regras em matéria de responsabilidade extracontratual. Este contém, em VI — 1:101 («Basic Rule»), a regra de base segundo a qual qualquer pessoa que sofrer um dano imputável à conduta de outrem tem direito a ser indemnizada. VI — 3:205 («Accountability for damage caused by motor vehicles») prevê a responsabilidade do proprietário do veículo automóvel pelo dano infligido a outra pessoa em consequência de um acidente de viação. Por outro lado, VI — 5:102 («Contributory fault and accountability») prevê, no n.o 1, a redução do direito a indemnização proporcionalmente à medida da contribuição do lesado para os seus próprios danos. Nos termos do n.o 2, alínea c), esta redução do direito a indemnização é, no entanto, excluída quando o dano resultar de um acidente de viação, a não ser que, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, a desatenção do lesado seja considerada negligência grave. Esta regra visa conceder uma proteção especial às vítimas de acidentes de viação.

( 68 ) Uma harmonização parcial das legislações no âmbito do direito civil pode ser observada, sobretudo, no domínio do direito da proteção dos consumidores. De momento, este é objeto de uma série de adaptações legislativas que testemunham o esforço da Comissão para consolidar e modernizar o acervo alcançado. Não foi apenas a Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores (JO L 95, p. 29), que sofreu alterações pontuais através da Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores (JO L 304, p. 64), que se baseia no princípio de uma harmonização total das disposições nacionais de proteção dos consumidores. Além disso, a Comissão, através da sua Proposta de 11 de outubro de 2011 de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo a um direito europeu comum da compra e venda [COM(2011) 635 final], iniciou um projeto legislativo que tornará futuramente possível aplicar por opção este instrumento legislativo a contratos de compra e venda transfronteiriços, se as partes contratuais o convencionarem expressamente.

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