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Document 62008CJ0211

    Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 15 de Junho de 2010.
    Comissão Europeia contra Reino de Espanha.
    Incumprimento de Estado - Artigo 49.º CE - Segurança social - Cuidados de saúde hospitalares necessários durante uma estada temporária noutro Estado-Membro - Inexistência do direito a uma intervenção da instituição competente complementar da da instituição do Estado-Membro de estada.
    Processo C-211/08.

    Colectânea de Jurisprudência 2010 I-05267

    ECLI identifier: ECLI:EU:C:2010:340

    Processo C‑211/08

    Comissão Europeia

    contra

    Reino de Espanha

    «Incumprimento de Estado – Artigo 49.° CE – Segurança social – Cuidados de saúde hospitalares necessários durante uma estada temporária noutro Estado‑Membro – Inexistência do direito a uma intervenção da instituição competente complementar da da instituição do Estado‑Membro de estada»

    Sumário do acórdão

    Livre prestação de serviços – Restrições – Legislação nacional relativa ao reembolso das despesas médicas realizadas noutro Estado-Membro – Tratamentos hospitalares imprevistos – Regulamento n.° 1408/71

    [Artigo 49.° CE; Regulamento n.° 1408/71 do Conselho, artigo 22.°, n.° 1 alínea, a), i)]

    Não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE um Estado‑Membro que nega aos beneficiários do sistema nacional de saúde deste Estado‑Membro o reembolso das despesas médicas realizadas noutro Estado‑Membro em caso de tratamento hospitalar dispensado em conformidade com o artigo 22.°, n.° 1, alínea a), i), do Regulamento n.° 1408/71, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na sua versão alterada e actualizada pelo Regulamento n.° 118/97, conforme alterado pelo Regulamento n.° 1992/2006, por o nível de cobertura aplicável no Estado‑Membro em que esse tratamento é dispensado ser inferior ao previsto na legislação do Estado‑Membro do beneficiário.

    Assim, a circunstância de os beneficiários do sistema de saúde de um Estado‑Membro poderem ser incitados a regressar prematuramente a esse Estado‑Membro para aí receberem cuidados de saúde hospitalares tornados necessários devido a uma degradação do seu estado de saúde quando de uma estada temporária noutro Estado‑Membro ou a renunciar a uma viagem, por exemplo, turística ou de estudos a esse outro Estado‑Membro, por não poderem contar, fora dos casos particulares limitados, com uma intervenção complementar da instituição competente na eventualidade de o custo de um tratamento equivalente no Estado‑Membro do beneficiário ultrapassar o nível de cobertura aplicável nesse outro Estado‑Membro, é demasiado aleatória e indirecta. Por conseguinte, a legislação controvertida não pode, na sua generalidade, ser considerada susceptível de restringir a livre prestação de serviços de cuidados de saúde hospitalares, de serviços turísticos ou de serviços educativos.

    Por outro lado, os casos em que os cuidados de saúde hospitalares imprevistos dispensados a um beneficiário quando da sua estada temporária noutro Estado‑Membro colocam, por efeito da aplicação da legislação deste último Estado, o Estado‑Membro do beneficiário numa situação em que tem de assumir um encargo financeiro mais elevado do que se esses cuidados de saúde tivessem sido dispensados num dos seus estabelecimentos, presumem‑se globalmente compensados pelos casos em que, pelo contrário, a aplicação da legislação do Estado‑Membro de estada conduz a que recaia sobre o Estado‑Membro do beneficiário, pelos cuidados de saúde hospitalares em causa, um encargo financeiro menos elevado do que aquele decorreria da aplicação da sua própria legislação.

    (cf. n.os 72, 78? 80)







    ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

    15 de Junho de 2010 (*)

    «Incumprimento de Estado – Artigo 49.° CE – Segurança social – Cuidados de saúde hospitalares necessários durante uma estada temporária noutro Estado‑Membro – Inexistência do direito a uma intervenção da instituição competente complementar da da instituição do Estado‑Membro de estada»

    No processo C‑211/08,

    que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 20 de Maio de 2008,

    Comissão Europeia, representada por E. Traversa e R. Vidal Puig, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

    demandante,

    contra

    Reino de Espanha, representado por J. M. Rodríguez Cárcamo, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

    demandado,

    apoiado por:

    Reino da Bélgica, representado por M. Jacobs e L. Van den Broeck, na qualidade de agentes,

    Reino da Dinamarca, representado por J. Bering Liisberg e R. Holdgaard, na qualidade de agentes,

    República da Finlândia, representada por A. Guimaraes‑Purokoski, na qualidade de agente,

    Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte, representado por H. Walker, na qualidade de agente, assistida por M. Hoskins, barrister,

    intervenientes,

    O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

    composto por: A. Tizzano, presidente da Primeira Secção, exercendo funções de presidente, J. N. Cunha Rodrigues, K. Lenaerts (relator), J.‑C. Bonichot e P. Lindh, presidentes de secção, P. Kūris, G. Arestis, A. Borg Barthet, M. Ilešič, J. Malenovský, L. Bay Larsen, T. von Danwitz e A. Arabadjiev, juízes,

    advogado‑geral: P. Mengozzi,

    secretário: M.‑A. Gaudissart, chefe de unidade,

    vistos os autos e após a audiência de 24 de Novembro de 2009,

    ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 25 de Fevereiro de 2010,

    profere o presente

    Acórdão

    1        Com a sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede que o Tribunal de Justiça declare que, ao negar aos beneficiários do sistema nacional de saúde espanhol o reembolso das despesas médicas realizadas noutro Estado‑Membro em caso de tratamento hospitalar dispensado em conformidade com o artigo 22.°, n.° 1, alínea a), i), do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 do Conselho, de 14 de Junho de 1971, relativo à aplicação dos regimes de segurança social aos trabalhadores assalariados, aos trabalhadores não assalariados e aos membros da sua família que se deslocam no interior da Comunidade, na sua versão alterada e actualizada pelo Regulamento (CE) n.° 118/97 do Conselho, de 2 de Dezembro de 1996 (JO 1997, L 28, p. 1), conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.° 1992/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Dezembro de 2006 (JO L 392, p. 1, a seguir «Regulamento n.° 1408/71»), por o nível de cobertura aplicável no Estado‑Membro em que esse tratamento é dispensado ser inferior ao previsto na legislação espanhola, o Reino de Espanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE.

     Quadro jurídico

     Regulamentação da União

    2        O Regulamento n.° 1408/71, no seu artigo 22.°, sob a epígrafe «Estad[a] fora do Estado competente – Regresso ou transferência de residência para outro Estado‑Membro no decurso de uma doença ou maternidade – Necessidade de se deslocar a outro Estado‑Membro a fim de receber tratamentos adequados», enuncia:

    «1.      O trabalhador assalariado ou não assalariado que preencha as condições exigidas pela legislação do Estado competente para ter direito às prestações, tendo em conta, quando necessário, o disposto no artigo 18.°, e:

    a)      Cujo estado exija prestações em espécie que se tornem clinicamente necessárias durante uma estada no território de outro Estado‑Membro, tendo em conta a natureza das prestações e a duração prevista dessa estada;

    ou,

    […]

    c)      Que seja autorizado pela instituição competente a deslocar‑se ao território de outro Estado‑Membro a fim de nele receber tratamentos adequados ao seu estado,

    terá direito:

    i)      Às prestações em espécie concedidas, por conta da instituição competente, pela instituição do lugar de estada […], nos termos da legislação aplicada por esta instituição, como se nela estivesse inscrito, sendo, no entanto, o período de concessão das prestações regulado pela legislação do Estado competente;

    […]

    2.      […]

    A autorização exigida nos termos do n.° 1, alínea c), não pode ser recusada quando os tratamentos em causa figurarem entre as prestações previstas pela legislação do Estado‑Membro em cujo território reside o interessado e se os mesmos tratamentos não puderem, tendo em conta o seu estado actual de saúde e a evolução provável da doença, ser‑lhe dispensados no prazo normalmente necessário para obter o tratamento em causa no Estado‑Membro de residência.»

    3        O artigo 34.°‑A do Regulamento n.° 1408/71 dispõe:

    «[…] as alíneas a) e c) do n.° 1 […] do artigo 22.°, o n.° 2, segundo parágrafo, do artigo 22.° […] são aplicáveis, por analogia, aos estudantes e aos membros das suas famílias.»

    4        O artigo 36.°, n.° 1, do Regulamento n.° 1408/71 prevê:

    «As prestações em espécie concedidas pela instituição de um Estado‑Membro, por conta da instituição de outro Estado‑Membro, nos termos das disposições do presente [c]apítulo, são reembolsadas integralmente.»

    5        O Regulamento (CEE) n.° 574/72 do Conselho, de 21 de Março de 1972, que estabelece as modalidades de aplicação do Regulamento n.° 1408/71, na sua versão alterada e actualizada pelo Regulamento (CE) n.° 118/97, conforme alterado pelo Regulamento (CE) n.° 311/2007 da Comissão, de 19 de Março de 2007 (JO L 82, p. 6, a seguir «Regulamento n.° 574/72»), dispõe, no artigo 21.°, n.° 1:

    «Para beneficiar das prestações em espécie, nos termos da subalínea i) da alínea a) do n.° 1 do artigo 22.° do [R]egulamento [n.° 1408/71], o trabalhador assalariado ou não assalariado deve apresentar ao prestador de cuidados um documento emitido pela instituição competente comprovativo de que tem direito às prestações em espécie. Esse documento será estabelecido nos termos do artigo 2.° […].

    […]»

    6        O artigo 34.°, n.° 1, do Regulamento n.° 574/72 enuncia:

    «Se as formalidades previstas [no artigo] 21.° […] do [r]egulamento de execução não puderam ser cumpridas durante a estada no território de um Estado‑Membro que não seja o Estado competente, as despesas efectuadas são reembolsadas, a pedido do trabalhador assalariado ou não assalariado, pela instituição competente, segundo as taxas de reembolso aplicadas pela instituição do lugar de estada.»

    7        Com base no artigo 2.°, n.° 1, do Regulamento n.° 574/72, a Comissão Administrativa para a Segurança Social dos Trabalhadores Migrantes, a que se refere o artigo 80.° do Regulamento n.° 1408/71, aprovou o modelo do certificado necessário à aplicação do artigo 22.°, n.° 1, alínea a), i), deste último diploma, a saber, o formulário «E 111». Este formulário foi substituído, a partir de 1 de Junho de 2004, pelo «cartão europeu de seguro de doença», por força das Decisões n.° 189, de 18 de Junho de 2003, relativa à substituição dos formulários necessários para a aplicação dos Regulamentos n.° 1408/71 e n.° 574/72 do Conselho pelo cartão europeu de seguro de doença, no que respeita ao acesso aos cuidados de saúde durante uma estada temporária num Estado‑Membro que não seja o Estado competente ou de residência (JO L 276, p. 1), n.° 190, relativa às características técnicas do cartão europeu de seguro de doença (JO L 276, p. 4), e n.° 191, relativa à substituição dos formulários E 111 e E 111 B pelo cartão europeu de seguro de doença (JO L 276, p. 19), da Comissão Administrativa das Comunidades Europeias para a Segurança Social dos Trabalhadores Migrantes.

    8        A Decisão n.° 194 da Comissão Administrativa das Comunidades Europeias para a Segurança Social dos Trabalhadores Migrantes, de 17 de Dezembro de 2003, relativa à aplicação uniforme da subalínea i), alínea a), n.° 1, do artigo 22.° do Regulamento (CEE) n.° 1408/71 no Estado‑Membro de estada (JO 2004, L 104, p. 127), especificou o alcance do artigo 22.°, n.° 1, alínea a), i), do Regulamento n.° 1408/71.

    9        O sétimo considerando da Decisão n.° 194 enuncia:

    «Os critérios constantes da subalínea i), alínea a), n.° 1, do artigo 22.° […] não podem ser interpretados de modo a excluir doenças crónicas ou preexistentes. O Tribunal de Justiça sublinhou [no seu acórdão de 25 de Fevereiro de 2003, IKA (C‑326/00, Colect., p. I‑1703)] que a noção de ‘cuidados necessários’ não pode ser interpretada ‘no sentido de que o referido benefício está limitado apenas aos casos em que os cuidados dispensados se tornam necessários em virtude de uma doença súbita. Em particular, a circunstância de os cuidados requeridos pela evolução do estado de saúde do segurado social durante uma estada provisória noutro Estado‑Membro estarem eventualmente ligados a uma patologia preexistente e conhecida do segurado, tal como uma doença crónica, não significa que as condições para a aplicação das disposições em questão não estão reunidas’.»

    10      A Decisão n.° 194 determina, nos seus n.os 1 e 2:

    «1.      São abrangidas pelas disposições da subalínea i), alínea a), n.° 1, do artigo 22.° […] as prestações em espécie necessárias de um ponto de vista médico, concedidas a uma pessoa em estada temporária noutro Estado‑Membro, com o objectivo de evitar que um segurado seja obrigado a regressar prematuramente ao Estado competente para receber os cuidados requeridos pelo seu estado de saúde.

    Tais prestações visam permitir ao segurado continuar a sua estada em condições seguras do ponto de vista médico, tendo em conta a duração prevista dessa estada.

    Não são, todavia, abrangidas pelas referidas disposições as situações em a pessoa segurada se desloca a outro Estado‑Membro com o objectivo de receber tratamento médico.

    2.      Para avaliar se uma prestação em espécie preenche as condições estabelecidas na subalínea i), alínea a), n.° 1, do artigo 22.°, […] só devem ser levados em consideração os elementos de carácter médico enquadrados no contexto de uma estada temporária, tendo em conta o estado médico e os antecedentes da pessoa em questão.»

     Legislação nacional

    11      O artigo 43.° da Constituição espanhola consagra o direito à protecção da saúde e atribui aos poderes públicos a organização e a protecção da saúde pública por meio das prestações e dos serviços necessários.

    12      Para esse efeito, a Lei Geral de Saúde, 14/1986 (Ley 14/1986, General de Sanidad), de 25 de Abril de 1986 (BOE n.° 102, de 29 de Abril de 1986, p. 15207, a seguir «LGS»), estabelece as bases de um sistema nacional de saúde com carácter público, universal e gratuito.

    13      Os serviços que o sistema nacional de saúde presta aos que nele se encontram inscritos são totalmente gratuitos. Ao invés, por força do artigo 17.° da LGS, as prestações fornecidas fora deste sistema ficam, em geral, a cargo do paciente e não são reembolsáveis pelos organismos que o integram.

    14      O Real Decreto 63/1995, sobre a organização das prestações de saúde do sistema nacional de saúde (Real Decreto 63/1995, sobre ordenación de prestaciones sanitarias del Sistema Nacional de Salud), de 20 de Janeiro de 1995 (BOE n.° 35, de 10 de Fevereiro de 1995, p. 4538), dispunha, no seu artigo 5.°:

    «1.       A utilização das prestações efectua‑se com os meios disponíveis no sistema nacional de saúde […]

    2.      As prestações […] apenas são exigíveis relativamente ao pessoal, instalações e serviços, próprios ou convencionados, do sistema nacional de saúde, sem prejuízo do estabelecido em Convenções internacionais.

    3.      No caso de cuidados urgentes, imediatos e de carácter vital dispensados fora do sistema nacional de saúde, as respectivas despesas serão reembolsadas desde que se demonstre que os serviços deste sistema não puderam ser utilizados em tempo útil e que esses cuidados não constituem uma utilização evasiva ou abusiva da presente excepção.»

    15      A Lei 16/2003, sobre a coesão e qualidade do sistema nacional de saúde (Ley 16/2003, de cohesión y calidad del Sistema Nacional de Salud), de 28 de Maio de 2003 (BOE n.° 128, de 29 de Maio de 2003, p. 20567), fixa a nomenclatura das prestações deste sistema.

    16      Em conformidade com o disposto no artigo 14.° da LGS, o artigo 9.° da Lei 16/2003 dispõe:

    «As prestações sanitárias do sistema nacional de saúde só podem ser fornecidas pelo pessoal legalmente habilitado, em centros e serviços, próprios ou convencionados, do sistema nacional de saúde, excepto em situações de risco de vida, quando se demonstra que os meios deste sistema não puderam ser utilizados, sem prejuízo das disposições de Convenções internacionais de que a Espanha é parte.»

    17      A Lei 16/2003 foi objecto de disposições de aplicação que constam do Real Decreto 1030/2006, que fixa a nomenclatura dos serviços comuns do sistema nacional de saúde e define o procedimento para a sua actualização (Real Decreto 1030/2006, por el que se establece la cartera de servicios comunes del Sistema Nacional de Salud y el procedimiento para su actualización), de 15 de Setembro de 2006 (BOE n.° 222, do 16 de Setembro de 2006, p. 32650). Este real decreto foi revogado e substituído pelo Real Decreto 63/1995.

    18      O artigo 4.°, n.° 3, do Real Decreto 1030/2006 especifica:

    «O conjunto dos serviços comuns apenas é fornecido pelos centros, estruturas e serviços do sistema nacional de saúde ou que com este tenham celebrado convenções, excepto nas situações de risco para a vida, quando se prove que não foi possível utilizar as estruturas desse sistema. Nos casos de cuidados urgentes, imediatos e de carácter vital ministrados fora do sistema nacional de saúde, as respectivas despesas são reembolsadas após fornecimento de prova de que não foi possível utilizar em tempo útil os serviços desse sistema e que não se trata de uma utilização evasiva ou abusiva da presente excepção, sem prejuízo das disposições das Convenções internacionais de que Espanha seja parte ou das disposições de direito interno que regulam a prestação de cuidados de saúde no caso de prestações de serviços no estrangeiro.»

    19      Resulta destas disposições que, quando um inscrito no sistema espanhol de saúde recebe, noutro Estado‑Membro, cuidados de saúde hospitalares tornados necessários devido à evolução do seu estado de saúde quando de uma sua estada temporária neste último Estado, a instituição em que está inscrito só assume o encargo por esses cuidados de saúde até ao limite que lhe cabe por força da conjugação do disposto no artigo 22.°, n.° 1, alínea a), i), com o disposto no artigo 36.° do Regulamento n.° 1408/71, excepto no caso e nas condições indicadas no artigo 4.°, n.° 3, segundo período, do Real Decreto 1030/2006. Por conseguinte, esse beneficiário não tem direito, sem prejuízo desta excepção, a que a instituição espanhola assuma a parte do custo desses cuidados de saúde não coberta pela intervenção da instituição do Estado‑Membro de estada.

     Procedimento pré‑contencioso

    20      Um cidadão francês que, à época dos factos, residia em Espanha e estava inscrito no sistema espanhol de saúde apresentou à Comissão uma denúncia. Após ter sido hospitalizado, quando de uma estada em França, ao abrigo de um formulário E 111, o interessado viu‑se confrontado, quando regressou a Espanha, com a recusa da instituição espanhola de proceder ao reembolso da parte das despesas de hospitalização que a instituição francesa, nos termos da legislação desse país, tinha deixado a seu cargo.

    21      Após, infrutiferamente, ter pedido ao Reino de Espanha informações sobre a sua legislação relativa ao reembolso de cuidados de saúde dispensados noutros Estados‑Membros, a Comissão, por ofício de 19 de Dezembro de 2005, interpelou este Estado‑Membro para lhe responder satisfatoriamente num prazo de dois meses.

    22      Por ofício de 13 de Fevereiro de 2006, o Reino de Espanha respondeu que a sua legislação não previa a possibilidade de os beneficiários do sistema nacional de saúde serem reembolsados pela instituição competente das despesas de saúde em que incorreram fora do referido sistema, salvo nas circunstâncias excepcionais que, então, se encontravam definidas no artigo 5.° do Real Decreto 63/1995.

    23      Em 18 de Outubro de 2006, a Comissão remeteu ao Reino de Espanha uma notificação para cumprir na qual o alertava para a incompatibilidade da sua legislação interna com o artigo 49.° CE, porquanto excluía, salvo casos excepcionais, o reembolso ao inscrito no sistema nacional de saúde, pela instituição competente, das despesas suportadas com cuidados de saúde hospitalares dispensados noutro Estado‑Membro ao abrigo do artigo 22.°, n.° 1, alínea a), i), do Regulamento n.° 1408/71, quando exista uma diferença positiva entre os níveis de cobertura aplicados, respectivamente, em Espanha e nesse outro Estado‑Membro.

    24      Por ofício de 29 de Dezembro de 2006, o Reino de Espanha respondeu a essa notificação, alegando, no essencial, que a atitude da sua Administração relativamente ao autor da denúncia mencionada no n.° 20 do presente acórdão tinha sido conforme com o Regulamento n.° 1408/71, que o caso da referida pessoa era diferente do que esteve na origem do processo que culminou no acórdão de 12 de Julho de 2001, Vanbraekel e o. (C‑368/98, Colect., p. I‑5363), e que a interpretação defendida pela Comissão levaria a que o equilíbrio financeiro do seu sistema nacional de saúde fosse afectado.

    25      Não tendo ficado satisfeita com a resposta, a Comissão, em 19 de Julho de 2007, enviou ao Reino de Espanha um parecer fundamentado no qual afirmava que a legislação espanhola era contrária ao artigo 49.° CE e convidava esse Estado‑Membro a tomar as medidas necessárias para pôr termo a essa infracção no prazo de dois meses a contar da recepção desse parecer fundamentado.

    26      Como o Reino de Espanha manteve a sua posição na resposta que deu ao parecer fundamentado, a Comissão, em 19 de Setembro de 2007, decidiu‑se pela propositura da presente acção.

     Quanto à admissibilidade

    27      O Reino de Espanha contesta a admissibilidade da acção.

    28      Invoca o carácter confuso dos pedidos da Comissão, a qual denuncia uma violação do artigo 49.° CE ao mesmo tempo que admite a conformidade da prática da Administração espanhola com os Regulamentos n.os 1408/71 e 574/72. Além disso, a petição incluiria uma acusação de violação do referido artigo pelo segundo período do artigo 4.°, n.° 3, do Real Decreto 1030/2006, quando as situações como as do autor da denúncia mencionada no n.° 20 do presente acórdão integram o âmbito do último período deste artigo 4.°, n.° 3, que remete para o direito da União.

    29      O Reino de Espanha sustenta também que, relativamente à parte em que a Comissão lhe imputa uma violação do artigo 34.° do Regulamento n.° 574/72 decorrente da recusa da Administração espanhola de pagar aos inscritos no sistema nacional de saúde a diferença entre o custo integral dos cuidados de saúde hospitalares dispensados noutro Estado‑Membro e o montante da cobertura desses cuidados de saúde pela instituição desse Estado‑Membro, a formulação tardia dessa acusação torna‑a inadmissível.

    30      Por outro lado, o Reino de Espanha alega que a petição contém uma acusação, não formulada durante o procedimento pré‑contencioso, relativa à incompatibilidade do artigo 4.°, n.° 3, do Real Decreto 1030/2006 com o artigo 22.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71.

    31      O Reino da Bélgica sustenta que o artigo 49.° CE nunca foi mencionado no parecer fundamentado, de modo que a petição não pode conter uma argumentação baseada neste artigo.

    32      A este propósito, há que recordar que resulta do artigo 38.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça e da jurisprudência a ele relativa que a petição inicial deve indicar o objecto do litígio e conter a exposição sumária dos fundamentos do pedido, e que estes devem ser suficientemente claros e precisos para permitir ao demandado preparar a sua defesa e ao Tribunal de Justiça exercer a sua fiscalização. Daqui resulta que os elementos essenciais de facto e de direito em que se funda uma acção devem decorrer, de forma coerente e compreensível, do texto da própria petição e que os pedidos desta última devem ser formulados de forma inequívoca a fim de evitar que o Tribunal de Justiça decida ultra petita ou não conheça de uma acusação (v. acórdãos de 26 de Abril de 2007, Comissão/Finlândia, C‑195/04, Colect., p. I‑3351, n.° 22 e jurisprudência aí referida, e de 14 de Janeiro de 2010, Comissão/República Checa, C‑343/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 26).

    33      Além disso, o objecto das acções intentadas ao abrigo do artigo 226.° CE está circunscrito pela fase pré‑contenciosa nele prevista. Por conseguinte, a acção da Comissão deve basear‑se em acusações idênticas às que figuram no parecer fundamentado (v., neste sentido, acórdão Comissão/Finlândia, já referido, n.° 18).

    34      No presente caso, a acção e os pedidos da Comissão cumprem estes requisitos.

    35      Com efeito, tal como no parecer fundamentado, a petição não inclui a acusação de que o Reino de Espanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos Regulamentos n.os 1408/71 e 574/72. Na sequência da posição sempre defendida pela Comissão ao longo do procedimento pré‑contencioso, a petição apenas visa a declaração de um incumprimento do artigo 49.° CE por esse Estado‑Membro.

    36      Resulta inequivocamente da petição e dos pedidos que a Comissão aí faz que o incumprimento que esta alega reside no facto de que, relativamente a inscritos no sistema espanhol de saúde que necessitem de cuidados de saúde hospitalares quando de uma estada temporária noutro Estado‑Membro, na acepção do artigo 22.°, n.° 1, alínea a), i), do Regulamento n.° 1408/71, a legislação controvertida nega a esses inscritos, excepto nos casos de cuidados de saúde de urgência vital previstos no artigo 4.°, n.° 3, segundo período, do Real Decreto 1030/2006, o direito, que decorre do artigo 49.° CE, a um reembolso complementar por parte da instituição espanhola quando o nível de cobertura aplicável no Estado‑Membro de estada é inferior ao aplicável em Espanha.

    37      Neste contexto, a referência, designadamente nos pedidos da Comissão, ao artigo 22.°, n.° 1, alínea a), i), do Regulamento n.° 1408/71 não visa sustentar uma acusação autónoma, mas definir o círculo dos beneficiários em cujo detrimento a legislação controvertida constitui, no entender da Comissão, uma violação do artigo 49.° CE.

    38      Daqui se conclui que a acção é admissível.

     Quanto ao mérito

     Argumentos das partes

    39      A Comissão sustenta que o artigo 49.° CE se aplica aos serviços de cuidados de saúde abrangidos pela legislação espanhola, incluindo quando a necessidade desses cuidados de saúde ocorre durante uma estada temporária do beneficiário noutro Estado‑Membro.

    40      Após ter realçado a relação de complementaridade existente entre o artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71 e o artigo 49.° CE, a Comissão alega que, no presente caso, a legislação espanhola é de molde a restringir quer a prestação de serviços de cuidados de saúde hospitalares quer a prestação de serviços turísticos ou educativos, cuja obtenção pode estar na origem de uma estada temporária noutro Estado‑Membro.

    41      Salientando que a hipótese prevista no artigo 22.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71 abrange qualquer situação em que há necessidade de recorrer a cuidados de saúde durante uma estada temporária noutro Estado‑Membro devido a uma degradação do estado de saúde do inscrito, a Comissão sustenta que a legislação controvertida é susceptível de incitar o beneficiário do sistema espanhol de saúde, que se encontra nessa situação e que pode optar entre uma hospitalização no Estado‑Membro de estada e um regresso prematuro a Espanha para aí ser tratado, a optar pela segunda solução sempre que o nível de cobertura aplicável no Estado‑Membro de estada seja menos favorável do que o aplicável em Espanha.

    42      A Comissão acrescenta que a legislação controvertida é susceptível de dissuadir os beneficiários idosos ou que sofram de doença crónica que envolva risco de hospitalização de se deslocar, enquanto turistas ou estudantes, para um Estado‑Membro em que as condições de assunção dos cuidados de saúde hospitalares sejam menos vantajosas do que em Espanha.

    43      A Comissão sustenta que a restrição decorrente desta legislação não se justifica. Em especial, não está demonstrada a sua necessidade à luz do objectivo de garantir o equilíbrio financeiro do sistema nacional de saúde, dado que o custo, para o referido sistema, de um tratamento hospitalar dispensado noutro Estado‑Membro a um beneficiário desse sistema nunca poder exceder o custo que representaria em Espanha um tratamento equivalente.

    44      O Governo espanhol, apoiado pelos Governos belga, finlandês e do Reino Unido, contesta o facto de a legislação controvertida constituir uma restrição à livre prestação de serviços médicos, turísticos ou educativos, e sustenta que, em todo o caso, essa alegada restrição se justifica por razões imperiosas de interesse geral, decorrentes da preservação do equilíbrio financeiro do sistema nacional de saúde em causa.

     Apreciação do Tribunal

    45      A título liminar, há que lembrar que a aplicabilidade do artigo 22.° do Regulamento n.° 1408/71, no presente caso do seu n.° 1, alínea a), i), não exclui a aplicabilidade, em paralelo, do artigo 49.° CE. Com efeito, o facto de uma regulamentação nacional poder ser conforme ao Regulamento n.° 1408/71 não tem por efeito fazê‑la escapar às disposições do Tratado CE (v., neste sentido, acórdão de 16 de Maio de 2006, Watts, C‑372/04, Colect., p. I‑4325, n.os 46 e 47).

    46      Feita esta nota prévia, cabe, em primeiro lugar, verificar se os serviços que a Comissão identificou na sua acção têm, no caso de um beneficiário do sistema nacional de saúde cujo estado de saúde venha a exigir cuidados de saúde hospitalares quando da sua estada temporária noutro Estado‑Membro, carácter transfronteiriço susceptível de os incluir no âmbito de aplicação do artigo 49.° CE (v., neste sentido, acórdão de 26 de Abril de 1988, Bond van Adverteerders e o., 352/85, Colect., p. 2085, n.° 13).

    47      Tratando‑se, por um lado, dos serviços de cuidados de saúde, há que recordar que, segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, as prestações médicas efectuadas mediante remuneração estão abrangidas pelo âmbito de aplicação das disposições relativas à livre prestação de serviços, inclusive quando os cuidados de saúde são dispensados em quadro hospitalar (v., neste sentido, acórdãos Watts, já referido, n.° 86 e jurisprudência aí referida, e de 19 de Abril de 2007, Stamatelaki, C‑444/05, Colect., p. I‑3185, n.° 19). De resto, uma prestação médica não deixa de ser qualificada de prestação de serviços, na acepção do artigo 49.° CE, pelo facto de o paciente, após ter pago ao prestador estrangeiro o tratamento recebido, solicitar ulteriormente que os respectivos custos sejam suportados por um serviço nacional de saúde (v. acórdão Watts, já referido, n.° 89 e jurisprudência aí referida).

    48      Acresce que o Tribunal de Justiça já declarou que o artigo 49.° CE se aplica quando o prestador e o destinatário do serviço estão estabelecidos em Estados‑Membros diferentes (v. acórdão de 28 de Outubro de 1999, Vestergaard, C‑55/98, Colect., p. I‑7641, n.° 19). Os serviços que um prestador estabelecido num Estado‑Membro fornece, sem se deslocar, a um destinatário estabelecido noutro Estado‑Membro constituem uma prestação de serviços transfronteiriça, na acepção do artigo 49.° CE (v., designadamente, acórdãos de 10 de Maio de 1995, Alpine Investments, C‑384/93, Colect., p. I‑1141, n.os 21 e 22, e de 6 de Novembro de 2003, Gambelli e o., C‑243/01, Colect., p. I‑13031, n.° 53).

    49      Além disso, de acordo com jurisprudência também assente do Tribunal de Justiça, a livre prestação de serviços abrange não apenas a liberdade de o prestador fornecer serviços a destinatários estabelecidos num Estado‑Membro diferente daquele em cujo território está estabelecido mas também a liberdade de receber ou de beneficiar, como destinatário, dos serviços oferecidos por um prestador estabelecido noutro Estado‑Membro, sem ser perturbado por restrições (v., designadamente, acórdão Gambelli e o., já referido, n.° 55 e jurisprudência aí referida).

    50      Daqui se conclui que os serviços de cuidados de saúde hospitalares que um prestador estabelecido num Estado‑Membro aí fornece a um destinatário estabelecido noutro Estado‑Membro cabem no conceito de prestação de serviços, na acepção do artigo 49.° CE, inclusive quando, como no presente caso, a estada temporária do destinatário desses serviços de cuidados de saúde no Estado‑Membro de estabelecimento do prestador ocorre por razões de natureza não médica.

    51      Por outro lado, relativamente aos serviços não médicos, como os serviços turísticos e educativos especificamente tidos em vista pela Comissão na sua acção, importa lembrar, para além da jurisprudência mencionada no n.° 48 do presente acórdão, que as pessoas estabelecidas num Estado‑Membro, que se deslocam a outro Estado‑Membro na qualidade de turistas ou no âmbito de uma viagem de estudos, devem ser consideradas destinatárias de serviços, na acepção do artigo 49.° CE (v. acórdãos de 31 de Janeiro de 1984, Luisi e Carbone, 286/82 e 26/83, Recueil, p. 377, n.° 16; de 2 de Fevereiro de 1989, Cowan, 186/87, Colect., p. 195, n.° 15; e de 19 de Janeiro de 1999, Calfa, C‑348/96, Colect., p. I‑11, n.° 16).

    52      Resulta das considerações precedentes que a livre prestação de serviços engloba a liberdade de um inscrito estabelecido num Estado‑Membro se deslocar, por exemplo, na qualidade de turista ou estudante, a outro Estado‑Membro para uma estada temporária e aí receber cuidados de saúde hospitalares, dispensados por um prestador estabelecido nesse outro Estado‑Membro, quando o seu estado de saúde venha a necessitar desses cuidados de saúde durante essa estada.

    53      Embora seja pacífico que o direito da União não prejudica a competência dos Estados‑Membros para organizarem os seus sistemas de segurança social e que, na falta de harmonização a nível da União Europeia, compete à legislação de cada Estado‑Membro determinar as condições que conferem direito a prestações em matéria de segurança social, não deixa de ser verdade que os Estados‑Membros devem, no exercício dessa competência, respeitar o direito da União, nomeadamente as disposições relativas à livre prestação de serviços (v., designadamente, acórdão Watts, já referido, n.° 92 e jurisprudência aí referida).

    54      Nestas condições, importa, em segundo lugar, examinar se a legislação controvertida constitui um incumprimento das ditas disposições.

    55      Segundo jurisprudência assente, o artigo 49.° CE opõe‑se à aplicação de qualquer legislação nacional que tenha como efeito tornar a prestação de serviços entre Estados‑Membros mais difícil do que a prestação de serviços puramente interna a um Estado‑Membro (v., designadamente, acórdão Stamatelaki, já referido, n.° 25 e jurisprudência aí referida).

    56      Nesse contexto, o Tribunal de Justiça declarou que o facto de uma legislação nacional não garantir ao beneficiário autorizado a ser hospitalizado noutro Estado‑Membro, em conformidade com o artigo 22.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71, um nível de cobertura tão vantajoso como aquele de que beneficiaria se tivesse sido hospitalizado no Estado‑Membro de inscrição constitui uma restrição à livre prestação de serviços, na acepção do artigo 49.° CE, uma vez que é susceptível de o desencorajar, ou mesmo impedir, de se dirigir aos prestadores de serviços estabelecidos noutros Estados‑Membros (v., neste sentido, acórdão Vanbraekel e o., já referido, n.° 45). O Tribunal de Justiça especificou, a propósito de uma legislação nacional que prevê a gratuidade dos cuidados de saúde hospitalares fornecidos no âmbito do sistema nacional de saúde, que esse nível de cobertura corresponde ao custo, no sistema do Estado‑Membro de inscrição, de um tratamento equivalente ao dispensado ao beneficiário no Estado‑Membro de estada (v., neste sentido, acórdão Watts, já referido, n.os 131 e 133).

    57      O Tribunal de Justiça considerou que, quando um complemento de reembolso, que é função do regime de cobertura do Estado‑Membro de inscrição, não implica nenhum encargo financeiro suplementar para o sistema de seguro de doença desse Estado‑Membro relativamente ao reembolso ou ao custo que aí teria de suportar em caso de hospitalização, não se pode sustentar que o facto de esse complemento de reembolso ficar a cargo desse sistema de seguro de doença podia ter incidências significativas no financiamento do sistema de segurança social do dito Estado‑Membro (acórdão Vanbraekel e o., já referido, n.° 52).

    58      Todavia, pelo menos no que respeita aos cuidados de saúde de carácter hospitalar, os únicos que estão em causa no presente processo, o caso, denominado «tratamentos imprevistos», a que se refere o artigo 22.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71, em causa no presente processo, distingue‑se, na perspectiva do artigo 49.° CE, do caso, denominado «tratamentos programados», a que se refere o artigo 22.°, n.° 1, alínea c), do mesmo diploma, em causa nos processos que deram origem aos acórdãos, já referidos, Vanbraekel e o. e Watts.

    59      Importa, antes de mais, realçar que os casos de recurso a tratamentos hospitalares programados noutro Estado‑Membro, ao abrigo do artigo 22.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71, resultam, como se infere do n.° 2, segundo parágrafo, deste artigo, de uma verificação objectiva da indisponibilidade, no Estado‑Membro de inscrição, dos tratamentos em causa, ou de tratamentos com o mesmo grau de eficácia, num prazo clinicamente aceitável (v., neste sentido, acórdão Watts, já referido, n.os 57 e 79). Nesta situação e de acordo com o que o Tribunal de Justiça declarou no acórdão Vanbraekel e o., já referido, este último Estado‑Membro deve, para além das suas obrigações decorrentes da aplicação conjugada dos artigos 22.°, n.° 1, alínea c), e 36.° do Regulamento n.° 1408/71, garantir, se possível, ao beneficiário um nível de cobertura tão vantajoso como aquele de que teria beneficiado se, dentro desse prazo, os referidos tratamentos estivessem disponíveis no seu próprio sistema de saúde, sob pena de violação das regras relativas à livre prestação de serviços.

    60      Todavia, a situação é diferente no que respeita aos tratamentos imprevistos a que se refere o artigo 22.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71.

    61      Com efeito, no caso de um beneficiário cuja deslocação para outro Estado‑Membro se deve a razões, por exemplo, turísticas ou educativas, e não a uma qualquer insuficiência da oferta do sistema de saúde a que pertence, as regras do Tratado em matéria de livre circulação não lhe garantem a neutralidade relativamente a todos os serviços de cuidados de saúde hospitalares que possam vir a ser‑lhe prestados de modo imprevisto no Estado‑Membro de estada. Em face, por um lado, das disparidades nacionais existentes em matéria de cobertura social e, por outro, do objectivo do Regulamento n.° 1408/71, que consiste em coordenar as legislações nacionais, mas não em harmonizá‑las, as condições relativas a uma estada hospitalar noutro Estado‑Membro podem, consoante os casos, ser mais ou menos vantajosas ou desvantajosas para o beneficiário (v., por analogia, acórdãos de 19 de Março de 2002, Hervein e o., C‑393/99 e C‑394/99, Colect., p. I‑2829, n.os 50 a 52; de 29 de Abril de 2004, Weigel, C‑387/01, Colect., p. I‑4981, n.° 55; e de 26 de Abril de 2007, Alevizos, C‑392/05, Colect., p. I‑3505, n.° 76).

    62      Em seguida, importa assinalar que, no caso de tratamentos hospitalares programados noutro Estado‑Membro, o beneficiário está, regra geral, em condições de obter uma estimativa global do custo do tratamento hospitalar em causa, sob forma de orçamento, que lhe permitirá comparar os níveis de cobertura aplicáveis, respectivamente, no Estado‑Membro em que a estada hospitalar está prevista e no Estado‑Membro de inscrição.

    63      Nesse contexto, o facto de a legislação deste último Estado‑Membro não garantir ao beneficiário o direito ao reembolso, pela instituição competente, da eventual diferença positiva entre o nível de cobertura aplicável nesse Estado‑Membro e o aplicável no Estado‑Membro em que os tratamentos hospitalares em causa estão programados pode incitar esse beneficiário a renunciar ao tratamento previsto nesse outro Estado‑Membro, o que revela, como declarado pelo Tribunal de Justiça nos acórdãos, já referidos, Vanbraekel e o. e Watts, uma restrição à livre prestação de serviços.

    64      Ao invés, como salientado pelo Governo espanhol, a situação dos tratamentos imprevistos, a que se refere o artigo 22.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71, abarca, designadamente, um número indefinido de casos em que o estado de saúde do beneficiário venha a necessitar, quando da sua estada temporária noutro Estado‑Membro, de cuidados de saúde hospitalares devido, designadamente, à urgência da situação, à gravidade da afecção ou do acidente, ou ainda à impossibilidade médica de repatriamento para o Estado‑Membro de inscrição, que não deixam, objectivamente, outra alternativa que não seja o fornecimento de tratamento hospitalar ao interessado num estabelecimento situado no Estado‑Membro de estada.

    65      Em todos estes casos, é de excluir que se possa imputar à legislação controvertida um qualquer efeito restritivo sobre a prestação de serviços de cuidados de saúde hospitalares por prestadores estabelecidos noutro Estado‑Membro.

    66      É certo, como a Comissão observa, que a situação prevista no artigo 22.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71 diz igualmente respeito aos casos em que a degradação do estado de saúde do beneficiário quando de uma estada temporária noutro Estado‑Membro, embora imprevista, não o priva da opção entre uma hospitalização neste último Estado‑Membro e um regresso antecipado a Espanha para aí receber os cuidados de saúde hospitalares exigidos.

    67      Todavia, como sublinhado no ponto 1 da fundamentação da Decisão n.° 194, o sistema instituído no artigo 22.°, n.° 1, alínea a), i), do Regulamento n.° 1408/71 tem, nesses casos, precisamente como objectivo evitar que o segurado seja obrigado a regressar prematuramente ao Estado‑Membro de inscrição para aí receber os cuidados necessários, reconhecendo ao interessado um direito, que de outro modo não possuiria, de acesso aos cuidados de saúde hospitalares no Estado‑Membro de estada em condições de tomada a cargo tão favoráveis como aquelas de que beneficiam os inscritos abrangidos pela legislação deste último Estado (v., por analogia, acórdão de 23 de Outubro de 2003, Inizan, C‑56/01, Colect., p. I‑12403, n.os 21 e 22).

    68      Além disso, importa salientar que a potencial incidência da legislação controvertida na situação desse beneficiário depende de uma circunstância que, no momento em que este se vê confrontado com essa opção, tem carácter aleatório, a saber, a eventualidade de o nível de cobertura aplicável no Estado‑Membro de estada para o tratamento hospitalar previsto e cujo custo global não é, nessa fase, conhecido vir a revelar‑se inferior ao custo de um hipotético tratamento equivalente efectuado em Espanha.

    69      Relativamente aos serviços não médicos, como os serviços turísticos ou educativos, importa realçar que o caso dos tratamentos imprevistos, na acepção do artigo 22.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71, pressupõe, por definição, uma incerteza, no momento em que o beneficiário pondera deslocar‑se a outro Estado‑Membro, por exemplo, como turista ou estudante, quanto à necessidade de cuidados de saúde hospitalares quando da sua estada temporária nesse outro Estado‑Membro.

    70      A situação dos beneficiários idosos assim como a dos que sofrem de doença crónica ou preexistente, que a Decisão n.° 194, nos termos do seu n.° 1 e do seu sétimo considerando, inclui no âmbito de aplicação do artigo 22.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71, possuem, a este respeito, o mesmo carácter aleatório.

    71      Com efeito, embora possa existir um risco acrescido de degradação do seu estado de saúde, estes beneficiários não são, à semelhança dos outros beneficiários, susceptíveis de serem afectados pela legislação controvertida salvo na eventualidade de o seu estado de saúde vir a exigir, efectivamente, cuidados de saúde hospitalares, diferentes dos mencionados no artigo 4.°, n.° 3, segundo período, do Real Decreto 1030/2006, quando da sua estada temporária noutro Estado‑Membro, e de se revelar que o nível de cobertura aplicável nesse Estado‑Membro é inferior ao custo de um tratamento equivalente efectuado em Espanha.

    72      Assim, a circunstância de os beneficiários do sistema espanhol de saúde poderem ser incitados a regressar prematuramente a Espanha para aí receberem cuidados de saúde hospitalares tornados necessários devido a uma degradação do seu estado de saúde quando de uma estada temporária noutro Estado‑Membro ou a renunciar a uma viagem, por exemplo, turística ou de estudos a esse outro Estado‑Membro, por não poderem contar, fora do caso previsto no artigo 4.°, n.° 3, segundo período, do Real Decreto 1030/2006, com uma intervenção complementar da instituição competente na eventualidade de o custo de um tratamento equivalente em Espanha ultrapassar o nível de cobertura aplicável nesse outro Estado‑Membro, é demasiado aleatória e indirecta. Por conseguinte, a legislação controvertida não pode, na sua generalidade, ser considerada susceptível de restringir a livre prestação de serviços de cuidados de saúde hospitalares, de serviços turísticos ou de serviços educativos (v., por analogia, respectivamente em matéria de livre circulação das mercadorias e de livre circulação dos trabalhadores, acórdãos de 7 de Março de 1990, Krantz, C‑69/88, Colect., p. I‑583, n.° 11, e de 27 de Janeiro de 2000, Graf, C‑190/98, Colect., p. I‑493, n.os 24 e 25).

    73      O caso do autor da denúncia mencionada no n.° 20 do presente acórdão confirma esta conclusão. Com efeito, atesta o carácter hipotético da incidência da legislação controvertida, já que, como decorre dos autos, o pedido de reembolso complementar apresentado pelo interessado se revelou infundado, devido ao nível inferior do custo de um tratamento equivalente em Espanha relativamente ao nível de cobertura aplicado no Estado‑Membro de estada.

    74      Por fim, importa realçar que, diferentemente dos casos abrangidos pelo artigo 22.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71, aqueles a que se refere o artigo 22.°, n.° 1, alínea a), possuem um carácter imprevisível para os Estados‑Membros e para as suas instituições encarregadas da protecção social.

    75      Com efeito, cada Estado‑Membro dispõe, enquanto Estado‑Membro de inscrição, da possibilidade, no âmbito da competência que lhe é reconhecida pelos artigos 153.° TFUE e 168.° TFUE para organizar o seu sistema de saúde pública e de segurança social (v., neste sentido, acórdãos Watts, já referido, n.os 92 e 146, e de 1 de Junho de 2010, Blanco Pérez e Chao Gómez, C‑570/07 e C‑571/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 43), de aprovar medidas relativas ao âmbito e condições, nomeadamente de prazos, da oferta de cuidados de saúde hospitalares no seu próprio território a fim de diminuir o número de autorizações a emitir, ao abrigo do artigo 22.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento n.° 1408/71, para tratamentos programados noutro Estado‑Membro por beneficiários abrangidos pelo seu sistema.

    76      Em contrapartida, como salientado pelos Governos dinamarquês e finlandês, a mobilidade cada vez maior dos cidadãos no interior da União, designadamente por razões turísticas ou educativas, é susceptível de se traduzir num número cada vez mais significativo de casos de cuidados de saúde hospitalares imprevistos, na acepção do artigo 22.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71, que os Estados‑Membros não podem de forma alguma controlar.

    77      Neste contexto, em que cada Estado‑Membro se remete, enquanto Estado‑Membro de inscrição, à aplicação da legislação do Estado‑Membro de estada no que se refere ao nível da cobertura, que acaba por ficar a cargo da instituição competente, dos cuidados de saúde hospitalares de que o beneficiário venha a necessitar devido ao seu estado de saúde durante a sua estada temporária neste último Estado‑Membro, a aplicação conjugada do artigo 22.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento n.° 1408/71 e do artigo 36.° do mesmo diploma, relativo ao mecanismo de reembolso entre as instituições em causa, assenta numa compensação global dos riscos.

    78      Com efeito, os casos em que os cuidados de saúde hospitalares imprevistos dispensados a um beneficiário quando da sua estada temporária noutro Estado‑Membro colocam, por efeito da aplicação da legislação deste último Estado, o Estado‑Membro do beneficiário numa situação em que tem de assumir um encargo financeiro mais elevado do que se esses cuidados de saúde tivessem sido dispensados num dos seus estabelecimentos, presumem‑se globalmente compensados pelos casos em que, pelo contrário, a aplicação da legislação do Estado‑Membro de estada conduz a que recaia sobre o Estado‑Membro do beneficiário, pelos cuidados de saúde hospitalares em causa, um encargo financeiro menos elevado do que aquele decorreria da aplicação da sua própria legislação.

    79      Por conseguinte, o facto de impor a um Estado‑Membro o dever de garantir aos seus próprios beneficiários um reembolso complementar, pela instituição competente, sempre que o nível de cobertura aplicável no Estado‑Membro de estada pelos cuidados de saúde hospitalares imprevistos em causa seja inferior ao aplicável por força da sua própria legislação equivaleria a prejudicar a própria economia do sistema pretendida pelo Regulamento n.° 1408/71. Com efeito, em todos os casos relativos a tais cuidados de saúde, a instituição competente do Estado‑Membro do beneficiário ficaria sistematicamente exposta ao encargo financeiro mais elevado, quer por aplicação, nos termos do artigo 22.°, n.° 1, alínea a), do referido regulamento, da legislação do Estado‑Membro de estada que prevê um nível de cobertura superior ao previsto pela legislação do Estado‑Membro do beneficiário quer pela aplicação desta última legislação na hipótese contrária.

    80      Tendo em conta o que precede, a Comissão não demonstrou que, na generalidade, a legislação controvertida representa um incumprimento, por parte do Reino de Espanha, das obrigações que lhe incumbem por força do artigo 49.° CE.

    81      Por conseguinte, a acção é julgada improcedente.

     Quanto às despesas

    82      Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo o Reino de Espanha pedido a condenação da Comissão e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas. Nos termos do n.° 4, primeiro parágrafo, do mesmo artigo, o Reino da Bélgica, o Reino da Dinamarca, a República da Finlândia e o Reino Unido, intervenientes no presente litígio, suportarão as suas próprias despesas.

    Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

    1)      A acção é julgada improcedente.

    2)      A Comissão Europeia é condenada nas despesas.

    3)      O Reino de Bélgica, o Reino da Dinamarca, a República da Finlândia e o Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda do Norte suportarão as suas próprias despesas.

    Assinaturas


    * Língua do processo: espanhol.

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